UM CONCEITO DE INFOPOESIA

Jorge Luiz Antonio[1]

 

RESUMO

Este comunicado aborda o conceito de infopoesia em parte da obra de E. M. de Melo e Castro, poeta experimental português, para estabelecer as relações entre a palavra e a imagem nos meios eletrônico-digitais, especialmente quanto à transformação do conceito de poesia a partir do aparecimento e uso da tecnologia a serviço de processos criativos.

 

INTRODUÇÃO

A aventura pelo experimento, a procura de uma nova linguagem. A poesia no (do) computador. O acaso e suas interferências. O descobrir fazendo. Transformações inusitadas.

Diversas imagens que se juntam com palavras, sem ser propaganda ou comunicação visual. As palavras não ilustram as imagens, nem há um encadeamento lógico entre ambas. A sintaxe visual se faz apontando para interpretações as mais diversas.

Essas mesmas palavras, esparsas, fragmentárias, talvez queiram lembrar poesia, talvez procurem resgatar a sonoridade: Rua Rain, Fog Fogo, War Mar etc.

Um olhar para esses retângulos coloridos e nenhum significado à primeira vista, muitos significados em muitas direções nas n leituras seguintes.

Em qualquer tentativa de explicação ou descrição, nomes em inglês como Paintbrush, Coreldraw, Adobe Photoshop, emboss, blur, layer, e outros.

As imagens parecem mostrar uma sintaxe, talvez criar um liame com as artes plásticas. Cores, luz, forma, movimento simulado. Imagens paradas, que parecem estar em movimento.

O tempo, o espaço, palavras, efeitos de Adobe Photoshop. Uma certa referência à realidade, que é lembrada por imagens e/ou palavras. Um olhar para fora, que se fixa num espaço do monitor.

Uma inter-hiper-textualidade virtual. Fragmentos de versos que perseguem imagens. A montagem conceitual de Eisenstein: "... frases de montagem. Série de tomadas. A simples combinação de dois ou três pormenores do tipo material produz uma representação perfeitamente acabada de outra espécie - psicológica." (Eisenstein 1986: 170)

Ciência e Arte. Tecnologia e Ciência. Computador e Arte. Computador e Poesia. Infopoesia. Portugal e Brasil. Melo e Castro.

É dentro dessa perspectiva que este comunicado vai se desenvolver. Ele é o resultado parcial de uma pesquisa em andamento sobre a poesia-do-computador (tese de doutorado), cuja escolha de análise está particularizada na obra de E. M. de Melo e Castro[2]. É uma reflexão para compreender o conceito de infopoesia, que não é apenas a denominação que o autor deu às suas experiências poéticas com o computador (o que ele chamou de 6º grau da poesia[3]), mas uma nova linguagem poética, que faz a "utilização simultânea de signos verbais e não verbais, para, através de instrumentos informáticos, criar estruturas poemáticas de alta complexidade visual, complexidade essa que também se manifesta simultaneamente no nível semântico." (Castro 1998: 9). É o estudo parcial de um dos inúmeros aspectos inovadores e pioneiros na obra de Melo e Castro, que vai permitir observar que a infopoesia, poesia digital, ou qualquer outro nome que possa ser dado à experimentação poética com o computador, é uma nova linguagem poética que vem surgindo, e que pode ser denominada de linguagem infopoética.

A infopoesia é um tipo de poética digital, porque é uma poesia digital, isto é, se diferencia de qualquer outro processo criativo com os meios eletrônicos e digitais, porque pressupõe, tem como origem, e se faz com a presença da palavra, multissignificativa, transgressora, metalingüística. Trata-se do tratamento eletrônico-digital do produto imagem + palavra através dos recursos de um editor de imagens num microcomputador, conformados sob o conceito jakobsoniano de função poética da linguagem, ou seja, a função infopoética da linguagem. Parafraseando Plaza e Tavares, a infopoesia é um dos processos criativos com os meios eletrônicos, o que pode ser chamado, também, de poesia digital.

Infopoesia tem o sentido, então, de poesia que utiliza os recursos da palavra (sons, imagens, grafismos), articula essa palavra com a imagem e é elaborada a partir dos recursos e limites de uma máquina, o microcomputador. Trata-se do uso artístico da tecnologia: "as tecnologias avançadas não se limitam a proporcionar a reprodutibilidade da obra criada, mas facultam a criação de obras que sem essas tecnologias não poderiam ser criadas" (Castro 1988: 51). Não é poesia visual, apesar do uso de palavras espacializadas e de imagens. O uso do espaço virtual (que se conforma aos recursos e limites do computador) determina uma fatura poética especial.

