Entrevistas

A poesia deve surpreender

Luis Dolhnikoff: Venho há algum tempo me referindo a certa pequenez generalizada que tomou conta da poesia brasileira. Acredito haver muitos modos de demonstrá-la. Um deles surgiu em uma conversa com a poeta Josely V. Baptista, em que ela me apontou a virtual impossibilidade de se fazer uma antologia forte de poetas contemporâneos. A antologia teria de ser, então, de poemas. Isso se torna mais significativo ao se pensar na quantidade vertiginosa de novos e não-tão-novos poetas. Mas eu iria além. Acredito que não conseguiria fazer sequer uma antologia rigorosa de poemas que não fosse muito fina. Teria, enfim, de ser uma antologia de versos. Porém, mesmo aí a coisa claudica. Porque, particularmente, leio e leio a poesia contemporânea, e o que leio passa por meu cérebro como água em uma peneira. Praticamente nada fica de realmente marcante. Mas nada disso seria um problema intratável se ao menos fosse visto como um problema. Quero dizer que não há atividade humana livre de sofrer períodos de queda de qualidade, pelos mais variados e muitas vezes incontroláveis motivos. O problema, penso, só se torna insanável ou quando a cultura em questão está em estado terminal, como a cultura grega à época de Paladas de Alexandria, ou quando, justamente, o problema sequer é reconhecido. Resolver o quê, como, por quê, se não há qualquer problema à vista? Não que o mero reconhecimento garanta a solução. Há problemas insanáveis. Mas o não-reconhecimento de um problema garante sua intratabilidade. E há uma atitude generalizada, parece-me, e na verdade quase unânime, não apenas de silenciar quanto à pequenez geral, mas de não se perder a chance de emitir elogios fáceis a esse ou aquele novo ou não-tão-novo poeta, numa larga e irrelevante (auto)satisfação morna. O que inclui, como regra, a crítica jornalística e a acadêmica, além, naturalmente, das manifestações dos poetas sobre seus pares. Pergunto, então: você acha que a poesia caminha para a irrelevância, ou, ao contrário, discorda frontalmente desse diagnóstico? Se sim, há algo a ser feito?

Leda Tenório da Motta: Eu concordo completamente com o quadro que você descreve. Sem querer ser essencialista – aquela que chega dizendo: a verdadeira poesia “é”… –, acho que, rigorosamente, há muito mais agitação que resultados em volta de nós. Muito mais vaidade, veleidade, ansiedade, pressa em entrar no circuito, do que verdadeiro trabalho. Aliás – já que você mencionou a Josely –, a poesia que ela fabrica é um parâmetro interessante, porque este sim é um trabalho de paciência, uma relojoaria, que tem ainda a qualidade sobressalente de realizar-se a distância do centro dos acontecimentos aqui no sul maravilha, onde chega ressoando com incomparável gravidade. Trata-se de uma sofisticação rara.

Diante disso, não haveria mesmo o que antologizar. O máximo que se pode fazer é o que se vem fazendo, com maior ou menor felicidade: mapear. A propósito, eu repito o que já disse antes, numa outra conversa na rede: o que existe aqui, em matéria de recepção dos novos, são surtos de mapeamento, listagens sazonais, classificações empenhadas, lições de casa. São práticas avulsas, que não fazem uma cultura crítica – assim como os poemas isolados a que você se refere, e mesmo os livros de poesia ­–, não representam, necessariamente, uma cultura poética.

A exceção que confirma a regra é aquela coleção da Duas Cidades – a Claro Enigma – que, no final dos anos 1980, foi além e captou uma certa produção que de fato existia, introduzindo gente que até hoje continua fazendo sentido, como o Paulo Henriques Brito e o Age de Carvalho, por exemplo. O organizador – Augusto Massi –, que um dia juntou todos os lugares da crítica, sendo ao mesmo tempo jornalista, universitário e poeta –, é agora o publisher de uma editora que publica de tudo, aos borbotões, e, até por isso, esse tipo de recenseamento sério ficou sendo – no melhor sentido da expressão – um gesto de ópera.

