Sumário
 
 

A sociedade civil e o embate simbólico na esfera pública.

Carlos Eduardo Freitas *

Resumo: Este artigo pretende analisar as possibilidades de os atores privados da sociedade civil, ao se organizarem coletivamente, conseguirem capacitar-se para participar do processo de trocas argumentativas na esfera pública, politizando questões antes restritas ao âmbito privado de relações, como a representação dos jovens das periferias de Belo Horizonte e o processo de exclusão simbólica ao qual estão sujeitos. Para tanto, este artigo toma como objeto empírico a atuação e a produção audiovisual dos jovens das periferias organizados em torno da Rede Jovem de Cidadania, uma rede de movimentos sociais formada por sujeitos simbolicamente prejudicados.

Abstract: This article intends to analyze the possibilities of private actors of civil society to organize themselves to participate in the political debate of the public sphere, allowing them to publicize issues previously restricted to the private sphere, such as the symbolic exclusion that affects the young people from Belo Horizonte, who live in the poor areas. Therefore, this article takes as object the audiovisual production of Rede Jovem de Cidadania, a network of social movements by symbolically excluded subjects.

Este artigo objetiva analisar as possibilidades que grupos simbolicamente excluídos da sociedade civil tem de, ao se organizarem enquanto atores coletivos, conquistarem não só visibilidade a seus discursos, como também propiciarem a incitação a um processo reflexivo, gerando mudanças de entendimento acerca de suas causas. E é a capacidade que esses sujeitos críticos têm de tornarem públicos temas antes tratados no âmbito das relações privadas, deslocando quadros de sentido estigmatizados para construir uma imagem positiva acerca de si próprios que se constitui como a conquista social em potencial a ser analisada neste estudo.

Para tanto, tomar-se-á como objeto empírico o projeto Rede Jovem de Cidadania (RJC), uma das ações empreendidas pela organização não-governamental Associação Imagem Comunitária (AIC). A RJC, desde junho de 2003, produz conteúdos que são veiculados via rádio, televisão, internet, impresso e agência de notícias. As equipes de produção de todas estas ações na área de comunicação social são formadas por estudantes carentes da rede pública das nove regionais de Belo Horizonte. É importante salientar que a RJC é formada por dezenas 1 de atores coletivos e individuais, já que vários movimentos sociais organizados participam da Rede. São os membros destes movimentos que compõem o Conselho de Mídias da RJC: uma esfera de participação onde mais de 30 representantes de atores coletivos da sociedade civil se reúnem para uma troca argumentativa recursiva e co-presencial, pautada pelo princípio da publicidade. É nessas interações que são produzidos os fluxos comunicativos que ganham visibilidade na televisão, rádio, internet, impresso e agência de notícias. São justamente essas redes comunicativas que interligam os sujeitos, atuando no sentido de propiciar a sociabilidade e, dessa forma, permitindo a construção coletiva de um universo simbólico entre os atores concernidos no processo.

Durante as reuniões do Conselho de Mídias ocorre um embate reflexivo de concepções de mundo e identidades. Este processo reflexivo ocorre por meio da interposição de argumentos empíricos, técnicos, prudentes, éticos, morais ou jurídicos, numa comunicação sem sanções, suportada por organizações da sociedade civil atuantes na esfera pública: os movimentos sociais que formam a RJC. A legitimidade às demandas destes movimentos começa a ser garantida no momento em que os grupos da sociedade civil, por meio de um embate simbólico na esfera pública, inclusive na mídia, disputam o consenso a respeito de questões que lhes são centrais, sejam elas de ordem material ou simbólica.

Este estudo pretende observar a atuação dos movimentos sociais que compõem a RJC no sentindo de garantir a construção de representações que transcendam estigmas e preconceitos acerca dos jovens da periferia, disputando o consenso em torno da imagem e da identidade deste grupo na sociedade.

Tendo em vista que o poder comunicativo é o que liga o poder administrativo do aparelho estatal à vontade do cidadão, a RJC capacita os jovens da periferia a participarem da disputa na esfera pública e do processo de formação de vontades na sociedade, o que gera potenciais de poder e decisão. A capacitação política destes jovens por meio da participação na Rede Jovem de Cidadania possibilita sua atuação em esferas institucionais como o Conselho Municipal de Juventude de Belo Horizonte, que discute políticas públicas para os jovens do município.

Contudo, mais do que analisar as conquistas materiais obtidas por este grupo, a gênese de leis que atendam às demandas dos jovens da periferia, este trabalho pretende perceber se, e em que medida, esta rede complexa de atores organizados da sociedade civil tem a possibilidade de contribuir na capacitação de seus integrantes para a superação de representações simbólicas depreciativas, preconceitos, estigmatizações e invisibilidade aos quais estão sujeitos.

O trabalho realizado pela Rede Jovem de Cidadania capacita centenas de jovens da capital mineira a realizar uma leitura crítica dos produtos midiáticos e, a tornarem-se, eles próprios, produtores de conteúdos para a grande mídia, o que é de extrema importância para um grupo alvo de exclusão simbólica. A RJC também se presta como exemplo empírico de que os atores fracos da sociedade civil – os sujeitos que não estão no centro do sistema político e, portanto, não detêm o poder de decisão acerca das questões administrativas e das políticas públicas –, quando organizados coletivamente, podem, por meio de um processo discursivo de formação da opinião e da vontade, disputar a reformulação dos quadros de sentido cristalizados e, dessa maneira, motivar convicções produzidas por processos comunicacionais intersubjetivamente compartilhados, garantindo uma nova percepção dos jovens da periferia acerca de si próprios.

O desenvolvimento deste trabalho se inicia com a definição do conceito de esfera pública apresentada por Jürgen Habermas em suas obras Direito e democracia: entre faticidade e validade e em Further Reflections on the Public Sphere, do livro Habermas and the public sphere , momentos em que o autor retoma parte da discussão proposta em sua obra clássica Mudança estrutural da esfera pública , revendo conceitos apresentados neste texto e dialogando com estudiosos e críticos de suas posições.