Alguns aspectos precisam ser verificados para que o conceito de infopoesia torne-se claro:

Primeiro - Eu tenho, por exemplo, The Cryptic Eye[4], com 10 textos com imagens e palavras, que estão impressos e são bidimensionais. A terceira dimensão é sugerida através da perspectiva e da cor. Nesse ângulo, essas imagens com palavras podem diferir pouco daquilo que é chamado de poesia visual.

E é conveniente lembrar que a ordem imagens com palavras é intencional: há um predomínio de imagens que são construídas com poucas palavras. É a intenção do poeta, que se propõe a "escrever" com imagens virtuais, e, com isso, cria a linguagem infopoética.

Para Melo e Castro, devido ao seu caráter transformável e também como "signos de transformação da percepção individual e da sociedade contemporânea" (Castro 1998: 13), "a fixação em papel ou noutro suporte, como a fotografia, o vídeo, ou o CD-ROM, dessas imagens virtuais que são energia luminosa, são apenas atualizações instantâneas de um momento da sua existência." (idem: ibidem)

Segundo - Eu retiro essas imagens com palavras do papel e as coloco[5] na tela de um microcomputador, tornando esse produto tridimensional e virtual.

Terceiro - As imagens com palavras, que são estáticas no papel e no monitor, indicam movimento, através de cores e recursos de um software, o Adobe Photoshop.

Quarto - A espacialidade, ou seja, o uso dos espaços com preenchimento de imagens e/ou palavras, se faz, também, num espaço limitado (retângulo, de um modo geral), estático, mas que indica movimento.

Esta separação, que não é apenas didática, ajuda a entender um dos objetivos primordiais deste comunicado: embora os dois espaços (o do papel e o do monitor do micro) determinem atenções diferentes, parece necessário frisar que o segundo aspecto (o espaço virtual) é o que interessa em particular, já que o produto imagens com palavras configura um discurso virtual, eletrônico-digital, portanto, diferenciado.

Então, eu tenho infopoesias = palavras + imagens e algumas questões se apresentam:

  1. As infopoesias = palavras + imagens podem ser todas as propagandas e comunicações visuais que circulam nos meios de comunicação (televisão, jornais, revistas, outdoors, placas, faixas, etc.)?
  2. As infopoesias podem ser confundidas com experiências feitas nas artes plásticas, com ou sem o uso do microcomputador?
  3. As poéticas digitais são experiências e processos criativos com os meios eletrônicos e digitais. Se a infopoesia é parte dessa poética, como ela se diferencia da relação entre arte e tecnologia?
  4. A infopoesia é apenas um texto verbal que foi adaptado para circular no meio digital, por exemplo, no monitor de um micro, ou através da internet?
  5. Por que infopoesia, poesia digital ou poesia-do-computador? Modismo? Invencionice? Modernização? Obsessão por neologismos?

 

OS CONCEITOS DE INFOPOESIA

Como as questões são inúmeras e amplas, vou me ater ao conceito de infopoesia em algumas obras de Melo e Castro, em geral, e em Finitos mais Finitos, em particular. São as obras dele que vão apresentar esse conceito e permitir fazer algumas reflexões sobre a poesia que se faz com o computador.

A obra desse poeta é composta de poesias verbal e visual, videopoesia, experimentações poéticas (a POEX, por exemplo), ensaio crítico, prosa de ficção.

O seu conceito de infopoesia apresenta duas direções e se encontra em suas obras ensaísticas e poéticas: Álea e Vazio (1971), Poética dos Meios e Arte High Tech (1988), Trans(a)parências (1990), O fim visual do século XX (1993), Visão Visual (1994), Finitos mais Finitos (1996) e Algorritmos (1998)[6].

