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A educação sentimental

Artigo publicado no Caderno Cultura de O Estado de São Paulo por ocasião da reedição da tradução brasileira do romance A Educação sentimental de Flaubert

Leda Tenório da Motta
Se A educação sentimental de Flaubert pertence à história da eternidade, não é por ser apenas o romance de formação que aprendemos que é. Só neste nível de entendimento, o livro já se presta a indagações. De fato, para um exemplar do gênero, o desenlace já se faz inesperadamente corrosivo, quando o adolescente apaixonado pela mulher mais velha e casada que estamos acompanhando, enxergando por fim a amada em suas reais proporções, bem no momento em que ela consente em se entregar, vira de lado e começa a preparar um cigarro, disfarçando a ligeira repulsa que ela agora lhe causa. Mais que passagem da ilusão à maturidade, ou de retomada de sua própria experiência pelo herói _ como seria de se esperar de um Bildungsroman _, a última posição é aqui desenxabida. Da personagem Frédéric _ que refaz o jovem Flaubert, aliás, numa história perfeitamente autobiográfica _ não diríamos, ao fim e ao cabo, que tomou a sua lição de vida, mas, quase ao contrário, que acabou desarmado. Puxar o cigarro _ cena cinematográfica improvável neste ponto da literatura, é o índice mesmo dessa outra subjetividade, mais fina e mais problemática, que, agora, entra em campo. Na verdade, a instantâneo tão audaciosamente moderno só se comparam aqueles flashs nervosos dos poemas em prosa de Baudelaire, contemporâneo exato do autor de Madame Bovary, que, nesse mesmo momento, também está desescrevendo tudo, para dizer como Harold Bloom. Essa não é a única maneira que tem esse Flaubert de 1869 _ que costumamos pôr ao lado de As ilusões perdidas de Balzac, O vermelho e o negro de Stendhal, Wilhelm Meister de Goethe e A montanha mágica de Thomas Mann _ de perturbar nossas convenções de leitura. Nem este autor se teria entranhado tanto em Machado de Assis por acaso. Pois se é verdade, ainda, por outro lado, que estamos diante de um romance sentimental, cujo protagonista só olha para o próprio umbigo, mesmo que fixado em seu objeto impossível, isso não impede que haja uma fenda na narrativa, que passa de introspectiva a realista, quando também ocorre a Flaubert projetá-la contra a tela de bastidor da Revolução de 1848. Estamos falando de uma das mais importantes convulsões sociais da História, e certamente da mais grave das reviravoltas políticas do século XIX francês, num arco que vai da queda de Napoleão I à Comuna de Paris e à derrocada do Segundo Império napoleônico, esta última, não por acaso, no pano-de-fundo de Quincas Borbas.

O choque não é pequeno: são duas ações que correm em paralelo, sem se fundir. Tanto assim que o mais ansiado encontro de Frédéric com a amada é impedido pelas escaramuças de rua que vão culminar com a derrubada de Luís Felipe e a instalação de uma efêmera Segunda República, de que Napoleão III emerge como tirano. Tudo o que é vivido pela personagem principal como não mais que uma coincidência desagradável.

Desde sempre, essa outra ação intrigou os críticos de Flaubert, dispostos a ver como simples cenário estático essa guerra civil que refaz 1789: mesmo fim de um rei, de uma dinastia, de um regime, mesmo fracasso republicano. Em seu conhecido ensaio sobre "o efeito de real", Roland Barthes dirá que o procedimento realista é este mesmo: montar cenários. Mas, hoje, intérpretes mais finos nos dizem que, ao disjuntar assim História e sentimentos, Flaubert assume na letra do texto a consciência partida da nação, puxa a crise política até a crise da representação.

Hipótese confirmada em Bouvard e Pécuchet, com aquele seu apêndice cômico _ o Dicionário das idéias feitas _, que é um desfecho mais que desconcertante para um último romance em crise. Aí, dois aposentados, que foram morar no interior e se puseram a ler todos os livros, passam, em sua última posição desconfiada, a copiar textos, infinitamente.

Em suma, há de tudo em Flaubert: abismo interior, observação realista e a maior desconfiança da linguagem _ a obsessão pela palavra justa _ de que temos notícia, no campo do romance, antes das vanguardas. Bom motivo para nos precavermos de tomá-lo como o crítico da burguesia francesa, a exemplo do que temos feito com Machado no Brasil. Que a reedição da tradução de A educação sentimental por um intelectual de velha escola _ Adolfo Casais Monteiro _ sirva, antes, para lembrarmos Borges quando diz que Flaubert inaugura “uma espécie nova, a do homem de letras como sacerdote, como asceta e quase mártir". Pois isso sugere que a última posição é a poética.

Leda Tenório da Motta, professora da PUC-SP, é autora, entre outros, de Proust - A Violência Sutil do Riso (Perspectiva)

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