É em Further Reflections on the Public Sphere que o filósofo rebate críticas de pesquisadoras feministas em relação às potencialidades do conceito de esfera pública para a emancipação das mulheres e revisita as posições empírico-funcionalistas de Katz e Lazarsfeld 2 apresentadas em Mudança estrutural , readequando seus posicionamentos a teorias que levam em consideração a atividade do sujeito receptor e a importância do caráter relacional para se compreender os processos comunicacionais. Ainda nestes livros, o autor apresenta um novo olhar sobre as capacidades emancipatórias concernentes à esfera pública e oferece um novo conceito para se analisar a sociedade civil.

Também faz parte desta primeira etapa de desenvolvimento uma análise das características específicas da cena midiática brasileira, o que se faz necessário para se compreender parte de seus limites e potencialidades, estabelecendo relações entre conceitos delineados por autores como Habermas, a partir de realidades diversas daquelas encontradas no Brasil.

Passa-se, então, a um breve histórico da AIC e da RJC, seguido pela discussão do conceito de rede e da importância de se entender tanto as interações cotidianas co-presenciais episódicas ou organizadas, quanto o papel da mídia no estabelecimento dos fluxos comunicacionais. Em especial, procura-se perceber se há a instauração de um processo reflexivo que permita aos atores diretamente envolvidos na Rede Jovem reorientar os entendimentos acerca de quem são, como vivem e o que demandam os jovens das periferias de Belo Horizonte.

Com vista a um recorte mais apurado de um projeto que já conta com cerca de 500 produções audiovisuais veiculadas na mídia, foi tomado para análise empírica o vídeo Mulher na Mídia , que trata da representação do gênero feminino nos meios de comunicação. Pretende-se perceber os signos nas roupas, nos gestos, os enquadramentos, os planos: há algo de ruptura na linguagem utilizada? Os programas produzidos por uma comunidade específica (jovens da periferia) conseguem construir signos os quais sejam comungados por este grupo? Onde estão os signos caros aos jovens no programa? Qual a materialidade sígnica que aponta para o jovem da periferia como autor do produto televisivo? É a Rede Jovem de Cidadania, enquanto espaço de sociabilidade que produz compartilhamento, e, portanto, produtos simbólicos, exitosa no objetivo de produzir signos a partir de novos referenciais simbólicos, travando-se um jogo de posições acerca de quais quadros de sentido serão utilizados para representar estes jovens na mídia e, ainda, sobre quais serão os enquadramentos utilizados pela sociedade em geral para apreendê-los?

 

Procedimentos de Análise

A análise da atuação do Conselho de Mídias da Rede Jovem de Cidadania aconteceu por meio da observação participante. Durante o período de abril a outubro de 2007, tive a oportunidade de participar de 12 reuniões do Conselho, interagindo de maneira frequente e direta com os pesquisados, totalizando 48 horas. As reuniões aconteciam aos finais de semana, na sede da RJC. Desta forma, pude conhecer os modos de ação dos movimentos que compõem a Rede e recolher informações importantes para a produção deste trabalho. Ou seja, pude compreender como se dá o processo co-presencial de troca argumentativa que antecede a produção dos programas veiculados na Rede Minas de Televisão. No mesmo período fiz outras seis visitas à sede do movimento, onde pude compartilhar de reuniões menores com os membros da RJC.

Dentre os cerca de 500 vídeos produzidos pela Rede Jovem, tive a oportunidade de conhecer 60 deles, que refletem diversas dimensões dos discursos das periferias. Porém, a escolha para uma análise pormenorizada neste trabalho é do vídeo Mulher na mídia, que demonstra a visão que os membros da RJC têm acerca da representação da mulher nos meios de comunicação.

A partir da observação participante das reuniões do Conselho de Mídias da RJC foi percebido que os meios de comunicação e a representação das mulheres são dois temas que mobilizam grande parte dos membros da Rede Jovem. Por isso, o vídeo em questão serve como inferência inicial, porém, importante para análises de maior porte, do modo como o processo reflexivo ocorrido durante as reuniões do Conselho de Mídias é materializado na produção midiática da RJC.

 

Esfera pública e sociedade civil

Em Direito e democracia: entre faticidade e validade , Jürgen Habermas retoma a discussão acerca do papel da esfera pública proposta em Mudança estrutural da esfera pública e a define como “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos” (HABERMAS, 2003, p. 99) .

Nessa mesma obra, Habermas aponta para uma definição de sociedade civil diferente daquela da tradição liberal trabalhada por Hegel:

  “A sociedade civil compõem-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. O núcleo da sociedade civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de solucionar os problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro de esferas públicas.” (HABERMAS, 2003, p.92)

Dessa forma, Habermas redescobre o poder da sociedade civil e reconhece uma sensibilidade maior de sua parte para captar e identificar os novos problemas das sociedades contemporâneas, superando, ao menos neste quesito, a capacidade dos centros de poder. Afinal, é fato que são os atores periféricos, os representantes da sociedade civil, mais que o aparelho do Estado, que levantam problemas referentes à energia nuclear, ameaças ecológicas, gênero, poluição da água, juventude, exclusão simbólica (HABERMAS, 2003, p. 115).

Contudo, Habermas continua ciente de que a capacidade de introduzir temas na ordem do dia e de discuti-los, por meio de argumentos e contra-argumentos, de um intercâmbio de razões feito em público, até que gerem o consenso para a tomada de decisão, continua muito mais nas mãos do governo e da administração, ou seja, que os temas, os fluxos comunicacionais, em geral, são dirigidos do centro para a periferia social, numa direção centrífuga.

 

Cena midiática brasileira: potencialidades e entraves

No caso do Brasil, em especial, as dificuldades para se alcançar visibilidade aos discursos das minorias, gerando um compartilhamento de sentidos, uma troca argumentativa, que leve a um novo consenso entre os cidadãos iguais moral e politicamente, em sentido contrário ao que defende o stablishment , são maiores do que nos cenários de países desenvolvidos analisados por Habermas.

