WEBJORNALISMO CULTURAL: perspectivas de linguagem construídas a partir da semiótica peirceana

 

Geane Carvalho Alzamora

Orientadora: Prof. Drª Lúcia Santaella

 

INTRODUÇÃO

 

           Este projeto de pesquisa, em nível de doutorado, se constrói a partir de algumas indagações, tais como:

  1. Estaríamos caminhando rumo a novos paradigmas em Comunicação Social, que privilegiariam o trânsito entre dimensões globalizadas e manifestações nitidamente segmentadas da sociedade, especialmente no que se refere à apropriação social das novas tecnologias?
  2. O papel preponderante do verbo, desempenhado nas várias manifestações da Comunicação Social desde o Iluminismo, poderia ser redimensionado face às potencialidades de linguagem dos novos meios
  3. Como se inscreveria o webjornalismo cultural nesse contexto, tendo em vista o hibridismo cultural contemporâneo, as novas formas de interação social propiciadas pela internet e as perspectivas de linguagem que dela emergem?
  4. A Semiótica peirceana poderia oferecer contribuições às questões acima? Por exemplo, a noção de estética peirceana – ciência que investiga aquilo que é admirável e fornece bases para a formação de propósitos que regulam a natureza das ações – seria adequada para se pensar o problema do jornalismo cultural no contexto hipermidiático, característico das novas tecnologias?
  5. Qual modelo de webjornalismo cultural adotaríamos como ideal para uma possível experimentação, após sistematizarmos conceitualmente a questão?

           Com base nessas indagações – que problematizam ao mesmo tempo em que apontam para possíveis hipóteses iniciais de investigação científica – construímos um projeto de pesquisa, em nível de doutorado, que pretende se traduzir, ao final, em dois produtos complementares: uma tese de doutorado sobre a linguagem do webjornalismo cultural e uma experimentação de webjornalismo cultural na internet, sendo que as conclusões do primeiro dependem, parcialmente, dos resultados obtidos com o segundo e este, por sua vez, deriva das diretrizes conceituais definidas pelo primeiro.

           A proposta baseia-se na pesquisa "Crítica on line de web art – considerações e experimentações de linguagem" (2000), coordenada pela autora deste projeto, financiada pelo Fip/PUC-Minas, com a participação de três alunas, uma bolsista e duas voluntárias, do curso de Comunicação Social da PUC-Minas. A pesquisa, em fase de conclusão, traduz as diretrizes conceituais propostas em uma experimentação de linguagem crítica na internet, o que tem se revelado uma metodologia interessante de averiguação da validade das diretrizes conceituais que norteiam o trabalho.

           Essa pesquisa FIP/2000 é um desdobramento da pesquisa "Um estudo sobre a crítica de arte digital na imprensa escrita" (Alzamora, 1998, 86 pags), que envolveu um aluno bolsista do curso de Comunicação Social. A pesquisa FIP/98, por sua vez, derivou-se da pesquisa "Crítica de Artes Pásticas na Imprensa Escrita – uma abordagem semiótica" (Alzamora, 1996, 145 pags), defendida na PUC-SP, sob orientação da prof. Drͺ Maria Lúcia Santaella. O trabalho foi considerado o melhor do país, em Jornalismo, nível mestrado, segundo o Prêmio Intercom (1997). Todos esses trabalhos foram apresentados em congressos nacionais e internacional.

 

OBJETIVOS


OBJETIVO GERAL

           Entender como se constrói a linguagem do webjornalismo cultural face às formas contemporâneas de interação social, observada pela hibridação cultural resultante da apropriação social das novas tecnologias. A partir desse entendimento, de caráter conceitual, observar em que medida tais pressupostos teóricos se adequam à realidade do tema pesquisado, através de uma experimentação de webjornalismo cultural.


OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 

 

METODOLOGIA

 

           A metodologia desta pesquisa mescla elementos de pesquisas sintética (ou estudos comparativos), experimental e de desenvolvimento, na medida em que partirá de conceitos e discussões estabelecidos em pesquisas anteriores da autora deste projeto, tais como dissertação de mestrado e duas pesquisas anuais financiadas pelo FIP/PUC-Minas, para investigar a natureza do webjornalismo cultural. A idéia, como já foi dito, é propor uma experimentação de linguagem em webjornalismo cultural, a partir de análises comparativas efetuadas com base em percursos conceituais desenvolvidos por esta pesquisa.

           Desse modo, a pesquisa bibliográfica será a base de sustentação do trabalho, na medida em que procurar-se-á construir paradigmas para a elaboração do webjornalismo cultural a partir do cruzamento de referenciais teóricos nos campos de Jornalismo/Estética/Semiótica/Hibridação Cultural/Realidade Virtual. Tais conceitos, parcialmente desenvolvidas pela autora deste projeto em pesquisas anteriores e que deverão ser aprimorados por esta que ora se inicia, servirão, em um primeiro momento, como referência para análise de sites jornalísticos que visem, especificamente, à dimensão cultural.

           Para se efetuar a análise, partiremos de uma discussão mais ampla sobre jornalismo cultural, uma vez que a Internet, antes de mais nada, é um meio híbrido de linguagem, cujas referências são, justamente, os meios tradicionais de comunicação. Especial ênfase, nesse aspecto relacional, deve ser dada ao jornalismo cultural impresso, que pode ser entendido, historicamente, como um paradigma que inspira as demais formas de jornalismo cultural, como televisão, rádio e internet.

           O percurso analítico desta pesquisa, que concorrerá para a elaboração de uma experimentação de webjornalismo cultural, baseia-se nos três tipos de raciocínio (abdução, indução e dedução) apresentados por Charles Sanders Peirce e organizados como método de investigação científica por Thomas Sebeok e Umberto Eco (1991). Se, conforme nos ensina Peirce, "todo edifício de nosso conhecimento é uma estrutura emaranhada de puras hipóteses, confirmadas e refinadas pela indução "(Peirce, in Sebeok, pag. 20, 1991), então nossa pesquisa partirá de algumas hipóteses (relativas a casos gerais, relacionados ao webjornalismo cultural), que serão confrontadas com alguns casos particulares de sites, selecionados para fins de análise nesta pesquisa (indução). Ao serem os sites confrontados, sob análise, com as categorias levantadas por esta pesquisa, servirão de referência, junto com a hipóteses iniciais, para se construir um arcabouço teórico que seja suficiente para se pensar, de modo geral, o web jornalismo cultural (dedução).

           A partir daí, proporemos (abdução) um modelo de webjornalismo cultural, que será experimentado no percurso desta pesquisa (indução) e, posteriormente, avaliado segundo as mesmas categorias de análise que lhe serviram de referência para entender o webjornalismo cultural de modo mais amplo (dedução). As conclusões, possivelmente, apontarão para novas hipóteses, que, por sua vez, resultarão em novas pesquisas, em um processo infinito e auto-corretivo de pesquisa, que Peirce denominou semiose.

           A partir das hipóteses iniciais, que norteiam a construção desse projeto de pesquisa, sugerimos iniciar nossa investigação acerca do webjornalismo cultural a partir de uma ampla revisão bibliográfica e simultânea pesquisa acerca de sites de jornalismo cultural na internet, com a finalidade de eleger três sites para serem analisados por esta pesquisa. A proposta de analisar um site nacional e outro internacional, produzidos no ambiente da internet, além de um outro nacional, que seja uma tradução intersemiótica do meio impresso para o meio hipermidiático, justifica-se, metodologicamente, pelo fato de a Internet ser um meio no qual a diversidade encontra vasto campo de manifestação, o que pressupõe a disponibilidade simultânea de modelos que refletem veículos já consagrados em outros suportes, assim como a criação de veículos específicos do novo meio. No que se refere a esse segundo aspecto, é preciso entender a internet como espaço desterritorializado, de manifestações culturais múltiplas, o que deve se traduzir em diversidade de manifestações relativas a webjornalismo cultural, tanto do ponto de vista de apresentação formal, quanto no que se refere a pautas, apurações e redações das matérias.

