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Eutanásia, qualidade de vida e saúde
Dalton Luiz de Paula Ramos*
 

O caso da senhora norte-americana Terri Schiavo tem suscitado grandes debates na mídia. Não é uma simples situação individual, pois a importância que os meios de comunicação lhe atribuem põe em pauta o tema da eutanásia. Também nas telas dos cinemas, o tema da eutanásia está em cartaz.

No caso dessa senhora, que depende de uma sonda gástrica para se alimentar, não se realizaram exames médicos oficiais nem estudos para esclarecer seu exato estado neurológico, como afirmou recentemente dom Elio Sgreccia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida. A senhora Terri Schiavo parece encontrar-se numa espécie de estado vegetativo subliminar, no limite da consciência, que poderia definir-se como “estado mínimo de consciência” (MCS, por sua sigla em inglês). Pode ser considerada uma pessoa humana viva, privada de consciência plena, cujos direitos jurídicos têm de ser reconhecidos, respeitados e defendidos. Por esse motivo, nessas condições, tirar a sonda de alimentação pode ser considerado eutanásia direta. Ainda segundo o prelado, nesse caso a sonda gástrica de alimentação não pode ser considerada um “meio extraordinário” e nem sequer um meio terapêutico. Sgreccia considera que a decisão da justiça norte-americana que determinou que fosse retirada a sonda gástrica “é uma morte provocada por meio de uma forma cruel. Não é um ato médico. Trata-se de tirar a água e o alimento para provocar a morte”.

A eutanásia direta, entendida como uma ação ou omissão que, em si ou em sua intenção, gera a morte a fim de suprimir a dor, constitui um assassinato, gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu Criador. É moralmente inadmissível (Catecismo da Igreja Católica, nº 2277).

A Igreja Católica também rejeita a chamada “obstinação terapêutica”. Ela entende que pode ser legítima a interrupção de procedimentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionais aos resultados esperados. Dessa maneira, não se quer provocar a morte; aceita-se não poder impedi-la. Nesses casos, as decisões devem ser tomadas pelo paciente, se tiver a competência e a capacidade para isso; caso contrário, pelos que têm direitos legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do paciente (Catecismo da Igreja Católica, nº 2278).

Muitos daqueles que defendem a eutanásia argumentam que ela é uma forma de evitar o sofrimento, quando a vida não tem mais sentido, quando não se dispõe de “qualidade de vida”.

Deve-se ter em conta, como nos diz o Papa em sua Carta Encíclica Fé e Razão (nº 81), que um dos dados mais salientes da nossa situação cultural atual consiste na “crise de sentido”. Essa crise de sentido em parte está condicionada por algumas posturas “modernas” que acabam por reduzir o significado do termo “qualidade de vida”, tornando-o ambíguo e contraditório. São elas o hedonismo - representado pela busca desenfreada do prazer -, o individualismo - que exalta o indivíduo de modo absoluto - e o pragmatismo, atitude mental própria de quem, ao fazer suas opções, exclui o recurso à reflexão abstrata ou a avaliações fundadas sobre princípios éticos. Em 19 de fevereiro de 2005, quando do início dos trabalhos da Assembléia Anual da Pontifícia Academia para a Vida, no Vaticano, o Papa João Paulo II encaminhou a seus membros uma mensagem sobre “A qualidade de vida e a ética da saúde”.

Na referida Mensagem, o Papa relembra que a expressão “qualidade de vida” hoje é interpretada como eficiência econômica, consumismo desenfreado, beleza e prazer da vida física, esquecendo as dimensões mais profundas da existência, como o são as interpessoais, espirituais e religiosas. No impulso da sociedade do bem-estar, a noção de qualidade de vida fica reduzida a uma capacidade de gozar e de experimentar o prazer. Buscando apresentar-nos um esclarecimento adequado para retomarmos um correto entendimento antropológico e teológico da expressão “qualidade de vida”, o Pontífice nos propõe que reconheçamos e promovamos dois aspectos.