A grande mídia nacional conforma-se como um oligopólio, principalmente o meio televisivo. O espaço para a diversidade, portanto, encontra-se limitado. Exemplos de produções que representem uma ruptura de linguagem ou que se prestem à visibilidade de atores fracos e à disputa discursiva são minoritários na grade de programação. Os produtos regionais são exceção em um cenário onde Rio de Janeiro e São Paulo se constituem como os principais centros produtores do país. A audiência é extremamente concentrada: uma só rede de televisão chega a responder por mais da metade da audiência nos horários em que há mais aparelhos ligados 3; além disso, empresas concessionárias de um canal de televisão são responsáveis concomitantemente pela produção e exibição de seu conteúdo.

Deve-se colocar que esta concentração do modelo brasileiro não pode ser explicada apenas pelas limitações de caráter técnico relativas à capacidade do espectro eletromagnético em um sistema analógico. Questões de ordem política, econômica, comunicacional e jurídica, ao longo de muitas décadas, teriam que ser analisadas para se apresentar as causas da concentração midiática no Brasil. Contudo, não é este o objetivo deste estudo.

Este trabalho busca demonstrar que, mesmo diante das características da mídia brasileira, é possível encontrar exemplos empíricos em que atores da sociedade civil se organizam coletivamente, rompem a barreira da invisibilidade e, mais do que isso, contribuem para a conformação de uma disputa de sentidos em torno das questões pertinentes ao seu universo de interesses. Mais ainda, pretende-se demonstrar como se dá o processo em que os atores fracos, simbolicamente prejudicados, nesse caso, os jovens estudantes das escolas públicas e moradores das periferias, conseguem gerar condições para um debate reflexivo, chegando a um ganho para suas causas.

 

Rede Jovem de Cidadania: uma rede por novos quadros de sentido

Para se compreender o atual estágio em que se encontra a RJC faz-se necessário um breve histórico da produção audiovisual da Associação Imagem Comunitária (AIC). A Associação nasceu com o projeto TV Sala de Espera, uma televisão comunitária, realizada de 1993 a 1997, na região nordeste de Belo Horizonte. Produzidos por morados da própria regional, os programas tratavam do tema qualidade de vida e eram exibidos nas ante-salas dos centros públicos de saúde. Com alcance ainda muito reduzido, essa experiência serviu para que, em junho de 2003, a produção da AIC chegasse à grade de programação da TV Horizonte (transmitida via cabo e por sinal aberto em UHF) e à TVC (canal comunitário da TV por assinatura da capital mineira). Tal expansão do projeto foi possível graças ao patrocínio da Petrobrás, que teve início em novembro de 2002.

Por não ser veiculado em um canal VHF, a produção audiovisual da Rede Jovem sofria de dificuldades de recepção, o que gerava uma menor visibilidade ao projeto. O problema se agravava pelo fato de a grande maioria dos atores diretamente envolvidos no projeto e sobre os quais ele se dedicava não terem acesso à TV a Cabo e ao Canal 19 (UHF); ainda mais em sociedades complexas como a brasileira, onde a visibilidade é garantida, em enorme medida, por meio do acesso à grande mídia. Já em 2005 a Rede Jovem de Cidadania aumenta seu potencial de alcance público e passa a ser transmitida pela Rede Minas de Televisão, atingindo, assim, muito mais famílias pelo sinal VHF. O programa é veiculado nos sábados, às 17 horas, com reapresentações nas segundas-feiras às 13 horas e 15 minutos, e nas quintas-feiras, às 18 horas e trinta minutos.

O longo período de tempo que demandou a estruturação da Rede Jovem de Cidadania até seu atual estágio vai ao encontro do que aponta a professora Rousiley Maia: “(...) a expansão de um movimento social não é algo que ocorra de modo automático, mas ao invés disso, pressupõe a mobilização de redes de comunicação informal dentre e entre os grupos sociais” (MAIA, 2004, p. 25).

São os mais de trinta movimentos sociais que compõem a RJC e seu Conselho de Mídias, dentre eles, o Grupo Cultural Encaixa Couro, que trabalha com música negra de raiz, o Grupo Negras Ativas e o Grupo Juventude Hip Hop, que conformam-se como locus de argumentação onde acontece um processo reflexivo. É preciso salientar que apenas parte deste processo torna-se visível no programa da RJC. Já que várias de suas etapas dão-se longe dos holofotes da mídia, em encontros informais ou fóruns organizados, ou seja, em microprocessos sociais, que fomentam e são fomentados, de maneira circular pela mídia.

Para se analisar as ações da RJC, é preciso deixar claro que a esfera pública, essa rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, tem uma dinâmica que acolhe fluxos comunicativos oriundos do centro do poder e também aqueles advindos da periferia. É por isso que em sociedades democráticas, como a brasileira, é possível falar em um deslocamento de quadros de sentido naturalizados e cristalizados na sociedade, principalmente, no âmbito da redescoberta do poder da sociedade civil, utilizando-se como exemplo a atuação da Rede Jovem.

Jovens, condições socioeconômicas precárias, estudantes de escolas públicas, moradores de periferia: em produções da grande mídia as chances de estes personagens protagonizarem as melhores e mais edificantes histórias, os heróis em primeiro plano são pequenas. A produção de um noticiário, por exemplo, atende a uma linha de produção em que especialistas, atores governamentais e a sociedade civil organizada têm muito mais chances de angariar visibilidade a seus discursos do que sujeitos atomizados, não-organizados da sociedade civil. Sem a possibilidade de tornar visíveis seus discursos, muito menos, de conseguir gerar uma publicidade no sentido forte a seus argumentos, mas, cientes de que a exclusão não é um fenômeno de natureza apenas material, sendo também simbólica, atores privados da sociedade civil têm buscado a organização coletiva para vencer os entraves da grande mídia. Assim, este estudo procurará perceber como os indivíduos alvos de prejuízo simbólico têm a capacidade de produzir contranarrativas que expressem maneiras de se reapropriar do que é produzido pelo sistema midiático por meio de táticas próprias e práticas cotidianas para questionar o próprio sistema e, indo além, garantir visibilidade a tais contranarrativas (M. DE CERTEAU apud MARQUES, 2007, p.34). É essa capacidade mesma de garantir visibilidade às falas miúdas, produzidas fora dos circuitos oficiais, ao burburinho das ruas, ao discurso que Habermas aponta como estando presente na esfera pública episódica (bares, cafés, encontros na rua) e que fomenta de maneira circular os fluxos comunicacionais produzidos na esfera pública organizada (como as redes de interações simbólicas produzidas pelos atores coletivos da sociedade civil) e na esfera abstrata (a cena midiática) que se pretende analisar nesta pesquisa (HABERMAS, 2003, 107).