           Daí a proposta de se observar simultaneamente modelos de webjornalismo cultural de natureza nacional e internacional, assim como contrapor tais modelos criados especificamente para esse novo meio em contraposição com um outro, que se apóie em paradigmas impressos de grande representatividade social. Com isso, pretende-se averiguar em que medida diferenciam-se e aproximam-se entre si, e no caso da tradução intersemiótica, analisá-la, especialmente, em relação ao suporte impresso que lhe serve de referência.

           Uma vez selecionados os melhores sites para efeito de análise nesta pesquisa, trataremos de comprovar em que medida eles, de fato, sejam representativos do universo pesquisado. Para isso, realizaremos entrevistas em profundidade com os editores responsáveis para obter dados que comprovem a representatividade social exigida por esta pesquisada. Aqueles que não atenderem ao critério de representatividade social serão descartados, até que se encontre os sites ideais para os objetivos desta pesquisa.

           A partir da seleção dos sites, os mesmos serão observados regularmente até que se possa obter categorias de análise relativas à organização dos mesmos e aos princípios conceituais sistematizados ao longo desta pesquisa, que sejam suficientes para efetuar a análise proposta.

           A partir deste momento, sugere-se um estágio no exterior com o objetivo de aprofundar conceitualmente e metodologicamente esta pesquisa. Nesse momento, propõe-se que se obtenha contrapontos críticos, ampliando o entendimento dos conceitos aqui priorizados, através do contato com outros universos conceituais, em uma universidade do exterior a ser definida no percurso desta pesquisa. Pretende-se, ainda, obter contrapontos críticos acerca da tendência mundial de se "lançar", em forma de site, na Internet. Para isso, pretende-se realizar entrevistas em profundidade com os editores responsáveis pelos projetos editoriais de veículos impressos de jornalismo cultural, de relevância internacional, que rejeitem o ambiente hipermidiático da Internet como forma de expressão dos veículos que comandam (por exemplo "Vanity Fair", "Talk" e "The New Yorker", conforme já foi dito).

           Com base nos dados obtidos através da análise dos sites e nas hipóteses iniciais que norteiam a pesquisa, confrontados com a experiência adquirida por este estágio no exterior, serão propostas categorias gerais de análise relativas ao webjornalismo cultural. A partir daí, chegaremos à terceira fase desta pesquisa, que pretende propor um modelo de webjornalismo cultural. A experimentação, que deverá ser feita em equipe, demandará uma metodologia específica, a ser proposta a partir dos resultados parciais desta pesquisa, assim como uma equipe de voluntários e/ou bolsistas, em um "sub-projeto" específico, que viabilize satisfatoriamente tal modelo proposto.

           Sugerimos, inicialmente, que este "subprojeto" seja desenvolvido no período de um ano, com alunos do último ano de jornalismo. No primeiro semestre, as bases conceituais da proposta deverão ser discutidas com os alunos, assim como deverá ser elaborado o projeto do site. No segundo semestre, deverão ser produzidos três edições de webjornalismo cultural, sendo todas as edições avaliadas, em forma de relatório a ser definido por esta pesquisa, pelos envolvidos no processo. Um último relatório, elaborado pela coordenadora da pesquisa (a autora deste projeto), deve ser produzido à guisa de conclusão (metodologia inspirada na pesquisa "Crítica on line de web art – considerações e experimentações de linguagem", financiada pelo FIP/PUC-Minas, sob coordenação de Geane Alzamora e atuação de três alunas do curso de Comunicação Social da PUC-Minas, sendo uma bolsista e duas voluntárias).

