A
guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história
brasileira da segunda metade do século 19. As ações militares
iniciaram-se em 12 de outubro de 1864, com a invasão brasileira do
Uruguai, e concluíram-se em 1 de março de 1870, com a morte de
Francisco Solano López, em Cerro Corá, no interior paraguaio.
Dos cento e quarenta mil soldados brasileiros convocados para
o confronto, cinqüenta mil teriam morrido nos combates ou devido a
ferimentos e doenças. O financiamento do enorme esforço militar
comprometeu por mais de uma década as já frágeis finanças
brasileiras. [483]
A
guerra tencionou política, social e economicamente o Brasil,
desvelando o profundo anacronismo do Estado imperial escravista,
despreparado e inadaptado para um esforço militar nacional. As
conseqüências políticas do conflito foram
profundas.
Durante
a guerra, a luta abolicionista, principal questão política e social
nacional, imobilizou-se sob a retórica da união diante do inimigo
externo. Liberais e conservadores apoiaram uma intervenção
rejeitada pelas classes subalternizadas, sem que qualquer força
política nacional se opusesse a ela.
Narrativas
apologéticas
As
primeiras narrativas de vocação historiográfica sobre o conflito
foram construídas após sua conclusão, nos últimos anos do Império. O
golpe republicano de 1889 deu-se sob a égide da alta oficialidade do
Exército, principal interessada na consolidação dessas leituras
apologéticas.
Esses
trabalhos pioneiros foram sobretudo obra de oficiais combatentes.
Eles construíram-se através da seleção e organização dos discursos
apologéticos desenvolvidos pelo Estado e pelas elites imperiais
durante o confronto.
As
leituras apologéticas imperiais foram ampliadas após 1889. As forças
armadas republicanas elevaram à situação de figuras paradigmáticas
oficiais monárquicos – Caxias, Osório, Tamandaré – que intervieram
com destaque no conflito, o mais importante jamais combatido pelo
Estado brasileiro.
Para
apoiar a idéia de que a intervenção militar constituiu uma reação ao
ataque dos territórios brasileiros, esses relatos propuseram
comumente como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor
brasileiro Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, e não a
intervenção brasileira, um mês antes, contra o governo
constitucional uruguaio, apoiado pelo Paraguai.
Apologia
militar
A
historiografia nacional-patriótica brasileira propôs que a guerra
fosse contra a ditadura de Solano López, e não contra o povo
paraguaio. Mesmo se o Império e a Argentina tenham anexado parcelas
dos territórios paraguaios, transformando o país em uma verdadeira
republiqueta, dizimando literalmente sua população – autores estimam
redução de até 69% da população paraguaia.
[457]
As
narrativas historiográficas áulicas defrontaram-se com grave
paradoxo. Como explicar o imenso esforço militar, as baixas
multitudinárias e os mais de cinco anos necessários para vergar, em
aliança com a Argentina e o Uruguai, uma nação de importância
regional menor.
Em
geral, explicou-se a paradoxal resistência como resultado de
preparação militar prévia e do fanatismo guarani, promovidos por
Solano López. A indiscutível marcialidade paraguaia prosseguiu como
espécie de Esfinge exigindo decifração e dificultando que a guerra
galvanizasse o imaginário patriótico brasileiro.
Nos
anos 1930, a historiografia paraguaia autonomizou-se das narrativas
das nações vencedoras, relendo os sucessos em geral num sentido
patriótico-nacionalista. Na década de 60 e 70, narrativas
historiográficas de inspiração latino-americanista propuseram nova
ótica analítica.
Negócio
Genocida
Em
1968, León Pomer lançou na Argentina La guerra del
Paraguay: um gran negócio, e em 1979, Júlio José Chiavenato
publicou no Brasil Genocídio americano: a Guerra do
Paraguai. Esses trabalhos criticavam duramente a intervenção e
ação da Tríplice Aliança. [19]
Em
geral, esse revisionismo apresentou a guerra como ação imperialista
e genocida apoiada pelos ingleses e explicou a resistência paraguaia
a partir de pretenso caráter modernizador do Estado lopizta.
Destacou também a importância dos cativos libertados para lutarem
nas tropas brasileiras.
Apesar
dos importantes lapsos factuais e interpretativos, empreendia-se
tentativa de análise das formações sociais envolvidas na guerra e de
crítica geral da historiografia patriótico-imperialista.
Procurava-se narrar os acontecimentos desde a ótica das
populações envolvidas na guerra fratricida, e não das classes
dominantes.
Genocídio
americano:
a Guerra do Paraguai obteve
grande sucesso e influenciou o imaginário histórico brasileiro
porque galvanizou a difusa memória do rosário de horrores que fora a
guerra, até então semi-soterrado pelo discurso patriótico. O livro
constituiu posicionamento contra a ditadura militar, durante a qual
foi publicado.
