Sumário
 
 
Tecnologias de imagem e políticas identitárias

Henrique Z.M Parra*

Resumo: A partir de um conjunto de imagens relacionadas à política, produzidas em diferentes suportes ( médium ), iremos problematizar algumas transformações nas tecnologias de comunicação e as persistências estéticas que “dão a ver” certas tensões presentes na política contemporânea. Interessa-nos analisar alguns mecanismos identitários, parcialmente in-formados pela condições culturais e tecno-políticas de produção e circulação dessas imagens, e que são partilhados tanto pelos poderes instituídos como por grupos considerados contra-hegemônicos.
Palavras Chave: imagem; política; estética; tecnologias de comunicação; internet .

Abstract: From a set of images related to politics, produced in different mediums, we will discuss some changes in communication technologies and persistences in aesthetics modes that shows certain tensions present in contemporary politics. We are interested in analyzing some identitary mechanisms, which are partly in-formed by cultural and tecno-political conditions of production and circulation of these images, and that are shared both by dominant political powers as counter-hegemonic groups.
Key Words: image; politics, aesthetics; technology of communication technologies; internet.

Imagem, mito e poder

Se nos séculos XVII e XVIII a imagem dos soberanos eram difundidas através de pinturas e gravuras, os líderes políticos do século XIX adentram um campo de visibilidade muito mais amplo graças às possibilidades de reprodução fotográfica da imagem. Já no século XX com os veículos de comunicação de massa, em especial a televisão, a imagem dos representantes políticos torna-se tão familiar quanto a de qualquer outro ator presente nos aparelhos domésticos. Hoje, graças à proliferação das tecnologias digitais de comunicação e às mudanças estético-políticas do regime de visibilidade, vive-se uma situação em que os representantes políticos ocupam um espaço de ampla visibilidade em “tempo real”, ao mesmo tempo em que surgem novas áreas de invisibilidade sobre o exercício do poder, as formas e os mecanismos de dominação. Simultaneamente, diante de todas essas transformações nas condições de comunicação, e sobretudo face à diversificação dos mecanismos (culturais, sociais e políticos) de produção identitária (nacional, étnica-racial), pode-se observar alguns elementos visuais que persistem atuando como mobilizadores de um imaginário da “Unidade” do corpo político. Ora, parte da história da constituição de uma esfera política deve-se justamente ao conflito pela determinação do que entra ou não na composição do universo visível e enunciável de uma determinada comunidade política.

 

Il. 1: À esquerda detalhe da ilustração do Leviatã, e à direita cartaz de propagando política de Mussolini.

Il. 2: Fotomontagem realizada com retratos de diversos cidadãos engajados na campanha presidencial. A autora, Anne Savage, chamou este mosaico de Out of Many, We are One. Fonte: http://www.time.com/ time/photogallery/0,29307,1866936_1815467,00.html

 

A observação de uma imagem frequentemente mobiliza outros elementos (sentidos, percepções e pensamentos) que não estão imediatamente “presentes” na imagem. Como analisado por Milton Almeida, uma “imagem sensível” é capaz de dar forma, cheiro, textura a algo que é desprovido de imagem 1. Em certas situações ela pode se tornar uma “imagem agente” capaz de ativar elementos externos à imagem e fazê-los ressoar no imaginário. Quando isso ocorre, a imagem conduz o entendimento para os outras dimensões subjetivas, onde aquela imagem é atualizada a partir do encontro com a própria experiência do sujeito, com elementos culturais, mitológicos, emocionais, entre outros. É lá que a imagem ganha outros sentidos e significações e se torna um importante ordenador do pensamento e da memória.

Nos episódios que se seguiram ao 11 de Setembro de 2001 (poderíamos tomá-lo como um índice imagético de transição epocal), presenciamos diversas expressões audiovisuais que se apoiavam neste transbordamento sensível-simbólico das imagens. Nos pronunciamentos das lideranças políticas dos EUA e nas imagens televisivas do atentado, por exemplo, exercitou-se uma retórica que dividiu o mundo em dois grandes blocos: os aliados dos EUA na luta contra o terror e todos os demais reduzidos a terroristas ou seus apoiadores. Nas palavras de Bush Jr.: “ Ou você está conosco, ou você está com os terroristas 2.