           A partir desses resultados, estaremos aptos a propor um estudo conclusivo relativo ao tema proposto por este projeto.

 

DELIMITAÇÃO DO OBJETO


           Os ecos do suporte hipermidiático da internet já se fazem ouvir na produção jornalística há algum tempo: redações ligadas em redes e a internet sendo utilizada como subsídio da produção/captação da notícia são apenas alguns dos exemplos mais tangíveis. O que se apregoa, entretanto, é que num breve futuro o suporte hipermidiático deverá reunir as funções dos demais meios da comunicação de massa. "O termo convergência é geralmente usado para descrever o futuro dos meios de comunicação, e ele é especialmente apropriado em referência à internet". (Outing, 1998,pag.24)

           Se isso não significa a morte do jornalismo impresso – uma vez que um novo meio tende não a matar, mas a redimensionar a função dos meios anteriores que lhe servem de referência -, certamente significa o nascimento de um outro tipo de linguagem jornalística, que deve influenciar as demais. Como ainda não se pensou, satisfatoriamente, qual a melhor forma de construção dessa linguagem, em relação às características do meio e as transformações sócio-culturais pelas quais passam os públicos-alvos frente à apropriação social das novas tecnologias, as grandes empresas do setor se limitam, na maior parte das vezes, a colocar tímidas versões on-line de suas páginas impressas. Outros se aventuram a produzir, em caráter experimental e pouco sistematizado do ponto de vista conceitual, produções jornalísticas específicas para a internet.

"A mudança crítica que os jornalistas dos diários impressos devem reconhecer é que não mais estão trabalhando em um jornal de papel, um "newspaper", mas em um fornecedor de informações noticiosas que publica seu material em papel e no ciberespaço. Para o jornalista, isso pode significar publicar múltiplas versões da mesma matéria ao longo do dia – uma primeira versão curta, que vai ao ar no website tão logo o fato ocorra; mais tarde, uma versão expandida, para atualizar a primeira; e uma reportagem completa, escrita de modo tradicional para o jornal impresso que chegará às bancas na manhã seguinte".(Outing, 1998, pag. 26)

           Para Outing, o jornalismo on-line (ou webjornalismo) reúne funções do jornalismo impresso e audiovisual, o que caracteriza uma convergência de habilidades em um mesmo profissional. Ele lembra que o texto verbal ainda é a forma mais apropriada à web, porém, combinado com fotografia e imagens em vídeo. "Os melhores jornalistas do futuro terão uma gama mais ampla de habilidades (e mais resistência!) do que os repórteres manchados de tinta do passado" (Outing, 1998, pag. 26).

           Ao contrário dos meios tradicionais de comunicação (tais como impresso, rádio e televisão), a internet possibilita a seus milhões de usuários o poder de transmitir palavras, imagens e sons a milhões de outros. Com isso, a noção de mídia, como mediador no processo de comunicação de massa, também passa por reformulação.

"A internet não é um meio-de-produção-de-poucos-para-muitos, como o jornal, rádio ou a televisão. A rede de computadoresé um meio-de-muitos-para-muitos. Esse tipo de meio de comunicação descentraliza o poder de relatar eventos, circular e debater idéias". (Rheingold, 1998, pag. 12)

           Nessa circunstância, o webjornalismo inaugura uma nova era para a linguagem jornalística. Provavelmente, a própria noção de público, tão cara à comunicação de massa, se alterará e, conseqüentemente, a função de todos que atuam profissionalmente com a produção/difusão da notícia cotidianamente.

           Quando o webjornalismo estiver mais desenvolvido, enquanto linguagem, é possível que emissor e receptor troquem constantemente de papéis. Em vez de as manifestações dos leitores ficarem restritas à sessão de cartas, elas poderão se tornar atuantes no processo de produção/difusão da notícia, de modo a possibilitar ao leitor ajustar, junto com o jornalista, o formato de mensagem que melhor lhe agrade.

