waltércio caldas
 
 intervenção
 localização
 texto crítico
 projeto
 apresentação do artista
 situação urbana
 escala
 índice - intervenções
 arte/cidade - zona leste
 
arte/cidade
 


Waltércio Caldas vai construir, no último andar da torre, um auditório. Num piso anteriormente usado para máquinas pesadas, totalmente fechado, de pé direito elevado, resultando numa enorme área sombria, iluminada apenas pela única janela, ao fundo. O dispositivo é construído por cerca de 250 cadeiras, sobre cada uma das quais, na altura do rosto de uma pessoa que ali sentasse, é pendurada uma placa de vidro, trazendo impressa a palavra "figura". Na frente da janela, para a qual voltam-se as cadeiras, uma tela de nylon, translúcida, traz a mesma palavra. Todas as inscrições estão dispostas no sentido da janela, sendo vistas pelo verso por quem está na sala. O som de platéias de auditório e estádios é ouvido.

O auditório é um dos mais importantes equipamentos dos espaços públicos. Lugar de congregação, debate e congraçamento, o fórum é o princípio da agora. É no auditório, como na praça, que tradicionalmente se manifesta a esfera pública.

Na torre leste, Waltércio Caldas vai instalar, porém, um anti-auditório. As "figuras" na platéia remetem à "figura" no palco, que por sua vez remete ao que está mais além, através da janela. As sucessivas remissões indicando que não é propriamente ali que se dá o acontecimento, que aquele lugar perdeu seu poder de agregar e significar. A vida social deslocou-se para um outro âmbito, desprovido de locação geográfica. Um não-lugar. A disposição tradicional do espaço _ as cadeiras, o palco _ é mantida apenas para evidenciar sua superada rigidez e anacronismo. Uma configuração petrificada e inerte, um vazio que acolhe uma única presença: a da ausência.

Ocorre uma supressão da própria idéia de escala. Tanto a disposição dos elementos, voltados para a janela, para fora, quanto o som ambiente pervertem a escala local, sugerindo um universo muito maior, de dimensões incomensuráveis. A questão do interior / exterior, do público / privado, é deslocada do contexto propriamente urbano para a dimensão cultural. Com a expansão global do capitalismo, integrando a criação estética à produção de mercadorias, subordinada à interesses empresariais, a cultura foi instrumentalizada para promover projetos de revitalização urbana e instituições ligadas à arte. O espaço público perde toda configuração apreensível, substituído por uma abstração desprovida de localização e experiência. Sob o domínio da cultura, como pensar a arte e a cidade?

O que está em jogo aqui é a estrutura da recepção, o princípio da audiência. O centro irradiador de informação gera, ao mesmo tempo, passividade. O dispositivo permite pensar a relação entre agente (ativo) e público (passivo). As diversas figuras inserem-se no jogo da transparência: o princípio constitutivo da esfera pública.

A desaparição do espaço público é um dos fenômenos fundamentais da metrópole contemporânea. A cidade genérica é uma proliferação de espaços de passagem, indistintos e sem qualidades. A mediatização generalizada e a desagregação das instituições político-administrativas e dos valores sociais levam a uma profunda crise da esfera pública. No âmbito do urbano, a implantação de grandes equipamentos de trânsito e a restruturação em grande escala das antigas áreas centrais desarticulam os espaços público tradicionais, as praças e parques onde se davam as trocas sociais. A interação social passa a se dar em outra escala, em outro lugar.

Não se habita mais lugar algum. A megalópole não tem início nem fim, fora ou dentro. Não há pertencimento possível. A arte, diz Lyotard, foi capaz de criar lugar. O raio na paisagem do paisagismo clássico: institui uma diferença, inaugura um mundo sensível. Uma nova idéia de lugar: do advento. Quando todos os lugares foram abolidos _ na iminência do nada _ algo tem lugar. Uma presença irrompe e mostra que há lugar.

Aqui, porém, nada pode ocorrer. Em vez de testemunhar a presença, atributo da paisagem, do lugar, este ambiente só evidencia a ausência. A luz que invade aquele espaço sombrio não vem, como o raio na paisagem, revelar o que ali está acontecendo. Ela traz justamente o que ocorre lá fora, o que não se passa ali.

O recurso a essa representação genérica, a figura, em lugar do ator e do público, corresponde à crescente abstração das configurações metropolitanas, tornando impossível qualquer esforço de mapeamento, de localização. Com a integração global, as mecânicas econômicas e as situações metropolitanas tornaram-se, devido a sua complexidade e escala, opacas ao indivíduo. Não são mais acessíveis à experiência. As possibilidades de apreensão e intervenção individuais foram drasticamente reduzidas. O indivíduo desaparece do palco dos processos sociais, substituído por uma entidade genérica, circulando num espaço abstrato.

A intervenção, ao projetar-se para fora, não apenas dilui a compartimentalização de interior e exterior. Ela vai além da noção espacial que circunscreve a torre, o conjunto de edificações fabris e a própria região, apontando para uma forma de espacialização que se constitui num outro plano e numa outra escala. Não mais local, topológica, mas configurada pelas redes e fluxos de informação. Um macro-espaço que substitui as localidades, numa lógica espacial sem-lugar.

A intervenção não se dá propriamente no domínio da arquitetura ou do urbano, mas na esfera da cultura. Tudo se passa no plano da linguagem. Num período em que a cultura tornou-se instrumento para a organização do espaço urbano, subordinando inclusive as práticas artísticas, Waltércio Caldas analisa os dispositivos que permitem essa transferência. Ao projetar um equipamento, em vez de um objeto artístico, ele está refletindo criticamente sobre esta tendência. Este projeto de auditório provoca um curto-circuito no dispositivo de recepção, ao nos posicionar imediatamente fora da antiga esfera pública, lançando-nos no espaço abstrato das megacidades.