Este modelo de partição do planeta atualizou certos mecanismos identitários característicos da “ forma-Estado” : por exemplo, o ressurgimento das dicotomias Nação versus Bandos, Razão versus Crenças, Cidadãos versus Terroristas. A forma-Estado , segundo Deleuze e Guattari, " tem uma tendência a reproduzir-se idêntica a si através de suas variações ", ou seja, criando aparelhos identitários em outros níveis e camadas, permeando todo o tecido social e as subjetividades (Deleuze & Guattari, 2005, p. 24). Trata-se de uma imagem do pensamento que se caracteriza pela classificação do mundo social em torno de identidades relativamente unitárias e essencialistas. Esta dinâmica, na visão de alguns críticos, procura ratificar um modelo de identidade que é, por outro lado, cada vez mais sufocante para o desenvolvimento livre das subjetividades. É como se o Estado insistisse na imposição de uma articulação identitária do Eu, ao contrário de permitir, para cada sujeito a existência de constelações identitárias (Blisset, 2001:68).

Simultaneamente, este processo desenvolve-se junto à produção dividual 3 (perfis gerados sobre características potenciais), em torno de padrões de comportamentos estabelecidos pela análise das informações produzidas no interior das redes de comunicação digital. Enquanto o espaço virtual tem permitido uma profunda diversificação no plano da experimentação subjetiva e nas relações sociais que emergem a partir de situações de flexibilidade identitária, os esforços de regulação do espaço cibernético sob a égide da segurança, têm procurado estabilizar e fundir novamente as noções de sujeito-identidade-organismo biológico. Tal conflito se manifesta, por exemplo, na base das discussões sobre a governança global da internet e dos respectivos mecanismos de controle e identificação dos usuários.

Mas, no que diz respeito às formas de representação das lideranças políticas contemporâneas, o que nos interessa problematizar é o desencontro, cada vez maior, entre a manifestação visual de uma única pessoa como encarnação do poder político e, de outra lado, a inexistência de uma efetiva centralidade e autonomia do poder decisório. Em outras palavras, ao mesmo tempo que o presidente de um país é cada vez menos soberano sobre suas decisões, ele segue sendo apresentado como a corporificação do poder soberano, como que a confirmar a legitimidade que lhe é conferida através dos sistemas de representação política. Curiosamente, os modos de representação daqueles que interrogam ou protestam contra as forças políticas dominantes, partilham desta mesmo problema.

Il. 3: Subcomandante Marcos versão Pop. Fonte: www.submarcos.org

 

Ora, o problema não é discutir se essas imagens são portadoras de uma "mentira" ou se elas estão apenas atualizando um mito ancestral. Como diria Luther Blisset, o problema é que a sobrevivência de um mito para além das formas históricas das necessidades e aspirações que ele ordena e dirige, leva a um enrijecimento do imaginário social, cristalizando uma imagem como poder constituído. Transforma assim um mito fundador de uma comunidade fictícia no próprio poder que a imagem busca construir e representar (Blisset, 2001:60). Diante disso, o desafio lançado pelo autor não é alcançar a destruição dos mitos, mas sim " manter o imaginário em moto-contínuo, não deixá-lo coagular, saber quando e como o mito deve ser desmembrado, reelaborado ou abandonado totalmente, antes que a pluralidade de imagens volte a ser um “absoluto unitário ” (Blisset, 2001:61).

 

Poder e formas de captura

Problemas semelhantes também podem ser encontrados em algumas produções audiovisuais consideradas “contra-hegemônicas”. Examinaremos agora algumas imagens produzidas sobre o presidente venezuelano Hugo Chávez Frias, no contexto específico de um documentário. Conhecido por seu carisma e pela sua habilidade retórica, este político ainda procura mobilizar, tanto discursivamente quanto imageticamente, uma terceira forma de legitimação para o seu governo. Esta última, que nos termos weberianos se aproximaria da dominação tradicional, irá se apoiar na construção de um passado, reivindicando uma memória ancestral baseada na mitologia ameríndia e nas lutas da libertação colonial. O exemplo mais evidente desta produção é sua constante referência a personagens históricos que já ascenderam ao terreno mítico, como Símon Bolívar e Che Guevara.