"É possível que ele (o jornal) chegue até nós através da linha telefônica ou por cabos de fibra ótica, depois de circular em redes telemáticas tipo internet, e que o leiamos e o vejamos numa tela eletrônica sobre a qual podemos também escrever e desenhar, de modo a devolver à circulação o nosso texto, superposto àquele que recebemos. A escritura, confundida com leitura, tenderá a se tornar coletiva e anônima. A separação entre autor e leitor será apenas contingencial, mas não absoluta, podendo ser revertida a qualquer momento". (Machado, apud Domingues, 1997, pag. 147)

           Provavelmente, isso resultará em um novo paradigma em comunicação social. E é bem possível que esse novo paradigma dialogue com o conceito de glocal, forjado por Massimo Canevacci (1996), como forma de incorporar o sentido irrequieto do sincretismo, que capta redemoinhos plurais de panoramas globais, ao mesmo tempo em que atravessa modelos descentralizados de comunicação, singulares, com temperaturas e sabores específicos.

"Assumimos a hipótese de que, antes de incolor homologação, a fase atual desenvolve uma forte tensão, descentralizada e conflitual entre globalização e localização: ou seja, entre processos de unificação cultural – um conjunto serial de fluxos universalizantes – e pressões antropofágicas "periféricas" que descontextualizam, remastigam, regeneram". (Canevacci, 1996, pag. 23)

           Talvez por ser a internet o meio mais propício até o momento para a produção/difusão do sincretismo cultural – justamente por ser de natureza híbrida e descentralizada-, estaria registrando o aparecimento de uma outra forma de comunicação social, perfeitamente adaptada àquilo que interessa ao jornalismo cultural, ou seja, a diversidade de manifestações sócio-culturais e suas possíveis apropriações pela arte e comportamento.

"De fato, a história não tem cessado de nos mostrar que qualquer novo meio de produção de linguagem e de processos comunicativos também produz novas formas e conteúdos de linguagem, produzindo simultaneamente novas estruturas de pensamento, outras modalidades de apreensão e intelecção do mundo, ao mesmo tempo em que tende a provocar fundas modificações nos modos de vere viver e nas interações sociais". (Santaella, 1992, pag. 69)

           Se pensarmos, nesse contexto, a interatividade como "possibilidade de responder ao e dialogar com o sistema de expressão" (Machado, 1987, pag. 144), e se levarmos em consideração o fato de que a internet utiliza a interatividade (ou tende a utilizá-la) como forma de colocar em trânsito as diversas tonalidades do sincretismo cultural contemporâneo, talvez isso reforce a hipótese de que o webjornalismo, especialmente de caráter cultural, possa constatar o nascimento de um outro tipo de comunicação social, menos massificada, mais segmentada e, ao mesmo tempo, mais globalizante – ou, se preferirem, mais glocalizante. Desse modo, a velha aldeia idealizada por McLuhan talvez seja mais glocal que global e, nesse sentido, mais sincrética que massificada.

           Desse modo, chegamos a um ponto crucial de nosso problema: qual a melhor ferramenta teórica para se pensar esse novo paradigma em comunicação social, que tem no webjornalismo cultural espaço privilegiado de manifestação? Ousamos sugerir, nessa fase inicial da pesquisa, que a semiótica peirceana, combinada com a estética, possam ser campos férteis para explorar conceitualmente a questão. Não temos qualquer certeza nesse sentido, apenas aquele tipo de esperança de estarmos certos, que caracteriza o raciocínio abdutivo – único, na opinião de Peirce, a acrescentar algo de novo ao conhecimento.