Mas eu não tiro desse quadro as mesmas consequências. Não acho que a poesia – não apenas a que temos aqui, hoje, mas a poesia de modo geral – caminhe para a irrelevância, por conta do mundo externo. Porque eu prefiro pensar que a verdadeira poesia  – essa que você e a Josely chamam de forte – corre por fora disso, que ela é um acontecimento surpreendente… dentro disso mesmo! Que ela é alguma coisa da ordem do imprevisto, uma espécie de milagre. Explicando melhor –  e com todo o respeito pelos que defendem as bordas –, eu acredito muito num centro do cânone, em que só entram os Shakespeare, os Baudelaire, os Borges. Gosto dos cânones restritos, dos paideumas exemplares, como o do próprio Borges, como o do Harold Bloom, como o dos poetas concretos.

Para tomar a literatura a partir da própria literatura, eu vou tentar explicar novamente isso recorrendo a Thomas Mann, Francis Ponge e Borges.

Na sua monumental história da literatura, Otto Maria Carpeaux nos diz que Thomas Mann é o maior dos escritores de segunda ordem. Eu adoro essa provocação. Porque, seja o que for que pensemos desta glória da literatura de língua alemã, que não ousamos questionar, mas que, para Carpeaux, é muito mais um pequeno filósofo, enredado em suas pequenas teses, que um criador, a verdade da frase está em verificar que há níveis de dignidade, graus de excelência, patamares de sofisticação, relevos na literatura.

É nisso que eu acho que temos que pensar quando nos voltamos para o presente e sua pobreza. Nisso e numa outra lição que nos vem de um dos mais laboriosos poetas do século XX, Francis Ponge. Como leitora e tradutora de Ponge, eu sou também particularmente sensível a esta declaração dele, que aparece no livro Métodos, e que tanto mais nos surpreende por vir de uma cultura poética tão forte como a francesa: “a verdadeira poesia não é o que está nas coleções poéticas”. Essa é uma definição interessantíssima, porque é uma definição no negativo. Isso significa que a poesia é a própria coisa insólita, por isso mesmo a coisa menos reconhecível e, no limite, a menos factível. Não deveríamos, portanto, nos admirar de não encontrá-la ali onde alguns pensam que ela está.

Para terminar, eu lembraria ainda um conto de Borges que me parece ser uma perfeita ilustração da solidão e da raridade dos poetas dignos desse nome. Esse conto, da última safra borgeana, intitula-se “A rosa de Paracelso”. Lemos aí que, fechado em sua casa e se sentindo muito sozinho, Paracelso pediu a Deus um discípulo. Deus ouviu suas preces e alguém foi bater a sua porta, lhe dizer que queria aprender com ele. O recém-chegado, porém, pedia provas de seu mestre, demonstrações práticas de sua magia, cenas de prestidigitação. Paracelso percebeu então que ele buscava o truque e a glória, e assim o despediu. E foi só quando o outro virou as costas que o mestre transformou em rosas as cinzas da chaminé! Acho que o aceno desse conto é no sentido de que a verdadeira magia, a verdadeira arte, é algo assim como um evento no plano de uma cerimônia secreta.