Em 2002, logo após o golpe fracassado da oposição que seqüestrou Hugo Chávez e tomou o poder por cerca de 48 horas, foi lançado um documentário intitulado " The revolution will not be televised ", uma co-produção de 2002 da Power Pictures editada por Angel H. Zoido e produzida por David Power 4. Neste filme, uma equipe de jornalistas ingleses está fazendo um longo documentário sobre o Governo Chávez, acompanhando de perto a rotina do presidente em diferentes situações e fazendo longas entrevistas com o mesmo. Não sabemos se por acaso, mas esta equipe acabou permanecendo dentro do Palácio Presidencial Miraflores durante as 48 horas que duraram o golpe. Neste período a equipe registrou diversas cenas dos bastidores, inclusive os momentos de negociação para a renúncia de Chávez, o evento em que os golpistas assumem o poder e depois quando foram depostos e presos no contra-golpe. Seguindo a forma de um thriller político, a história relata os momentos de tensão vividos pela equipe de jornalistas durante as ameaças de bombardeio do Palácio durante toda a noite, enquanto seguiam as negociações que culminaram com o sequestro de Chávez.

Há diversas seqüências neste filme que tocam nos problemas tratados por este texto. Escolhemos uma em particular, onde Chávez é entrevistado no interior do Palácio Miraflores. A seqüência se inicia com algumas imagens noturnas do exterior do Palácio, em seguida a câmera passa a mostrar o seu interior, com destaque para algumas esculturas que ocupam as varandas e o jardim interno.

 

Il. 4: Fotogramas do filme The Revolution will not be televised. Seqüência de abertura da entrevista no Palácio Miraflores.

 

A escuridão e o silêncio, além da tranqüilidade, nos dão a impressão de que já é tarde da noite. As esculturas e a arquitetura interna do Palácio nos remetem a um ambiente de inspiração clássica. Essas imagens conduzem nossa imaginação para o que virá em seguida. Elas já manifestam uma educação visual em curso, ativando nossas memórias acerca de outros palácios, outros reinos e impérios. Em seguida, adentramos a sala de trabalho de Chávez. Ele está sentado e fala calmamente com os repórteres que não podemos ver.

 

Il. 5: Fotogramas do filme The Revolution will not be televised . Seqüência da entrevista com Chávez.

 

Ele conta a história de seu avô, relatando de maneira poética a maneira como ele lutava por valores familiares, pela honra e por justiça, e como mais tarde se juntou ao grupo revolucionário de Bolívar que lutava pela criação de uma república. Sua história começa em algum momento de um passado distante. As datas não são precisas, era "por volta de 1890". Sua caminhada na mata é revestida de imagens do campo e das condições difíceis da natureza. Há névoa, há chuva, há madrugadas e frio em seu relato. Enquanto narra somos arrastados tanto pelas imagens do seu discurso como pelas imagens que são introduzidas pela câmera do cinegrafista, que busca outros elementos presentes na sala enquanto a fala de Chávez corre em off .

As imagens (Il.6) não são acidentais e na maneira como se articulam ao som cumprem um percurso "pedagógico" que nos informam das vinculações, das heranças do passado e da formação ético-moral daquele que fala. Em uma das imagens temos dois livros: a Bíblia e meio lateralmente o Manual do Guerreiro. Em várias outras temos uma pintura e uma escultura de Bolívar, sendo que em uma delas, graças ao ângulo da tomada, temos a impressão que Bolívar está numa posição superior e olha para Chávez que está diretamente abaixo e à sua direita (esquerda do monitor). Numa outra imagem vemos um globo terrestre com cores que nos dão a sensação de antiguidade, evocando diversos sentidos ligados ao conhecimento, à viagem, à exploração e à conquista.

Il. 6: Fotogramas do filme The Revolution will not be televised . Seqüência da entrevista com Chávez.

