Passivo, Reativo e Interativo:
Três níveis de lei, para uma semiótica da intervenção.

 

Wilton Azevedo

 

"A expressão ‘democraticia em tempo real’ é, portanto, pleanástica, uma vez que a democracia visa por essência a decisão coletiva no presente e a permanente reavaliação das leis." (Levy, 1998: 96)

 

O fotógrafo Nadar em 1886, resolveu fazer uma série de entrevistas com o grande químico francês Michel-Eugène Chevreul ( 1786 – 1889), um dos maiores especialistas em cor. Para marcar este encontro o filho de Nadar, o fotógrafo Félix Tournachon, resolveu documentar esta entrevista em uma seqüência de fotos, já que Chevreul nesta época se encontrava com 100 anos de idade. Foi neste contesto, que Nadar teve uma idéia inusitada, resolveu escrever embaixo de cada foto a fala de Chevreul durante a entrevista, pois Nadar esperava poder criar um áudio visual deste trabalho, o que não foi possível para época porque não havia tecnologia disponível. (Strosberg, 1999: 134)

 

           A necessidade da escritura artística nunca depender de apenas um código, fica claro nesta preocupação do fotografo Nadar em criar um novo conceito de articulação de linguagem. Se é verdade que Rembrandt disse, - "uma luz uma sombra, duas luzes duas sombras" - então também é verdade, que quando se somam mais de um código em uma mesma produção de linguagem, passamos a conduzir uma maior interatividade entre, público e obra.

           Interagir com a obra, é fazer com que o público se torne na mesma hora, artistas daquela linguagem. E qual é o interesse do público, em se tornar artistas também? É uma pergunta não muito simples de responder, mas se fizermos uma reflexão de como se d estes níveis de interatividade, pode ser que possamos chegar a uma idéia, do porque somos levados a tomar posse das linguagens alheias.

           Algumas declarações , como a de Da Vinci, quando olhava para uma pintura inacabada dizendo, " Se sei como vai ficar , prá que vou terminar", apontam para um dado, que a arte para se realizar não precisa apenas estar centrada em sua matéria, mas principalmente em seu conceito. Se pensarmos que o século XX trouxe para a espécie humana a vantagem de estarmos em dois ou mais lugares ao mesmo tempo, então a noção de propriedade é desfeita pelo simples fato de que, se não há acesso a uma produção de linguagem, não há como tomar posse de algo, ou seja, se não existe interatividade, os quilhões da humanidade permanecerá diante do espelho mágico da passividade, e não conseguirá tomar o osso do outro macaco.

           Neste sentido, a noção de obra tem passado por vários estágios, conforme os níveis de interatividade foram avançando com a tecnologia disponível, aumentando assim a participação do público, a ponto de começarmos a pensar o público como co-autor.

           O professor Décio Pignatari constumava dizer durante suas aulas, que quem sabe ler e escrever é bilingüe. Hoje em meio a hipermídia, formado por ambientes virtuais, fica claro que saber acessar já é um ato de linguagem quer pressupõe uma democratização da linguagem.

           Acessamos signos, somos um armazém de criação simbólica, e são exatamente estes mesmos símbolos que vão adentrar a produção da linguagem humana, tentando copiar o mundo `a sua verossimilhança - com suas próprias mãos - ou criando aparatos tecnológicos que regurgitem o mundo em forma de simulacro transistorizados.

           Depois da obra de Norbert Wiener, Sociedade e Cibernética, muito se discutiu a respeito do termo mensagem e informação. O que sabemos, é que não basta enviar um sinal para se tornar compreendido, as sociedades informatizadas tem gasto muito mais verbas do governo para administrar e controlar informação do que em pesquisas para novos suportes de informação.

           Pierre Levy (1998: 51), divide esta atividade de controle da informação em três grupos principais: somáticos, midiáticos e digitais. "As técnicas somáticas implicam a presença efetiva, o engajamento, a energia e a sensibilidade do corpo para a produção de signos. São por exemplo, as performances ‘ao vivo’ de fala, dança, canto ou música instrumental(...) Uma mensagem somática não é jamais reproduzida exatamente por meio de técnicas somáticas." Quanto as tecnologias midiáticas, "...fixam e reproduzem a fim de assegurar-lhes maior alcance, melhor difusão no tempo e no espaço(...). As mensagens continuam a ser emitidas na ausência do corpo vivo dos destinatários. A passagem à mídia propriamente dita (isto é, os meios de comunicação de massa) se dá com as técnicas de reprodução dos signos e marcas: selos, carimbos, moldagem, cunhagem de moedas...". Com o suporte digital das hipermídias, as relações de montagem da linguagem de registro índicial, da espaço para uma atualização via bit, "O digital sempre pairou acima da mídia. Pois ele é o absoluto da montagem, incidindo esta sobre as mais infímos fragmentos da mensagem, uma disponibilidade indefinida e incessantemente reaberta à combinação, à mixagem, ao reordenamento dos signos(...). O digital autoriza a fabricação de mensagens, sua modificação e mesmo a interação com elas, átomo de informação, bit por bit." (Levy, 1998: 53)

