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Existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes? Parte II: A busca de felicidade e a cultura atual
Mauro Lepori

Mauro Lepori, filósofo e teólogo formado pela Universidade Católica de Friburgo, Suíça, autor de numerosos livros, é abade do Mosteiro Cisterciense de Hauterive, também na Suíça.

Revista Passos, 47 - fev/2004.

O texto a seguir é a segunda parte de uma palestra apresentada no Meeting de Rimini de 2007. A primeira parte, A busca de felicidade e a cultura atual [inserir link para o artigo anterior], mostra a Deus como aquele que busca o ser humano, para dar-lhe a felicidade. A continuação é uma reflexão sobre o sentido da crucifixão nesse caminho de busca de felicidade.


Nenhum de seus ossos será quebrado
No final do Salmo 33 dois versículos remetem a Cristo crucificado: “São numerosas as tribulações do justo, mas de todas o livra o Senhor. Ele protege cada um de seus ossos, nem um só deles será quebrado” (vv 20-21).
Esta promessa é uma profecia, mas o salmista não sabe que esta profecia não se realizará em um homem vivo, mas em um Deus morto na cruz. “Vieram os soldados e quebraram as pernas do primeiro e do outro, que com ele foram crucificados. Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água. (...) Assim se cumpriu a Escritura: Nenhum dos seus ossos será quebrado” (Jo 19,32-36).
A promessa de vida e de proteção divina que o Salmo 33 exprime, a incolumidade até a medula dos ossos que Deus assegura a quem confia nEle realiza-se, paradoxalmente, em Jesus Cristo “já morto” na cruz.
O fato de os soldados não terem quebrado nenhum dos ossos de Jesus crucificado também confirma a sua identificação com o cordeiro pascal que passou a ser imolado em Israel desde a noite da libertação do Egito (cf. Ex 12,46 e Num 9,12); mas a referência à profecia do Salmo 33 introduz, na incolumidade dos ossos de Cristo crucificado, a dimensão da providência do Pai e, portanto, do seu desígnio. Exatamente depois da morte de Jesus, exatamente depois da sua paixão, na qual a providência do Pai parecia ter abandonado o Filho único e predileto para deixar agir somente as trevas, e os homens com elas, exatamente nesta hora, pareceu que o Pai recomeçasse a agir segundo a sua bondade e onipotência. Era como se somente naquele momento Deus se lembrasse de defender o seu Filho, o seu Servo justo e inocente.
“Os judeus - escreve São João - rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas e fossem retirados” (Jo 19,31). Este seria o último gesto de uma representação dirigida pelos inimigos de Cristo, por homens que temiam a morte sem amar a vida; e eis que o Pai misteriosamente se serve de alguns soldados pagãos a fim de que façam uma escolha que cumpra as Escrituras, quer dizer, a vontade de Deus. “Assim se cumpriu a Escritura: Nenhum dos seus ossos será quebrado”.
Mas, enfim, para que serve esta intervenção divina, esta libertação, esta defesa até a medula dos ossos? Por que o Pai intervém somente agora, depois do fim, e ainda não para ressuscitar o Filho mas para impedir a fratura dos ossos de um morto?
Este fato revela, antes de mais nada, que o espaço entre a morte e a ressurreição não está fora do desígnio do Pai. O amor providencial do Pai opera também dentro da morte. E este é um aspecto essencial da esperança cristã. A esperança da libertação do destino de morte do qual a humanidade é prisioneira desde o pecado original não é somente a espera de um “depois”, de um “além” da morte, mas uma confiança possível também, e agora, dentro da condição mortal. A salvação, a libertação, a redenção são acontecimentos que nos salvam do destino de morte invadindo-o com um desígnio divino, com uma providência que transforma subitamente o destino mortal no lugar no qual Deus opera com amor e para uma vida maior, a vida que a ressurreição de Cristo colocará em plena luz. Lá, aonde a morte é definitiva, em todos os sentidos do termo, quer dizer, lá onde a morte delimita todo o horizonte e se impõe como definição da vida humana tornando estéril cada desejo de felicidade, eis que se impõe uma definição nova do destino humano, um sentido novo da vida no qual a morte não é mais limite, mas terreno de ressurreição.
“São numerosas as tribulações do justo, mas de todas o livra o Senhor. Ele protege cada um de seus ossos, nem um só deles será quebrado” (vv 20). Jesus está morto, está desacreditado, está, ainda, pregado na cruz da ignomínia, abandonado pelos seus, desprezado, aniquilado, e é exatamente ali, exatamente assim, naquela carne sem vida, que o Pai afirma querer libertá-lo de todas as suas tribulações e preservá-lo integralmente. Uma pessoa já pode ter sofrido todas as tribulações, chegando a morrer, e Deus ainda pode libertá-lo. Uma pessoa já está morta e Deus ainda pode garantir a sua incolumidade total.