A primeira infopoesia é uma experiência com palavras no livro Álea e Vazio (1971), especialmente com o poema "Tudo pode ser dito num poema" (Castro 1990: 225-226). São experimentações da década de 60 (a exemplo de Nanni Balestrini, Margareth Masterman, Herberto Helder, Silvestre Pestana, Pedro Barbosa e outros):

"Escolhendo alguns fragmentos de textos antigos e modernos, (Nanni Balestrini) forneceu-os a uma calculadora electrónica que, com eles, organizou, segundo certas regras combinatórias previamente estabelecidas, 3002 combinações, depois seleccionadas. (...) Devido ao uso de restrito número de palavras, as composições vinham a assemelhar-se, nesse aspecto a certos textos mágicos primitivos, a certa poesia popular, a certo lirismo medieval. (...) O princípio combinatório é, na verdade, a base lingüística da criação poética." (Herberto Helder in Castro 1988: 59)

Dessas primeiras experiências, que Melo e Castro denomina de pré-históricas e paradigmáticas, ele propõe uma poética da arte high tech:

"Paradigmáticas da possibilidade então antevista duma poesia informática, mas também das dificuldades, desde logo encontradas, na realização de tal projecto. Pré-históricas, porque hoje, com a difusão dos micros e dos computadores pessoais, a quantidade, a diversidade e a qualidade de muitas das experiências realizadas em todo o mundo e nas mais diversas línguas, permite que se fale duma infopoesia, ou seja duma pesquisa generalizada, mas também específica do uso dos computadores e das suas vastas possibilidades para a realização do texto criativo, isto é, de texto não pré-existente como tal. Que essa pesquisa é o verdadeiro significado da poética, penso não ser necessário voltar a demonstrar." (Castro 1988: 60)

A segunda infopoesia se configura como uma experiência acumulada, rica e que propõe uma nova linguagem poética: as experimentações verbais de Álea e Vazio (um poema feito a partir de fragmentos de versos e com o auxílio de uma máquina) passaram pela expressão da poesia visual e convergiram para a infopoesia, que Visão Visual (1994), na parte "Infopoesia Videopoesia 1985/93", mostrou como uma série de experiências em preto e branco, com uso de imagens e palavras conformadas pelos recursos de um editor de imagens de um microcomputador, ao lado de fotogramas de videopoemas. Aqui já não é, embora pareça, uma poesia visual que foi adaptada no computador. Já é uma poesia digital que é criada no computador, com os recursos e os limites dessa máquina.

O poeta busca a "experimentação dos suportes com suas linguagens específicas" (Castro 1994: 220), passando gradativamente de um para outro. Ao trabalhar com a videopoesia, a imagem virtual fez-se presente como possibilidade de um nova linguagem.

O conceito de infopoesia se firma como produção de imagens com palavras através do uso de um editor de imagens de um microcomputador e se torna um texto digital, cuja intencionalidade é poética, e não visual, e não referencial, nem fática e nem qualquer outra.

É aqui que essa análise panorâmica se detém e se particulariza em "The Cryptic Eye" do livro Finitos mais Finitos[7], pois me parece o conjunto mais representativo da segunda infopoesia elaborada por Melo e Castro.

 

FINITOS MAIS FINITOS: THE CRYPTIC EYE

Finitos mais Finitos é um livro de 130 páginas, com muitas imagens, e de formato médio (220mm X 285mm X 80mm). A parte escolhida para análise foi a série de 10 infopoesias denominada de The Cryptic Eye.

Criptic ou criptical é um adjetivo que significa enigmático, misterioso, oculto, obscuro. O sentido de O olhar enigmático se mostra o mais adequado, até pelo leit-motiv que percorre a obra e pode indicar uma linha de análise: o texto infopoético de Melo e Castro difere da simples produção de imagens através do microcomputador, porque se torna um texto digital cuja intencionalidade foi poética, melhor dizendo, infopoética, e não apenas visual, ou simplesmente verbo-visual.

Com um texto introdutório em inglês e palavras bilíngües (as dez infopoesias foram destinadas a uma divulgação nos Estados Unidos[8]), a criação poética tornou-se mais rica, uma vez que os pares de palavras apresentam semelhanças sonoras em dois idiomas e indicam universalismo. O texto em inglês dá um tom especial e provoca um estranhamento: a mudança de códigos (verbais e visuais) determina releituras.