 

Pode-se dizer que esta seqüência nos apresenta um interessante exercício de construção histórica e atualização de um imaginário. Temos diversos elementos de origem mítica, religiosa, guerreira e familiar que se combinam na formação de um novo herói que cumpre um designo maior que sua própria vida. Para isso, no entanto, é necessário reivindicar uma genealogia com determinados elementos do passado e lhes conferir força mítica, para que possam, no presente, arregimentar novas potências.

Tal procedimento, no entanto, não pode ocorrer sem a produção de uma identidade que coincida com aquela do mito narrado. Esta articulação, no entanto, expressa indiretamente as limitações desta configuração quando transposta ao cenário político mais amplo. Na medida em que Chávez se torna o representante da luta contra o "mal" e as "injustiças" - que no caso venezuelano correspondem ao chamado "capitalismo internacional", ao "Império Norte-Americano", entre outros - ele coloca em movimento um ordenamento sensível do mundo marcado pela produção de identidades rígidas e dicotômicas. Um bom exemplo disso é a divisão da sociedade venezuelana entre “chavistas” e os “esquálidos”.

Identificado ao herói que luta contra os poderes hegemônicos, torna-se o “resistente”. A situação é análoga àquela descrita por Luther Blisset: " quando sua obsessão tiver eliminado todas as ameaças, será obrigado a assumir todas as posturas do poder, para permanecer na sua condição. É essa a razão pela qual muitos heróis populares do nosso século, muito guerrilheiros, transformaram-se em tiranos sem piedade (Blisset, 2001:48). O impulso de preservação converte-se em “paranóia”, situação extrema de literalização ou de redução interpretativa, traduzindo a diversidade dos processos sociais a um sentido único (Hillman, 1994).

 

Guerrilha imagética no ciberespaço

O surgimento e a proliferação dos meios de comunicação digital modificam substancialmente a paisagem anteriormente consolidada pelos meios de comunicação de massa, uma vez que multiplicam as possibilidades de captura, produção e disseminação imagética. No entanto, a diversidade de usos e apropriação dessas novas tecnologias não geram, obrigatoriamente, uma mudança radical nas linguagens adotadas e nas formas culturais em circulação. Ainda que hajam muitas modificações culturais ocorrendo na/e através das redes digitais, parte das dinâmicas comunicacionais "tradicionais" seguem in-formando uma parcela das produções (conteúdos) no ciberespaço. Sem entrar nos aspectos da concentração da infra-estrutura tecnológica (sistema lógico e físico que permite a conexão à rede) e nas questões relativas à governança global da internet (que impactam diretamente no controle e nos padrões de fluxos informacionais), destacaríamos, como exemplo de persistência de um certo diagrama comunicacional, a força de concentração de alguns portais de notícias e entretenimento e a forma de acesso de parte dos internautas que fazem um uso mais “passivo” da internet. Para esses, numa certa medida, há uma relativa reprodução das formas de comunicação que caracterizaram os meios de comunicação de massa, só que agora de acesso individualizado e mediado pelo personal computer .

Se, potencialmente, a internet pode oferecer um espaço de navegação aberto e diversificado, por outro lado, há permanentemente uma tensão pelo estabelecimento de uma outra topografia (com novas centralidades) que permita o acúmulo de "vantagens" competitivas a determinados atores da rede. Por hora, ainda que essas tensões pelo controle dos fluxos e pelo estabelecimento de hierarquias e novas centralidades na rede sejam crescentes, inúmeras experiências inovadoras acontecem sobretudo nas extremidades, onde a trama da rede não é tão densa e determinada, havendo ainda muitas possibilidades para a livre criação.

Voltamo-nos agora para outro exemplo de produção imagética envolvendo uma situação extrema de conflito político. Nosso interesse por esta temática deve-se ao fato de que elas estão na "ponta de lança" de fenômenos que estão provocando o tensionamento tecno-político das discussões sobre a governança global da internet e, além disso, impactam diretamente sobre a nossa sensibilidade imagética.

