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Água, organização social e subjetividade: reflexões sobre a contribuição da Igreja ao manejo dos recursos hídricos

Francisco Borba Ribeiro Neto

 

* O professor doutor Francisco Borba Ribeiro Neto é membro do Grupo de Pesquisa em Ecossistemas Aquáticos Sujeitos a Impactos Ambientais da Faculdade de Ciências Biológicas da PUC-Campinas. O autor agradece ao incentivo, às colaborações e sugestões dos professores doutor Ricardo de Sousa Moretti, doutora Laura Machado de Mello Bueno, doutor Pedro da Rocha Lemos e padre Benedito Ferraro, da PUC-Campinas, à professora Marli Pirozelli Navalho Silva, da UNIFEI, ao padre Vando Valentini, do Núcleo Fé Cultura da PUC/SP, e a Durval Cordas.

        Sumário:

  1. O problema
  2. As causas da escassez
  3. Desigualdades no acesso aos recursos hídricos
  4. Água e mercados
  5. Água e organismos intermediários
  6. Água e subsidiariedade
  7. Comitês de bacias, agências reguladoras e subsidiariedade
  8. A contribuição da Igreja na gestão dos recursos hídricos
  9. Água, natureza e subjetividade
  10. box: A água e o movimento ambientalista

As águas doces, apesar de serem renovadas pelo ciclo hidrológico, representam, como lembra o texto-base da CF-2004 (1), um recurso natural limitado, que, em dado contexto econômico e tecnológico, tenderá a se tornar escasso se não for manejado de forma adequada para a satisfação das necessidades da sociedade.

O problema

Entre 1950 e 1990, a população mundial pouco mais que dobrou, mas o consumo de água aumentou cerca de 4,6 vezes! Isso se deve à duplicação do consumo per capita (2). Com o desenvolvimento econômico e social, as populações passam a consumir mais água, tanto para sua vida pessoal como para suas atividades produtivas. Existem projeções que indicam que já em 2025 o mundo inteiro enfrentará o problema da escassez de água doce (3).

A escassez de recursos hídricos adequados está associada à interação entre um conjunto de fatores sociais e causas naturais, tais como clima, distribuição espacial desfavorável dos recursos hídricos e da população, desperdício, perdas na rede de distribuição sob a forma de vazamentos, consumo não-responsável, falta de investimentos no setor, degradação ambiental e poluição dos mananciais, apropriação indevida dos recursos por mandatários locais e grandes produtores, etc.

As causas da escassez

É importante compreender que a “escassez” dos recursos hídricos não pode ser vista como resultado exclusivamente nem de causas naturais, nem de causas sociais, mas, sim, de uma integração entre ambas. Em linhas gerais, essas causas são:

  1. Influência do clima: (a) climas áridos e semi-áridos, como encontrados no norte da África e no semi-árido nordestino; (b) variações climáticas interanuais, que levam a períodos mais longos de estiagem, esgotando a capacidade de armazenamento dos reservatórios, como observado no Brasil desde 2002;
  2. Distribuição espacial desfavorável dos recursos hídricos e da população. Por exemplo, a bacia hidrográfica do Rio Amazonas, que responde por 73,2% do potencial hídrico brasileiro, abriga apenas 4,3% da população. A bacia do rio Piracicaba, no interior paulista, apesar de se localizar numa área de clima úmido, enfrenta situações de escassez de água na estação seca, em função da população e da atividade produtiva muito elevadas;
  3. Manejo inadequado dos recursos hídricos: desperdício, perdas na rede de distribuição sob a forma de vazamentos, consumo não-responsável, falta de investimentos no setor, degradação ambiental e poluição dos mananciais, etc.;
  4. Conflitos de uso: (a) apropriação indevida dos recursos por mandatários locais e grandes produtores, como denunciado no próprio texto-base da CF-2004; (b) falta de reservatórios capazes de fornecer água para a população altamente concentrada e suas atividades produtivas;
  5. Aumento da poluição, comprometendo a qualidade da água mesmo onde ela é relativamente abundante, como acontece – por exemplo – na região metropolitana de Manaus. Deve-se ter em conta que o problema do acesso à água com qualidade adequada para o consumo humano é mais imediato que o problema da disponibilidade hídrica em geral. Em 1984, a UNICEF publicou um estudo que se tornou clássico, mostrando que a mortalidade infantil estava diretamente relacionada ao acesso da população a água limpa (4), e, conforme os dados citados no documento base da CF-2004, 20% da população brasileira não tem acesso a água potável.

