Sumário
 
 
Le criminel fin-de-siècle: psiquiatrização da anarquia no século XIX

Nildo Avelino*

Resumo: A partir da Conferência Internacional pela Defesa Social contra os Anarquistas de 1898, este artigo descreve o impasse judiciário do Direito Penal na definição do crime de anarquismo no fim do século XIX. Através desse impasse, a psiquiatria e a antropologia criminal irrompem no interior do Direito Penal exercendo influência decisiva na configuração da escola de Defesa Social responsável por conferir ao problema repressivo um novo ângulo.
Palavras-chaves: anarquismo, violência, crime, defesa social.

Abstract: From the International Conference for the Social Defense against the Anarchists in 1898, this paper describes the legal impasse of the Criminal Law to define the crime of anarchism in late XIX century. Through this impasse, the psychiatry and the criminal anthropology erupt within the Criminal Law exerting influence in shaping the school of Social Defense responsible for putting the problem of repression a new angle.
Keywords: anarchism, violence, crime, social defense.

 

Um importante acontecimento marcou a história das relações internacionais entre os Estados europeus na luta contra o anarquismo: a Conferência Internacional pela Defesa Social contra os Anarquistas, ocorrida em novembro de 1898. A pós a morte da Imperatriz Elisabeth da Áustria, assassinada em Genebra em 1898 pelo anarquista Luigi Lucheni, e do presidente americano McKinley, assassinado na cidade de Buffalo em 1901 pelo anarquista polaco Leon Czolgosz, os jornais alemães noticiavam alarmados que “a sociedade dança sobre um vulcão e um número verdadeiramente insignificante de fanáticos sem escrúpulos aterroriza toda a raça humana... O perigo para todos os países é enorme e urgente” ( apud JENSEN, 2004:117). Alguns anos mais tarde o presidente Theodore Roosevelt, sucessor de Mckinley, declara que “comparada à supressão da anarquia, toda outra questão mostra-se insignificante” (Id.).

É neste contexto que o primeiro ministro italiano Luigi Pelloux comunicava ao ministro da justiça, em setembro de 1898, informações “sobre um vasto complô para atentar contra a vida de todos os chefes de Estado, em particular do Rei da Itália”, e recomendava a necessidade de “combater mais energicamente as associações contrárias à ordem do Estado” (MANTOVANI, 1988:116). Nesse intuito, o governo italiano, pela iniciativa do ministro do exterior Napoleone Canevaro, convidou outros países europeus a participarem de uma conferência anti-anarquista, promovida para assegurar um sistema repressivo em escala internacional. Até a metade do mês de outubro, a maior parte dos países da Europa havia confirmado participação. E a abertura da “Conferência Internacional pela defesa Social contra os Anarquistas”, mais conhecida como Conferência Anti-Anarquista, ocorre no dia 24 de novembro de 1898 com a presença de 54 delegações representando 21 nações européias: Alemanha, Império Austro-Húngaro, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, França, Inglaterra, Grécia, Itália, Luxemburgo, Mônaco, Monte Negro, Países Baixos, Portugal, Romênia, Rússia, Sérvia, Suécia, Noruega, Suíça e Turquia. “Foram também convidados os chefes da polícia nacional da Rússia, França, Bélgica, e os chefes da polícia municipal de Berlim, Viena e Estocolmo” (Ibid., p. 123).

A adesão da maioria das nações européias à conferência anti-anarquista denota a importância de um acontecimento que coroou vinte e cinco anos de campanhas anti-anarquistas conduzidas, em maior ou menor grau, por todos os regimes políticos da Europa. “No período anterior à Grande Guerra, os governos europeus, inicialmente num plano nacional, mas depois internacional, empenharam-se para forjar armas que pudessem controlar e suprimir o que na época foi percebido como o mais feroz e intratável inimigo social, o terrorismo anarquista” (JENSEN, 1981:323) 1. Entretanto, os esforços repressivos orquestrados pelos governos da Europa produziam, freqüentemente, um excesso de repressão cujo efeito resultava em descontentamentos exacerbados e provocava novas ondas de violência. Neste sentido, existia um esforço em estabelecer contra o anarquismo medidas que não fossem meramente repressivas. Foram três as medidas que a conferência adotou com unanimidade: 1) caberia a cada nação ter sob controle os próprios anarquistas; 2) o estabelecimento de um comitê central para esse fim; e, 3) a promoção de trocas de informações entre as várias agências centrais (Ibid.:331). Além disso, durante a realização da conferência, reuniu-se diversas vezes um comitê secreto dos chefes de polícia. “Sir Howard Vicent, um dos representantes ingleses na conferência e ex-diretor de investigações criminais da Scotland Yard, admitiu que um dos maiores resultados obtidos desses encontros foi o acordo por parte das forças de polícia de diversos Estados da Europa central para a troca mensal de listas das expulsões, contendo nomes e a razão da expulsão” (Ibid., p. 332).