A união sonora entre as palavras em português e inglês mostra o liame e a permanência da poesia verbal, e sonora, e visual, no meio digital:

RUA

FOG

WAR

SIM

HOUSE

IN

ICE

EYE

MIND

RAIN

FOGO

MAR

SEA

ASA

NÃO

AÇO

MÃE

MÃO

As cores e sombras são um dos elementos diferenciadores: o cinza como "a síntese de todas as cores" (Castro 1996: 77), "o limite visual da nossa percepção de velocidade como Paul Virilio recentemente salientou" (idem: ibidem). Mesmo com imagens estáticas, as cores e sombras apresentam o uso do princípio aleatório e dos limites que o software impõe ao operador-poeta. E esses limites, aliados à questão da cor da velocidade, determinam uma criação poética singular, que deixa de ser poesia verbal, apesar do uso de palavras, e que não é somente poesia visual, apesar do uso de palavras espacializadas e de imagens. O uso do espaço virtual (que se conforma aos recursos e limites do computador) determina uma fatura poética diferenciada:

"A construção de imagens assim desmateriais constitui-se em poética porque produz sensações elas próprias capazes de modificar a percepção, tanto do operador que as produz como dos destinatários fruidores, potenciando a capacidade do operador e elevando o grau da complexidade da fruição estética para níveis dificilmente imagináveis e que de outro modo não seriam alcançáveis." (Castro 1998: 8)

Essas "sensações elas próprias capazes de modificar a percepção" do operador e do fruidor é o que pode ser chamado de especificidade digital: não só o contato com a infopoesia, mas também a visualização constante (internet, microcomputador, software, televisão, revistas, jornais, propagandas, panfletos, etc.) dessas imagens virtuais, fazem com que essas sensações sejam modificadas, daí a aceitação, o interesse, a atenção, a experiência, a convivência.

Os infopoemas de The Cryptic Eye mostram uma forma circular que se assemelha a um olho não convencional[9], que não é claramente perceptível ou se mostra simbólico (por exemplo, em War/Mar, Ice/Aço e Mind/Mão), mas é claro e evidente na nota introdutória e no título do conjunto de infotextos.

Uma análise estrutural pode encontrar significados e mostrar uma organização encadeada de sentido, do título a cada um dos infotextos. Apesar desse tipo de leitura, convém ressaltar que o princípio aleatório e o caráter experimental desviam a atenção do analista e lhe mostram que há inúmeras leituras possíveis.

 

CINCO DAS DEZ INFOPOESIAS

Com uma introdução em inglês (Castro 1996: 77-79), "The Cryptic Eye", parte (idem: 75-90) de Finitos mais Finitos, é composta dos seguintes infopoemas: The Cryptic Eye (tema-título, espécie de capa), Rua Rain, Fog Fogo, War Mar, Sim Sea, House (C) Asa, In Não, Ice Aço, Eye Mãe, Mind Mão.

A estrutura geral dessa parte se conforma a um tema, embora isso não se configure numa obra fechada, uma vez que o princípio aleatório, o uso de recursos tecnológicos e a busca de uma expressão artística singular representem transgressões à própria fatura poética de que se tem notícia, assunto que este comunicado tem procurado elucidar.


1 - RUA RAIN

Rua Rain é um redemoinho cinza que envolve as palavras rua e rain. Essas palavras se unem pelos sons semelhantes e apresentam duas imagens, que sugerem outras. A ligação sonora ru / ra, que de certa forma indica uma circularidade sonora e lexical, pode ser representada graficamente como:

RUA RAIN

É a apresentação de uma relação invertida e tem como ponto de convergência o r. A imagem virtual circular em que estão envolvidas as palavras rua e rain indica movimento semelhante ao dos sons ou do esforço para se falar as duas palavras. A redundância sonora das palavras cria um elo e um movimento que "se repete" na imagem.

Todos os aspectos descritos apresentam uma cadeia de significação: a repetição de sons e fonemas indica ou reforça a circularidade da imagem, que se apresenta como em movimento. Rua Rain são palavras cujos significados indicam mundo exterior, e, também, movimento. A presença do círculo traz à lembrança o olho enigmático, como que querendo dizer que esse olhar que é exigido do leitor-espectador-fruidor deve atentar para o conjunto, e não para as partes.

Essa é uma leitura possível, mas não a única, pois a poesia digital suscita a pluralidade do dizer, do olhar, do fruir, etc., através da intertextualidade e da hipertextualidade, por exemplo.