Desigualdades no acesso aos recursos hídricos

Existe ainda uma grande desigualdade no consumo entre as regiões “ricas” e “pobres” do planeta. O consumo residencial per capita das Américas do Norte e Central é 10 vezes maior que o da África e equivale a duas vezes o da América do Sul. O consumo industrial é 65 vezes maior nas Américas do Norte e Central, se comparado com o da África, e 7 vezes maior que o da América do Sul. Contudo, os padrões de consumo não dependem apenas do aumento populacional e do processo de desenvolvimento econômico e social. Com padrões de qualidade de vida comparáveis, a Europa tem um consumo residencial e industrial per capita que é cerca da metade do norte-americano.

O consumo mundial de água para irrigação (consumo agrícola) é maior que os consumos industrial e doméstico juntos – e o consumo doméstico respondia por apenas cerca de 8% do consumo mundial no início da década de 1990 (estimativas colocam esse valor em torno de 11% para o ano 2000 (5)).

Água e mercados

Para a teoria econômica clássica, a água “bruta”, aquela que é encontrada na natureza, não é mercadoria, pois não existe trabalho humano associado a ela. Pelo contrário, a água “tratada”, em condições de uso pela população, distribuída pelas empresas de saneamento e tratamento de águas, é mercadoria na medida que existe um trabalho humano associado a sua transformação. Dentro dessa concepção clássica, é importante para a expansão capitalista que a água “bruta” não seja mercadoria, pois isso permite que o capitalista se aproprie dela quando e como quiser, procedendo como se fosse um recurso inesgotável.

Assim, houve um esforço do próprio movimento ambientalista em mostrar que os recursos naturais – como a água – não poderiam ser apropriados como se fossem infinitos. O discurso da escassez e da valoração econômica dos recursos naturais surgiu como um esforço ambientalista para fazer com que o capitalismo internalizasse seu “passivo ambiental”. Além disso, ao longo das décadas de 1960 e 1970, situações nas quais a exaustão dos recursos naturais e o comprometimento ambiental tornavam-se empecilhos ao crescimento econômico se multiplicaram. No Brasil, um dos casos exemplares é o pólo industrial de Cubatão, no litoral paulista (6). Criado para ser o grande centro petroquímico paulista, entrou em declínio quando a poluição do ar e a falta de solos adequados para instalações industriais e áreas residenciais inviabilizaram sua expansão. Com experiências como essa, o capitalismo começou a perceber a degradação dos recursos naturais como uma ameaça a sua expansão.

Esse processo teve como fruto importante no Brasil a chamada “cobrança pelo uso da água”, estabelecida pela Lei Nacional de Recursos Hídricos nº 9.433/97, ainda sujeita – em 2004 – a normatizações complementares para sua aplicação (7). Além do custo do tratamento, o usuário passaria a pagar também pela quantidade de água “bruta” que retiraria da natureza. Além disso, esse preço estaria associado à qualidade da água que ele devolveria à natureza, sob a forma de esgotos: quanto mais poluída a água, maior o preço da captação (princípio do “poluidor-pagador”). Essa cobrança da água incidiria principalmente sobre os grandes consumidores de água nas bacias hidrográficas: grandes indústrias que hoje captam água a custo zero, cidades que lançam seus esgotos nos rios sem nenhum tratamento, comprometendo a qualidade da água que será captada pelas cidades vizinhas, etc. Por outro lado, criaria fundos regionais que poderiam ser aplicados na melhoria da qualidade da água e no financiamento de propostas alternativas de desenvolvimento regional.

O valor da água “bruta”, nessa perspectiva, seria estimado em função dos “custos de sua degradação” (8) e não pelo valor atribuído em função das relações de oferta e procura. Contudo, a água “tratada” está sujeita a um custo que depende não apenas de seu estado de degradação, mas do custo de seu tratamento. Num sistema privatizado, o preço final da água seria determinado teoricamente pelas relações de oferta e procura. Contudo, não se pode esquecer que a privatização dos grandes serviços essenciais – como o abastecimento de água – é feita num sistema oligopolista, onde o papel regulatório dos mercados é ainda mais complexo do que o pressuposto na teoria econômica clássica. Além disso, num país onde os recursos públicos são escassos, como o Brasil, a empresa estatal também não é uma alternativa que garanta automaticamente o pleno acesso à água “tratada”, pois o Estado também se torna um “vendedor” de água, com a diferença de que o valor de troca não é medido apenas em termos monetários, mas também de influência política e capacidade de perpetuação dos grupos dominantes no poder.