Com relação à extradição, a conferência acordou a proposta dos alemães de não considerar os crimes anarquistas como políticos para finalidade de extradição; todavia, estariam sujeitos à extradição os variados atos violentos tipicamente anarquistas, como a fabricação de bombas etc. Os conferencistas fizeram uso da famosa cláusula belga do attentat , criada em 1856, após o atentado sem sucesso contra Napoleão III. A cláusula dispunha que não seria “reputado crime político, nem fato conexo a semelhante crime, o atentado contra a pessoa do chefe de governo estrangeiro ou contra um membro de sua família, quando este atentado constitua fato de morte, assassinato ou envenenamento”. Após a conferência de Roma, o conteúdo da cláusula ganha validade universal. No Brasil, Getúlio Vargas reproduziu-o no art. 2º, §2º do Decreto-lei nº 394 de 28 de abril de 1938. Hoje, ele encontra-se reproduzido ipsis verbis no artigo 77, §3º do atual Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815 de 19 de agosto de 1980. 2

A conferência estabeleceu como sistema de identificação eficaz o chamado portait parlé (retrato falado), para ser utilizado de maneira uniforme em todos os países. Tratava-se do refinamento do velho método de identificação antropométrico, também conhecido como bertillonage , criado pelo oficial da polícia francesa Alphonse Bertillon, que consistia na classificação das medidas de várias partes da cabeça e do corpo, cor dos cabelos, dos olhos, da pele, presença de cicatrizes e tatuagens etc. Já o retrato falado foi um sistema “especialmente usado na apreensão de criminosos, funcionando com uma margem que vai de muitas até uma única peça vital de informação para a identificação positiva de suspeitos, e que poderiam ser transmitidas por telefone ou telégrafo” (Ibid.:332-333).

Entretanto, a herança mais significativa da conferência anti-anarquista de Roma foi, como sugere Jensen, a organização de uma instituição singular: o International Criminal Police Organization , Interpol. “Ao promover o uso de modernas técnicas de polícia, o congresso anti-anarquista encorajou a cooperação policial internacional” (Ibid., p. 334). Passados apenas três anos da conferência de Roma, após o assassinato do presidente americano McKinley, aumenta na Europa os esforços diplomáticos para incrementar a cooperação policial internacional. A Rússia toma a iniciativa, solicitando com insistência a retomada do programa da conferência de Roma e despacha, juntamente com a Alemanha, um memorando para os governos da Europa e dos Estados Unidos. Em 14 de março de 1904, dez países assinam um protocolo secreto em São Petersburgo que, retomando sumariamente a pauta de 1898, procurou “especificar procedimentos de expulsão, convocar para a criação de escritórios centrais anti-anarquistas em cada país e, no geral, regularizar a comunicação inter-policial” (Ibid.:337). Os países que assinaram o Protocolo de São Petersburgo foram Alemanha, Império Austro-Húngaro, Dinamarca, Suécia e Noruega, Rússia, Romênia, Sérvia, Bulgária e Turquia. Assim,

  a Conferência de Roma e o acordo de São Petersburgo são precedentes significativos para qualquer posterior organização de polícia internacional. Pode até mesmo ser afirmado que o conclave de 1898 foi o indício do primeiro esforço na recente história da Europa para promover, oficialmente, uma ampla comunicação policial internacional e troca de informações. As medidas estipuladas pelos protocolos de Roma e São Petersburgo foram os precursores de muito do que é hoje a organização da polícia em rede mundial, Interpol (Ibid.:338).

 

Incapacidade judiciária e antropologia criminal

A conferência anti-anarquista de Roma produziu efeitos amplos e duradouros de poder que, entretanto, foram freqüentemente tidos como nulos em razão do quase absoluto desacordo entre seus participantes; desacordo decorrente das enormes diferenças entre os países em matéria de legislação criminal. Para Vené (1973:152), o verdadeiro problema da conferência foi constituído por um pacto de extradição para suspeitos de anarquismo. Assim, excetuando a constituição de um aparato policial e repressivo em plano internacional, a conferência encerra-se sem tomar outro acordo substancialmente político. Daí, segundo Vené, seu insucesso. Além disso, o êxito em âmbito exclusivamente repressivo e o fracasso político da conferência foram atribuídos à incapacidade de estabelecer uma definição jurídico-legal do ato anarquista. É o que se verifica na discussão em torno do programa da conferência organizado nos seguintes temas:

  1º - Estabelecer os dados que de fato caracterizem o ato anárquico, seja no que concerne ao indivíduo, seja no que concerne à sua obra; 2º - Sugerir, em matéria de legislação e de polícia, os meios mais adequados para reprimir a obra e a propaganda anárquica, sempre respeitando, bem entendido, a autonomia legislativa e administrativa de cada Estado; 3º - Consagrar o princípio que todo ato anárquico, tendo os caracteres jurídicos de um delito, deve, como tal, e quaisquer que sejam os motivos e a forma, ser enquadrado nos efeitos úteis dos tratados de extradição; 4º - Consagrar o duplo princípio de que cada Estado tem o direito e o dever de expulsar os anarquistas estrangeiros, encaminhando-os, observando as regras uniformes, à vigilância e eventualmente à justiça do Estado a que pertencem; 5º - Estipular por engajamento mútuo a defesa de toda circulação de impressos anarquistas, bem como de toda publicidade apta, com ou sem intenção, a favorecer a propaganda anárquica (MANTOVANI, 1988:124-125).