Contudo, constatar a existência de um discurso produzido por aqueles que não fazem parte das elites enunciadoras não representa por si só um ganho, afinal, as minorias simbolicamente excluídas podem continuar falando a partir da representação estigmatizada que delas é feita (França, 2002, 42). Cabe aqui analisar, portanto, se determinados fluxos narrativos que ganham visibilidade na grande mídia e são produzidos por sujeitos prejudicados simbolicamente são capazes de deslocar quadros de sentido estigmatizados e cristalizados no senso comum, incitando a promoção de um processo reflexivo.

A RJC constitui-se, dessa forma, como a oportunidade que os jovens têm de publicizar seus argumentos, transmitir seu recorte de realidade, a partir de suas próprias experiências, a um público amplo e diversificado. Em um mesmo programa discute-se gênero, sexualidade, rap, grafite, mídia, religião, cultura, ideologia e demandas relacionadas ao combate à violência e ao primeiro emprego, tudo sob a perspectiva de jovens que são sujeitos de seu discurso. Esse é o retrato de uma periferia onde a alteridade convive em harmonia, mas, sem idealizações: não se escondem os problemas; contudo, são os próprios jovens que constroem e transmitem seus argumentos, sem paternalismos ou estereótipos.

Segundo Juarez Dayrell, professor da Faculdade de Educação da UFMG, em declaração ao Boletim Informativo da RJC, número 104, de 17 de julho de 2003:

  “A Associação Imagem Comunitária, em seus dez anos de atuação, tem criado inúmeros espaços na mídia para que esses jovens se mostrem de maneira diferente. Assim, possibilita que construam uma imagem positiva, modificando a visão da sociedade e, principalmente, a noção que eles têm de si próprios” (DAYRELL, 2003).

Esse é justamente o ganho que um processo reflexivo, como o instaurado pela RJC busca conquistar. Deve-se ter em mente que a esfera pública se constrói a partir de trocas de experiências ocorridas em encontros cotidianos, seja em interações simples e espontâneas do mundo da vida, ou mesmo organizadas, como as reuniões do Conselho de Mídias da RJC - quando reúnem-se para uma troca argumentativa recursiva e co-presencial, pautada pelo princípio da publicidade, mais de 30 atores coletivos. Nessas interações são produzidos os fluxos comunicativos que vão sendo tematizados na esfera pública.

São essas redes comunicativas que interligam os sujeitos, atuando no sentido de propiciar a sociabilidade, possibilitando a construção coletiva de um universo simbólico entre os atores concernidos no processo. E é essa sociabilidade que apresenta-se como o “centro mesmo do processo reflexivo da dinâmica social” (MAIA apud GOMES, 2004, p. 20).

O ator crítico coletivo RJC é formado por vários outros atores coletivos e individuais, daí a pertinência do qualificativo “rede” para nomeá-lo, afinal, ele possibilita, por meio do Conselho de Mídias, a interação face a face mediada pela linguagem, leva à instauração de um processo reflexivo em torno de temas caros àquela coletividade, promove a reformulação dos sentidos compartilhados e altera a imagem que aqueles sujeitos têm de si mesmos, como comprovam as declarações de membros da RJC extraídas da página virtual da Petrobrás 4, patrocinadora do projeto:

 

“Ser cidadão para mim é ter uma identidade, é saber quem eu sou, e saber meus direitos e respeitar os meus deveres. É poder aprender e passar adiante tudo que aprender. E eu posso atuar na Rede Jovem e levar tudo que aprendo aqui para o meu bairro”. ( Elaine Santos, estudante participante da Rede)

“Eu quero mudar o ponto de vista que as pessoas têm da favela, mostrar que quem vive na periferia tem muitos sonhos e luta por eles. Quero contestar o preconceito que os demais têm em relação à favela, mostrando o lado que a mídia não mostra, que é o lado bom. E com isso desejo atingir a sensibilidade dos jovens e da sociedade para trabalhar mais com esse lado do nosso país”. (Charlene Duarte, estudante que atua na Rede Jovem)

A maturidade reflexiva alcançada pelas estudantes é mais uma prova do êxito do projeto que, além de propiciar sociabilidade e gerar reflexividade por meio das interações face a face, acelera os processos de trocas simbólicas, valendo-se da grande mídia para ampliar o potencial de visibilidade e reflexividade da Rede Jovem de Cidadania.

É importante salientar que a maior parte dos integrantes da RJC conta com experiências associativas antes mesmo de participar da Rede. Isso lhes garante maior capacidade crítica e independência discursiva em relação às falas institucionais produzidas pela Associação Imagem Comunitária. Dessa forma, o discurso dos jovens durante as reuniões do Conselho de Mídias representa, em geral, demandas e interesses do grupo ao qual eles estão vinculados 5. É a partir da troca argumentativa entre os diversos movimentos sociais, que podem, por exemplo, tratar de temas ligados à cultura negra, aos sujeitos sexualmente estigmatizados, à igualdade de gênero, a depender de sua atuação, que os jovens das periferias promovem o embate discursivo na RJC.

O projeto Rede Jovem de Cidadania configura-se, portanto, como exemplo de que o uso público da razão por públicos fracos, esse compartilhamento de sentidos com vista à produção de entendimentos não atrelados à ideologia dominante, pode ser empiricamente analisado mesmo com todas as barreiras e desigualdades existentes na mídia e na sociedade brasileira em geral. Afinal, a mídia, devido a seus processos intrínsecos de produção da notícia - como os critérios de noticiabilidade e o compromisso com o tempo - dificilmente dará voz a sujeitos atomizados, não-organizados, destituídos das prerrogativas que devem ser inerentes àqueles que pretendem alcançar a visibilidade midiática, cabendo, portanto, aos atores fracos se organizarem enquanto sujeitos críticos coletivos.

