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As (Outras) Quatro Habilidades

 

Interagentes e Receptores

Há bem mais de uma década temos presenciado a emergência de novas formas de sociabilidade e de vida urbana adaptadas a um novo meio ambiente tecnológico, implantado pela combinação das novas tecnologias de informação com a expansão global das redes de telecomunicações. Autores como Castells (1999) têm buscado compreender esse fenômeno sob um prisma sociológico, a partir do conceito de informacionalismo1. Entendido como um novo modo de desenvolvimento que privilegia o uso de tecnologia no processamento da informação e no suporte à comunicação simbólica como a principal fonte de produtividade social, o informacionalismo sucede ao industrialismo, modo de desenvolvimento surgido a partir da metade do século XVIII, que tinha por característica principal a ênfase na mecanização do trabalho braçal, na obtenção de fontes de energia e na capacidade de descentralização do uso da energia ao longo dos processos de produção e circulação de mercadorias. Assim, se no industrialismo a tecnologia, entendida como a aplicação do conhecimento aos processos de produção de mercadorias, está voltada para o crescimento da economia, no informacionalismo, o conhecimento atua sobre o próprio conhecimento, gerando níveis cada vez maiores de acumulação de conhecimento e de complexidade no processamento da informação.

O informacionalismo tem promovido, segundo Castells (1999), uma estratificação social crescente entre interagentes), isto é, pessoas abastadas e de alto grau de instrução, capazes de selecionar seus circuitos multidirecionais de comunicação e obtenção de informação, e receptores, que seriam aqueles cujo acesso à informação e ao conhecimento está limitado, por fatores socioeconômicos e geopolíticos, a um número restrito de opções “pré-empacotadas”. O abismo entre interagentes e receptores está expresso nas diferentes formas de acesso à informação de que dispõem. Interagentes selecionam seus circuitos de comunicação através de dispositivos como TV interativa digital, DVDs, telefones celulares, câmaras fotográficas digitais, Internet, programas de compartilhamento de música digitalizada, homebanking, etc. Os receptores, por seu turno, estão restritos, na melhor das hipóteses, a conteúdos “pré-empacotados” e graus menores de interatividade2 permitidos pela TV convencional, videocassetes, telefonia convencional, câmaras fotográficas convencionais, jornais impressos, seleções musicais pré-gravadas em CDs, atendimento bancário convencional, etc.

Fatores socioeconômicos e geopolíticos são obviamente cruciais na determinação de quem são os interagentes e quem são os receptores, mas certamente não são os únicos, e atrevo-me a dizer, nem mesmo os mais importantes. Autores que têm acompanhado programas de inclusão digital em países do terceiro mundo ao longo dos últimos anos, como Warschauer (2003, Pág. 46), não hesitam em afirmar que “a questão chave (da exclusão digital) não é a desigualdade no acesso a computadores, mas a desigualdade nas maneiras de usar o computador”. Analogamente, muitos indivíduos que dispõem de equipamentos associados às práticas interagentes utilizam tais dispositivos à moda dos receptores, seja por falta de familiaridade com as máquinas e as formas de operá-las, pelo apego a certos hábitos de consumo da informação3, ou simplesmente porque lhes falta o grau necessário de letramento digital4.

Grandes empresas produtoras de software, cientes há muito tempo dessa faceta do informacionalismo, têm optado por criar programas cada vez mais sofisticados não apenas no sentido de que são capazes de processar informação textual e audiovisual com grande precisão e velocidade, mas também no sentido de que podem ser manipulados de forma “intuitiva”, isto é, a partir de opções pré-programadas e recursos de manipulação direta5. Essa estratégia mercadológica visa ampliar o público consumidor de software para incluir pessoas menos letradas digitalmente do que os usuários profissionais. Uma conseqüência notável dessa conjuntura, para além da inclusão dessa temática no universo da cultura de massa6, tem sido um alargamento ainda maior do abismo cognitivo entre os que criam os softwares e os que os manipulam, profissionalmente ou não, pois, por trás da interface manipulável pelo usuário, existe o código fonte do programa, que na maioria dos casos é “fechado”, vedando o acesso ao conhecimento necessário para uma apropriação crítica e para um uso mais interagente dessas ferramentas. Em contrapartida, muitos criadores de software autônomos têm se empenhado no desenvolvimento colaborativo e descentralizado de softwares chamados “livres” ou “de código aberto”, isto é, programas distribuídos gratuitamente e cujo código fonte é manipulável pelos usuários7.

 

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Notas

1 Para uma interessante análise do impacto do informacionalismo no futuro do ensino de inglês, ver Warschauer (2000a). Sobre as conseqüências da globalização e do informacionalismo no futuro da língua inglesa, ver Graddol (1997). voltar ao texto

2 Utilizo o termo “grau de interatividade” no sentido em que é utilizado por Lemos (1997). voltar ao texto

3 Quantos consumidores utilizam, de fato, a totalidade dos recursos interativos de seus celulares, aparelhos de DVD, ou computadores? Quantas pessoas suficientemente abastadas para adquirir equipamentos mais interativos não preferem utilizar equipamentos menos interativos, por julgarem os novos recursos desnecessários ou excessivamente complicados? Quantos usuários de TV a cabo, os quais dispõem de setenta ou mais canais de programação em diversas línguas, não priorizam, em seus hábitos cotidianos, a programação de dois ou três canais da TV aberta, por apego a gêneros tais como a telenovela? voltar ao texto

4 Utilizo o termo “letramento digital” aqui no sentido de um conjunto de tecnologias e práticas sociais que habilitam o mental, o oral e o gestual a se separarem do corpo e da mente humana e serem representados externamente, armazenados, recuperados e interpretados, numa era eletrônica, com dispositivos eletrônicos, conforme Kaplan (1995) apud Buzato (2001). voltar ao texto

5 Ver Lemos (1997). voltar ao texto

6 Um exemplo isolado, porém simbólico, dessa tendência, é a referencia freqüente ao software de edição de imagens “Photoshop” em programas de variedades ou talkshows nos quais se comenta sobre fotos publicadas em revistas masculinas. A palavra “photoshop” parece ter sido assimilada pelo público telespectador, mesmo aquele que jamais utiliza computadores, como uma forma de expressar um julgamento sobre a autenticidade da beleza de alguém. “Isso é seu corpo mesmo, ou foi feito com 'photoshop'?”, pergunta o entrevistador ao exibir as fotos para a câmara. “Não é ‘photoshop' não, eu sou assim mesmo”, assegura a entrevistada. voltar ao texto

7 Para uma exposição detalhada dessa iniciativa, consultar http://www.opensource.org. voltar ao texto