Imediatamente saiu sangue e água
Mas o cumprir-se das Escrituras e da vontade do Pai, no fato de os ossos de Jesus não terem sido quebrados, determina uma ulterior manifestação do mistério, um ulterior horizonte do mistério de Deus na nossa humanidade: o traspasse do lado, do coração de Jesus.
“Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19,33-34).
Porque não lhe quebraram nenhum osso, lhe traspassaram o coração. Porque o Pai preservou todos os seus ossos, o soldado lhe fere o coração.
Aquele Deus que “não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou” (Rom 8,32), não só intervém a favor do Filho quando este já está morto, mas de um modo tal a ponto de provocar um ulterior, um extremo sinal de doação do Filho: o coração ferido. Se ainda era possível para Deus intervir depois da morte, esta intervenção não seria para dizer “Chega! É suficiente!”, mas para entregar o dom da vida do Filho até o extremo, até a última gota de sangue e de água que ainda podia jorrar do seu corpo. O ato providencial de Deus abre para além do destino mortal assumido por Cristo, uma fonte de vida nova, um ulterior e definitivo dom da vida do Filho.
O golpe de lança depois da morte de Jesus é como o surgimento simbólico de todo o mistério pascal, antes de todo o drama humano e divino. Na ponta da lança se concentra e sintetiza toda a paixão e a cruz suportadas por Cristo e, portanto, a negação hostil da humanidade diante de Deus, quer dizer, a completa negação humana da plenitude de vida que Deus quer doar ao homem desde a criação de Adão.
Mas - nota João - do lado ferido “imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19,34).
Imediatamente! Subitamente! Como imediata reação e imediata resposta ao gesto hostil, ofensivo e cruel. Tão imediatamente que o próprio ato hostil é instrumento da resposta, que a própria ofensa é instrumento do dom, do perdão. Subitamente o coração ferido se transforma em nascente do sangue e da água, quer dizer, da Vida divina que purifica e salva a humanidade inteira. Todo o mistério de Deus se resume e se concentra no coração ferido deste homem que deixa imediatamente jorrar sobre o seu algoz a misericórdia da própria Vida divina. “Olharão para aquele que traspassaram” (Jo 19,37; Zc 12,10). No dom imediato que responde ao golpe, o homem vê diante de si a gratuidade infinita que está na origem da sua existência e que ele já recusou. É como voltar à origem da criação de tudo, porque a origem de tudo é a pura gratuidade da Trindade de desejar e amar o homem. Mas se no início havia somente a pura gratuidade nascente da Trindade, agora esta mesma gratuidade jorra de uma ferida, de um ato hostil, do gesto do pecado que recusa o amor de Deus. E, neste momento, a gratuidade de Deus é toda misericórdia, perdão e redenção.
O soldado romano, que volta o olhar para Aquele a quem traspassou e lhe vê o coração, fonte da graça, se torna como um ícone de Adão que naquele mesmo espaço entre a morte e a ressurreição de Cristo, o Sábado Santo, vê o Senhor descer aos infernos para libertá-lo e restituir-lhe a realização do termo de vida e de felicidade eterna para o qual foi desejado e criado na origem.
No coração ferido, que imediatamente derrama a graça sobre o homem que nega e ofende a Deus, o eterno e o infinito se tornam visíveis na gratuidade do amor de Deus. O homem não é capaz de compreender a eternidade e o infinito, mas pode fazer a experiência deles no impacto com a gratuidade. A gratuidade, na experiência humana, é como o reflexo instantâneo do eterno e do infinito. Voltando os olhos ao coração ferido tornado fonte, o homem vê e toca a gratuidade absoluta de Deus, origem da sua existência. No coração ferido de Cristo o homem vê e toca a sua origem e o seu destino eternos e, assim, pode compreender a si mesmo, compreender quem é. Voltando o olhar para o coração transpassado o homem se vê no pensamento de Deus, no amor de Deus; vê a sua plenitude de vida e a sua verdadeira felicidade. E as vê numa fonte de gratuidade que se derrama não somente sobre os que não merecem mas também sobre os que a negam.

 
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