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A razão é inimiga do Mistério? Parte I: O itinerário da razão
Javier Prades


JAVIER PRADES LOPEZ é professor de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia San Damaso (Madrid), diretor da Revista Española de Teología, sócio fundador da Asociación para la Investigación y la Docencia Universitas, da Espanha. Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é autor de vários livros, entre os quais Lietamente ti ho datto tutto (Alegremente te dei tudo, com anotações de seu curso de Teologia Dogmática na universidade) e La persona humana. Antropologia teológica, escrito com o cardeal Ângelo Scola e Gilfredo Marengo.

 
O texto a seguir apresenta um percurso intelectual que nos permite compreender melhor o convite repetido várias vezes por Bento XVI para “expandir a razão”. Foi apresentado como palestra no Meeting de Rímini, evento ocorrido na Itália em agosto de 2006.


As perguntas que nascem do impacto com a realidade


Um homem adulto é aquele que não teme as perguntas da vida e não se nega a buscar pessoalmente as respostas a elas, durante o ciclo da sua existência, servindo-se dos conhecimentos e das informações de que dispõe, confrontando-as sempre com a sua experiência pessoal; desse modo, expressa uma posição própria, que se reflete em afirmações do tipo: “eu te amo”, “eu aceito correr riscos no trabalho”, “eu sei que isto é verdade, ou que é falso”, “eu errei”, “eu te perdôo”, “eu creio em Deus e o amo”.
Consideremos brevemente o itinerário da razão como fonte de maturidade e liberdade para o homem.
Digamos que a condição própria do homem inclui uma abertura à realidade, ao mundo, às pessoas e às coisas, o que suscita a pergunta a respeito da explicação última de cada coisa. O homem que busca sempre, incansavelmente, a compreensão exaustiva de si mesmo, do mundo e de Deus em tudo aquilo que faz, é um homem religioso.
É essencial perceber que o ponto de partida para um uso adequado da razão é o contato com a realidade. Nós entramos nas profundezas misteriosas da realidade sempre através do impacto com algumas das suas declinações concretas. (...)

Até o reconhecimento do Outro

O itinerário da razão leva o homem a interrogar-se sobre o fundo misterioso de todas as coisas: da música e da natureza, do trabalho e da empresa, do homem e da mulher; ou seja, da realidade concreta que nos surpreende, atrai e movimenta. A realidade mostra assim seu caráter de “sinal”, pois remete a nossa razão para o outro, para além, para “algo” que está dentro e além de todas as coisas, que todos chamam de “Deus”, como dizia Tomás de Aquino. Eis aí o Mistério como horizonte último da razão!
O conjunto das circunstâncias da vida, a trama dos acontecimentos e das relações, é o lugar em que o Mistério divino toma a iniciativa de se dirigir a nós, de nos revelar a sua existência e de convocar toda a nossa pessoa para aderir a Ele.
Em que consiste essa adesão? Em primeiro lugar, no reconhecer maravilhados que a vida nos foi dada por um Outro, que não devemos a vida a nós mesmos. A consciência de termos sido feitos, na nossa origem, se prolonga na consciência de que neste momento também não somos feitos por nós mesmos, ou seja, na compreensão racional do fato de que, a todo instante, tudo nasce de um Outro, na evidência de um dado: eu sou feito por um Outro, a quem pertenço totalmente. Se isso é verdade, então podemos dizer que a vida é um dom, e que Alguém me dá esse dom neste momento, o Outro do Mistério.
O homem religioso é alguém que vive uma consciência profunda e grata do fato de que a sua vida e o mundo inteiro provêm, instante após instante, do desígnio favorável desse Mistério.