           A transformação das relações tribais, para as trocas de mensagem em um mundo da industria cultural da mass media, transformou nos transformou em uma Aldeia Global, como nos alertou Mcluham, uma organização coletiva que atuava de maneira passiva diante das redes televisivas. A democracia do cyberespace de algum modo recupera a atuação humana diante de mensagens que se pode interagir, "A abertura do ciberespaço permite conceber formas de organização econômica e social centradas na inteligência coletiva e na valorização e na valorização do humano em sua variedade..." , as relações passam a existir por que o agente aglutinador desta linguagem é ter um repertório compatível, e que preserve a individualidade de cada um. "Só pode existir grupo orgânico se cada um dos membros sabe o nome do outro. Nesse tipo de coletivo, as pessoas podem obedecer a regras, seguir tradições, respeitar códigos. No entanto, os princípios organizadores não estão fixados, reitificados, ou situados fora do grupo, pois são carregados pela comunidade constituída em corpo." (Levy, 1998: 55), é um novo mundo que só faz sentido em tempo real, é estar junto intensamente de maneira a estabelecer algo vital.

           Com este novo aparato, nossa espécie passou a ser a única do planeta capaz não apenas de produzir informações existentes em nossas ações cognitivas, mas também de programá-las. Como diz Santaella (1996: 165):

"...não há nada no animal que se assemelhe `a maquinaria combinatória dos fonemas que rege a complexidade de organização das línguas humanas, nem há em qualquer animal, a capacidade projetiva e simuladora do cérebro apta para estabelecer novas combinações e associações criadoras que, aliadas `as sutilezas da mão e do corpo, permitem ao homem produzir linguagens fora do corpo e do cérebro, isto é, povoar o mundo dos signos."

           Nós dialogamos hoje muito mais com máquinas do que com "seres carnais", isto porque segundo Santaella (1996: 166), os seres noológicos estão se proliferando cada vez mais, e é a teoria dos signos que pode dar conta de uma análise - de visão mais interativa - dessas linguagens. Se realmente essas próteses com "olhos", "cérebro", "ouvidos" e "bocas" regurgitam o mundo `a sua semelhança, é necessário então reavaliarmos a noção de ruptura, já que os meios digitais via algoritmos estão cada vez mais próximos da vida humana.

           Não há momento mais oportuno do que começarmos a reavaliar o termo interatividade. Nos habituamos ao cotidiano da palavra interatividade, sem levar em conta qual o seu significado, e porque os meios digitais propiciaram esta forma de linguagem.

           Neste século a arte dita de vanguarda, se caracterizou pela forma com que levou o objeto artístico para o publico na intenção de tornar esta linguagem um experimento potencial, com a intervenção do publico. Criar o hábito do publico lidar com uma linguagem artística que se manifestava de maneira híbrida, foi esta uma das tarefa da vanguarda, para que isto se consolidasse vieram então os manifestos para dar um recorte mais interdisciplinar na sua essência de linguagem.

           Não podemos esquecer que a língua humana surgiu de forma arbitrária, e segundo Levi-Strauss, quando surge uma gramática para regularização desta língua surge também para a humanidade uma forma de ditadura, uma espécie de monopólio da linguagem. "Qualquer um poderia inventar um novo sistema de escrita para uma determinada língua, mas também de enfrentar o problema de conciliar várias exigências conflitantes do sistema. Uma dessas exigências diz respeito `a necessidade em manter as coisas em sua simplicidade, a fim de que o novo sistema de escrita não se torna tão complexo que seja impossível o seu aprendizado..." (Healey, 1996: 250)

           É justamente este estágio de primeiridade que estes sinais foram tomando formas mais rígidas, com relação ao apelo das leis gramaticais exigidas pelos advogados da língua humana.