Ora, a partir da Rede Jovem de Cidadania é possível, então, perceber como as minorias, os grupos que não detém a hegemonia, podem a partir de sua organização enquanto atores coletivos, romper a barreira da invisibilidade, e projetar seu discurso na grande mídia, de modo a gerar um debate reflexivo, com vistas a ganhos relevantes de natureza simbólica.

 

A representação da mulher na mídia

A claquete anuncia o início do programa, um casal de jovens integrantes da RJC toma seu lugar em um cenário decorado por objetos triviais como espelho, leque, sapato alto, calcinha, celular, rosas e alguns cosméticos dispostos como que num quadro de inspiração surrealista. Pode-se notar que todos estes signos indiciais servem como pistas para o tema do programa: a representação da mulher na mídia.

É possível ainda perceber a presença do microfone boom no alto da tela. O que seria um erro para determinados padrões técnicos televisivos age como índice de uma outra estética, uma estética que permite o aparecimento da claquete, do boom e a repetição de cenas que não constariam de uma edição final asséptica. Neste programa, o espectador é a todo momento lembrado de que assiste a um produto construído para a mídia televisiva, não se cai na tentação de se tentar esconder tais elementos.

Durante a cena de abertura, que serve para apresentar a Rede Jovem de Cidadania ao público, uma gargalhada incontida de um dos apresentadores interrompe a gravação e ela é repetida. A manutenção desta tomada na versão final do programa serve como signo encarnado do caráter jovial e informal que deve permear toda a apresentação, como signo de uma “outra” estética, produzida a partir do lugar de fala de um grupo simbolicamente excluído, que não ocupa os espaços de visibilidade midiática. Afinal, um outro discurso deve estar acompanhado de uma outra estética imagética.

Um apresentador caracterizado por brincos, corrente no pescoço, faixa na cabeça e toda uma vestimenta que simboliza o universo jovem avisa: “No programa de hoje nós falaremos sobre a mulher na mídia e como elas se sentem representadas”. A jovem apresentadora que ostenta um pingente em formato de coração, um símbolo do amor romântico, que povoa de forma especial o universo imaginário das garotas em sua faixa-etária toma a palavra e informa: “Pois existem mulheres que pensam diferente e não querem se encaixar no papel que a mídia impõe. Mulheres que são um conjunto de corpo e cérebro e não apenas peito, perna e bunda”. Dito isso, a apresentadora da RJC já deixa claro qual o papel social que, na visão dos integrantes da Rede, cabe à mulher nos meios de comunicação. E os dois ainda interpelam as telespectadoras a refletirem a partir dos seguintes questionamentos: “E você, você se sente representada pela mídia? É a mulher que faz a mídia ou a mídia que faz a mulher?”

Corte seco: uma animação composta de recortes de materiais impressos substitui os dois apresentadores, utilizando uma técnica denominada stop motion. Ela consiste em fotografar objetos quadro a quadro, mudando pouco a pouco seu posicionamento. “Quando o filme é projetado a 24 fotogramas por segundo, temos a ilusão de que os objetos estão se movimentando” 6. Um canto africano acompanhado por atabaques é a trilha sonora, enquanto ilustrações de mulheres negras com roupas típicas do continente africano passeiam pela tela.

A música acompanha as mudanças de imagem: assim que ilustrações de mulheres com biótipo europeu e carregadas de referências estéticas renascentistas ocupam a tela, um canto sacro do Velho Continente é a trilha de fundo. Surge ainda uma mulher nua, de longos cabelos cor de fogo, envolta por maçãs, segurando uma dessas frutas, ao mesmo tempo em que, de maneira sensual, tapa os próprios seios. A maçã, em nossa cultura cristã, é símbolo do pecado, da luxúria. Estamos diante da representação de uma Eva dissimulada que oferece a fruta proibida a Adão e o leva a pecar, pura sensualidade, luxúria, transgressão. Eis a mulher pecadora seguida por imagens de outras mulheres nuas, inclusive em pleno ato sexual. Adiante, senhoras com roupas típicas de séculos passados dão lugar a mulheres com vestimentas das décadas de 1920, 30, 40, 50, 60, 70, até os dias atuais, num verdadeiro túnel do tempo da representação feminina hegemônica.

A partir do momento em que se inicia a série de imagens do século XX, são mostradas apenas mulheres jovens, brancas, a maioria com pouca ou nenhuma roupa e em poses de forte apelo sensual. Há ainda a Cinderela ao lado do príncipe encantado, a noiva em vestido branco, simbolizando o desejo de se encontrar um par romântico perfeito, o cavaleiro idealizado que está preso no imaginário feminino; e outra que se rende aos apelos da boa forma e usa uma malha de ginástica enquanto realiza exercícios físicos. Nenhuma está caracterizada como executiva, médica, advogada, ou foge ao padrão hegemônico de beleza.

As várias representações dominantes que a mulher recebeu da mídia ao longo de vários períodos aparecem neste túnel do tempo animado. De Marylin Monroe, que encarna a loira sexy e fatal, a outras atrizes de Hollywood com um perfil bem próximo, esbanjando sensualidade, a animação chega aos dias atuais já embalada pela música Eguinha Pocotó , de autoria de MC Serginho. O homem de maior destaque na montagem aparece apalpando as nádegas de uma jovem de vestido curto. A rotação do funk que serve de tema para a mulher representada pela mídia contemporânea diminui, o som começa a ficar distorcido, torna-se incômodo. Por fim, as mulheres são representadas por esqueletos, fantasmas de si mesmas, seres desfigurados, deformados, assim como o funk que as embala. Novo corte: uma jovem da RJC aparece na rua, com microfone em punho, indagando os transeuntes com a seguinte questão: “Qual mulher você acha legal na mídia?”.

O uso de gírias, de uma linguagem informal como a utilizada pela jovem repórter, caracteriza todos os programas da RJC. Assim demonstra Laiara Amorim, uma das integrantes do projeto, ao falar para a página virtual da Petrobrás: “Como somos jovens, somos espontâneos, falamos a nossa língua. E o público-alvo não é só o jovem. É mídia da comunidade para a comunidade” 7.