Através dos sinais; jamais se atinge “diretamente” o Mistério

Gostaria de me deter um pouco sobre um ponto decisivo do nosso itinerário. Dissemos que a partir das circunstâncias da realidade podemos alcançar o Mistério, a que todos damos o nome de Deus. Uma das dificuldades mais repetidas contra esse argumento pode ser sintetizada na frase do cosmonauta soviético Yuri Gagarin, quando, andando pela primeira vez no espaço, disse que esteve no céu, mas não havia visto Deus. Embora pareça banal, a objeção revela uma concepção do Mistério que paradoxalmente é compartilhada por não poucos crentes. Do que se trata?
Lembro-me ainda do meu livro de filosofia, na escola, onde se via o desenho de uma corrente de anéis suspensos no vazio, em cima dos quais aparecia um ponto de interrogação. O raciocínio era que não se podia prolongar ao infinito a dependência de um anel em relação ao anterior, e que no fim era preciso afirmar, por assim dizer, a existência de um primeiro anel, sustentáculo de todos os demais, uma causa primeira, que era Deus. Nesse exemplo prevalecia a concepção de que Deus era uma “coisa” ao lado das outras “coisas”, mesmo que a primeira e a mais importante delas, sobre a qual todas as demais se apóiam, mas no fundo atingível pela razão do mesmo modo como se conhecem as coisas do mundo. E essa imagem de Deus, infelizmente, pode ser compartilhada tanto por aqueles que crêem em Deus quanto pelos que o negam.
Para evitar o risco de conceber Deus simplesmente como um primeiro Ente, ou seja, como uma primeira Coisa que se conhece de modo objetivo, é decisivo enfatizar o papel insuperável do sinal no conhecimento humano e, em especial, para se conhecer o Mistério. Para manter juntos razão e Mistério, sem reduzir nenhum dos dois, precisamos respeitar o caráter de sinal de todas as realidades que encontramos em nossa experiência. Também o Mistério entra no âmbito da nossa experiência, mas só pode ser conhecido de maneira “simbólica”; ou seja, pela sua manifestação no sinal, nunca sem este. O sinal não é somente uma referência, que pode ser dispensada para se atingir “diretamente” o Mistério; ele é a manifestação insuperável daquilo que é (Ser, Mistério); e aquilo que é só pode ser conhecido ao se manifestar no sinal.
Um exemplo: o rosto de alguém é a aparência de um ser, é uma manifestação irredutível, que não pode ser dispensada em sua singular concretude para se atingir diretamente uma “idéia” do outro, que o torne um objeto de domínio. Frente ao sinal – o rosto, a obra de arte... – o homem é chamado a envolver-se com todo o seu ser, usando todas as energias da razão e da liberdade.
Nesse sentido, o conhecimento de cada coisa implica sempre uma atitude original de simplicidade de coração, para não reduzir, desde o primeiro impacto com as coisas, esse itinerário da razão através dos sinais em direção ao Mistério.
A pedagogia do sinal exalta a razão e a liberdade do homem, “obrigando-o” a se envolver inteiramente, desvelando desse modo qual é a sua atitude última frente à realidade e frente a si mesmo. No conhecimento analógico-simbólico a moralidade sempre é um fator inerente; ou seja, o envolvimento de toda a pessoa. Nunca é um conhecimento solto, puramente instrumental, que reduz as coisas a objeto de domínio.
Podemos entender, então, que essa concepção de razão é plenamente compatível com a pesquisa científica, com a questão do mal, até a sua última raiz, com a pergunta sobre o significado da religião em nossas sociedades. Se Nietzsche chegou a pensar que a existência do Mistério desvalorizava o mundo e tirava todas as funções da vida, talvez fosse porque não encontrou nenhum homem que tivesse essa concepção da religiosidade e da razão que acabamos de descrever, cujas conseqüências são diametralmente opostas em relação ao mundo e à vida.
Quando se revelou na história, Deus respeitou essa estrutura da experiência elementar do homem, onde as coisas são sinal do Mistério e escolheu uma modalidade “sacramental” – ou seja, através dos sinais – para se revelar ao homem. O Filho de Deus, ao se tornar homem, se “submeteu” a essa lei da experiência e do conhecimento: aceitou tornar-se um Sinal especial, que desafia a razão e a liberdade. O homem que encontra Cristo recebe a graça de poder reconhecer nesse fragmento o Todo, aquele por quem nascemos e para quem tendemos, “o Sinal dos sinais”. A singular excepcionalidade do Fato histórico de Jesus não elimina essa pedagogia do sinal (pedagogia sacramental), antes a intensifica, pois tem a pretensão de concentrar o significado do mundo numa humanidade particular, aquela do Filho de Deus.

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