A
queda do muro
Em
fins dos anos 1980, a vitória da contra-revolução liberal aprofundou
poderosamente a hegemonia mundial do capitalismo, ensejando
correspondente recuo das representações ideológico-culturais que se
apoiavam no mundo do trabalho e procuravam interpretar o passado a
partir de sua ótica.
No
campo historiográfico, decretou-se o fim da história como ciência e
da interpretação essencial do passado para compreensão e
transformação do presente. A história da “vida privada”, do
“imaginário”, do “singular”, do “exótico”, etc. recuou os esforços
analítico-interpretativos
sistemáticos do passado.
A
rejeição das “narrativas totalizantes” valorizou a proposta das
novas histórias política e cultural que terminou restaurando
as velhas interpretações idealistas e subjetivistas do
passado. A história voltou a ser lida prioritariamente como produto
da ação errática de protagonistas excelentes e os fenômenos sociais,
como produto de determinações
ideológico-culturais.
No
relativo à guerra contra o Paraguai, novas narrativas críticas do
revisionismo dos anos 1960-70, definido como autoritário, populista,
etc., empreenderam a restauração das grandes propostas
interpretativas nacional-patrióticas imperiais e republicanas.
Maldita
Guerra
O
livro Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai,
do historiador Francisco Doratioto, recentemente lançamento pela
Companhia das Letras, por sua qualidade, excelência e erudição,
constitui exemplo paradigmático do assinalado restauro
historiográfico.
Originalmente
tese de doutoramento, esse extenso trabalho – quase quinhentas páginas de
texto –, critica explicitamente o revisionismo paraguaio e
latino-americanistas, propondo realizar nova e mais
equilibrada leitura dos fatos. A grande intimidade do autor com o
tema e com a região do confronto explicita-se na valiosa revisão
bibliográfica e documental que apresenta, transformando seu estudo
em obra de referência sobre esse domínio
historiográfico.
Nos
anos 1960, a historiografia latino-americanista avançara o
conhecimento historiográfico ao ressaltar a necessidade da
elucidação do caráter das sociedades em luta, em geral, e do
Paraguai, em especial, mesmo se fracassara na resolução da equação
que propunha. Efetivamente, uma das singularidade do conflito foi
antepor três grandes nações – Argentina, Brasil e Paraguai –
organizadas a partir de formas de produção e de formações sociais
divergentes.
Nos
anos 1860, na Argentina imperava o trabalho livre, enquanto no
Brasil dominava a escravidão. Portanto, a Argentina e o Brasil eram
organizados por modos de produção díspares, apesar de igualmente
assentados nas trocas mercantis e na propriedade privada dos meios
de produção. No Paraguai, o Estado detinha grande parte da produção
e da propriedade. Francisco Doratioto lembra que o “Estado guarani”
era “dono” “de quase 90% do território nacional”, controlando
“praticamente” uns “80% do comércio interno e externo”.
[40]
Nação
Guarani
Mesmo
assim, o autor – que utiliza as locuções “país guarani” e “nação
guarani” como sinônimos de Paraguai –, jamais discute as
conseqüências dessa formação sócio-econômica singular para uma
população guarani com profundas raízes camponesas, comunitárias e
missioneiras. Nacionalidade que desbordava as fronteiras
paraguaias.
Francisco
Doratioto empreende minuciosa e elucidativa análise política,
diplomática e militar dos sucessos. Porém, não contextualiza as
sociedades em questão, procedendo verdadeira homogeneização
das formações sociais envolvidas no confronto.
Falta
de contextualização histórica que termina resultando por exemplo no
uso anacrônico de categorias como “povo”, “cidadão”, “opinião
pública”, etc. para a formação social escravista brasileira, na qual
grande parte da população encontrava-se total ou parcialmente, nos
fatos ou legalmente, à margem da
cidadania.
A
abordagem essencialmente política dos fenômenos impossibilita
explicação essencial da belicosidade paraguaia e letargia
brasileira, responsáveis pela perpetuação do conflito. O que
leva o autor a propor a tenacidade guarani como produto da
fanatização e controle policial. “Apesar dessa situação, quase não
havia deserções nas fileiras paraguaias, devido ao clima de terror
imposto por Solano López, que estendia a punição a familiares e
companheiros do desertor.” [290]
Marcialidade
servil
A
explicação da marcialidade como produto da fanatização e da ação
policial não se coaduna com uma nação com Estado, exército e meios
de comunicação rústicos e, portanto, propícios à deserção de
soldados tiranizados. Essas teses não explicam a rearticulação da
resistência por Solano López, nos sertões paraguaios, após ter
perdido a capital e o controle do aparelho estatal. Foram os
exércitos brasileiros, argentinos e uruguaios que conheceram
deserções ininterruptas e relevantes.