A questão que se coloca, portanto, é a de encontrar mecanismos que permitam garantir o “primado do homem sobre os mercados” e garantir que a dignidade da pessoa humana, e não a lógica do mercado, seja o princípio norteador da vida social (9).

Água e organismos intermediários

Atualmente, no Brasil, é prioritário:

  1. Garantir a toda a população o pleno acesso à água de boa qualidade e ao saneamento básico;
  2. gerir os recursos hídricos conservando a qualidade da água e,
  3. evitar a escassez derivada do desequilíbrio entre o potencial hídrico e o volume utilizado em regiões específicas.

Para isso, não basta, não obstante seja importante, denunciar a apropriação da água como mercadoria ou incentivar o consumo responsável da água por parte da população. O pleno acesso à água e o manejo adequado dos recursos hídricos só pode ser garantido mediante uma gestão participativa. Sempre que os gestores desses recursos tiverem poder para administrá-los segundo seus interesses particulares haverá a tendência de que o direito à água não seja respeitado. Neste sentido, o fortalecimento dos organismos intermediários, formando uma vasta rede de entidades (associações e movimentos ambientalistas, sindicatos, associações de bairro, organizações comunitárias, etc.) que participam e acompanham a gestão dos recursos hídricos é a principal garantia do pleno acesso à água e à conservação dos recursos hídricos (10).

Água e subsidiariedade

A plena eficácia desse conjunto depende ainda da aplicação do princípio da subsidiariedade (11), que estabelece que as instâncias mais gerais da sociedade devem subsidiar as instâncias locais e as pessoas para que estas possam realizar, de forma autônoma mas solidária, obras que satisfaçam suas necessidades e seus desejos. Além disso, o desenvolvimento integral da pessoa pressupõe sua capacidade de decidir sobre sua vida e participar das decisões referentes a sua comunidade. Não basta uma resposta assistencialista que satisfaça às necessidades básicas das populações, é preciso respeitar também seu direito ao protagonismo na solução de seus problemas (12).

Assim, as decisões referentes ao manejo dos recursos hídricos devem ser confiadas – na medida do possível – aos níveis decisórios que estão na base da organização social e política. Dificilmente uma comunidade local poderá acompanhar de forma eficaz as decisões que afetam grandes bacias, mas poderá fazê-lo em relação a suas micro-bacias, ao tratamento de águas e esgotos em seu município e assim por diante (13).

Comitês de bacias, agências reguladoras e subsidiariedade

Uma população pode ser privada de seu direito à água e ao saneamento tanto por meio de mecanismos de exclusão econômica – como a falta de redes de distribuição e captação em áreas carentes – quanto por meio da poluição e do consumo excessivo praticado por seus vizinhos. Assim, várias cidades têm as águas de que necessitam para o abastecimento público e para suas atividades econômicas comprometidas por indústrias ou mesmo outras cidades situadas no curso superior de seus rios, com a conivência entre poder econômico e administração pública.

A Lei Nacional de Recursos Hídricos estabelece, para evitar que isso aconteça, um sistema de gestão dos recursos baseada em Comitês de Bacias, que reúnem todos os municípios e usuários da água em cada bacia hidrográfica. Além deles, existem Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos e a Agência nacional de Águas (ANA).

A eficácia desse sistema supõe uma sociedade organizada e participativa. Para isso, é necessário que os vários organismos intermediários da sociedade acompanhem as questões referentes ao manejo dos recursos hídricos. Trata-se de construir uma articulação que envolve as organizações da sociedade civil, conselhos municipais e câmaras de vereadores, no nível municipal; comitês de bacias, conselhos estaduais do meio ambiente e câmaras de deputados, no nível regional e estadual; órgãos federais, Agência Nacional de Águas, Assembléia e outras instâncias federais.