Ao colocar em primeiro lugar o problema de estabelecer uma definição jurídico-legal do ato anarquista, o programa ressalta aquilo que constituiu uma tarefa urgente. E tratava-se de um problema fundamental, na medida em que nenhum parlamento ou corte da Europa havia definido claramente a questão. Assim, o Advogado Geral da corte de Mônaco, Hector de Rolland, propôs uma definição do “ato anarquista” descrevendo-o como “a ação que tem por objetivo a destruição através de meios violentos de toda organização social. Anarquista, portanto, era simplesmente quem cometia tal ação” ( apud JENSEN, 1981:327). Mas a questão, aparentemente simples, revelou-se imediatamente polêmica e delicada. A delegação inglesa recusa resolutamente a definição, ao mesmo tempo em que declara inútil qualquer tentativa de definição. “Nós não perseguimos as opiniões. Para nós, a única questão é esta: existe delito, sim ou não? Se o ato é delituoso, tal como o assassinato ou seu incitamento, ele não se torna ainda mais pelo fato de ser anarquista” ( apud MASINI, 1981:123-124). Não obstante, dependia da definição da anarquia como ato delituoso a possibilidade jurídica de cada país europeu subscrever a extradição dos exilados acusados de “anarquismo”.

Recusando a definição proposta pelo Advogado Geral de Mônaco, a delegação inglesa explicitou a contradição que ela comportava. A concepção que descrevia o anarquismo consistindo em atos de violência contra qualquer organização social poderia ser largamente aplicada também ao socialismo e a todo ato violento de revolução, consista ele na substituição violenta de um parlamento por um reinado ou de um reinado por um parlamento. Ao saudar a proposta da conferência, o jornal inglês The Economist retomava precisamente este aspecto. Afirmando que a defesa social contra os anarquistas é dever absoluto dos governos, ponderava, entretanto, que “a experiência ensina que essa defesa pode muito facilmente transformar-se em perseguição dos heréticos conforme o credo das diversas escolas conservadoras e na condenação de qualquer idéia não favorável à ordem social atual” ( apud VENÉ, 1973:153). Porter também mostrou como a idéia de uma polícia política repugnava o liberalismo inglês da primeira metade do século XIX, que percebia na produção de leis e de agências destinadas a reprimir a subversão um efeito verdadeiramente contraproducente. “Provoca desgosto nas pessoas e, conseqüentemente, rebelião. Elas não seriam incomodadas – não teriam nada com que se aborrecer – se fossem (como os vitorianos costumavam colocar) ‘livres'. Essa era a resposta para o problema da subversão, que não era um problema genuíno na visão dos meios vitorianos. Sistema e sociedade política eram melhor defendidos – paradoxalmente – não havendo defesa alguma” (PORTER, 1987:3). A melhor maneira de desacreditar movimentos de liberação, diziam os vitorianos, é a de persuadir as pessoas de que elas são verdadeiramente livres, e a ausência de uma divisão Britânica de Polícia Política era um meio de mostrá-lo e também “um meio efetivamente legítimo e eficiente de ‘controle social' (...). O jornal Daily News , em 1858, chamava a polícia política de ‘sistema repugnante para a verdadeira sensibilidade, sentimento e princípios de vida dos ingleses'” (Ibid.:4).

É preciso perceber que no impasse da definição jurídico-legal do anarquismo existe uma dificuldade resultante da própria matriz conceitual do liberalismo. Como Foucault (2004:11-12) afirmou, “o exemplo aterrorizante dos suplícios ou a exclusão pelo banimento não podiam mais bastar em uma sociedade na qual o exercício do poder implicava uma tecnologia racional dos indivíduos.” Mas de outro lado, a própria morfologia do ato anarquista colocava a racionalidade jurídica da época numa espécie de embaraço na medida em que não se enquadrava no modelo de infração política existente: o complô para derrubar o governo e tomar o poder. “As ‘agitações' dos anarquistas não visavam tomar o poder nem substituir um governo a outro: o que eram, portanto, esses atentados violentos ‘desinteressados' a tal ponto de não se interessar pela tomada do poder?” (FOUCAULT, 2001:362-363) Meu argumento é que o impasse jurídico e o suposto insucesso político da conferência de Roma são reveladores de um fato importante na história do Direito: o processo de psiquiatrização da anarquia, iniciado na segunda metade do século XIX, e a famosa definição do criminoso nato.

Foucault (2002:111 et seq.) mostrou como, na nova legislação criminalista a partir do século XVIII, o crime começa a possuir uma natureza e o criminoso torna-se um ser natural caracterizado por sua criminalidade; um ser cuja conduta criminosa passa a ter uma inteligibilidade natural. Deste modo, a necessidade da sua punição passa a exigir um saber que fosse ao mesmo tempo naturalista da criminalidade, e esse papel foi desempenhado pela psiquiatria. Foi o que procurou fazer o célebre livro de Lombroso (1998:23) dedicado aos anarquistas ao afirmar nesses a existência de um tipo criminoso completo. Mas também de toda uma extensa produção médico-legal que, observando o impasse judiciário na definição do ato anarquista, introduziu a personagem do anormal e estabeleceu através dela um princípio de classificação na lista geral dos crimes políticos.