O que caracteriza Rua Rain como infopoesia e não como poesia visual? Não apenas porque Melo e Castro assumiu a sua expressão artística como tal, mas porque o resultado obtido (palavra + imagens + visualidade virtual[10]) só poderia ter sido realizado com o auxílio de um software. Cores e formas são produtos de relações binárias processadas por uma máquina. As imagens obtidas são imagens técnicas: "imagens sintetizadas em computadores e (...) (cuja produção) depende largamente do concurso de toda uma parafernália tecnológica: computadores, scanners, placas gráficas, além de aplicativos de modelação, editores ou processadores de imagem e algoritmos gráficos de toda espécie" (Machado 1994: 9).

O recurso expressivo do poeta experimental se conformou aos limites da máquina, ou seja, é dos recursos e limites do microcomputador que a infopoesia nasce. Conformou-se, mas não deformou a criação poética do autor-operador do software. O poeta verbal se aliou ao poeta visual e produziu o infopoeta. É a assimilação da tecnologia a serviço da criação artística.


2 - SEA SIM

A palavra sea, em verde, quase não é notada no vértice de uma imagem que pode lembrar a onda ou o mar, apesar do tom cinza, como mistura de cores, como "a cor do estofo de que é feito nosso cérebro" (Castro 1996: 77). A explosão de imagens sugere movimento e ilegibilidade.

A imagem virtual que se mostra ao fruidor traz ligações com as imagens que são vistas no cotidiano e lembram uma certa musicalidade, como as palavras sim e sea, que resgata parcialmente uma origem, a poesia rimada e ritmada que faz parte da cultura poética tradicional.

Eis o que o poeta afirma, de forma geral, sobre as imagens digitais:

"O que eu quero mostrar é a viagem semiótica das imagens de uma linguagem para outra apontando para um novo tipo de poema visual: um poema que é em si mesmo um criptograma então apresentando uma dificuldade de leitura." (Castro 1996: 78)

A afirmação do poeta representa uma inquietante e polêmica proposta de criação de "um novo tipo de poema visual" (idem: ibidem). É, sem dúvida alguma, a passagem da palavra e sua visualidade, a poesia verbal, para o visual que se forma com/sem a palavra, usando os recursos do espaço, a poesia visual. Esse conjunto ou produto - palavra + imagem - se conforma aos recursos de um editor de imagens e, também por isso, determina um novo discurso:

"o modo de agir próprio da poesia e muito especialmente da infopoesia pelo seus caráter de utilização nova e transgressiva dos meios informáticos: uma pequena ação, um ruído, que é capaz de co-elaborar catástrofes emocionais que são novas ordens na percepção do mundo, das sociedades e de nós próprios." (Castro 1998: 13)

Para uma possível e particular análise de Sea Sim, faz-se necessário pensar na existência de um texto digital. Se texto é, de forma geral, um conjunto articulado de palavras com unidade de sentido, o texto sob análise é um conjunto articulado de palavras e imagens, que se configura num discurso no meio digital, que tem uma unidade de sentido, também, mas que sempre remete a outras possibilidades intratextuais, intertextuais, e hipertextuais de leitura.


3 - HOUSE (C) ASA

House (C) Asa mostra certa arquitetura entre retangular e oval (uma espécie de abóbada de letras). As palavras se repetem em letras, e se mostram como uma equilibrada passagem da poesia concreta para a poesia informática.

É a poesia visual, espacial que adentra os limites de um software. Enquanto o poeta verbal decidia o uso da folha de papel e os recursos de sua máquina de escrever (ou até do desenho à mão), aqui o infopoeta experimenta os recursos do Adobe Photoshop e cria um outro espaço.

A poesia digital surge num outro espaço e depende dele para se articular como linguagem. O espaço tridimensional e a temporalidade linear são substituídos pela tridimensionalidade e a não-linearidade, que institui movimento e textura na palavra-imagem virtual.

Há um contraste significante em uma espécie de tom cinza (o cinza como mistura de cores), sobre qual há palavras em cor amarela. Uma série de caracteres não legíveis está cunhada (baixo relevo) no fundo cinza, como se ele se mostrasse de plástico ou borracha (efeito emboss), da mesma forma que as letras house e (c)asa se destacam em alto relevo.

Enquanto três repetições de house mostram um espaço retangular e estático, a palavra asa faz um "movimento" através da repetição e da forma circular (efeito Spherize), cujo significado se modifica com a inclusão, no começo e no centro da seqüência, da letra C.

O que permanece no texto digital que pode ainda ser chamado de poesia? O estranhamento (título + palavras + imagens = significado diferente das partes, como é a montagem eisensteiniana), plurissignificação, predomínio da função infopoética da linguagem?