A crítica

LD: Recentemente, um poeta de certo renome publicou num site literário um poema que considerei particularmente banal. Ao lê-lo, pus-me a analisá-lo. Não analiso todo poema que leio, naturalmente. Mas analiso, naturalmente, todo poema muito bom e todo poema muito ruim que leio. Ou seja, não consigo ler um poema muito bom nem um poema muito ruim sem me pôr a analisá-los. Porque chamam a atenção para suas características marcantes, ainda que marcantes em sentido inverso. Além disso, e afinal o mais relevante, fiquei instigado por uma possibilidade criada pelo meio: a crítica a quente e paralela. O link para o poema está ali, e ao seu lado surge, um ou dois dias depois, um link para sua crítica. É diferente do velho instituto jornalístico de réplica e tréplica, que parece, pela dilação do tempo, uma troca de cartas. Nesse caso, se assemelhava muito mais a um diálogo. Um diálogo crítico-criativo. Daí eu ter levado a coisa até o limite. Além de analisar o poema, o reescrevi, a partir da ideia de Pound da crítica via tradução. Fiz a crítica via recriação. O poeta, naturalmente, respondeu à minha crítica, e de um modo melhor do que eu esperava, sem se furtar a contra-analisar minha versão de seu poema. Em minha ingenuidade, imaginei estar inaugurando um espessamento do modelo. Em vez de poemas e textos meramente exibidos em paralelo num site literário, como chapéus numa vitrine, um diálogo crítico-criativo direto, nascido do e crescido no próprio site, que além disso faria renascer algum diálogo crítico-criativo quente e a quente em meio à mornidão geral. Um fermento no pão do hábito. O primeiro resultado prático, tão natural quanto irrelevante, foi o pipocar de manifestações dos amadores de plantão na seção de comentários, a maioria espantada por eu haver reescrito o poema (a despeito de analisar minha própria reescritura, não no sentido de elogiá-la, mas de poder realizá-la, pois se tratava, como dito cá e lá, de uma crítica via criação). O segundo, não natural, mas ainda irrelevante, foi eu me tornar em seguida persona non grata no site. Como se a pele dos poetas fosse hoje tão delicada que não suportasse o calor e/ou a proximidade da crítica não morna. O caso, apesar de tudo incidental, para mim demonstra várias coisas, algumas sem qualquer importância, outras potencialmente importantes. É justamente pela última consideração que transformo o caso numa questão teórica. A ausência de uma crítica mais rigorosa e vigorosa, que vem caracterizando nosso meio literário, e particularmente o poético, é causa ou efeito de seu relativo acanhamento criativo? Ou você discorda que exista algo parecido com isso (um acanhamento criativo)?

LTM: Sobre a internet, onde você amargou essa experiência do retorno das tribos arregimentadas, eu acho até que a crítica literária acabou lucrando com ela. Porque é nessa no man’s land, onde encontrar o melhor e o pior, que estão hoje as melhores e praticamente as únicas revistas literárias que temos, gozando do empenho dos editores-poetas e de uma liberdade máxima de ação, impossível nos departamentos universitários e nas colunas dos jornais, onde se está igualmente sob censura.

Sobre a questão de saber o que vem antes do quê, se são os poetas banais que enfraquecem os leitores, ou o contrário, eu acho que já não podemos mais, nesta altura dos acontecimentos, separar burocraticamente as coisas, até porque a literatura tornou-se tão auto-referente. É tudo junto, o acanhamento da poesia é o acanhamento dos que velam por ela, ou pensam que velam; as crises da literatura são as crises da crítica, e vice-versa.

Um bom exemplo dessa circularidade é um nicho crítico de excelência como o da revista Tel Quel. Pilotada por Philippe Sollers – cujo diferencial era ser um homem sem profissão, que estava fora da universidade e da imprensa –, a Tel Quel mudou a pulsação da literatura francesa ao inscrever nela nomes como os de Francis Ponge e Céline, em vida deles – ou quase isso, no caso de Céline, que morreu em 1961 – , e totalmente na contramão. Aí, a crítica e a criação se encontraram perfeitamente, se insuflaram mutuamente. Outro caso digno de nota é o da revista argentina Sur, da mecenas Victoria Ocampo, a qual simplesmente devemos a invenção de Borges. A nota irônica é que isso acontecia bem aqui ao lado, mais ou menos no mesmo momento em que a revista Clima recepcionava seus poetas parnasianos.

Sobre se esse acanhamento é fato, aqui entre nós, hoje, claro que é! Você fala numa falta de vigor e de rigor da crítica. Eu até iria mais longe. Juntando jornalistas e universitários, diria que nunca se viu tanta confusão entre a voz do crítico e a voz do homem comum como a que nos vem agora dos jornais, onde a resenha assumiu o espírito box de serviço; nem tanta vã tecnologia como a que se fabrica nos departamentos de letras das universidades públicas, como prova o fato de eles estarem tão empenhados em ler a MPB, e passando de Machado de Assis a Pelé, sem mediação.

