Linguagem e Subjetividade: Sobre a natureza desta relação

Linguagem e Subjetividade

Linguagem e Subjetividade: Sobre a natureza desta relação

04/2011

Linguagem e Subjetividade: Sobre a natureza desta relação

Cláudia Fernanda Pollonio*

Um cenário clínico, seja ele qual for, se estrutura a partir de paradigmas teórico-metodológicos distintos, o que imprime à prática clínica um caráter heterogêneo, isto é, o manejo do tratamento não é padronizável. Nesta coluna, em que a clínica fonoaudiológica está em cena, pretendo abordar a relação do clínico frente à linguagem sintomática a partir de uma perspectiva que enlace/articule linguagem e subjetividade. É nesta mesma direção que o Grupo de Pesquisa Linguagem e Subjetividade, coordenado pela Profa. Dra. Regina Maria Freire, vem desenvolvendo seus trabalhos.

As pesquisas nascentes deste Grupo de Pesquisa caminham numa direção diametralmente distinta a uma concepção de estimulação, ensino e (re) aprendizagem da linguagem. O abandono de uma proposta desta natureza deve-se ao cuidado do clínico em escutar, para além da fala sintomática, o sofrimento de um sujeito por sua condição de falante. Do lado do paciente, essa escuta lhe permite dizer do incômodo provocado por sua fala – o paciente ganha, assim, vez e voz (Fonseca, 2002); quanto ao clínico, sua escuta deixa de ser dirigida ou pré-determinada a partir de uma queixa... questões etiológicas perdem peso nesta clínica na medida em que o fonoaudiólogo se respalda em uma teorização sobre a linguagem que admite a “ordem própria/autônoma da língua” (Saussure, 1916). Dito de outro modo: as dificuldades de linguagem, habitualmente lidas como decorrentes de alterações perceptuais/discriminatórias ou articulatórias (Andrade, 2003; 2006), passam a ser pensadas a partir das relações do sujeito com a língua e com o outro (De Lemos, 2002, 2005, entre outros).

A que se deve essa possibilidade de escuta que se tem aqui defendido?
Pode-se dizer que a um determinado assentamento teórico que se permite tocar por questões movimentadas no interior da prática clínica – questões de natureza subjetiva que, portanto, dão visibilidade ao heterogêneo, à Fonoaudiologia que tramita por uma clínica que articula a objetividade teórica e os efeitos singulares provocados por um caso. Neste cenário, essa clínica preconiza que o singular afete o previsível/o todo de uma teoria, o que leva o clínico a reconhecer que o seu saber é incompleto/não todo (Carvalho,1995) diante do efeito de deriva da língua (Milner, 1987).

Dessa forma, manuais e procedimentos objetivos de avaliação ou terapêutica da linguagem perdem sua serventia... eles são restritos à medida que ora permitem o levantamento dos “erros” na fala sob a referência da gramática da língua; ora, apagam a relação dialógica entre o paciente e o terapeuta, deixando a linguagem à margem. A experiência clínica me tem indicado que a determinação dos “erros” e as tentativas de implementar formas padrões de fala dirigidas à percepção ou ajustes articulatórios não são garantia de sucesso terapêutico. Ao contrário, abrir as portas da clínica para que o sujeito sinta-se acolhido e possa reelaborar questões relativas ao seu sintoma frente às relações que entretêm com o outro, podem, sim, sinalizar uma direção possível para mudanças de posição do sujeito diante de sua fala. Mudanças que afetam, impreterivelmente, a subjetividade. Sob essa perspectiva, a “condução do tratamento há de ser precisa: há que se ajustar a palavra à vida, conciliar a palavra com o corpo, fazer da palavra a própria pele até alcançar o almejado sentir-se “bem na própria pele” (Forbes, 2003).

Os segmentos clínicos a seguir, ilustram as discussões que levantei:
a) “Agora falando assim, sem gaguejar, me sinto um homem de verdade”;
b) “Com o trabalho de fono, passei a confiar mais em mim quando estou no palco. Antes eu tinha receio, parece que a voz saía fraca e eu não olhava direito pras pessoas. Hoje encaro bem a platéia”.
c) “Eu não erro mais o /r/, falo muito bem agora, né tia? Sabe que o João, da minha sala, ainda me chama de Andlé? Eu acho que ia ser bom ele também fazer fono pra falar bem igual eu”.
d) “Depois que comecei a fazer fono minha professora disse que eu tô melhorando... e é verdade. Eu gosto de ler e não fico mais lendo devagar igual bebezinho”.
e) “Eu falava igual o Pato Donald´s e o pessoal ria de mim. Hoje em dia, quem não me conhecia antes, nem imagina que eu falava mal. Chegaram até me confundir com mulher ao telefone, me chamavam de senhora. Hoje estou muito diferente, nem tenho mais motivo pra me afastar das pessoas”.

Meu intuito, ao apresentar os segmentos acima, foi indicar a indissociável imbricação entre linguagem e subjetividade. A relação à fala, na clínica fonoaudiológica, não pode passar ao largo de uma discussão sobre o sujeito e ao modo como ele se relaciona com o seu sintoma. Sem esse cuidado – esse espaço para o singular - muitos casos de fracassos clínicos podem ser, a meu ver, justificados.


Referências bibliográficas

ANDRADE, L. (2003). Ouvir e Escutar na Constituição da Clínica de Linguagem. Tese de doutorado. São Paulo, Lael-PUC.
___________. (2006). “Captação” ou “captura” – considerações sobre a relação do sujeito à fala. In: Aquisição, Patologia e Clínica de Linguagem.
Orgs: Maria Francisca Lier-De Vitto; Lúcia Arantes. São Paulo: EDUC, FAPESP, pp. 201-218.
DE LEMOS, C.T.G. (1995). Corpo e linguagem. In: Corpo-mente: uma fronteira móvel. Org: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho. Casa do Psicólogo. 1ª ed, pp. 235-247.
______________. (2002). Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. In: Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 42, pp.41-69.
FONSECA, C. da. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem. Tese de doutorado. São Paulo, Lael-PUC.
FORBES, J. (2003). Você quer o que deseja? Ed. Best Seller.
MILNER, J. C. (1978). O amor da língua. Porto Alegre. Artes Médicas Editora.1987.
SAUSSURE, F. de (1916). Curso de Linguística Geral. Org. Charles Bally e Albert Sechehaye. Colaboração: Albert Riedlinger. São Paulo: Cultrix,1971.

 

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