Para conferir a inteligibilidade necessária ao gesto desinteressado do atentado anarquista, a psiquiatria e a antropologia criminal substituíram a noção jurídica de responsabilidade pela noção médico-legal de periculosidade para enfatizar “que os réus que o direito reconhece como irresponsáveis porque doentes, loucos, anormais, vítimas de impulsos irresistíveis, são realmente os mais perigosos” e para “demonstrar que aquilo que chamamos de ‘pena' não deve ser uma punição, mas um mecanismo de defesa da sociedade” (FOUCAULT, 2004:18). Com a noção periculosidade a responsabilidade recai não sobre os atos cometidos, mas sobre o estado perigoso dos indivíduos: aqueles que uma certa determinação congênita torna alto os riscos as probabilidades de comportamento criminoso. Trata-se, portanto, não de reprimir atos, mas de normalizar sujeitos.

A psiquiatria e a antropologia criminal forneceram para o Direito uma solução para o problema repressivo. Deslocaram o problema da definição ampla e ambígua do ato anarquista – tal como apresentada na conferência de Roma, “a ação que tem por objetivo a destruição através de meios violentos de toda organização social” –, para o procedimento preciso e cuidadoso de decifração no sujeito da sua natureza perigosa. A ênfase são será mais sobre aquilo que se faz , mas sobre aquilo que se é . Foi nesta direção que u m artigo publicado em 1890 nos Archives de l'Anthropologie Criminelle et des Sciences Pénales , escrito pelo psicólogo e criminalista francês Emmanuel Régis, distinguiu os verdadeiros regicidas dos falsos regicidas.

  Os verdadeiros regicidas são aqueles cujos atentados contra uma alta personalidade foi a conseqüência direta e forçada de um estado de espírito particular. Ao contrário, os falsos regicidas são aqueles cujos atentados, mais aparentes que reais, foram puramente e simplesmente o fato do acaso, sem conexão imediata com o fundo de idéias. (...) Os primeiros querem destruir uma personagem importante e tudo neles converge para essa idéia; os outros dirigem-se à homens em relação aos quais na realidade não desejam nenhum mal, perseguindo unicamente reivindicações pessoais. (RÉGIS, 1890:6, 9)

Todavia, nesta objetivação do verdadeiro sujeito regicida, foi necessário fazer ainda uma distinção importante na medida em que, entre os verdadeiros regicidas, existem também aqueles que são absolutamente loucos e agem como loucos. “São delirantes vulgares (...). E, exceto o fato de seu atentado lhes render subitamente célebres, não oferecem, enquanto doentes, qualquer interesse especial.” (Ibid.:10-11) Coisa muito diferente ocorre com esta outra categoria de regicida “que forma uma classe verdadeiramente à parte e merece um estudo particular. Os indivíduos dos quais ela se compõem são os regicidas puros, os regicidas-natos ou de temperamento” (Id.). Portanto, é a natureza desse regicida puro, nato, dessa categoria especial e merecedora de estudos particulares, que é preciso determinar. Segundo Régis, “a primeira coisa que chama atenção nos regicidas é que eles não são nem absolutamente sãos de espírito, nem absolutamente alienados. (...) Em outros tempos seriam considerados como loucos lúcidos ou razoáveis, hoje são considerados desajustados [ désharmoniques ] ou degenerados .” (Id.) Além disso, possuem “tendências impulsivas de caráter obsessivo e, acima de tudo, uma ausência de equilíbrio com aparências intelectuais mais ou menos brilhantes, mas na realidade são anormais, incapazes de resistir às solicitações que os convocam.” (Ibid.:12)

Ao contrário do sujeito louco, cuja loucura é evidente aos olhos de todos e oferecida em espetáculo no hospital, no verdadeiro regicida ela se oculta sob as aparências do equilíbrio e da normalidade; ele esconde nas dobras de seu ser uma natureza degenerada que é preciso decifrar: a verdade da loucura, ao dissimular-se no fundo do regicida puro, torna-o potencialmente perigoso, introduzindo a necessidade imperiosa de fazê-la emergir, torná-la transparente, fazê-la conhecer. Trata-se, portanto, de um fato capital “que a maioria dos verdadeiros regicidas pertençam à classe dos degenerados”. Com isso é preciso entender não que sejam fracos de espírito, mas que são desajustados ou desequilibrados. Em outras palavras, não são exatamente loucos, “são semi-loucos em quem razão e loucura constituem um amalgama mais ou menos complexo”.

  São desequilibrados, inteligentes na maior parte, mas de vontade fraca e de uma instabilidade malsã; levam uma existência flutuante e incoerente e executam mil tarefas diversas sem jamais se fixarem, até o dia em que seu temperamento místico lhe fazem esposar com ardor a querela política ou religiosa que a ocasião fez surgir. Então, eles se exaltam e chegam por uma iniciação mais ou menos longa a transformar idéias de partido em verdadeiros delírios. É porque o delírio dos regicidas é um delírio essencialmente místico, seja religioso, seja ao mesmo tempo religioso e político, seja enfim, em casos mais raros, exclusivamente político, seguem seus caracteres e o ambiente. Na sua forma habitual, esse delírio se traduz pela crença em uma missão a cumprir , devendo ser coroada pelo martírio. (Ibid.:18)