           São estas leis de caráter analítico sintético que pode ter sido uma das causas da linguagem ter assumido o autoritarismo da autoria, deixando por mais que participativo o seu publico na posição de leitor, alguém que se apodera de uma linguagem já pré determinada por um autor, uma espécie de usuário de um software.

           Na tentativa de romper com este cerco, emissor–receptor, é que a tecnologia vem se aperfeiçoando em inventar uma "máquina" que literalmente converse como seu publico, abrindo assim um espaço novo para a interatividade. Os estudos das formas de recepção discutidas por Norbert Wiener ao criar a teoria da informação, é que podemos dividir em três fases a participação do publico com a obra: Passivo, Reativo e Interativo.

           O primeiro – passivo – mostra de forma clássica que quem recebe a mensagem, envia como feedback um sinal de que a mensagem foi recebida, ou seja, o sinal enviado por um veiculo (canal) tem que chegar ao receptor de maneira que este só contemple a chegada deste sinal. Se existe uma participação do publico, é a penas a de conferir o sinal recebido. Neste sentido se preserva na integra a situação de autor, pois não há intervenção do publico no sinal recebido, a imaginação do publico atua como uma espécie de usuário dos sinais enviado, um "estímulo" um pouco mais refinado se tratando de uma poesia ,mas não deixa de ser um "estímulo".

           A invenção da mídia eletrônica até a televisão, deu ao publico o livre arbítrio de usar sua imaginação como uma maneira de tornar utilitária a mensagem recebida. A intervenção na obra era dada de forma conceitual, e o imaginário, ação que o público exercia ao receber "sinais", já pertencia ao mundo da virtualidade, que só foi possível ser visualizado com a invenção do da imagem de síntese.

           O segundo - reativo- abre a possibilidade do emissor enviar mais de um sinal, dando ao receptor o poder de optar na escolha de uma delas. Neste caso o publico reage aos vários sinais, escolhendo o caminho a ser navegado. O ato de poder escolher, nos faz pensar que qualquer linguagem em que eu tenha uma liberdade de escolha, seja interativa, isto não é verdade. Theodor Nelson ressalva a importância de que para haver uma interatividade é necessário que o estimulo via emissão e recepção de sinais seja feito em tempo real é o que ele denominou em inglês de "as if" (Jacobson, Freeman, org., 1992: 158).

           Não capturamos os textos de uma página ou imagens de um filme de forma programática apenas, há muito o que se estudar na semiótica para afirmarmos como estes códigos se formam e produzem linguagem, mas é inegável que atuamos sobre estes sinais de maneira a reconstruí-los. As leis que regem os códigos em verdadeiras gramáticas formais, da ao ímpeto da leitura um caráter programático, o que contempla o leitor/usuário o poder da opção reativa: "Ler, então, não é um processo automático de capturar um texto como um papel fotossensível captura a luz, mas um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e, contudo, pessoal." (Manguel, 1997: 54)

           Se podemos hoje mover através do que antes era passivo, podemos concluir que o processo de imersão que uma imagem ou um texto nos oferece é regulado por níveis de interatividade, em que antes havia uma sequência linear - hipotaxe - prevalecendo a passividade ou melhor, quando se pode escolher, ou possibilidade já existente de um novo formato, a fragmentação desta linearidade narrativa para uma não linear - parataxe.

           Já adentramos na era da "infoesfera", o mundo da Hipermídia - CD Rom's e Internet - é o ultimo habitat da mente humana. Estes sistemas fazem parte de uma grande metáfora biológica, que envolve a simulação da cognição humana.(Barbrook, 1996: 2). Poderíamos dizer que do ponto de vista reativo, a Internet, Ciberespaço e o chamado I-Way, são os primeiros "protozoários" deste novo milenium. Estávamos no passado determinados para optarmos o que estas tecnológicos, "como no caso do Frankenstein ou Hal em 2001, mas hoje somos convidados a celebrar a emergente era da pós-biologia, a linha ciberorgânica da evolução" (Barbrook, 1996: 3) na realidade continuamos sendo os únicos seres no ciberespaço em que ainda podemos optar para depois interagir.

           Esta memória via rede passa a categoria de "memória coletiva", é a experiência humana exteriorizada na world-wide-web. É a identificação e a integração das comunidades virtuais, que só existem nas relações de interfaces. Daí começarmos a entrar na terceira categoria: a interatividade.