Por isso, deve-se evitar uma redução individualista ou moralista da questão da água: os militantes ambientalistas e os técnicos se preocupam com a gestão dos recursos hídricos, a população se encarrega do “uso responsável”, evitando o desperdício e a poluição. Sem dúvida o “uso responsável” da água é uma atribuição simples e ao alcance de todos; enquanto que o debate sobre a gestão dos recursos acontecerá principalmente em câmaras técnicas e órgãos responsáveis por políticas públicas, como os comitês de bacias. Mas esse debate pressupõe a existência de entidades que debatam e se posicionem sobre as questões polêmicas, e essas entidades só terão força e representatividade se a população estiver informada e as estiver acompanhando.

A legislação deverá salvaguardar, além do mais, o direito de decisão das instâncias locais e regionais. Uma legislação que concentre as decisões sobre o uso dos recursos nas esferas estaduais e federais, esvaziando a competência dos comitês de bacias acabará por dificultar o acompanhamento das decisões pela sociedade organizada e favorecer o uso determinado por interesses particulares (14).

No caso de questões ambientais, as decisões locais sempre têm implicações regionais. Ainda assim, a aplicação do princípio da subsidiariedade não permite o esvaziamento das instâncias locais. As instâncias regionais, porém, devem dar os subsídios legais, técnicos, econômicos e de articulação política para que as decisões locais não comprometam as populações e os ecossistemas numa escala regional (15).

A contribuição da Igreja na gestão dos recursos hídricos

A primeira e mais lógica contribuição da Igreja Católica à questão da água é colocá-la na pauta de discussão de pessoas que normalmente nunca levariam esse tema em consideração no seu dia-a-dia. Sendo uma instituição de caráter religioso, não lhe cabe uma participação direta ou representativa nas instâncias de decisão – como esperado de ONGs e sindicatos, por exemplo. Também não é o caso da defesa de posições próprias, ainda que obrigatoriamente existam algumas posturas mais e outras menos condizentes com seus ensinamentos e sua prática. Contudo, ela tem uma missão a cumprir na conscientização e no convite à participação social dos católicos e da população em geral.

Essa conscientização não pode se reduzir ao “uso responsável”, evitando o desperdício e a poluição. Tal redução inviabiliza a gestão participativa, como será visto a seguir, além de esvaziar os organismos intermediários e se chocar com a visão de sociedade presente em todo o magistério da Igreja.

Uma visão fraterna, solidária, da questão da água – oposta a uma redução individualista – mostra ainda que a primeira preocupação deve ser com aqueles que não têm acesso à água e ao saneamento básico. Assim, os levantamentos de mananciais e da situação dos recursos hídricos realizados como parte da CF-2004 não podem deixar de levar em conta a questão habitacional, pois a falta de água e saneamento básico está diretamente ligada à questão das favelas, bairros populares e áreas de invasões. Por exemplo, as propostas de desocupação de áreas de preservação em torno de mananciais não podem desconsiderar o problema das populações pobres que serão desalojadas.

Água, natureza e subjetividade

A racionalidade moderna procedeu a uma dessacralização do mundo natural e a beleza da natureza e a sensação de maravilha diante do mundo tornaram-se sentimento estético, diversão ou catarse. Consolam, ajudam a tornar a vida mais suportável, mas não impulsionam para a mudança. Aos poucos, a maravilha vai se transformando em utilitarismo e a racionalidade instrumental tende a impor-se como única visão sensata do mundo. A contrapartida desse processo levou, por exemplo, à exacerbação do esoterismo e ao “endeusamento” da natureza.

Uma relação de respeito com a água, que norteie o seu uso e permita o desenvolvimento da subjetividade pessoal, não pode ser adquirida de forma coerente com um chamado voluntarista a “sentir a natureza” ou à assimilação acrítica de manifestações religiosas vindas de outras matrizes culturais. É preciso reconstruir a personalidade fragmentada do homem moderno e aprofundar sua relação com a natureza e toda a realidade.

Só reconhecemos de forma construtiva este fascínio diante do real se nos colocamos atentos e “em ação” (16) - por meio do compromisso com a vida, em todos os seus aspectos. Não o compromisso exasperado com um detalhe da vida, seja um detalhe individualista – o sucesso pessoal, os problemas familiares – ou um detalhe “coletivo” – a ação político-partidária, por exemplo. Por isso, a questão da água não pode ser vista como um detalhe. Pelo contrário, deve ser encarada como um convite à totalidade: “Porque olhamos para tudo, porque somos fascinados por tudo, porque nos comprometemos com todos, nossa atenção também se volta para a água”. A Campanha da Fraternidade sobre o tema da água convida a superar o “pecado da indiferença”, mas também convida a superar uma visão reducionista da ação social, que não leva em conta toda a subjetividade da pessoa humana.