A invasão do Afeganistão em 2001 e posteriormente o Iraque em 2004, radicalizaram a nossa experiência visual quando transmitiam simultaneamente as imagens geradas sobre os ataques. Já antes, a Guerra do Golfo em 1991 ficara conhecida como a primeira guerra complemente televisionada "ao vivo", permitindo o ensaio do que seriam as novas estratégias de fusão da maquinaria militar com os meios de comunicação de massa, criando novas possibilidades de agenciamento das subjetividades expostas àquele novo regime de visibilidade. Nessas últimas invasões (Afeganistão e Iraque) são introduzidas mudanças fundamentais que permitiram um aprofundamento daquela experiência visual iniciada na Guerra do Golfo e também um tensionamento dos seus limites, revelando que nenhum sistema de comunicação pode ser integralmente controlado.

O interessante nos casos a seguir é que apesar deles só terem se tornado possíveis graças às tecnologias digitais de comunicação em rede, eles só provocaram um grande impacto porque colocaram em questão o sistema de conhecimentos e o regime de visibilidade estabelecido pelos meios de comunicação de massa dominantes. Para isso funcionar tiveram que atuar dentro do mesmo "código".

Um dos casos que ficou mundialmente conhecido foi aquele provocado pelas fotografias realizadas e difundidas pelos soldados americanos em que eles são mostrados se divertindo ao torturar prisioneiros na prisão de Abu Ghraib em Bagdá. Essas fotos acabaram sendo publicadas na internet e disseminadas para todo o planeta. Como essas, há uma infinidade de fotografias e vídeos produzidos tanto pelos soldados americanos como por civis iraquianos que registram o dia-a-dia da invasão. Nunca pudemos acompanhar à distância – e como presença na qualidade de participante do conflito, mas a salvo do confronto - com tamanha intensidade visual situações como essas, e talvez por isso ainda seja prematuro avaliar o seu impacto sobre a nossa imaginação e percepção.

Para além de mostrar situações de extrema violação humana dos prisioneiros, revelando também a brutalidade e a desumanização dos soldados, as imagens nos chocam porque elas são capazes de atualizar algo que está na origem da fotografia: o “isto foi” (Barthes, 1984). Fomos educados a receber este tipo de imagem com todo o seu valor documental, com sua presença indicial que nos informa que, em alguma medida, aquilo que é mostrado na imagem “aconteceu”. Esta "certeza", no entanto, só é garantida por outros apoios de "realidade" (o retrato, a identificação dos sujeitos, a localização dos prisioneiros e dos soldados) que irão conferir "autenticidade" aquelas imagens. Em seguida, quando são disseminadas pelos meios de comunicação de massa e comentadas por especialistas, recebem uma outra camada de legitimidade conferida por instituições reconhecidas em determinadas áreas do conhecimento.

Dessa forma, se por um lado essas fotografias só foram possíveis e só "aconteceram" publicamente graças à relativa descentralização das condições de produção e disseminação de conteúdos na internet, sua potência reside no fato de conseguir se apropriar do regime imagético dominante para questionar a veracidade das informações que são comumente disseminadas. Assim, ao mesmo tempo que se apóia no regime dominante de "verdade", esse tipo de experiência acaba interrogando o seu monopólio na divulgação, mas não a “forma de conhecer”, que persiste apoiada na leitura da imagem como índice do que está fora dela, como a verossimilhança do “real” visual.

Um outro exemplo que podemos examinar é um caso de "guerrilha midiática" que começou a circular pela internet a partir de 2006. Trata-se de uma série de vídeos produzidos por franco-atiradores que se apresentam como membros da resistência iraquiana contra as forças de ocupação. As imagens do vídeo mostram uma série de ações deste atirador que filma o seus ataques. Não é possível afirmar se a pessoa que registra é a mesma que atira, se todos os vídeos foram produzidos pelo mesmo atirador ou se são diversos atiradores que passaram a adotar a mesma tática. Para complicar a situação autoral, com o passar do tempo, o(s) franco(s) atirador(es) ganhou um apelido dos soldados americanos: “Juba” 5.

 

Il. 7: Fotogramas do filme Juba.