A distinção entre regicida nato e o “delirante vulgar” torna-se decifrável quando se procura reconstituir o encadeamento dos impulsos implicados nos atos de atentado. Segundo Régis, o atentado entre os regicidas não resulta de impulsos sofridos e inconscientes tal como ocorre naqueles que resultam de certas formas de loucura. Ao contrário, trata-se de um ato lógico, concebido com lucidez, longamente premeditado e preparado. Mas, não obstante, no fundo dessa lucidez de espírito e dessas aparências de razão, e a despeito dessa longa e lenta premeditação, encontra-se os traços de indivíduos “doentes, desequilibrados, de vontade fraca, escravos de sua obsessão e que, penetrados por uma força cega e fatal, não são livres para resistir.” (Ibid.:21) Isso estabelece numerosos pontos de analogia entre regicidas e criminosos (Ibid.:25). E é preciso lembrar ainda, diz Régis,

  que o meio ambiente intervém para dar uma coloração especial às idéias mães do regicida conforme ao espírito e às tendências da época. É por isso que sob os reis os regicidas eram sobretudo místicos religiosos, sob a revolução e o império eram místicos patriotas agindo pela república e liberdade: é por isso, enfim, que no presente eles são sobretudo místicos políticos sonhando com socialismo e com anarquia. Não há dúvidas que um certo número de anarquistas exaltados que passam hoje pelos tribunais fazem parte da espécie de regicidas. Em outros tempos eles foram religiosos, hoje eles são anarquistas, eis toda diferença. (Ibid.:28)

O Direito e a velha noção jurídica de responsabilidade aparecem como impotentes para decifrar e revelar essa verdade escondida no fundo da natureza dos indivíduos. O Direito Positivo, com sua equação crime-punição, aparecia incapaz, sobretudo, de objetivar este sujeito cujo crime contra a soberania está envolto num estranho desinteresse pelo poder. É somente com a psiquiatria que se passará a ter duas linhas de objetivação: do crime e do criminoso. Ao designar o criminoso como celerado, monstro, louco, anormal, desenha-se imediatamente um novo tratamento que lhe será correlato. Ao mostrar os regicidas como “desajustados ou degenerados hereditários, de temperamento místico que, penetrados por um delírio político ou religioso complicado por alucinações, acreditando-se chamados ao duplo papel de justiceiros e de mártires”; ao objetivá-los como “anormais, geralmente matóides ou semi-loucos que tornam-se criminosos pelo único fato de serem doentes”, então, a partir disso, a conclusão da descrição psiquiátrica é evidente, diz Régis. “Quando o regicida é manifestamente delirante e alucinado (...) não é permitido hesitar e o internamento em um asilo de alienados é a medida que se impõe. De qualquer modo, é isso que mais os angustia; um tratamento semelhante quebra seu orgulho pois ele considera vergonhoso ser tratado como louco: logo ele que se considera herói e mártir.” (Ibid.:32)

A incapacidade do aparato jurídico-policial em definir o ato anarquista aparece de modo explícito também nas formulações de uma personagem do cenário político brasileiro, Rui Barbosa. Impressionado com o assassinato do rei da Itália Umberto Primo pelo anarquista Gaetano Bresci 3, Barbosa escreve artigos contra o anarquismo a partir de agosto de 1900. Discorrendo sobre “O perigo anarquista”, afirma que “entre os criminalistas o anarquismo ainda não encontrou amigos, como tem encontrado nos homens de letras, entre os sábios, entre os cultores dos estudos positivos.” E Rui Barbosa diz que “não são os juristas”, nem tampouco “os penalistas clássicos, nem é a escola jurídica, na Itália e na França, mas é ‘a nova escola', a escola da antropologia criminal, a única que se pronuncia pela irresponsabilidade das façanhas do anarquismo. Não são juristas Lombroso, Laschi, Ferrero, o Dr. Régis, todos esses escritores, que, nos últimos tempos, tem consagrado à epidemia do anarquismo, sob a sua forma de sangue, estudos especiais” (BARBOSA, 1933a:56-57).

Portanto, impotência do direito para definição do crime de anarquismo e consagração da psiquiatria e da antropologia criminal como saberes para determinação da punição a partir da definição da natureza monstruosa e anormal. Para Rui Barbosa, na medida em que o anarquismo se configura como “verdadeira diátese social” a dificuldade de combatê-lo está na correta distribuição de sua repressão num regime que seja ao mesmo tempo severo e humano. No artigo intitulado “Reprimir, mas prevenir”, Rui Barbosa identifica no anarquismo uma “impulsão funesta e monstruosa”, uma “patologia do espírito humano”. Assim, como ocorre com toda patologia do espírito, e “ em respeito à humanidade do enfermo”, o que se aconselha é o tratamento dos hospitais. O tratamento do hospital, diz Rui Barbosa, além de evitar fazer “à sociedade o mal irreparável de asselvajá-la, retrocedendo-a à moral da vingança ”, concede a essa sociedade o irrenunciável exame da psicologia do criminoso. “Se a prisão, substituindo o patíbulo abolido, não houvesse poupado a vida de Passanante, a justiça humana teria decapitado um enfermo, que as próprias autoridades italianas mandavam recolher mais tarde ao manicômio da Ambrogiana , que veio a morrer coprófago, devorando as próprias fezes” (BARBOSA, 1933b:67-70).