Contudo, o compromisso com a vida não é suficiente para vencer a lógica utilitarista da sociedade moderna e, por isso, esse fascínio com a natureza e – entre as suas formas – com a água, ainda pode terminar numa catarse desligada da vida ou encerrar-se em si mesmo, numa postura individualista. Para vencer a “lógica do mundo”, é preciso um encontro.

Trata-se de um encontro com o outro que é igual a mim, mas também do encontro com o Outro que é o “Tu que me fazes” (17). A Campanha da Fraternidade desemboca, assim, no encontro fraterno entre os homens, no encorajamento mútuo diante das dificuldades e das contradições, no resgate da memória e da tradição, no incentivo a novas formas de organização da sociedade. Mas não completará integralmente sua missão se não for também convite ao encontro com o Mistério, com o enfrentamento da mais desconcertante entre todas as afirmações já feitas: de que não só existe um Criador de toda a natureza, de todas as águas, mas também que esse Criador ama particularmente e cuida de cada homem.

Nesse sentido, o ponto alto da subjetividade cristã encontra-se na figura de Maria de Nazaré, a mulher pobre que se torna senhora da criação, porque acolheu o Mistério até o fim.

  1. “Nossa Senhora, mãe de Jesus
  2. mãe de todos nós...
  3. roga por tudo, que tudo é teu
  4. Por cada coisa por cada ser...
  5. Maria das fontes limpas
  6. Maria das cachoeiras
  7. Maria das águas claras
  8. que brincam por sobre os seixos
  9. Maria do Subaé
  10. de águas tristes pesadas...
  11. Maria de todas as vidas
  12. Maria de todas as horas...
  13. Cuida de tudo
  14. que tudo é teu”
  15. (Mabel Velloso) (18)


Notas

1 A CNBB produziu uma excelente síntese sobre o assunto no documento-base da CF-2004, e este artigo pressupõe em grande parte a leitura desse documento (CNBB. Fraternidade e água, texto-base da Campanha da Fraternidade 2004. São Paulo, Editora Salesiana. 2003).

2 Cf., por exemplo, os dados do relatório do Banco Mundial no site da “Universidade da água” (http://www.uniagua.org.br/default.asp?tp=3&pag=aguaplaneta.htm).

3 FAO. “Population and Water Resources”. In: Population and the environment: a review of issues and concepts for population programmes staff. United Nations Population Information Network (POPIN), 1994 (http://www.un.org/popin/fao/water.html).

4 UNICEF. “State of World’s Children”. 1984; citado em: CORSON, W. H. Manual global de Ecologia: o que você pode fazer a respeito da crise do meio ambiente. São Paulo, Augustus, 1996.

5 FAO. Op. cit.

6 Sobre o problema de Cubatão ver, por exemplo: GUTBERLET, J. Cubatão, desenvolvimento, exclusão social, degradação ambiental. São Paulo, EDUSP/FAPESP, 1996.

7 A cobrança pelo uso da água é um instrumento válido de melhoria da qualidade dos recursos hídricos no Brasil. Contudo, não se pode esquecer de perigosos precedentes na história recente do país, como o caso da CPMF, originalmente pensada como um tributo para melhoria da qualidade do sistema de saúde e transformada em mais um instrumento de equilíbrio das contas públicas. Apenas o acompanhamento do destino dos fundos arrecadados com a cobrança da água pela sociedade pode garantir que sejam utilizados conforme previsto. Exemplo dos debates e problemas para garantir a adequada utilização dos fundos advindos da cobrança pelo uso da água podem ser encontrados na home-page dos Comitês das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (http://www.comitepcj.sp.gov.br/ Download.htm#CobrancaAgua).

8 Cf., por exemplo, o modelo discutido por MOTTA, R.S. “Estimativas da depreciação do capital natural no Brasil”. In: MAY, P.H. Economia ecológica. Aplicações no Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1995.