"Se todo conhecimento depende da formação de uma hipótese, no entanto, "parece, a princípio, não haver nenhum espaço para a questão de como isso se sustentaria, uma vez que, de um fato real, apenas se infere um pode ser (ou pode não ser). Há, porém, uma decisiva inclinação para o lado afirmativo e a freqüência com que isso resulta ser um fato verdadeiro (...) é quase o mais surpreendente de todos os prodígios do universo". (peirce, apud Truzzi, 1991, pag.20)

           Apoiados nessa confiança "abdutiva" de estarmos no caminho adequado, prosseguimos em nosso raciocínio. Sendo a semiótica peirceana um conjunto de diretrizes teóricas, articuladas segundo a lógica de engendramento das três categorias fenomenológicas propostas por Charles Sanders Peirce, propomos entender o jornalismo cultural como arena de manifestações sócio-culturais diversas, que se singularizam a partir de uma multiplicidade qualitativa que tangencia a experiência como forma de direcionar as ações rumo a comportamentos e manifestações artísticas normatizados por uma certa tendência contemporânea.

           Desse modo, podemos entender o webjornalismo cultural como singularizações que colocam em trânsito dominâncias puramente qualitativas – reino da estética – organizadas em considerações simbólicas, ou seja, elaboradas segundo as normas de um código, ou sistema de signos, que adeque as peculiaridades artísticas e comportamentais contemporâneas ao repertório heterogêneo dos leitores-usários-produtores dessa nova modalidade cultural, sincrética, híbrida, característica da internet.

           A relevância da semiótica peirceana nesse contexto destaca-se quando observamos, a partir do hibridismo cultural comtemporâneo, que o ícone – "qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um signo seu" (Peirce, apud Santaella, 1995, 144) – fundamenta o símbolo e que este predomina na cultura. Desse modo, teremos que todas as manifestações culturais são simbólicas – arbitrárias, portanto, mas erigidas sobre firmes convenções sociais.

           Porém, como o símbolo, segundo Peirce, guarda em seu interior determinações icônicas, observadas parcialmente em singularidades, não nos parece um absurdo propor uma abordagem icônica do jornalismo cultural. A proposta funda-se na conjectura de que quaisquer manifestações sócio-culturais têm por substrato qualidades múltiplas, vagas, capazes, porém, de fundamentar opções sócio-artístico-culturais. Assim, entendemos que tais manifestações só podem ser satisfatoriamente compreendidas a partir das qualidades de sentimentos que delas emanam e que a elas se relacionam.

           Sendo assim, um problema surgiria: seria mesmo adequado pensar o jornalismo apenas do ponto de vista indexical, ou seja, como discurso que pretende uma extensão objetiva do fato, ou a própria "verdade" acerca do objeto abordado? Seria mesmo adequado levar em consideração apenas as características simbólicas da realidade que serve de referência ao jornalismo, assim como os aspectos indiciais do fato representado em discurso jornalismo? Por que a dimensão icônica, relacionada às qualidades de sentimentos que emanam do objeto retratado de modo a tangenciar , por analogia ou semelhança o signo, costumam ser desconsideradas nas análises jornalísticas, embora, segundo Peirce,

"A única maneira de comunicar diretamente uma idéia é (seja) através de um ícone; e todo método de comunicação indireta de uma idéia deve depender, para ser estabelecido, do uso de ícones. Daí segue-se que toda asserção deve conter um ícone ou um conjunto de ícones, ou então deve conter signos cujo significado só seja explicável por ícones". (Peirce, 1990, pag. 64)

           Nesse sentido, nossa hipótese é: seria a exploração icônica do discurso jornalístico, na internet, favorável à compreensão do hibridismo cultural contemporâneo, que se potencializa pela apropriação social das novas tecnologias e da comunicação em rede? Seria a exploração icônica um ponto de partida para se pensar formas visuais e sonoras de comunicação, que potencializassem a eficácia comunicativa do discurso verbal no webjornalismo, no que se refere à semelhança deste com o objeto retratado? Segundo Nöth, "the conditions under wich noverbal behavior becomes sign or communication are of central interest to the fundations of semiotics" (Nöth, 1990, pag. 387)