 

Defesa Social: a nova racionalidade jurídica

No processo de psiquiatrização da anarquia e das desordens sociais a partir do século XIX percebe-se um pano de fundo constituído pelo impasse e dificuldade efetiva do direito em estabelecer uma repressão que fosse ao mesmo tempo “severa e humana”, em outras palavras, que levasse em conta não apenas a humanidade do criminoso , mas que também não fizesse retroceder a sociedade à moral da vingança . Neste sentido, ao invés de promover simplesmente a repressão dos atos, tratou-se de estabelecer uma terapêutica dos espíritos. Decifrar na alma o mal que se oculta sob as formas do bem e revelar no fundo do sujeito a natureza do seu ser. Nesse momento, desenha-se a curiosa personagem do monstro e do anormal. Através dela, a psiquiatria não apenas toma as manifestações anarquistas como criminosas, também insere a inteligibilidade de suas ações no interior da velha alegoria do homem da floresta.

  É a luta do homem selvagem pela vida, do homem primitivo, sem respeito aos direitos alheios, eis o princípio que invocam todos os criminosos, o princípio selvagem e brutal da força absoluta, da força triunfante, da negação do direito e da liberdade, em virtude do qual, cada vez mais e de modo mais ou menos consciente, agem todos os ladrões, todos os larápios, todos esses que lesam seus semelhantes nas suas pessoas e bens (...). É o princípio dos povos bárbaros e aquele de todos os bandidos, bandidos coroados ou simples indivíduos: ‘a força prima sobre o direito'. Princípio pelo qual, na cegueira do instinto, o animal obedece, impelido pela fome, a devorar seres mais fracos que ele, é a negação da justiça, da sociedade humana, do direito (BÉRARD, 1892:614-615).

Com isso, o problema repressivo é recentrado. Os juristas tentaram, sem sucesso, definir o crime de anarquismo utilizando-se da noção jurídica de responsabilidade que estabelecia a equação crime-punição; a psiquiatria, com êxito absoluto, inseriu o anarquista nesse grande processo de normalização das desordens sociais pelo projeto de Defesa Social delineado pela psiquiatria no final do século XIX ao estabelecer não mais a equação dos atos, mas a objetivação dos sujeitos e a decifração da sua natureza. Adolphe Prins, na primeira metade do século XX, insistia que se é verdade que “a concepção da defesa social, completamente diferente da concepção clássica da pena e muito mais ampla que esta última, pode ser concebida independentemente do estado de responsabilidade”, no entanto, não é possível concebe-la “jamais independentemente do estado psíquico do indivíduo.” (PRINS, 1910:15) Deste modo, se “a doutrina da responsabilidade apóia-se na hipótese de um homem normal dotado de uma vontade inteligente e livre”, a hipótese da defesa social é a do homem anormal, do indivíduo “que nunca está conforme, desde o irregular, o excêntrico, o indisciplinado, o boêmio, o vagabundo em busca de aventuras, até o insuficiente mental e moral, até o maníaco, até o alienado ou o idiota profundo” (Ibid.:19).

Esta extensão dos comportamentos desviantes é apenas o reverso de um fenômeno estrutural. Um dos aspectos da vida moderna, dizem os novos juristas, foi o aumento do número de acidentes pelo desenvolvimento do maquinismo e da atividade industrial e a conseqüente extensão da legalidade e do direito para milhares de criaturas que anteriormente não gozavam de proteção jurídica. A partir disso, a criminalidade deixa de ter a raridade de outrora para tornar-se nada mais que uma das formas da vida social moderna. Advém daí a necessidade de perceber como “entre o homem honrado que faz o bem por amor ao bem e o criminoso que faz o mal por desejo do mal existe uma dilatada zona de múltiplos matizes” (Ibid.:24) dos quais não é preciso descuidar e cuja variedade, fluidez e complexidade a fórmula geral e simplificadora da noção de responsabilidade não dava conta.

  Aquilo que quero fazer ou não fazer depende do meu caráter, e meu caráter depende de circunstâncias sobre as quais não tenho nenhum poder; encontra-se submetido, sobretudo em sua formação inicial, à fatores dos quais não disponho. Jamais podemos considerar em seu conjunto as condições desta formação primeira; jamais podemos representarmo-nos o agregado primitivo dos pensamentos, dos sentimentos, das vontades, da inumeráveis forças psíquicas, morais, físicas, que se entrecruzaram, se confundem, se penetram e se fundem para compor uma individualidade. (Ibid.:39)

Será preciso remontar o encadeamento lógico dos estados sucessivos que motivaram a ação para extrair dela seu segredo. Neste processo, o ato em si importa pouco para a defesa social, uma vez que, no fundo, não reflete outra coisa que “a aparição momentânea das paixões na superfície do mundo, a explosão efêmera do desejo criminoso”. Todavia, deste momento de lampejo é preciso refazer o elo das “energias longínquas, cujas vibrações se propagam como os raios luminosos que em noite estrelada ferem o olhar mesmo após ter-se extinguido o astro dos quais emanam.” (Ibid.:40) O problema, agora mais complexo, é menos a repressão dos atos e mais a contenção dos riscos. Um juiz que condenasse uma dona de casa por ter infringido as prescrições sobre a conservação da via pública, diz Prins, certamente asseguraria a limpeza e a livre circulação das ruas; todavia, o faria “sem investigar se essa mulher é excêntrica, negligente, indisciplinada ou rebelde e se age intencionalmente ou não.” (Ibid.:60)