9 “É preciso acentuar e pôr em relevo o primado do homem no processo de produção, o primado do homem em relação às coisas. E tudo aquilo que está contido no conceito de ‘capital’, num sentido restrito do termo, é somente um conjunto de coisas. Ao passo que o homem, como sujeito do trabalho, independentemente do trabalho que faz, o homem, e só ele, é uma pessoa” (João Paulo II. Carta Encíclica Laborem Exercens. 1981, nº 12).

10 A importância dessa integração entre movimentos sociais e organismos intermediários é um pressuposto básico sempre presente nos documentos da Igreja Católica. João XXIII o formula com bastante propriedade em sua encíclica Pacem in Terris: “É de todo indispensável que se constitua uma vasta rede de agremiações ou organismos intermediários, adequados a fins que os indivíduos por si sós não possam conseguir de maneira eficaz. Semelhantes agremiações e organismos são elementos absolutamente indispensáveis para salvaguardar a dignidade e a liberdade da pessoa humana, sem lhe comprometer o sentido de responsabilidade” (nº 24). Vale a ressalva de que os organismos intermediários não significam apenas as entidades reconhecidas institucionalmente, mas também a família, os grupos de vizinhança e outras instituições sociais sem reconhecimento institucional.

11 O princípio da subsidiariedade está enunciado na Encíclica Quadragesimo Anno (1931). Aparece em vários outros documentos sociais da Igreja, como a Encíclica Centesimus Annus (1991), o documento de Puebla do Episcopado Latino Americano, Evangelização no presente e no futuro da América Latina (1979), e nas Exigências cristãs para uma ordem política, da CNBB (1977). Uma explicação do princípio pode ser encontrada em: VALENTINI, V. “O que é subsidiariedade”. Núcleo Fé e Cultura, PUC-SP, 2004 (http://www.pucsp.br/fecultura/0402sub1.htm).

12 Durante a 59ª Sessão da Comissão dos Direitos do Homem (2003), o observador permanente da Santa Sé lembrou que “a pobreza extrema é uma afronta contra a dignidade humana e uma violação efetiva dos direitos humanos. A abordagem dos direitos humanos deve frisar as responsabilidades fundamentais que os Estados têm de oferecer um contexto legislativo e político apropriado, que favoreça o desenvolvimento humano de todos. Os Estados devem garantir a assistência, de tal forma que as necessidades essenciais sejam satisfeitas e que haja uma disponibilidade mínima dos serviços. Mas isso não é suficiente. A abordagem dos direitos humanos na luta contra a pobreza há de estar na linha de vanguarda, na passagem das políticas de assistencialismo às políticas de promoção das capacidades humanas e de realização das potencialidades que todos os homens receberam de Deus. Para fazer isso, é necessário que as pessoas pobres estejam diretamente comprometidas nas decisões políticas que as atingem, tanto a si mesmas como às suas famílias. Provavelmente, só escutando os pobres é que poderemos compreender de maneira integral as conseqüências da pobreza. Para serem parceiros ativos na luta contra a pobreza, as pessoas pobres precisam sobretudo de voz, reconhecimento, segurança e inclusão. Por conseguinte, a abordagem dos direitos humanos na luta contra a pobreza deve comprometer e empenhar diretamente as pessoas que vivem na pobreza. O fato de não dispor de uma receita, e de não ter acesso aos serviços humanos básicos não torna o indivíduo pobre menos humano. O fato de uma pessoa viver na pobreza não significa que os outros têm o direito de decidir quais são os seus melhores interesses. No passado, muitos programas internacionais de desenvolvimento, por exemplo no campo da redução da dívida externa, fracassaram em virtude da sua falta de sensibilidade em relação aos interesses e às condições locais. Com demasiada freqüência, as políticas em favor dos pobres têm subestimado a extraordinária criatividade que as vítimas da pobreza mostram, simplesmente procurando sobreviver e oferecer um futuro melhor para os seus filhos. Essa criatividade deve visar um futuro humano mais produtivo”.

13 O princípio da subsidiariedade encontra um paralelo – ainda a ser aprofundado – na idéia de autonomia, bastante cara ao movimento ambientalista (ver, por exemplo: CASTORIADIS, C. & COHN-BEDIT, D. Da ecologia à autonomia. São Paulo, Brasiliense, 1981; e LIPIETZ, A. A Ecologia Política, solução para a crise da instância política? In: http://168.96.200.17/ar/libros/ecologia/lipietz.pdf).