4 - IN NÃO

In Não usa de muitos efeitos do Adobe Photoshop como o radial blur e o spherize. Sob o cinza (mistura de todas as cores, fundo) surge o verde e o vermelho que se equilibram.

O conjunto indica movimento e enfoques diferentes. O olhar do espectador se perde, primeiro à procura dos pares de palavras, depois em busca de significados visuais e verbais. O olhar se fragmenta e, consequentemente, fica dispersivo: olha-se tudo e nada em especial.

A ilegibilidade induz inúmeras leituras e se mostra semelhante ao olhar do homem moderno na floresta de signos do cotidiano do fim do século XX.

Como posso caracterizar In Não como infopoesia e não como poesia visual ou como artes plásticas?

Em primeiro lugar, vale rever o que Melo e Castro afirma:

"O olhar enigmático é um caminho de acesso à infopoesia.

A infopoesia é feita com o uso do computador e com a adição da realidade virtual das imagens poéticas à substância virtual, desmaterializada do imaginário sintético e textual produzido pelo computador." (Castro 1996: 77)

A expressão olhar enigmático sugere um estranhamento e um alerta: é preciso olhar para essas imagens com palavras, sem a preocupação de buscar significados convencionais.

Vale enfatizar que In Não não é uma poesia visual já feita que é configurada para o computador. Ela é criada com o uso do computador e se conforma aos recursos disponíveis num software como o Adobe Photoshop. O princípio aleatório e o conhecimento dos recursos do programa é o ponto chave para que se faça poesia com o computador. O resultado é uma poesia-do-computador.


5 - EYE MÃE

O tons areia e rosa se combinam num equilíbrio entre as palavras eye e mãe colocadas em diagonais opostas. Há um luz no centro de imagens, que parece bidimensional, como tiras que se afinam nas extremidades. Nas duas tiras no meio da imagem, da formação oval no centro sai uma luz que emite poucos raios para as palavras. Não é uma imagem comum, nem convencional. O aspecto encarnado lembra uma formação que se mostra simétrica, equilibrada, harmoniosa, protetora. A luz central (vida? amor?) se espalha com equilíbrio ao longo das imagens paralelas.

A exclusão das palavra permite novas leituras? O produto final coloca o leitor em contato com diferentes mensagens?

Mesmo que os raios de luz, as palavras e a cor predominante levem o fruidor a pensar numa mensagem clara, específica, Eye Mãe, no conjunto de infopoesias, é produto da experimentação e tem o princípio aleatório como forma de composição. É infopoesia e não propaganda ou mensagem promocional.

Isso caracteriza, mais ainda, a infopoesia como linguagem (info)poética polissêmica: a fusão de palavras, imagens e recursos eletrônico-digitais traz uma possibilidade de inúmeras leituras.

 

O CONJUNTO DE INFOPOESIAS

Para falar do conjunto, retorno ao infopoema The Cryptic Eye, que funciona como introdução à série, traz o título, o nome do autor e a data de elaboração: 1995.

O efeito de filtros como emboss, lighting effects e lens flare, aliado ao tom cinza que se forma da junção das cores - "cinza, a sombra do cinza é tanto quanto humanamente podemos, a síntese de todas as cores" (Castro 1996: 77) -, sugere a formação semelhante a um olho, que surge e ultrapassa o anteparo cinza. Pode significar o olhar enigmático para o conjunto de dez infopoemas, como para o livro como um todo. Não é uma imagem comum, encontradiça em nossa dia-a-dia, mas é o resultado de uma seleção de efeitos de um software, o Adobe Photoshop.

As imagens não ilustram as palavras, nem ocorre o contrário. O princípio aleatório (Castro 1988: 59) determina possibilidades (palavras ou imagens) não escolhidas, ou escolhidas por motivos não tão claros sob o ponto de vista da produção de significados: "Inventar será a pior maneira de / produzir sentidos, mas a única / possível porque enigmática: o uso / do visível para sinalizar o invisível." (Castro 1996: 10).

O resultado provoca um estranhamento maior do que o usual. Os preconceitos dificultam o olhar do fruidor: como é possível fazer poesia com ou no computador, que é uma máquina fira, sem sentimentos; como é possível fazer poesia sem sentimento, sem idéia, sem sentido, sem mensagem[11].