O primeiro aspecto é que o que distingue cada criatura humana, a sua “qualidade essencial”, é o fato de ter sido criada à imagem e semelhança do próprio Criador. A pessoa humana é constituída de uma unidade de corpo e de espírito e, por esse motivo, possui por essência uma dignidade superior às outras criaturas visíveis, vivas e não vivas. Essa é a “qualidade” e “dignidade” do ser humano que existe em cada momento da vida, desde o primeiro instante de sua concepção - o exato momento da fecundação, quando, unindo-se óvulo com espermatozóide, surge o embrião humano - até a morte natural. E essa “qualidade” e “dignidade” realiza-se plenamente na dimensão da vida eterna. Na Mensagem, o Papa afirma que como conseqüência desse entendimento “o homem deve ser reconhecido e respeitado em qualquer condição de saúde, de enfermidade ou de falta de habilidade”.

Um segundo aspecto importante para um correto entendimento da expressão “qualidade de vida”, decorrente do primeiro, é que, a partir desse reconhecimento do direito à vida e da dignidade peculiar de cada pessoa, a sociedade deve promover, em colaboração com a família e com os outros organismos intermediários, as condições concretas para desenvolver de maneira harmoniosa a personalidade de cada homem, em conformidade com suas capacidades naturais. Para a promoção harmoniosa de todas as dimensões da pessoa humana, devem existir condições sociais e ambientais adequadas, oferecidas a todos os homens, qualquer que seja o país em que vivam. Uma implicação prática disso, quando se fala de eutanásia, é o dever dos órgãos estatais, responsáveis pelo financiamento e implantação das políticas de atenção a saúde, de oferecer os “cuidados paliativos”, que são os recursos técnicos (equipamentos e medicamentos) e humanos (equipe de saúde - médicos, enfermeiros, psicólogo, assistente social, etc.), para atendimentos hospitalares e/ou domiciliares, que garantam os cuidados devidos a uma pessoa doente de forma a ampará-la em todas as suas dimensões de saúde. Quanto ao conceito de “saúde”, esse também passou por deformações. O Papa nos lembra que quando falamos de saúde desejamos fazer referência a todas as dimensões da pessoa, na sua unidade harmônica e recíproca: a dimensão corpórea, psicológica, espiritual e moral.

Essa última dimensão, a moral, não pode ser descuidada, segundo o Papa. Cada pessoa tem uma responsabilidade com relação à própria saúde e à de quem ainda não alcançou a maturidade ou já não tem a capacidade de administrar sua própria saúde. A circunstância em que se encontra a pessoa doente não é um problema só dela ou de seus parentes próximos, a quem caberia, então, “autonomamente”, decidir pela vida ou pela morte. A circunstancia de sofrimento em que se encontra um de nossos irmãos é um desafio para todos. É um dever de caridade amparar o doente e seus familiares.

Na referida Mensagem, o Papa afirma que a saúde não é um bem absoluto. Quando compreendida numa concepção redutiva e deturpada, como um bem físico, ela é idealizada até o ponto de se limitarem ou descuidarem os bens superiores, aduzindo razões de saúde até mesmo na rejeição da vida nascente. Ou poente, quando a morte se anuncia.

Assim, numa perspectiva realista e totalizante, o Papa chama a nossa atenção para o fato de que a vida, a saúde, a qualidade e a dignidade da pessoa humana não podem ser reduzidas a sua dimensão física.

É muito significativo que essas reflexões nos sejam apresentadas pelo Papa João Paulo II neste seu momento particular de vida. A Mensagem do Papa, de 19 de fevereiro de 2005, nos é oferecida naqueles dias entre duas internações hospitalares a que o Pontífice teve de se submeter. É um idoso que fala para os idosos, é um doente que fala para os doentes. Ensina-nos não só com suas palavras, mas também com seu exemplo pessoal, de persistência e de amor à vida. Ensina-nos que a vida humana tem significado e dignidade, qualquer que seja a condição em que a pessoa se encontre, e que, mesmo enferma e debilitada, a pessoa tem um papel a cumprir enquanto lhe restar um sopro de vida.


* Dalton Luiz de Paula Ramos é professor associado de Bioética da Universidade de São Paulo, membro da equipe de assessores de bioética de CNBB, coordenador do Projeto Ciências da Vida do Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP e membro correspondente da Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano.

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