14 A aplicação imediata do princípio da subsidiariedade numa questão concreta de uso de recursos provenientes da cobrança pelo uso da água pode ser encontrada numa carta aberta escrita pelo dr. Cláudio Antonio de Mauro, Prefeito de Rio Claro e Presidente dos Comitês (Paulista e Nacional) das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí. In: ftp://ftp.sp.gov.br/ftpcomitepcj/ Manifestacao_Presidente_Comites-PCJ.PDF.

15 É interessante notar que o princípio da subsidiariedade não significa a defesa de um Estado mínimo, que delega ao mercado a satisfação das necessidades da população, nem de um Estado expandido, que concentra em suas mãos todos os serviços e atividades da vida social. O princípio defende que o Estado deve ser capaz de subsidiar a sociedade, dando-lhe condições de se organizar e decidir sobre as melhores formas de satisfazer a suas necessidades e desenvolver suas atividades.

16 A caracterização deste itinerário de reconstrução de uma personalidade não-fragmentada e aberta à realidade foi baseada em: GIUSSANI, L. O senso religioso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.

17 Uma analogia interessante entre a subjetividade ambientalista e a experiência religiosa pode ser encontrada em: LELOUP, J.Y. Escritos sobre o hesicasmo, uma tradição contemplativa esquecida. Petrópolis, RJ, Vozes, 2003. Esse autor narra a introdução de um jovem na tradição contemplativa do cristianismo oriental, que é chamado a meditar primeiro como uma montanha, a seguir como uma papoula e depois como um pássaro. No final de sua trajetória, contudo, é convidado a meditar como Abraão, que, tendo encontrado Deus como pessoa, pode chamá-lo de Tu, intercedendo junto a Ele pela vida dos homens, sem ignorar nada de sua corrupção, jamais desesperando da Misericórdia de Deus. Por fim, meditará como Jesus, e a característica dessa última forma é que Jesus chamará Aquele que é maior que toda a natureza, porque a criou, de “papai”. Agora o que fascina não é apenas o esplendor da natureza, mas sim que um homem mortal possa ser amado como filho pelo Outro que o criou.

18 Maria Bethânia. Cânticos, preces e súplicas a Nossa Senhora dos Jardins do Céu. CD.



A água e o movimento ambientalista

Numa lógica de dominação, as diferenças são ameaças constantes, pois se espera sempre que o diferente tente nos dominar – e nossa única chance de sobrevivência é anulá-lo antes que ele nos anule. Esse jogo de dominação é particularmente perigoso, pois leva à conclusão de que a única forma de diferentes estarem juntos é abstraindo suas diferenças. Isso promove um “achatamento” das personalidades, pois os “picos” que caracterizam a subjetividade própria a cada um devem ser esquecidos ou aplainados para que se possa continuar junto. Isso acaba facilitando um processo de hegemonia cultural e política na sociedade, pois esse mundo “achatado” repete os valores comuns que interessam ao grupo dominante.

Na lógica de um encontro, pelo contrário, as diferenças fascinam e obrigam a um caminho comum, onde cada um pode compreender melhor o outro e ser enriquecido pela diversidade. Neste sentido, as várias experiências religiosas existentes dentro da Igreja Católica (movimentos, comunidades de base, etc.) devem encontrar cada uma seu modo específico de contribuir para a reflexão sobre o tema da água, e o conjunto da comunidade católica deve manter um diálogo com os movimentos sociais que se dedicam especificamente à questão da água e outros problemas ambientais. Um dos interlocutores privilegiados da Igreja, nesta Campanha, é o movimento ambientalista. Por isto, é importante compreender algumas características desse movimento, para melhor dialogar com ele (1).

Após um período em que as lutas sociais pareciam totalmente polarizadas na contraposição entre trabalhadores e capital ou entre forças democráticas e autoritarismo, nas décadas de 1980 e 1990, surgiram ou expandiram-se vários novos movimentos sociais geralmente centrados na defesa dos direitos das minorias. A crise do socialismo real aumentou mais ainda a importância desses movimentos e, dentre eles, o ambientalista foi provavelmente aquele de mais amplo espectro de ação e capacidade de inclusão de diferentes setores sociais.