As respostas à indagação são bastante variadas. Faz-se interessante notar que uma das entrevistas tem como cenário uma banca de revistas, onde se pode ver várias revistas dirigidas ao público feminino, ostentando nas capas fotografias de belas mulheres com corpos esculturais, enquanto um entrevistado não consegue lembrar o nome da mulher que admira na mídia. As chamadas das publicações diziam respeito à dieta, exercício físico, decoração e relacionamentos amorosos, temas que, segundo os quadros de sentido dominantes e naturalizados na sociedade, despertam grande interesse no universo feminino. Já os hipoícones fotográficos em questão atuavam no sentido de impor um padrão hegemônico de beleza feminina à sociedade, como será, mais à frente, abordado por uma das entrevistadas do programa, a coordenadora de Ações Afirmativas da UFMG, em sua primeira fala transcrita para este trabalho.

Uma das mulheres interpeladas, uma jovem com os cabelos pintados de loiro e a barriga à mostra diz gostar da Xuxa e da Angélica, apresentadoras que abusaram de roupas sensuais e de programas que acrescentaram pouco ou quase nada à grade de televisão que não fosse um entretenimento repleto de clichês e carente de maiores atributos em termos de estética ou de conteúdo durante suas carreiras, e dá uma explicação um tanto quanto controversa para suas escolhas: “Angélica, Xuxa, não sei... Essas pessoas assim que não exploram seu corpo, mas sim os seus programas de uma forma legal, de uma forma educativa e que fazem o bem pras pessoas”.

Já um entrevistado da terceira idade afirma não se ater a nomes em suas escolhas, nem mesmo a qualquer talento, apenas à constituição física, “coisificando-as” enquanto objetos em exposição para os homens: “Todas as que são bonitas eu gosto. Eu gosto de todas... Sendo bonitas, eu gosto de todas. Eu não tenho, assim, uma preferência por nomes, até porque têm umas que eu nem sei o nome delas, mas eu gosto de ver o visual delas”. Outros entrevistados, ainda, citaram jornalistas e entrevistadoras como Marília Gabriela e Fátima Bernardes.

O cenário agora é um salão de beleza especializado em cortes afro. Ao lado da entrevistada, que ocupa o centro do vídeo, encontra-se uma mulher negra, portanto, que foge ao padrão hegemônico de beleza, tendo seu cabelo trançado. Mais ao fundo dois secadores de cabelo profissionais servem como índice da localização da externa. Assim, os objetos que compõem a locação são elementos de significação, que dialogam com o texto falado, pois, nenhum lugar parece ser mais pertinente para problematizar o padrão estético hegemônico da mulher comum, da mulher ordinária na mídia e suas implicações na formação identitária deste grupo do que tal cenário. A convidada a discorrer sobre estas questões é a coordenadora de Ações Afirmativas da UFMG, Nilda Lima Gomes:

  “Eu acho que a mulher na mídia ainda aparece com um padrão de beleza, padrão estético único, muito homogêneo. O padrão branco ainda é privilegiado, você tem uma ditadura da magreza e da beleza que migra dos espaços dos modelos, das manequins para as mulheres comuns; e isso aí, de alguma forma, constrói alguma coisa no imaginário social de mulheres comuns, de mulheres do dia-a-dia, que começam a se julgar baseadas nesses padrões de beleza, de corpo, de magreza”.

Um dos mais interessantes quadros do programa chama-se Debate no meio da rua . Ele consiste na realização de debates entre pessoas sentadas em cadeiras dispostas nas faixas de pedestre, enquanto o sinal que regula o tráfego de carros está vermelho. O tempo do sinal dá a dinâmica do debate, que é ágil e aproveita bem a exigüidade e a efemeridade do tempo na televisão. Assim que o sinal abre, os participantes pegam seus bancos e correm em direção ao passeio. Ele representa uma troca argumentativa dinâmica, bem apropriada ao ritmo televisivo. O movimento de câmera e todos os elementos do quadro estão adaptados à experiência na modernidade tardia, que é composta por fragmentos, com pouco tempo para a reflexão e a contemplação, assim como o é o próprio meio televisivo.

Esse quadro criado por Warlei Bombi, apresentador do programa, é uma produção típica de um jovem que trabalha com novas formas de funcionamento dos sentidos. Ele foi construído em uma época de corpos inquietos, em que as experiências, em grande medida, são mediadas pelas máquinas de imagens, principalmente a televisão. O Debate no meio da rua é produto de um mundo em que o conhecimento encontra-se cada vez mais difuso, desarticulado, fragmentário, assim como as próprias falas dos participantes.

Se se entende que o ato de dar nome ao mundo, de conhecê-lo e tomá-lo para si acontece por meio de uma dimensão sensível da existência, por meio da experiência cotidiana, e se esta experiência é reordenada e estilhaçada na e pela modernidade tardia, é de se esperar uma nova ordenação das formas de sentir. O Debate no meio da rua é, portanto, exemplo de uma criação de alguém que nasceu com seus sentidos determinados pela lógica fragmentária da televisão, por novas formas de experimentar o mundo, pelas experiências reordenadas na e pela modernidade.

A pergunta é: “Então, galera: essa coisa de padrão de beleza, quem aqui já fez algum sacrifício ou conhece alguém que já fez algum sacrifício pra ficar bonita?” Logo surge a primeira resposta que demonstra como as experiências midiatizadas ajudam a conformar o self e a pautar as experiências vividas: “Não eu não fiz não, mas têm mulheres que ficam até anoréxicas de tanto fazer regime, vomitam, passam mal pra ficarem iguais a essas mulheres das novelas”. “Ah! Eu vivia na academia, malhava o dia inteiro, ia pra academia umas três horas e saia de lá umas 10 horas, vivia fazendo chapinha no cabelo, aí um dia eu me toquei”. Outra participante completa: “Eu também conheço gente que ficou dias sem comer assim e acabou indo pro hospital por causa do padrão de beleza da mulher na mídia”.