A escola jurídica da Defesa Social tornou possível o restabelecimento do Direito sem a exigência de provar a culpa, colocando em prática o que certamente foi uma das invenções mais importante das sociedades de controle (ou sociedades de segurança, segundo Foucault). Desde o século XVIII Foucault (2000) mostrou que fábrica e cárcere foram duas instituições permeáveis uma à outra pela disciplina dos corpos, distribuição espacial, controle e composição das forças. Mas ocorre, neste começo do século XIX, uma outra simbiose que estaria destinada a perdurar até nossa atualidade: a noção de risco. Prins percebeu como a legislação bismarckiana em matéria de acidentes de trabalho fez nascer a idéia de risco profissional . Trava-se não de estabelecer a culpa do patrão ou do operário: bastava comprovar o acidente para que a lei regulasse imediatamente o cálculo de uma indenização. Esta técnica securitária transferida do direito trabalhista para o direito civil substituiu, no novo direito civil alemão, a teoria da Culpahaftung pela teoria da Causahaftung (cf. PRINS, 1910:63). A técnica securitária no direito trabalhista buscou cessar a violência dos conflitos entre patrões e operários. O sistema de seguros colocado em funcionamento apresentava a exigência dos direitos independente da reorganização da sociedade, tornando suficiente a reparação dos sofrimentos ocasionais.

  O operário acidentado, doente ou desempregado não exigia mais justiça diante dos tribunais ou em praça pública. Fará valer seus direitos perante instâncias administrativas que, após examinarem o fundamento da sua demanda, lhe paga indenizações predeterminadas. Não é proclamando a injustiça da sua condição que o operário poderá beneficiar-se do direito social, mas na qualidade de membro da sociedade, na medida em que ela garante a solidariedade de todos (DONZELOT, 1994:138).

Já no âmbito do direito penal, a noção de risco encontrou uma aplicação igualmente profícua: torna-se o novo ângulo pelo qual passa a ser considerada a individualidade moral do culpado. Constitui um fato, dizia Lombroso, a existência em toda sociedade de certos indivíduos com necessidade de admirar e entusiasmar-se pelo martírio, e de se fazerem mártir; eles possuem um certo gosto pela perseguição e acreditam-se vítimas da prepotência e malvadeza humana.

  Escolhem seu partido político a revelia dos perigos que esse representa, como certos alpinistas escolhem para escalada a montanha cujos precipícios são os mais profundos e os cumes mais inacessíveis. Para eles não existe melhor excitamento do que as teorias anarquistas (...). E nada é mais perigoso que dar as suas fantasias um cadáver justiçado. Vaillant condenado se torna mártir; a sua tumba é lugar de peregrinação contínua; a lenda começa, cresce, floresce, alimentada por uma chuva de sangue (LOMBROSO, 1998:95-96). 4

Esta disposição explica como a anarquia, que antes recrutava os seus “heróis” entre os candidatos à galera, hoje os encontra entre os indivíduos honestos. De Ravachol, que dinamitava em silêncio e na discrição para garantir a possibilidade de partir em fuga, chega-se a Vaillant e Henry que atiram pessoalmente suas bombas com a absoluta certeza de serem presos; ou Caserio que serve-se do punhal em condições que lhe era impossível fugir da guilhotina. Enfim, “do homem que comete o atentado, diremos assim, anônimo, chegamos ao homem que friamente dá sua vida àquela de um homem odiado, e comete o atentado sabendo de antemão que sua cabeça está naquele momento perdida.” (Ibid.:97). Quanto maior o “fanatismo político” e a honestidade do autor do atentado, mais este se torna indiferente às conseqüências do seu ato. Tomará gosto pelo sacrifício e cometerá o seu delito a todo custo. Assim, a pólvora, o fogo e a guilhotina de nada adiantam contra a “hidra anarquista”, pelo contrário, aumentam pela excitação aos perigos e ao martírio o vigor de seus “fanáticos”. Seria preciso usar da astúcia e da habilidade , nunca excitando contra si mesmos propósitos violentos, mas sempre procurando usar nas relações de política interna, e sempre mais que se possa, a força moral : sensatez, calma e frieza, “sem recorrer cegamente, tão logo o perigo se mostre, ao terror e à guilhotina que produzem os mártires e excitam no partido que se quer destruir o espírito de luta e de resistência” (Ibid.:100).

Foi este princípio de diferenciação reivindicado pela escola da defesa social que permitiu ao direito penal ampliar o problema repressivo. Ocupa-se da natureza do indivíduo, não da cota de vontade que intervém no seu ato ou da quantidade de punição correspondente, com o objetivo de conjugar “severidade e benevolência na medida concreta da necessidade social; medida concreta, por sua vez, que se relaciona com o estado psíquico permanente do delinqüente.” (PRINS, 1910:71) Foi essa justa medida que indicou as vantagens políticas dos manicômios. O envio para lá “dos epiléticos ou histéricos seria uma medida mais prática, especialmente na França onde o ridículo assassina. Por que os mártires são venerados; dos loucos se ri – e um homem ridículo não é jamais perigoso ” (LOMBROSO, 1998:100).