Apesar disso, é possível observar que o conjunto de infopoesias transmite mensagens, provoca sensações, desperta emoções, mesmo que não verbalizáveis ou claras, por meio das cores, formas, luzes, palavras, indicação de movimento, até pelo inusitado uso infopoético da linguagem verbo-visual-digital. É o discurso verbal-visual-digital subjetivo de um ser humano que decide fazer um uso criativo-artístico de um software como operador-poeta.

Além disso, as imagens técnicas ou virtuais têm uma característica própria (cor, forma, volume, luz, etc.) que condiciona o operador-poeta e o leitor-fruidor a incorporar a visualidade, que é comum no seu cotidiano, a uma utilização poética, e criativa, desse mesmo meio digital, que tem sido utilizado a partir do predomínio da função referencial, fática ou expressiva da linguagem. É o pode ser chamado de especificidade virtual.

A escolha do editor de imagens Adobe Photoshop representa o resultado da evolução tecnológica (os recursos de outros editores de imagens são menores e mais limitados), do grande conhecimento técnico de Melo e Castro, da facilidade de uso (esse software pode ser instalado num PC e é de preço acessível), da praticidade do seu manejo, entre outras coisas. Dentre outras funções, ele converte imagens de outros editores de imagens ou de textos e permite salvar arquivos em extensões .jpg, .psd, .tif, que podem ser armazenados em pouco espaço no HD ou disquete.

A presença da imagem virtual, que busca conciliar as poesias verbal e visual no meio digital, e cria assim um espaço poético virtual, e um discurso digital a partir de uma sintaxe digital que pode ser chamada de mista (verbal, visual, imagética, sonora, digital), determina leituras hipertextuais nas mais diferentes direções. É nesse aspecto que The Cryptic Eye deixa de ser um conjunto de poesias visuais: as imagens com palavras, "os infopoemas, ao atingirem graus de complexidade estrutural e perceptiva de outro modo impossíveis de alcançar, são, muito provavelmente, uma outra coisa que nada tem a ver com a poesia como ela é convencionalmente entendida." (Castro 1998: 19). A presença do computador, com a sua tecnologia específica, através do software escolhido, acrescenta, determina, conforma, altera, refaz, condiciona, e também aponta novas possibilidades criativas, que, de outra forma, não seriam possíveis.

Em The Cryptic Eye há procedimentos verbais e visuais. Ambos se fundem numa nova proposta visual, que é produzida dentro dos limites e recursos de um editor de imagens que simula a realidade através de outros parâmetros.

Se admitimos a existência de poéticas digitais, abrangendo as mais diferentes manifestações artísticas nos meios eletro-eletrônicos, posso admitir a existência de um texto digital, que, à semelhança do texto verbal, literário, e do texto visual, apresenta condições de textualidade digital semelhantes às estudadas na Lingüística Textual: um todo organizado de sentido, mas que não se fecha apenas no significado; uma informatividade que ultrapassa o referencial; uma conectividade (coerência e coesão) que se realiza pela pluralidade do dizer que a palavra e a imagem, juntas, permitem; uma inserção histórica que retoma, de maneira especial e singular, o que foi realizado anteriormente, com uma intencionalidade e situacionalidade especiais.

Em se tratando de texto literário digital, ou de poesia digital, em particular, posso falar da literariedade jakobsoniana aplicada à poesia digital, e, por conseqüência, de estranhamento, de caos e ordem, de metáfora, e de metonímia.

Faz-se claro e evidente que não é tão-somente uma transposição de termos, mas da organização de uma estrutura que funciona como facilitadora da compreensão da nova função poética que surge, e que já foi denominada de função interativa da linguagem, ou de função hipertextual da linguagem, e que prefiro conceituar como função infopoética da linguagem.

 

ALGUMAS CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

A leitura de The Cryptic Eye trouxe conclusões provisórias e suscitou novas questões. Preferi listar essas reflexões, pois elas representam o resultado parcial daquilo que venho pesquisando há algum tempo. Pareceu-me adequado (e)numerá-las, como fecho deste comunicado.