 

Nos videos podemos ver o soldado que fica sob a mira do atirador durante alguns minutos antes de ser finalmente atingido pelo disparo. Há uma profunda sensação de vulnerabilidade individual provocada por esses vídeos e por isso podemos imaginar que o seu impacto no público americano face às propagandas de recrutamento promovidas pelos militares, as quais enfatizam a segurança, a força e a aventura de ser um soldado do exército americano como motivos para o engajamento de novos recrutas 7.

Nesta caso, a relação de base estabelecida por Virilio entre as táticas militares, o aperfeiçoamento e a aceleração das possibilidades de visualização através de aparatos tecnológicos, manifesta-se de forma acabada. No entanto, da mesma maneira que no exemplo anterior, há um "desvio" de uso dessas tecnologias graças à uma margem de indeterminação de função dos objetos técnicos. Esta abertura é tributária, em parte, do próprio campo de forças sociais dentro do qual aquela tecnologia foi produzida, e das condições de uso técnico-político imaginadas dentro de uma determinada conjuntura. Assim, ao mesmo tempo que no seu início a internet fora concebida para possibilitar condições de comunicação descentralizada de uso militar, quando ela adentra o campo civil e se universaliza ela é passível de ser utilizada exatamente para atacar o que estava em sua origem. Neste exemplo, a câmera de vídeo foi usada para amplificar o medo e, no limite, para matar.

Ao mesmo tempo, tais eventos atualizam no ciberespaço os mecanismos de espetacularização (Debord, 2005). Porém, aquele "desvio" a que nos referimos acima, difere do "desvio" proposto pelos situacionistas como estratégia de intervenção na medida em ele se deu apenas do ponto de vista da intencionalidade do vídeo e de sua circulação, e não na subversão da técnica e da linguagem. Se tomarmos o argumento de Vilém Flusser (2002), poderíamos dizer que todos os aparelhos envolvidos na produção desta ação de guerrilha midiática "funcionaram", ou seja, operaram segundo o seu "programa": a câmera registrou a imagem, o rifle disparou precisamente, a internet colocou em circulação de maneira distribuída as imagens do atentado.

Assim, esta ação "guerrilheira" permanece em parte prisioneira dos mecanismos do espetáculo: a morte ao "vivo" de um soldado torna-se a apresentação da morte genérica; a câmera que faz coincidir o ponto de vista do observador com a mira do rifle radicaliza a nossa condição de espectador; a força da imagem apóia-se num campo de incomunicabilidade (a morte do outro), mantendo assim todos os sujeitos que fazem parte deste acontecimento midiático em seus devidos lugares: o atirador, a vítima e o espectador (Debord, 2005; Pinto, 2005).

Este vídeo possui ainda uma outra dimensão que nos levará de volta ao início deste artigo. Como relatado em algumas reportagens de correspondentes internacionais, os vídeos do "Juba" viraram um sucesso nas ” lan houses” iraquianas . Os jornalistas descrevem que frequentemente os jovens se reuniam diante do monitor para verem as imagens produzidas. O mistério em torno das condições de produção dos vídeos somado à identificação estabelecida com o franco-atirador que “sozinho” enfrenta as forças de ocupação, fez de "Juba" um mito urbano. Dessa forma, sua condição de anônimo como um herói não-identificado, tornou Juba um ser "múltiplo", ampliando sua potência simbólica.

Portanto, ao atualizar uma estrutura mitológica, inspirada na imagem do guerreiro solitário que enfrenta o gigante, as imagens da guerrilha ganham um nova vida para além das telas, ordenando o universo anterior de imagens dissonantes (os relatos locais, as imagens das redes internacionais de televisão) em um outro mundo, conforme um sistema pré-estabelecido de localizações-identificações (mal soldado X bom combatente). Sua força local reside, portanto, num mito diretor que " exerce uma pressão pedagógica, difundindo as imagens catalisadoras, os esquemas verbais e perceptuais, em suas variantes ideológicas, filosóficas e morais deste mesmo mito em suas várias instâncias sociais (Ferreira Santos, 2004:24).