A deterioração crescente da qualidade do ambiente, o surgimento de empresas e órgãos públicos voltados à questão ambiental, a expansão da globalização, o fortalecimento de uma ideologia individualista em toda a sociedade ocidental e a crise do pensamento utópico influenciaram a evolução do movimento ambientalista na década de 1990. Ao mesmo tempo em que crescia – particularmente sob a forma de ONGs e no acesso aos meios de comunicação e à opinião pública, ganhando inclusive novos aliados dentro dos movimentos populares –, o movimento perdia em várias ocasiões sua capacidade de ser uma crítica global à sociedade burguesa, conforme fora nas décadas de 1960 e 1970.

O movimento ambientalista encontra suas raízes no mesmo terreno dos movimentos de contracultura do século XX: um questionamento radical ao modo de ser e viver burguês. Porém, a particularização das lutas ambientais a questões específicas refreou o ímpeto de mudança e a radicalidade do movimento em muitas situações. As reduções do pensamento ambientalista a questões particulares (preservação das espécies, combate à poluição, reciclagem do lixo e a própria questão dos recursos hídricos) limitaram tanto a sua capacidade de ser uma proposta a toda sociedade, quanto a sua capacidade de ser um questionamento à imagem burguesa de realização individual e coletiva dominante em nossa sociedade.

A Igreja, ao insistir numa mística e numa religiosidade apropriadas para a CF-2004, refaz o chamado para que todos os preocupados com a questão da água olhem o próprio horizonte de sua atuação no mundo.

“Sou humano e nada do que é humano me é estranho” (Terêncio): essa frase marcou pensadores tão diversos quanto Santo Agostinho e Marx. Uma Campanha da Fraternidade com o tema da água lança, inicialmente, um convite para que a experiência humana seja capaz de abraçar todos os aspectos da realidade. São Bento, em sua regra, prescreve que “qualquer ferramenta de trabalho ou instrumento da casa seja considerado tão sagrado como um cálice do altar” (2) e, como lembra o artista sacro Cláudio Pastro, “os materiais (pedra, madeira, ferro, pintura, água, óleo...) são uma extensão do Espírito que habita no homem e o uso desses materiais atesta a sacralidade ou banalidade de sua vida” (3). Se assim é, não apenas nada é estranho para o homem, mas tudo é motivo de maravilha, de fascínio. Perceber esse fascínio diante da criação representa uma expansão da humanidade de cada um e um ponto que pode unir católicos, crentes das mais diversas religiões, militantes ambientalistas...

A visão ambientalista do mundo tem uma “homologia” (no sentido de idéias que não nasceram obrigatoriamente juntas, mas caminham em paralelo para a solução de problemas comuns) (4) com a visão religiosa: ambas procuram “religar” o homem à totalidade do mundo. O campo de encontro, portanto, é o da descoberta e do intercâmbio entre as formas pelas quais cada um realiza essa “ligação”.

De modo similar ao que escreveu João Paulo II em sua encíclica Fides et ratio (5), pode-se dizer a respeito do movimento ambientalista que “qualquer ação, mesmo quando se refere a uma realidade limitada do mundo ou do homem, remete sempre para alguma coisa que está acima do seu objetivo imediato, para os interrogativos que abrem o acesso ao Mistério”.

(F.B.R.N.)

Notas

1 Dois textos curtos que podem ajudar a entender esses movimentos estão, por exemplo, em: DIEGUES, A.C. “O papel das Ciências Sociais na análise das questões ambientais e a globalização”. In: Ecologia Humana e planejamento costeiro. São Paulo, NUPAUB-USP, 2001; e CARVALHO, I.C.M. “A questão ambiental e a emergência de um campo de ação político-pedagógica”. In: LOUREIRO, C.F.B. e cols. Sociedade e meio ambiente: a educação ambiental em debate. São Paulo, Cortez, 2000.

2 A citação é lembrada pelo monge Marcelo Barros, em seu livro O Espírito vem pelas águas (São Paulo, Edições Loyola, 2003).

3 PASTRO, C. Arte sacra: o espaço sagrado hoje. Itapecerica da Serra, Casa São Lucas, 1993, p. 93.

4 ACOT, P. História da Ecologia. Rio de Janeiro, Campus, 1990.

5 “A busca da verdade, mesmo quando se refere a uma realidade limitada do mundo ou do homem, jamais termina; remete sempre para alguma coisa que está acima do objeto imediato dos estudos, para os interrogativos que abrem o acesso ao Mistério” (Fides et ratio, nº 106).

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