A relevância estrutural que as experiências midiatizadas detém na constituição das identidades é grande, apesar de elas atuarem de forma diversa das experiências vividas na construção do projeto simbólico do indivíduo. As experiências midiatizadas, deslocadas no tempo e no espaço, ganham maior relevância na tessitura da narrativa da própria identidade, na medida em que sua importância adquire um caráter central na vida do sujeito. O tempo diário que uma das entrevistadas do programa afirma dedicar às quase interações mediadas dá bem a medida de uma mulher para quem a mídia assume um lugar central de suas experiências cotidianas: “Assisto tudo. Tudo, assim, que passa eu estou assistindo, qualquer canal”.

Contudo, essa mesma mulher, negra, bem acima de seu peso, percebe que as representações do gênero feminino na mídia são idealizações distantes de sua realidade. A indagação é a seguinte: “Que tipo de mulher na televisão você acha que se parece com você?”. E a resposta: “Ah difícil viu... Geralmente na televisão elas são mais saradas, mais malhadas”.

A especialista da UFMG continua em suas declarações que ajudam a iluminar as repercussões das representações midiáticas hegemônicas para os grupos alvo de exclusão simbólica:

  “A gente vive aqui no Brasil um padrão estético real que é o padrão negro e o padrão mestiço, mas ao mesmo tempo idealizamos, enquanto nação brasileira, e desejamos um padrão estético, um padrão de beleza ideal que é o branco europeu Isso traz complicações em vários setores, isso traz complicações na construção de outro imaginário social positivo”.

Ao ser indagada sobre sua opinião acerca das mulheres representadas pela mídia hoje, uma das integrantes da RJC responde de forma jocosa, utilizando-se da ironia para desconstruir o discurso midiático hegemônico:

  “Eu acho que a mulher na mídia exerce um papel fundamental. O que seria das propagandas de cerveja se não houvesse mulher Nossa Senhora! Das propagandas de absorvente se não houvesse mulher? Seria um desastre, seria inútil, né? Mesmo porque nós, né gente, somos a maioria da sociedade, né!”

Pode-se observar, a partir de tal afirmativa, que a conformação de atores privados individuais da sociedade civil em atores coletivos atende às necessidades de eles se capacitarem para uma leitura crítica desses sistemas de signos predispostos à polissemia. É, justamente, nesse sentido que U. Eco propõe uma solução de guerrilha para a questão do poder dos meios de comunicação. Essa solução dar-se-ia pela educação crítica do receptor em instituições da sociedade civil, nos moldes do que promove a RJC.

Ao citar a representação da mulher no universo publicitário a jovem faz referência às mulheres hiper-reais dos cartazes de cerveja. É a tentativa dos publicitários de fazerem com que signos simbólicos sejam reconhecidos como ícones, afinal eles presentam a si mesmos e, assemelham-se ao seu objeto. No caso da mulher hiper-real da publicidade de cerveja, a representação da mulher, de alguma forma, ao menos parece ser esse o desejo dos publicitários, deveria superar o seu próprio objeto, a mulher real. Atuaria, portanto, como um atalho semiótico para aumentar as vendas de um produto. Um símbolo nunca pode indicar uma coisa particular, ele denota um geral e gera como interpretante um argumento; enquanto que o ícone não necessita da reflexão, pelo contrário, ele opera por meio da sensação e da intuição, ele não está preocupado em produzir conclusões lógicas, mas a intuir, a sentir coisas sobre o objeto significado, daí o pretenso atalho semiótico.

E a capacidade crítica do receptor que exerce uma leitura oposicional das mensagens midiáticas aparece mais uma vez na reflexão sobre o seguinte questionamento: “Mas você acha que o papel da mulher é valorizado na mídia?” A resposta: “Muitas vezes não. Porque muitas vezes a mulher pra aparecer ela tem que estar dançando, ela tem que estar seminua na tela”.

Nova animação, o tema é o mesmo daquela que aparece no início do programa e que funciona como introdução e resumo de todo o vídeo: a representação da mulher na mídia. Dessa vez, contudo, a técnica da animação e a forma de tratar o conteúdo mudam. A alteridade aparece: mulheres de diversas etnias, idades, constituições físicas, representantes do que a coordenadora de Ações Afirmativas da UFMG chama de “padrão estético real”, se posicionam sobre uma esteira rolante que as leva para dentro de uma máquina, numa referência clara ao modelo industrial de produção. Instantaneamente, todas as mulheres que passam pela geringonça surgem padronizadas, loiras, cabelo liso, uma roupa da moda a realçar um modelo de corpo valorizado em nossa sociedade.

Como é possível perceber, a máquina de produzir em série mulheres padronizadas representa a mídia, trazendo para o mundo da animação gráfica parte da descrição que Adorno traçou da Indústria Cultural.

Contudo, é importante problematizar a visão dos meios de comunicação exposta pela RJC. Afinal, a mídia não é um bloco monolítico, ao contrário, os meios de comunicação social podem servir à diferença e ao embate. A mídia está em constante diálogo com a sociedade, que pauta e é pautada pelos meios de comunicação. É justamente essa potencialidade emancipadora da mídia que a Rede Jovem de Cidadania representa ao conseguir veicular sua produção audiovisual na Rede Minas de Televisão.

 

Considerações Finais

Nesse momento do trabalho, é possível perceber como à RJC pode caber a mudança de um cenário em que o jovem da periferia não tem acesso ao lugar de fala privilegiado, ao mesmo tempo em que, nos discursos oficiais, sua imagem é da ordem de uma representação dada por outros sujeitos, pelas elites enunciadoras. A elas sempre coube construir a imagem deste grupo social a partir de seus próprios referenciais e interesses.

É este discurso e esta estética da diferença, construídos a partir de um outro lugar de fala, a partir de referências e enquadramentos que não aqueles utilizados pelas elites para representar os jovens carentes e demais grupos simbolicamente excluídos, que alcança a condição de visibilidade na grande mídia por meio da RJC, permitindo que seja invertido o processo centrífugo dos fluxos comunicacionais.

E é esta visibilidade alcançada por uma imagem construída a partir de outros referenciais simbólicos que amplia a possibilidade de se alterar o discurso hegemônico praticado em relação aos grupos marginalizados, sejam os jovens, os pobres, as mulheres, os negros. Afinal, as identidades, as representações, as imagens e os referenciais simbólicos socialmente construídos estão em permanente processo de transformação, dependendo da organização dos jovens da periferia a mudança dos quadros do sentido, dos discursos, das representações, das imagens e identidades pejorativas construídas a seu respeito. Esse é o jogo de posições que está sendo travado.