Sinto-me à vontade para dizê-lo porque, relendo recentemente a corrosiva monografia da imprensa parisiense de Balzac, percebi, mais completamente, o quanto, desde sempre, as relações da grande literatura com os periodistas foram tensas, e o quanto os grandes escritores e a academia também sempre se desencontraram. Para Balzac – que, aliás, teve em Proust um de seus primeiros leitores não aversivos, o que fala por si só da força do crítico-escritor –, o jornalista é o especialista em nada, o “nadólogo”, e o crítico periodista, o trombeteiro dessa especialização. É neste mundo turvo da primeira potência midiática da história que Rubempré, o poeta-jornalista, que vendeu a alma para prosperar junto ao público e subir na vida, vai se perder. Já do sorbonista, Balzac nos diz que, de posse de seu salário, e bem instalado em algum ponto do Quartier Latin, ele “toma de um livro, verifica qual é o pensamento do autor, estuda-o sob o ângulo tríplice da ideia, da execução e do estilo… e erra sempre”.

A Prosa

LD: Mudando da água para o vinho, ou da poesia para a prosa. Bernardo Carvalho, Cristóvão Tezza, Milton Hatoum, Chico Buarque. Este grupo representa, digamos, a prosa contemporânea de alto repertório. Ao lado dele, há outro grupo que, se eu chamar de baixo repertório (ainda que meramente em termos de certa inserção na tradição), serei chamado de fascista. Como não me importo do que me chamem, desde que não me chamem muito, ponho afinal, ao lado daquele, um grupo de baixo repertório, com nomes como Paulo Lins e Ferréz (que teve seus quinze minutos de fama e depois saiu dos radares, sem deixar de demonstrar, em alguns momentos, um talento maior do que a média de seus pares). Entre os dois grupos, vejo um terceiro, caracterizado, ao mesmo tempo, pelo médio repertório e por uma queda tardo-pequeno-burguesa para ainda tentar espantar a burguesia, para o que trata de se aproximar tematicamente do segundo grupo, em romances e contos escatológico-criminal-suburbano-esquisitos. A lista de autores aqui é grande, mas para mim não memorável. Quanto ao primeiro grupo, li recentemente com atenção os últimos livros de Bernardo Carvalho, Milton Hatoum e Chico Buarque (não tive vontade de me debruçar sobre o Tezza). Minha sensação é de que, nesse primeiro grupo ao menos, a prosa contemporânea, de um modo geral, se sai menos mal do que a poesia, nem que seja por certa competência artesanal. Mas, por um lado, isso não garante necessariamente muita coisa, dado o estado da poesia. Por outro lado, alguns me parecem, não obstante, particularmente fracos, como o notório Bernardo Carvalho, segundo acredito um dos muitos frutos mais ou menos recentes da aliança da crítica preguiçosa com as relações profissionais certas e com a presença forte dos releases das editoras. Você acredita que a prosa brasileira contemporânea vai menos mal do que a poesia brasileira contemporânea? Você concorda poder haver nomes que são fruto da aliança da crítica preguiçosa com as relações profissionais certas e com a presença forte dos releases das editoras?

LTM: Essa aliança existe e essa crítica trabalha. Em Balzac, que cataloga cruelmente as espécies críticas, seguindo o modelo das classificações naturalistas, então abraçado pelos realistas, há toda uma parte dedicada a ela. Nas cenas balzaquianas da vida jornalística, uma subcategoria atuante é a do crítico que janta em sociedade, antes de se pôr a escrever, com o rabo necessariamente preso, sobre os literatos ou os protegidos dos literatos com quem cruzou. Aliás, esse é também todo o assunto de Proust em seu Contra Sainte-Beuve.

Eu não acho, não, que a prosa vai melhor que a poesia. Até porque os três grandes a que você se refere – o Milton Hatoum, o Bernardo Carvalho e o Chico Buarque de Holanda – são todos midiáticos, isto é, jornalisticamente construídos, e estão todos sob a chancela da Companhia das Letras.