           Nessa perspectiva, faz-se necessário não apenas desvendar preceitos semióticos como ferramentas de leitura dos processos sócio-culturais que concorrem para modalizar o webjornalismo cultural, como também investigar em que medida a estética peirceana é suficiente para se pensar a questão, confrontando-a com outras proposições estéticas. Afinal, o ícone é o signo estético por excelência e, nessa perspectiva, surge outra indagação: como definir o que seja marcadamente estético na construção de modos possíveis de produzir webjornalismo cultural – seja do ponto de vista da pauta, da recepção ou da escolha estética de apresentação de tais discursos jornalísticos no ambiente da internet? Esse é um problema de grande envergadura que, a nosso ver, merece maior exploração conceitual. Por ora, basta constatar que

"O código estético apresenta elementos que não estão encerrados em nenhuma estrutura particular. Freqüentemente, se referem a outros elementos externos ao próprio código e só adquirem significado através (...) de um interagir contextual, ou seja, dentro de um contexto em que são apresentados, os elementos significativos se movimentam e se cambiam através de "clarezas" e "ambigüidades sucessivas que acabam por remetê-lo a um determinado significado que, logo a seguir, se apresenta como a possibilidade de outros significados diferentes dentro de uma rede de escolhas possíveis". (Coelho Netto, 1973, pag. 28)

           A definição de Coelho Netto, embora excessivamente ampla, parece dialogar perfeitamente com as características híbridas da linguagem hipertextual, assim como em relação às características fugidias e variadas do hibridismo cultural contemporâneo. Por uma ou outra abordagem, parece-nos que o ícone peirceano trafega com desenvoltura pelas entrelinhas da definição de Coelho Netto. Nossa hipótese inicial, portanto, é de que a semiótica peirceana seja adequada para se pensar o webjornalismo cultural, pois, conforme Felicia Kruse "(...) one aspect of Peirce’s sign theory that provides a partial explanation of how sign interpretation is constrained, and therefore how it is possible to account for conditions of signification that are not themselves semiotic" (kruse, 1990, pag. 212).

           Mas, por via das dúvidas, propomos investigar melhor outras proposições estéticas como modo de definir, ao longo da pesquisa, a corrente estética mais adequada para os objetivos desta pesquisa – ou, por outro lado, confirmar a hipótese inicial que rege a articulação deste estudo, que é a de explorar, com elementos da semiótica e estética peirceanas, a linguagem provável do webjornalismo cultural. A partir disso, poderemos analisar sites e propor uma experimentação de webjornalismo cultural, de acordo com os três tipos de raciocínio defendidos por Charles Sanders Peirce, uma vez que

"Em resumo, o procedimento de adotar uma hipótese ou uma proposição que conduziria a uma predição daquilo que pareceriam ser fatos surpreendentes é chamado abdução (...). Ao procedimento pelo qual as conseqüências experenciais, prováveis e necessárias de nossa hipótese são investigadas chama-se dedução (...). Indução é o nome que Peirce atribui ao procedimento de testar experimentalmente a hipótese" (Truzzi, 1990, pag. 23).

           Ao final da pesquisa, portanto, pretendemos estar aptos a avaliar e propor modelos de webjornalismo cultural, através de procedimentos que serão modalizados conceitualmente ao longo deste estudo, inicialmente aqui problematizado.

 

JUSTIFICATIVA


           Embora a internet seja lugar de convergência de linguagens, as potencialidades desse código não foram ainda suficientemente exploradas pelos veículos de comunicação que nele se inscrevem. Faz-se urgente, portanto, não apenas descortinar características de linguagem da internet, como também entender as especificidades dos tipos de linguagem que nela florescem.