Francisco
Doratioto deduz a origem e a evolução do conflito da personalidade
de Solano López, sobre quem lança a responsabilidade total da
guerra. Isso, apesar de apresentar corretamente o confronto como
tendencialmente inevitável, devido à procura da nação guarani de
maior espaço regional e à negativa dos governos brasileiro e
argentino de concedê-lo.
A
personalização da história empreendida em Maldita guerra,
por Franciso Doratioro, resulta no elogio das
apologética das lideranças da Tríplice Aliança – Pedro II, Mitre,
Caxias, Osório, etc. –, e na diabolização de Solano López,
identificado a Hitler, ingênua personificação moderna da violência
social na história.
Doratioto
propõe como “identidade entre os dois ditadores” o fato de usarem
jovens e velhos em desesperada resistência que teria comprometido
seus países. A aproximação é anacrônica e esquece que foram os
objetivos e práticas que desqualificaram o nazismo, e não a
resistência inexorável, com jovens e velhos armados, utilizada
licitamente pela população soviética contra o avanço fascistas.
[409]
Negros
imprestáveis
Em
geral, a retórica desabonadora estende-se às elites, aos oficias e
aos soldados paraguaios, apresentados dedicados sistematicamente ao
massacre, ao estupro e ao roubo, ainda que se convenha que, em
certos momentos, os soldados aliados procedessem de igual
modo.
A
narrativa termina sugerindo ter constituído o conflito um choque
entre o Brasil, nação monárquica, constitucional e liberal, e o
Paraguai, Estado despótico, autocrático e atrasado, uma outra grande
tese apologética brasileira, antes, durante e após a guerra.
No
mesmo sentido, jamais se discute a possibilidade da inesperada
duração dos combates dever-se ao confronto desigual entre um
Estado escravista e uma nação de homens livres, desequilíbrio
superado apenas pela desproporção de recursos entre o Brasil e o
Paraguai.
A
importante determinação dos combates pela essência escravista do
Estado brasileiro, foi percebida por Caxias. O velho verdugo de
cativos referiu-se a essa realidade ao execrar a qualidade militar
dos libertos, “homens que não compreendem o que é pátria, sociedade
e família, que se consideram ainda escravos [...]”.
[274]
Servidão
e liberdade
Apreciação
compartida pelo coronel José Antonio Corrêa da Câmara, que explicou
o fracasso de assalto à posição paraguaia por “nossos soldados de
infantaria” serem “os negros mais infames deste mundo, que chegam a
ter medo até do inimigo que foge”. [275]
Esqueciam
os oficiais escravistas que os negros pusilânimes, no
Paraguai, sob a bandeira do Império, tinham sido os mais valorosos
soldados de Artigas, no Uruguai, sob a bandeira da luta pela
liberdade, décadas antes.
Não
enfrentando as questões estruturais subjacentes ao conflito, a
narrativa termina assumindo tom claramente nacional-patriótico, como
quando propõe que os verdadeiros heróis aliados seriam “os
[combatentes] que viveram” nas duras condições de Tuiuti, “durante
dois anos, sem desertar ou pretextar doença”.
[216]
Inaceitável
julgamento de valor sobre os atos dos milhares de soldados
brasileiros, argentinos e uruguaios que tiveram a sabedoria de
obedecer ao sábio preceito plebeu que, se “Deus é grande, o mato é
maior”, escafedendo-se de uma guerra das elites abominada pelas
populações dos subalternizadas.
Protagonistas
Ausentes
Restringido
à descrição a uma indiscutivelmente rica e valiosa narrativa
política, diplomática e militar dos fatos, explicando as suas
origens e dinâmicas a partir sobretudo da ação de protagonistas
ilustres, Maldita guerra: Nova história da Guerra do
Paraguai, de Francisco Doratioto, jamais se debruça efetivamente
sobre os grandes protagonistas dos acontecimentos
estudados.
Portanto,
permanece a necessidade de análise que explique o sentido e as
razões profundas da indiscutível adesão da população paraguaia a
Solano López, durante a ofensiva na Argentina e no Brasil e,
sobretudo, quando da defesa dos territórios nacionais guaranis
invadidos pelas tropas brasileiras e argentinas.
Em
lugar da explicação da ação das massas na história a partir da
intervenção de personagens providenciais, impõe-se o entendimento da
gênese de lideranças carismáticas, por mais exóticas, contraditória
e desalinhadas que sejam, como expressões, diretas ou oblíquas, de
forças e interesses sociais profundos.
A
análise estrutural das condições de vida, objetivos e aspirações das
classes populares e servis brasileiras, associada ao estudo da
realidade que conheceram sob a bandeira do Império, contribuirá para
que finalmente se revele, segredos que a guerra contra o Paraguai
teima em esconder.