           Nesta terceira categoria - interativa -, podemos não só optar, como também intervir, mudar as relações indiciais que o mundo dos signos nos oferece, como também inventarmos novos destinos para o desenleio das linguagens. Não tenho dúvidas que esta terceira categoria inicia, se é que podemos chamar assim, uma nova etapa da escritura humana, estamos avançando em direção a uma potencialidade de uma verdadeira democratização da linguagem, saindo da esfera da ditadura da linguagem, como chamou Levy Strauss, e dando a possibilidade que cada autor reinvente não só o seu próprio labirinto, como também modifique o do "outro".

           As relações interpessoais estabelecida pelas redes virtuais, nos transportam em um novo conceito de "via". A idéia de haver comunicação entre pessoas, nunca houve uma premissa que para que isto acontecesse deveríamos contar apenas com os meios físicos, porque comunicar significa sempre, simplesmente, dirigir-se ao seu semelhante.

           Esta terceira categoria, adquiri assim uma cultura digital coletiva que evoca uma troca de significado plural das relações, e a troca de informação se dá de maneira a ressaltar a diversidade, "Dar a uma coletividade o meio de proferir um discurso plural, sem passar por representantes, é o que esta em jogo, do ponto vista tecnopolítico, na democracia do ciberespaço. Essa fala coletiva poderia, por exemplo, apresentar-se como uma imagem complexa ou espaço dinâmico, um mapa móvel das práticas e idéias do grupo. Cada um poderia se situar em um mundo virtual para cujo enriquecimento e modelagem todos contribuiriam por meio de seus atos de comunicação. Coletivo não é necessariamente sinômimo de maciço e uniforme. O desenvolvimento do ciberespaço nos fornece a ocasião para experimentar modos de organização e de regulação coletivos exaltando a multiplicidade e a variedade." (Levy, 1998: 66)

           Os conceitos de democracia passam a ser reavaliados, já que a interatividade abre para o ciberespaço uma a nova de fronteira, se é que ainda existem fronteiras, as relações interpessoais estabelecida pelas redes virtuais, nos transportam em um novo conceito de "via". A idéia de haver comunicação entre pessoas, nunca houve uma premissa que para que isto acontecesse deveríamos contar apenas com os meios físicos, porque comunicar " significa sempre, simplesmente, dirigir-se ao seu semelhante. Com esta nova atitude diante destas máquinas interativas, é que se reintroduz uma nova pluralidade coletiva, "O coletivo inteligente é a nova figura da cidade democrática. Habitada por esse ideal, a 'política molecular’, liberta da influência dos poderes territoriais, suspende por um momento a ação das redes desterritorizadasda economia mundial para permitir a ação, no interior do vazio assim conquistado, dos processos rizomáticos, das dobras e redobras da inteligência coletiva." (Levy, 1998: 69)

           As relações em ambientes virtuais tornaram a troca de informação muito mais rápida, e em tempo real. Pierre Levy (1998: 74), chama a atenção que este tipo de interatividade se torna muito mais direta, o que Levy chama de "democracia em tempo real". "Vimos que as tecnologias moleculares são mais rápidas que as molares. Elas perseguem o tempo real, isto é, reduzem a zero o atraso na obtenção de resultados (...) Uma simulação digital reage imediatamente à alteração de uma variável, um indivíduo não transforma seus modelos mentais e seus esquemas de ação com tanta rapidez." (Levy, 1998: 74)

           Se não existiu até hoje o artista de uma obra só, fica claro que com tecnologia digital interativa, não existirá mais a obra de apenas um artista. Esta pluralidade, só foi possível com os meios de linguagem que permitirão o público intervir na obra não apenas tocando-a, mas a distância, virtualmente, interferindo em uma linguagem que só existe em transito, que nunca estará pronta, enquanto houver um olhar a espreita intervindo para significar.


Bibliografia:

 

BARBROOK, Richard. The Memesis Critique. HRC: HyperMedia: Theory: Cyberbollocks: critique of the Memesis statament of Ars Eletronica ´96

HOOKER, J. T. (introdução). Lendo o Passado: A História da Escrita Antiga do Cuneiforme ao Alfabeto, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Companhia Melhoramentos,1996.

LEVY, Pierre, A Inteligência Coletiva. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1998.

MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. São Paulo. Companhia das Letras. 1997.

SANTAELLA, Lucia. A Cultura das Mídias. São Paulo. Experimento. 1996.

SANTAELLA, Lucia & NÖTH, Winfried. Imagem. Cognição, Semiótica, Mídia. São Paulo. Experimento. 1998.

STROSBERG, Eliane. Art and science. Unesco Publishing. France 1999.