Deve-se, para melhor participar deste embate simbólico, perceber que o signo está impregnado de sentido em si, antes mesmo de ser gerado qualquer interpretante. Contudo, é pertinente lembrar que o signo contribui para produzir o contexto, ao mesmo tempo em que o contexto sócio-cultural também determina o sentido do signo. Uma mensagem sígnica não é completamente fechada, nem completamente aberta, ela é polissêmica, algumas mais, outras menos, mas todas assim se fazem. O homem é um ser simbólico e o símbolo é apreendido dentro de uma cultura. E são esses símbolos naturalizados e cristalizados, que guardam em si fundamentos indexicais e icônicos e que geram outros símbolos ad infinitum , que devem ser alvo de reflexão e desnaturalização, para que se rompam os estereótipos e os estigmas.

É uma tarefa inquietante cumprir os objetivos deste estudo em tão poucas páginas, apresentando um projeto tão rico como a Rede Jovem de Cidadania, para verificar em que medida os sujeitos simbolicamente prejudicados podem, quando organizados coletivamente, se apropriar dos meios de comunicação e garantir publicidade a seus discursos, gerando um processo reflexivo na esfera pública, que resulte em ganhos efetivos para os sujeitos concernidos.

Contudo, tal tarefa torna-se necessária visto as potencialidades deste projeto. A RJC obtém êxito não só ao gerar publicidade a seu discurso, atuando como contraponto ao que normalmente se vê na mídia relacionado ao cotidiano dos jovens da periferia; como também possibilita que esses mesmos jovens tornem-se produtores do material simbólico que irá atingir uma imensidão de pessoas por meio da Rede Minas de Televisão.

E, mais ainda, a possibilidade de fazer com que os problemas cotidianamente vivenciados pelos jovens da periferia no âmbito de suas relações pessoais, sejam politizados e transformados em reivindicações públicas é um dos principais méritos deste projeto; que, devido a sua riqueza de ação, apresenta-se como exemplo empírico que merece novos estudos à luz da redescoberta do poder da sociedade civil e do entendimento de que é possível aprimorar a democracia brasileira, quando são colocados para debate público os problemas pertinentes aos jovens simbólica e economicamente excluídos.

 

Notas

* Especialista em Comunicação: Imagens e Culturas Midiáticas e pós-graduando em Marketing Político: Mídia, Comportamento Eleitoral e Opinião Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: moraisfreitas@hotmail.com.

1 Segundo a página virtual da AIC – www.aic.org.br – dezenas de atores coletivos da sociedade civil compõem o Conselho Editorial da RJC e o Conselho das Mídias, dentre eles: A Parada - Jornal Cultural, Aliança Cultural Taquaril, Alunos da EM Adauto Lúcio Cardoso, Alunos da EM Caio Líbano Soares, Apostolado Infanto-Juvenil Sagrado Coração de Jesus, Associação Amigos da Vila, Associação Cultural Odum Orixás, Bloco Oficina Tambolelê, CELLOS – Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual, Cia Teatral Palcomania, Cine Clube Zona Norte, Cineclube Centro Cultural Lagoa do Nado, Coletivo Hip Hop Chama, COMUPRA – Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu, Consubter – Conspiração Subterrânea Crew, CRIARTE, D-vEr.CidaDe CuLtural, Faverock (do Aglomerado da Serra), Forma Cor Ação, GRIDCOM – Grupo de Inclusã o da Pessoa com Deficiência à Comunicação, Grupo Alvorada Pé Vermei, Grupo Anjos da Arte, Grupo Arte 22, Grupo Arte Favela, Grupo Clã do Gueto, Grupo Cultural Encaixa Couro, Grupo Cultural NUC, Grupo de Teatro Catarse, Grupo Geração 3º Milênio, Grupo Juventude Hip Hop, Grupo Negras Ativas, Grupo Palco da Periferia, Grupo de Poesia Sociedade da Palavra, Grupo Trapizomba, ONG Humbiumbi, Pastoral da Juventude, Programa Pólos de Cidadania da UFMG, Rádio Fusão Real.

2 A abordagem empírico-experimental de Katz e Lazarsfeld trabalha com uma concepção dos processos comunicacionais a partir do modelo de estímulo-resistência-resposta. Tal vertente do pensamento comunicacional enfatiza o papel do líder de opinião como intermediário entre a emissão das mensagens e o modo como elas serão apreendidas pelos receptores: a chamada comunicação em dois fluxos, que ainda entende o receptor como sujeito passivo (apesar das resistências) no processo comunicacional.

3 A Rede Globo de Televisão, em junho de 2007, deteve 42% da audiência total, segundo dados do Ibope publicados pela Folha Online em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u309307.shtml. A Rede Record, segunda colocada, obteve 7,4% da audiência no mesmo período. No horário nobre a emissora carioca chega a contar com mais da metade dos televisores sintonizados em sua programação, como no caso da novela Senhora do Destino, de 2004, que obteve média de 50,4%, segundo pesquisa do Ibope publicada pelo portal Terra, em 28 de novembro, no endereço: http://exclusivo.terra.com.br/interna/0,,OI2107491-EI1118,00.html

4 Depoimentos extraídos da página virtual: http://www2.petrobras.com.br/ResponsabilidadeSocial/portugues/PetrobrasFomeZero/RedeJovemCidadania_dep.asp

5 A diversidade de movimentos sociais que compõe a Rede Jovem de Cidadania consta de nota de rodapé na página 2 deste trabalho.

6 Extraído de EBA. Introdução . Disponível em: http://www.eba.ufmg.br/midiaarte/quadroaaquadro/stop/princip1.htm Acesso em 16 de novembro de 2007.

7 Depoimentos extraídos de: PETROBRAS. Rede Jovem de Cidadania . Disponível em: <http://www2.petrobras.com.br/ResponsabilidadeSocial/portugues/social/29_11_2006.asp> Acesso em 15 de junho de 2007.

 

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