Voltando à raridade e à solidão dos artistas,  acho que a situação não muda muito quando se muda de gênero. Acho que neste campo também está faltando contundência, risco, estremecimento, algo que mostre que veio para mudar a literatura e a própria língua, porque escrever num grau heróico é o foco da grande experiência literária, e o mínimo que se espera de um escritor no topo do seu ofício.

Talvez Milton Hatoum tivesse podido ser esse escritor se não tivesse sido privado do seu deslocamento kafkiano, ao mudar-se para São Paulo. Não que ele não pudesse ser estranho aqui mesmo… Mas a mim, que acabo de ler Pornografia do Gombrowicz, essa literatura me parece enfraquecida. Eu não diria que dá para ler Milton Hatoum na diagonal, de pé, ali mesmo na livraria, como lemos Chico. Mas também não dá para lê-lo como se lê… Philip Roth, Cabrera Infante ou Danilo Kis.

Deixa eu arriscar aqui um palpite. Sem querer estabelecer relações diretas e mecânicas entre as coisas, mas procurando, sim, relações de fundo, desconfio que o agigantamento desses três escritores, que estão hoje praticamente encarregados de levar a literatura brasileira nas costas, tem algo a ver com o fato de que foram os prosadores, e não os poetas, aqueles incumbidos de nos representar por nossa mais prestigiosa crítica, essa mesma que está pondo agora Leite derramado no patamar de Machado de Assis. Disseminada pelas pós-graduações a que acorrem os críticos jornalistas, há uma precedência, uma proeminência da prosa na tradição da escola da literatura-e-sociedade, que faz com que seja o romance, na chave machadiana da ironia ou na chave da dialética da malandragem, a nos reconstruir imaginariamente, a dar conta do recado, enfim. Então, talvez não seja gratuita essa tríade de valores, que é em tudo diversa, porque um é mais intimista, o outro, mais experimentalista, o terceiro, mais sociólogo, mas, no fundo, equiparável, porque são todos bons contadores de histórias, ficcionistas que ainda se seguram, na exaustão dos veios ficcionais, e que ainda preenchem, assim, de algum modo, a expectativa da narração como grande lição. Essa mesma grande lição que Paulo Coelho também narra, no registro da fé e de maneira caricata.

O momento atual

LD: Paulo Franchetti referiu-se recentemente à “demissão da crítica”. Os fatores determinantes para essa demissão, imagino, são muitos, incluindo a contratação de muitos professores universitários, reflexo, por sua vez, da proliferação de universidades. Pois a universidade, no Brasil, não é rigorosamente regida pelo mérito. Ou ela é estatal, ou é um caça-níqueis. No caso das estatais, o espírito do funcionalismo público é forte, além de cevado e cimentado pelo espírito de corpo e pelo burocratismo. A “regra de ouro” da moralidade, “não faça ao outro o que você não quer que lhe façam”, acaba reduzida a uma caricatura, “não faça nada que possa lhe causar qualquer problema”. Além disso, como hoje há tanta gente que quer ser poeta, e como há tantos empregos nas universidades, há muitos poetas que são professores universitários, ou muitos professores universitários que são poetas. E a regra de ouropel de ambas as classes é a mesma. A isto se deve acrescentar ainda o “especialismo” e os modismos acadêmicos, que delimitam o pensamento abrangente e debilitam o pensamento independente. Mas também se devem acrescentar, acredito, o multiculturalismo e o “politicamente correto”. O “politicamente correto” torna incorreto fazer reservas a essa ou aquela poética, enquanto o multiculturalismo torna “politicamente incorreto” não reconhecer sua importância. Cito um caso recente. Alberto Mussa traduziu diretamente do árabe os Muallaqat, ou Poemas suspensos, considerados os mais significativos poemas árabes do período pré-islâmico, o que não é pouca coisa. E o que aconteceu? Nada. E isso é, ou deveria ser, surpreendente. Não é todo dia que se publica poesia árabe no Brasil, e mais ainda, aquela que é considerada uma das mais relevantes realizações da poesia árabe. Ou seja, trata-se da chegada ao português de uma das obras poéticas mais significativas de uma língua pouquíssimo presente em nossa literatura. A tradução, na modernidade, não é considerada fundamental? Os influxos da língua de partida não enriquecem a língua de chegada? Não cresce o repertório da poesia em português? Então, o que aconteceu? Os famosos Poemas suspensos afinal não justificam, em termos propriamente poéticos, a sua fama? Ou o meio poético é tão amorfo e indiferente, atento apenas às próprias pequenezas, que não percebe um acontecimento como esse? O meio poético pode ser amorfo e indiferente, mas, nesse caso em particular, os poemas não ajudam. Pus-me a lê-los com tanto interesse quanto foi meu desinteresse depois de começar a leitura. É uma poesia cujas profundas idiossincrasias culturais, de um meio pastoril-arcaico e relações tribal-patriarcais e pensamento mágico-religioso, afinal não se materializam numa linguagem poética que a torne suficientemente interessante para o leitor contemporâneo. Mas dizê-lo em público é “politicamente incorreto”. Logo, não se diga nada, e vamos em frente. Há uma “demissão da crítica”? Quais as suas principais causas? O academicismo, o multiculturalismo e o “politicamente correto” estão entre elas? A crítica acadêmica e a crítica jornalística se “demitiram” do mesmo modo? As poesias nacionais em todas as línguas têm a mesma relevância poética? Como afirmá-lo, à falta de critérios universalmente aceitáveis?