Finalmente, há um "choque" provocado por essas experiências visuais, graças ao absurdo daquilo que está, num primeiro momento, para além da nossa imaginação. Dessa forma, o choque pode inclusive alterar as condições de nossa percepção e não seria exagero afirmar que com a ampla circulação de todo o tipo de imagens através da internet estamos diante de uma nova educação político-visual em curso, proporcionando inclusive um novo treinamento cognitivo exigido pelas novas condições de visualização.

Dizemos isso, quando pensamos nas novas habilidades cognitivas que estão sendo exigidas para lidarmos com uma quantidade crescente de imagens exibidas em velocidade cada vez maior em diversos tipos de suportes. Não é coincidência que a indústria de desenvolvimento de simuladores militares sejam muitas vezes as mesmas que irão desenvolver os novos jogos de simulação de realidade virtual (Manovith, 1995). Do ponto de vista econômico, o mercado de jogos é um dos mais promissores na indústria de software, sendo também um dos propulsores dos investimentos para ampliação da capacidade de processamento dos hardwares .

Neste sentido, aquelas imagens da resistência islâmica cumprem o designo de reduzir nossa imaginação à percepção imediata de um regime de “mostração”, tal qual a forma documental e jornalística consolidadas na televisão. Ora, o que temos aqui, e a reflexão poderia se estender a um conjunto de outras produções que se identificam como "independentes" e "contra-hegemônicas", é que os mecanismos de atualização daquela "geometrização do olhar" correspondem também à afirmação de um certo regime de verdade. A câmera muda de posição e com ela alteram-se as versões. No entanto, o sistema de apresentação imagético acaba atualizando, apenas com o sinal contrário, aquilo que ele mesmo pretendia questionar. Na medida em que tudo permanece no mesmo lugar, não há reconfiguração do espaço sensível, não há Política, apenas "polícia" da visão (para usar os termos de Ranciére). Trata-se, nos casos analisados, de uma disputa e de um tensionamento pela gestão e pelo controle dos fatos, e não de uma transformação dos próprios mecanismos identitários e de produção do "real" e do "verdadeiro".

 

Notas

* Graduado em Ciências Sociais (USP), Mestre em Sociologia (USP) e Doutor em Educação (UNICAMP) é atualmente Professor Adjunto do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo. Desenvolve investigação sobre as dinâmicas de produção/gestão de conhecimentos através do uso de tecnologias digitais de comunicação e seus impactos sociais e políticos. Destaque para a relação homem-máquina; para as configurações sócio-políticas da tecnologia; e para a relação entre modos de organização social, economia e conhecimento. Contato: henrique.parra@unifesp.br ou polart@riseup.net

1 Recorro às anotações de aula do curso do Milton Almeida na Faculdade de Educação, UNICAMP, 2005.

2 Nos links abaixo disponibilizamos trechos de videos com algumas dessas citações:
(1) http://xama.incubadora.fapesp.br/portal/projeto-tese/videos/edicao-4ww-bush-guerra.ogg/view
(2) http://xama.incubadora.fapesp.br/portal/projeto-tese/videos/edicao-4ww-tipo-guerra.ogg/view

3 Segundo Deleuze nas sociedades de controle os indivíduos tornam-se divisíveis, modulados (Deleuze, 2007).

4 A Power Pictures Production contou com o apoio de diferentes grupos de mídia europeus: The Irish Film Board, BBC, RTE, COBO, 2DF, ARTE, NPS, Yle Teema. Além da sua exibição em programas de televisão, o filme parece ter alcançado um grande público (difícil de quantificar) a partir das redes de distribuição e compartilhamento de arquivos na internet.

5 Atualmente, o Exército Islâmico é quem reivindica a autoria dos atentados e dos videos. Outras informações podem ser encontradas nos sites “oficiais” dedicados a Juba: http://juba-online.blogspot.com/ , http://www.baghdadsniper.net/en/index.htm

6 Neste link disponibilizamos alguns trechos dessas propagandas militares, retirados do documentário The Oil Factor : http://xama.incubadora.fapesp.br/portal/projeto-tese/videos/edicao-oil-factor-navy-propaganda.ogg/view

7 Fonte: http://baghdadtreasure.blogspot.com/2006/01/juba-baghdad-sniper.html

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