locais de intervenção


A escolha dos lugares de intervenção
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Nelson Brissac Peixoto
curador do projeto Brasmitte

Brasmitte consistirá na ocupação de um antigo grande complexo industrial no Belenzinho, onde se está instalando a nova unidade do SESC, e cerca de seis intervenções em espaço urbano na região, delimitada pela Av. do Estado.

Um levantamento urbanístico preliminar foi realizado, visando a leitura da área e a escolha dos sítios de intervenção. Ele obedeceu a certos critérios básicos: situações que apresentassem tensões espaciais ou sociais, configurações complexas e desorganizadas pela implantação de vias de transporte, a desativação de equipamentos industriais e a ocupação informal. Configuração que se repete na área do SESC-Belenzinho, devido às grandes dimensões, a densidade e a justaposição intrincada das suas edificações. Microcosmos da Zona Leste, esta área do SESC comporta todos os elementos que caracterizam a região.

A escolha dos locais de intervenção foi baseada na complexidade estrutural (espacial e social) apresentada por cada situação. Deste modo, os locais determinados comportam as mesmas características que definem toda a área. Foram excluídos, intencionalmente, interiores e situações urbanas mais homogêneas e equilibradas, privilegiando os setores de configuração espacial tensionada (por vias de transporte e por projetos de reurbanização) ou ocupação social desorganizada (sem-tetos, comércio de rua, cortiços). São áreas que se desenham entre viadutos, à beira de vias de trânsito expresso e estações, em espaços abertos tomados por atividades comerciais informais e habitação clandestina.

Todas as situações apresentam perfis semelhantes: quando são edificações, inserem-se por completo no entorno urbano; quando são locais pertencentes a empresas públicas (como ferrovias), são áreas desconectadas do serviço, em desuso e de livre acesso; são diretamente ligadas a sistemas de trânsito e passagem; apresentam uma organização espacial desconfigurada pela implantação recente de grandes operações de reurbanização.

Como intervir em megacidades? Quais são as condições impostas pelo caráter informe e genérico destas novas espacialidades para qualquer projeto de intervenção? Não há mais como operar apenas com referenciais históricos, locais específicos, formas particulares de ocupação social.

As intervenções vão se fazer nestas situações sem contornos nem limites claros, onde não há distinção entre interior/exterior, público/privado. Onde não há como delimitar situações específicas. Lidando obrigatoriamente com o caráter poroso das edificações, com as intersecções com as vias de transporte, com a indistinção da paisagem. Configurações informes que impedem a consolidação das intervenções a serem realizadas como objetos esculturais alocados no espaço urbano ou instalações em locais edificados.

Em que medida a abrangência territorial pode determinar as estratégias e procedimentos estéticos das intervenções? Como podem se articular? Que mapeamento poderá surgir destas intervenções? Como isso pode determinar a apreensão das intervenções e uma releitura da área? Ao contrário do que ocorreu em projetos anteriores, as intervenções estarão disseminadas numa área sem qualquer continuidade e articulação: não há como visar uma plena apreensão do conjunto da região, não se proporá numa sistemática de visitação.

O próprio recorte urbano proposto indica uma tomada de posição:as dimensões da área urbana a ser abarcada excluem, por definição, toda estratégia que implique uma abordagem apenas local das situações. Qualquer intervenção, se tomada isoladamente, perderia-se na extrema complexidade desta trama urbana. Também os locais escolhidos não permitem por suas tensões e desconfiguração, abordagens estéticas convencionais, de caráter escultório. As relações de escala que possam estabelecer as intervenções - com o edificado, com o entorno urbano imediato e com toda a região, além das outras intervenções - estão no cerne de Brasmitte.

Não se trata, portanto, de um projeto de site specific. Embora postule intervenções em situações urbanas concretas, estas não são tomadas na sua especificidade. Ao contrário, são entendidas como pontos numa trama mais vasta e complexa, um modo de traçar novos territórios. Os aspectos particulares_organização espacial local, história, formas de ocupação social_ são aqui elementos de uma configuração e dinâmica mais ampla, que dá à todas as situações seu caráter essencialmente genérico e indistinto, fundado nas suas tensões e conflitos. É esta dinâmica, potencial, perpassando essa terra arrasada, em que múltiplas reconfigurações podem se fazer, que Brasmiite procura fazer aflorar.

Os elementos que eventualmente garantiam uma relativa homogeneidade à região não se articulam mais num espaço contínuo. Novas rearticulações só podem se fazer remetendo cada local não ao imediatamente próximo, à vizinhança imediata, mas a algo mais distante, ao conjunto da área. Isto coloca desde logo a questão da escala das intervenções. Cada intervenção estará remetendo não apenas ao entorno direto, local, mas necessariamente a um espaço mais amplo. Que relações de escalas têm de ter com toda a área, com as rupturas e tensões que fundam a situação? Não se trata propriamente das dimensões das intervenções, mas de sua capacidade de configurar um campo mais amplo, para além do sítio particular, da localização imediata.

Os paradigmas que se impõem são, necessariamente, mais amplos e complexos, escapando aos parâmetros estabelecidos da experiência e da percepção, da arquitetura e do urbanismo convencionais, da gramática conhecida da arte para espaços públicos. As situações propostas requerem aproximações que não podem mais fazer recurso aos procedimentos estabelecidos, tradicionalmente, pela escultura nem pelas práticas artísticas recentes dos trabalhos para sítio específico e instalações. A referência a escalas urbanas mais amplas é indispensável.

Cada intervenção, e o conjunto delas, tem de levar em consideração múltiplas relações entre diferentes escalas urbanas, várias implicações sociais e políticas e múltiplas possibilidades de apreensão e leitura, desde a visitação local até a informação por meios de comunicação.

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O levantamento urbanístico que resultou na escolha dos lugares de intervenção foi realizado pelos arquitetos Elíseo Yamada, Paula Freire Santoro e Renato Cymbalista.