LTM: São muitas questões cruciais. Eu me limito a comentar, muito rapidamente, seus comentários sobre a tradução, e me arrisco a responder só à primeira pergunta, aliás, meio que me repetindo, nos dois casos.

Sobre a tradução de Alberto Mussa, essa não acolhida nos faz recair na expulsão dos poetas para fora dos muros, movimento aqui aperfeiçoado por uma indiferença pelas línguas estrangeiras – e no limite pelo estrangeiro, erigido em objeto imitativo a afugentar – que é própria do nacionalismo crítico ambiente, que sepultou a linha Oswald. Afinal, se não sabemos de algum homem de letras da corrente literatura-e-sociedade que tenha algum dia encarregado algum poeta de nos explicar, tampouco sabemos de algum que jamais tenha vertido para a nossa língua algum título do patrimônio universal.

Sobre a demissão da crítica, claro que está armada aqui uma cultura crítica cordial, que, aliás, também pode ser decisiva em coisas como resultados de concursos públicos, atribuição de verbas e preenchimento de cargos de direção. É claro que isso envolve uma demissão, inclusive ética, além de estética. Assim como é demissionária a crítica daqueles segundos cadernos cujas editorias são continuações naturais do departamento de marketing e da coluna social do jornal. E assim como é demissionário aquele editor cultural que põe em destaque máximo, na primeira página de seu jornal, o romance de um articulista da casa, tornado subitamente ficcionista; depois encarrega da resenha, na terceira página, um outro articulista da casa; depois ainda, dá espaço, na edição seguinte, a um terceiro homem da casa, que não gostou da pequena reserva que o segundo homem da casa fez ao primeiro homem da casa, e vem a campo dizê-lo, ou melhor, manda um texto de Nova York, tudo isso com cinismo indolor da parte da editoria, disfarçada de distribuidora da liberdade de opinião. Foi assim quando do lançamento, mais ou menos recente, do primeiro romance de Contardo Calligaris, cujo processo me pareceu pedagógico.

Diante disso, existe, sim, essa demissão geral. E não só aqui. Num dos mais belos livros já  escritos – O neutro, espécie de narrativa sem gênero certo, na fronteira entre a prosa crítica e a prosa literária, que, na minha opinião, é uma das mais belas amostras da literatura na pós-contemporaneidade – Roland Barthes vai ao ponto. Tomando-se a si mesmo como referência, ele se admira da diferença das críticas que recebeu quando dos lançamentos de O grau zero da escritura e Fragmentos de um discurso amoroso. Vinte anos separam um livro do outro. Nesse ínterim, algo mudou. Nos anos 1950 – nota Barthes – os críticos de jornal ainda tinham voz, ainda se arriscavam a escrever, a assinar embaixo do que escreviam. Nos anos 1980, entraram em campo as entrevistas, isto é, o refluxo das vozes críticas, e o terrorismo da pergunta, índice do aumento do poder do jornal. Se as coisas são assim na França dos anos 1980, só posso dar razão, trinta anos depois, a Paulo Franchetti, aliás, um de meus escritores preferidos.