           Nesse aspecto, acreditamos ser o jornalismo campo propício para esse tipo de investigação, uma vez que este, desde o Iluminismo, se revela um dos modos mais legítimos de compreender e atuar sobre a realidade que nos cerca e, conseqüentemente, nos constitui. Na esfera da internet, o jornalismo, que aqui chamamos webjornalismo, se desdobra sobre a mesma importância social de outrora, revelando-se campo fértil para pesquisa e expressão – aspectos que podem ser comprovados em uma rápida pesquisa sobre o assunto na internet, assim como pela enorme profusão de listas de discussão sobre o tema, também na internet.

           Apesar de tamanho interesse, entretanto, o webjornalismo ainda não encontrou caminhos próprios de desenvolvimento, perfeitamente adequado às características de linguagem da internet e aos comportamentos e demandas dos públicos que se formam na e pela rede. Isso é relativamente explicável pelo percurso ainda curto do webjornalismo, porém não justifica a ausência de referências conceituais para se pensar modos mais adequados de praticá-lo. Esta pesquisa pretende oferecer contribuições nesse sentido, não apenas como exploração conceitual do tema, mas, especialmente, como experimentação de um modelo considerado interessante após vasta exploração conceitual e analítica.

           Como o webjornalismo se constrói a partir da diversidade de modelos que se expressam na rede, optamos por discuti-lo não apenas a partir de suas características gerais, mas, principalmente, pelas especificidades de um tipo de jornalismo que denominamos webjornalismo cultural. Nossa opção justifica-se pelo fato de a rede ser espaço privilegiado para se pensar as transformações sócio-culturais advindas da hibridação cultural contemporânea, uma vez que é na rede que boa parte de tais transformações se processam ou se difundem socialmente.

"A dimensão da comunicação e da informação, então está se transformando numa esfera informatizada. O interesse é pensar qual o significado cultural disso. Como o espaço cibernético, temos uma ferramenta de comunicação muito diferente da mídia clássica, porque é nesse espaço que todas as mensagens se tornam interativas, ganham uma plasticidade e têm uma possibilidade de metamorfose imediata. E aí, a partir do momento em que se tem acesso a isso, cada pessoa pode se tornar uma emissora, o que obviamente não é o caso de uma mídia como a imprensa ou a televisão". (Lévy, 2000, pag.13)

           É na perspectiva de uma atuação que explore o significado social da hibridação cultural contemporânea, assim como o observe pela especificidade de um tipo de jornalismo que priorize tais significados culturais ao mesmo tempo em que se construa em sintonia com as características de linguagem (e, portanto, de cultura) que emergem da rede, que esta pesquisa se torna relevante. Assim, julgamos importante organizar, conceitual e metodologicamente, pressupostos teóricos que possam iluminar a produção/difusão/consumo do webjornalismo cultural.

           Acreditamos tratar-se de uma discussão que não pode distanciar-se de pressupostos teóricos que articulem, simultaneamente, elementos da semiótica/estética/hibridismo cultural/realidade virtual como forma de melhor entender o webjornalismo cultural. Isso porque, acreditamos, todo fenômeno cultural apresenta fundamentos estéticos. Por outro lado, a semiótica peirceana nos parece especialmente hábil para explorar fenômenos de natureza híbrida, tais como aqueles que costumam caracterizar as recentes formas de hibridismo cultural. E sendo o webjornalismo um problema essencialmente relacionado ao ambiente das novas tecnologias, não vemos como abordá-lo sem levar em consideração aspectos trabalhados por teóricos da realidade virtual.

           A nosso ver, a melhor maneira de tornar tangível um modelo teórico, assim como corrigir possíveis distorções desse modelo ideal, é confrontá-lo com a experiência. Daí a proposta de terminar essa pesqusa com uma experimentação de webjornalismo cultural. Acreditamos que a experimentação possa não apenas servir para confirmar e/ou corrigir o modelo teórico a ser construído por esta pesquisa, como também apontar para futuras pesquisas que aprimorem esta que agora se inicia.

 

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