  1. Posso ler essas infopoesias a partir de critérios como estranhamento, metáfora, literariedade, textualidade, caos e ordem, gêneros literários, tema, estrutura, pontos de vista, períodos literários, etc., porque essas produções contêm aspectos dessa "origem" verbal.
  2. Se é uma nova estética, como a infopoesia se caracteriza e se diferencia da poesia verbal e da poesia visual? Procurei mostrar alguns aspectos, através de parte de uma das obras de Melo e Castro, caracterizadores da linguagem infopoética. Para que se configure como nova estética, faz-se necessário estudar outros criadores e, também, alguma perspectiva histórica.
  3. Aprender a operar o Adobe Photoshop é um requisito para criar e/ou fruir a infopoesia? Para quem foi aluno do Prof. Melo e Castro, e domina os conceitos de poesia, a resposta é positiva. Aprender e aplicar os recursos de um editor de imagens de um micro pode ser aprender a criar infopoesia ou, de um modo geral, fazer uso criativo dos meios eletrônicos. A consciência de que é possível fazer uso criativo de um micro é o primeiro caminho para se chegar à infopoesia.
  4. A longo prazo, uma experiência semelhante pode representar uma nova aula de Educação Artística, novos recursos para as Aulas de Criação em Propaganda e Marketing, uma nova Oficina Literária.
  5. O que analisei e interpretei pode ser chamado de infopoesia, não só porque o autor dessas criações denominou-a assim, mas também porque há um procedimento eletrônico-digital que conforma esse produto de maneira diferenciada.

 


NOTAS

[1] Doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC SP.

[2] Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, que nasceu em Covilhã, Portugal, em 1932, é poeta e ensaísta. Formado em Engenharia Têxtil na Inglaterra, foi Professor de Design Têxtil no IADE, em Lisboa, e atualmente é Professor Colaborador da USP na Área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa. Praticante e teórico da Poesia Experimental Portuguesa dos anos 60, foi introdutor da Poesia Concreta em Portugal, e é considerado pioneiro da videopoesia. Realizou happenings, perfomances e espetáculos multimídia desde os anos 60, exposições individuais e coletivas de poesia visual. Sua obra pode ser dividida em: prosa (Sismo, em 1952), poesia não visual (22 títulos), poesia visual (cerca de 10 títulos), videopoesia, infopoesia, ensaios (13 obras). Trans(a)parências (1990), que reúne 23 obras não visuais. Conquistou o Grande Prêmio de Poesia Inaset-Inapa de 1990, e o Prêmio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Internacional dos Críticos Literários, com Vôos da Fênix crítica

[3] Melo e Castro acrescenta mais dois graus aos quatro observados por Fernando Pessoa.

[4] Trata-se da parte que escolhi para analisar, incluída no livro Finitos mais Finitos.

[5] Na verdade, essas imagens com palavras foram criadas, inicialmente, no microcomputador e, depois, é que foram impressas.

[6] Álea e Vazio está reproduzido em Trans(a)parências; o texto "Infopoesia" se encontra em Poética dos Meios e Arte High Tech e em O fim visual do século XX.

[7] Vale lembrar que duas outras obras - Algorritmos (1998) e "Uma Transpoética 3D" (1998) - representam um aprofundamento e nova direção do seu conceito de infopoesia: o pixel como signo poético, a dobra, a espiral, a mola, e a terceira dimensão. Contudo, isso seria assunto para outro ou outros comunicados.

[8] A série foi apresentada no Encontro Yale Symphosophia on Experimental, Visual and Concrete Poetry since 1960, na Universidade de Yale, em 1995.

[9] A questão do olhar em Finitos mais Finitos é o leit-motiv que se desdobra em textos os mais diversos. Em "As contingências da visão" (Castro 1996: 105-107), por exemplo, a metáfora do comerciante de olhos de vidro pode simbolizar a procura do novo no velho, solução parcial que Melo e Castro mostra, inclusive com as experiências eletrônico-digitais de "The Cryptic Eye" (idem:77-89) e "Cibervisuais" (idem:91-101).

[10] Visualidade virtual foi a expressão que me pareceu mais adequada para indicar que o conjunto - imagem + palavras - tem uma compreensão diferente no monitor de um micro. Essa foi uma questão que Melo e Castro frisou muito no Curso de Infopoesia (PUC-SP, COS, 1997): a imagem vista no monitor tem uma tridimensionalidade que a imagem impressa não consegue reproduzir, mesmo com o uso de glossy paper. Para mim, essa é uma das características que diferenciam a infopoesia da poesia visual.

[11] Vale lembrar que a poesia, de uma forma geral, é ainda a linguagem que foi difundida no Romantismo ou o discurso rebuscado e formal que o Parnasianismo brasileiro apresentou.


BIBLIOGRAFIA

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