Premiações

LD: Afirmei recentemente que os prêmios literários deveriam ter a capacidade de identificar autores promissores, o que os tornaria um fator real de estímulo à criação literária. Parafraseando Kennedy, não porque seja fácil identificá-los, mas porque é difícil. Ao ser difícil, mas não impossível, seria ainda mais relevante, justamente porque o fácil sempre há quem faça. Ao mesmo tempo, isso faria com que os prêmios deixassem de ser literariamente irrelevantes. Há vários países com prêmios literários nacionais relevantes em muitos sentidos, mas nenhum prêmio literário brasileiro, creio, é realmente relevante a não ser para promover uma noite mais ou menos de gala e a conta bancária do ganhador. É claro que isso se deve à histórica irrelevância da literatura num país cujas elites são filistinas e provincianas, e cujas massas são provincianas e analfabetas. Mas também se deve, acredito, ao fato de os prêmios não mudarem nada em tal paisagem deprimente. O que talvez fizessem ao arriscar em novos talentos, e ao lhes entregar certa soma significativa de dinheiro, sem qualquer contrapartida. Não seria uma bolsa para a realização de um “projeto”, mas um prêmio de fato. Um prêmio por promessa. O acerto ou não do prêmio se revelaria a posteriori. Se sim, além de uma medida objetiva de sua pertinência, haveria uma consequência real na paisagem literária. Pois dada a dificuldade de ser escritor num país como o Brasil, isso sem dúvida faria diferença nas condições de trabalho do ganhador por algum tempo. O que você acha dos prêmios literários brasileiros? Você acredita ser possível torná-los realmente relevantes, ou isso é irrelevante?

LTM: Aqui eu vou ser telegráfica. O problema dos prêmios não são os prêmios, são os jurados. É sempre bom, toda vez que ouvirmos um prêmio ser anunciado, nos  perguntarmos pelo júri. A propósito disso, enumero abaixo alguns casos interessantes, que vão da comédia dos erros à força do exemplo, passando pelas lições da ironia:

1 – Hitchcock jamais recebeu um Oscar como realizador;

2 – Em 1963, o Oscar de Melhores Efeitos Especiais foi para Cleópatra de Mankiewicz, e não para Os pássaros de Hitchcock;

4 – Sendo solícito como era, temos tudo para supor que, se tivessem pensado nele, em Estocolmo, Borges jamais teria recusado o Prêmio Nobel. O fato é que sua obra jamais se qualificou – ou qualificaria – para tanto;

5 – Já Maurice Ravel, o autor do Bolero, inverte Borges. Por algum capricho que nunca se entendeu muito bem, em 1900 ele recusou a Legião de Honra do governo francês – gesto acolhido por Erik Satie, a cujo cenáculo ele pertencera – com esta frase arrasadora: Ravel recusa a Legião de Honra, mas toda a sua obra a aceita;

6 ­– Quando, em 1969, Beckett foi indicado ao Nobel, recebeu a notícia com indiferença, e não foi a Estocolmo;

7 – Cinco anos antes, Sartre já tinha recusado o Nobel, com esta bateria de argumentos igualmente arrasadora: não se trata de nenhuma exigência de rigor moral nem de nenhuma ascese pecuniária, mas de uma atitude que se funda numa concepção do que seja o escritor; um escritor deve agir com seus próprios meios, a palavra escrita; as distinções que recebe o expõem, assim como a seus leitores, a uma pressão que não considero desejável; não é a mesma coisa assinar “Jean-Paul Sartre” e “Jean Paul-Sartre, Prêmio Nobel”.

 

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