O anarquista é o sujeito sobre o qual foi constituído o discurso do monstro político e do anormal no final do século XIX e começo do século XX, por uma razão bem fácil de apreender. Ao estabelecer a diferenciação entre os reformadores sociais, a psiquiatria afirmou que “os anarquistas não sonham nem em melhorar nem em reformar; sonham em destruir; enquanto as outras escolas propõem um ideal social mais ou menos realizável, os anarquistas ignoram absolutamente aquilo que propõem fazer: o que querem é destruir, e destruir por todos os meios possíveis, o roubo, a pilhagem, o assassinato, o incêndio” (BÉRARD, 1892:616). E a partir disso conclui: “todos os crimes de direito comum erigidos em sistema de combate, eis a anarquia!” (Ibid.:625), “nada mais que a revolta de bandidos de direito comum contra a lei” (Ibid.:630). Entretanto, não se trata de qualquer criminoso, mas do criminel fin-de-siècle que lança mão das descobertas da química moderna – pistola, dinamite, nitroglicerina – e assassina em nome dos ideais da modernidade – solidariedade, liberdade, igualdade. Este indivíduo incapaz de se integrar ao recente mundo industrial, que odeia a moral, renega as leis, comporta-se de maneira extravagante, exagerada e desequilibrada, foi seu caráter moralmente mórbido e degenerado que se tornou necessário observar e estudar numa riqueza de detalhes e minúcias. Foi preciso revelar nessa personagem a natureza do crime e o fundo de suas condutas criminosas, e para isso desenvolveu-se e se estabeleceu sobre uma população de operários, sobre essa “fezes da miséria européia” (BARBOSA, 1933a:55), desse “viveiro da epilepsia e do histerismo” (BARBOSA, 1933c:80), toda uma observação próxima e meticulosa, todo um policiamento exaustivo.

Mas seria um erro ver nisso simplesmente repressão: toda uma tecnologia de governo das condutas pôde emergir a partir precisamente da figura exorbitante do anormal.

  Degenerados, insuficientes, incompletos, anormais profundos, mostram-se como perigosos quando convertem-se em criminosos. Porém, mesmo fora da criminalidade constituem uma ameaça para si mesmos e os demais, visto que entregues as suas próprias forças são incapazes de seguir uma vida regular e tornam-se tanto mais inquietos quanto mais jovens são e mais abandonados estão. O Estado não pode ficar indiferente em relação a eles e deixa-los à iniciativa privada. Ainda nesta esfera é obrigado a garantir a ordem social. Então, a defesa social se manifesta na sua forma mais elevada e mais fecunda: já não é a repressão, é a proteção e a assistência. (PRINS, 1910:73)

O anarquista criminelle fin-de-siècle constituiu o objeto pelo qual o discurso psiquiátrico efetuou um processo de diferenciação na economia das condutas da população operária que produziu novas técnicas de governo. Introduziu, certamente, efeitos negativos de exclusão como a expulsão em massa de estrangeiros; mas produziu igualmente efeitos positivos de inclusão da população operária no interior de diversos mecanismos de controle e que ainda são os nossos.

 

Notas

* Doutor em Ciência Política pela PUC-SP, Pós-Doutorando pelo IFCH/UNICAMP, militante do Centro de Cultura Social de São Paulo, autor de Anarquistas: ética e antologia de existências (Rio de Janeiro: Achiamé, 2004) bolsista FAPESP. E-mail: nildoavelino@gmail.com

1 Para maiores detalhes sobre o terrorismo anarquista em ver em AVELINO, 2008, especialmente Cap. 4.

2 A cláusula do attentat foi um dos pontos polêmicos no recente caso Cesare Battisti.

3 Na noite de 29 de julho de 1900 Umberto Primo é morto por um disparo no coração após uma cerimônia na Villa Reale di Monza; o episódio ficou conhecido como a tragédia de Monza. “Gaetano Bresci morre na manhã de 22 de maio de 1901, ou seja, depois de apenas quatro meses de permanência em Santo Stefano, e só dez meses de reclusão. O seu fim, atribuído oficialmente a suicídio, foi uma surpresa para todos. O seu comportamento, as suas esperanças no recurso em Cassazione , a sua confiança cega na revolução libertadora e as suas condições de saúde não tinham nunca feito sugerir a suspeita de que ele meditasse tirar a vida” (PETACCO, 2000:151).

4 Após ser guilhotinado em 05 de fevereiro de 1894, aos 33 anos, a tumba de Auguste Vaillant no cemitério de Ivry foi local de grande peregrinação, desaparecendo sob as flores. Uma mensagem, deixada entre as folhas de uma palmeira, dizia: “Porque fizeram beber a terra / Na hora do Sol nascente / Rosado, augusto e salutar / As santas gotas do teu sangue / Sob as folhas desta palma / Que te oferece o direito ultrajado / Dormes teu sono soberbo e calmo / Ò mártir!... Tu serás vingado” (MAITRON, 1975:235).

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