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A menoridade das ecologias, uma perspectiva irradiante.
Edson Lopes*


Ana Godoy. A menor das ecologias. São Paulo: Editora da universidade de São Paulo, 2008.

O livro, a menor das ecologias , provoca uma leitura povoada de literaturas e m que persistem a proximidade de um elemento selvagem traidor das estruturações, codificações e organizações da civilização, à maneira de máquinas filosófico-literárias, singulares, que não pertencem nem à literatura e nem à filosofia. Máquinas que trazem à tona ou “uma natureza primeira” que rompe com algum modelo de realização ou materialidade (Thoreau); ou a “selvagem e ilimitada pasiagem” (Faulkner), dispersa por toda parte fazendo com que o elemento selvagem esteja bem próximo, persistindo por onde tudo passa, traindo as edificações da civilização por todos os lados e ampliando uma aventura coletiva de rejeição à proteção; ou que inventa línguas e o apagamento das referências geográficas (Guimarães Rosa); ou cujos vetores desfazem territórios fazendo com que a inquietude domine inteiramente (Cortázar); ou à maneira de John Cage rejeitando a organização militar e governamental da sintaxe — que só pode ser obedecida — em nome da desmilitarização da linguagem, cruzando os limites de duas ou mais linguagens, inaugurando o transbordamento do domínio musical pelo silêncio.

A menor das ecologias , sugere a experiência da perda da referência em nome da perspectiva, uma maneira de habitar. Perder solo, perder imagem de uma terra firme, racionalizada, unificadora e medida dentro de uma lógica, de uma lei, de uma propriedade e de um organismo que organiza coletivos e a Terra. Experimenta-se uma perspectiva não em nome de uma idealização, nem em nome de uma terra a ser descartada, reatualizada entre o desgaste de suas matérias. Perspectiva, que toma para si uma forma do desamparo habitado por forças de mobilidade, de violenta traição, de um espaço propriamente intensivo.

A Ecologia abrange estratégias políticas, proezas idealizadas — e premiadas enquanto idealizações — do âmbito infantil dos bancos escolares aos encontros mundiais de especialistas, representantes de governo e cientistas acerca de uma conservação, riscos iminentes e catastróficos e conceitos unificadores de gestos retóricos e estratégicos em torno da conservação das espécies, de seus códigos genéticos — capazes de serem recriados como uma ficção fantástica e idealizadora de um passado das espécies e da genealogia da hereditariedade e condicionamento futuro —, da coleção do maior número de víveres a título de prevenção ante a destruição anunciada. Portanto, esta Ecologia organiza ao mesmo tempo a categorização, identidade e conservação das formas da vida como das culturas toleradas e toleráveis em nome das diversidades. A ecologia é uma representação da verdade do mundo e da coletividade do mundo, representação que perdura como conteúdo transdisciplinar na vida escolar e acadêmica, corporativa, política e estética, cuja rota traça-se de um ponto de desespero a outro, de um risco a outro, ou de um risco a uma proteção e prevenção. Esta ecologia majoritária é maior pela sua qualidade reativa e pela potência negadora, embora fale em nome da vida ou de sua segurança mínima e nuclear das células às formas complexas em suas coexistências.

O livro de Ana Godoy, compõe-se de duas partes: continente e arquipélago —atravessados por rotas e derivas —, que não são categorias absolutas que em mera oposição signifiquem e caracterizem dois estados de coisas. Mas conceitos que a título da deriva, ao lado de Deleuze, embatem forças no conceito. A Maioridade configura a certeza de findo o embate da terra e o mar, considerando ali residir a segurança, persuadindo-se de que este combate já não ocorre. Mas a menoridade instala-se acusada de seus “fracos teores científicos”, de emergência lenta, desaparecimento abrupto sem que haja tempo de anexá-las, territorializá-las, inscrevê-las nas cartas marítimas das navegações estriadas. A propósito das ilhas continentais e oceânicas, Deleuze, refere-se: “dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície” 1. O homem da segurança humana filosoficamente aliada ao direito fia-se seguro onde julga o embate não existir para arrazoar sua justiça sobre as coisas, justa distribuição das espécies, da vida e da tolerância da diversidade. São estas matrizes com que Ana Godoy lida, sabendo que a existência das ilhas, que as existência menores “são a negação de um tal ponto de vista, e de um tal esforço e de uma tal convicção” 2.

Ana Godoy, problematiza a referência das disciplinas ecológicas e atualizadoras das ciências naturais, suas construções de leis da natureza e apreensões dos objetos sistêmicos, “como conceitos operacionais, unidades de cálculo para modelizações (...) despidos de qualquer fundo místico ou religioso em proveito da verdade científica, isto é, da verdade da natureza revelada.” (p.97). Trata-se segundo Ana Godoy de disciplinas que legislam segundo as leis que o conhecimento dá à vida, limitando-a, medindo-a, modelando-a segundo modalidades e funções, “preenchendo, dessa maneira, as tarefas de conservação da vida, de adaptação e utilidade, de regulação e reprodução.” (p. 100) Para Ana Godoy, “problematizar a ecologia é abrir espaços de vida por ela interditados pela idealização da vida como algo possível de ser apreendido pelo conhecimento.” (p.23)

A perspectiva da menor das ecologias é uma proposta de viagem de exploração — e pela relação que se estabelece com a terra, o estriado e o território —, referências móveis, em que se experimenta sobressaltos, regiões de turbulência e regiões de prazeres inusitados. “Inventa-se uma menor ecologia para uma terra a ser descoberta, em vez de procurar a verdadeira ecologia para uma terra verdadeira.” (p.29)

A ecologia maior, para Ana Godoy, domina a variação como única garantia possível de vida sob o ponto de vista da superioridade da conservação, matriz da razão política moderna e da modalidade de veridição do fragmentário pelo predicado da diversidade. Reporta à noção de biodiversidade cunhada nos anos 1980. Palavra simples e marcante que abarca não só todos os tipos de seres vivos como é deslocada para dar conta da totalidade da variação hereditária em toda a organização biológica, capital cultural para educação e capital para a mercantilização e governamentalização de todos os estoques, variabilidade, hereditariedade da vida. Não só as relações de produção e a cultura das populações humanas em seus ecossistemas se tornaram um valor para tolerância, como o fragmento da vida de todo ecossistema em seu conjunto e totalidade em sobreposição se tornaram um valor de continuidade, conservação, permanência e possibilidade de recriação de suas características originárias em diferentes ecossistemas artificializados. A relação capital natural, tolerância e futuro, equacionam uma racionalidade em torno da segurança do valor capital desde o século XX: a vida, transmutada como vida na terra, de um organismo mensurável, controlável, equilibrável na totalidade de seu organismo coletivo, de sua biodiversidade; equivalente desbloqueado cuja referência é a população, coletivo sobre o qual a biopolítica exercitou o esforço da unificação do fragmentário no coletivo, no organismo. Transposição do corpo como espécie para o corpo totalizado da biodiversidade, no corpo englobante da Terra. Vida e risco de vida cuja manipulação, organização, perfazem a disciplina e ciência da ecologia. Projetores da noção de segurança que extrapola a vida humana, para ser depositária do núcleo primário e herança biológica de todas as formas de vida.

Qual o espaço para ecologia menor como abertura do mundo à variação, à potência da invenção? Individualizado, perspectivo. Espaço para a vida não-idealizada, que não reconhece os limites molares do conhecimento, do modelo de toda vida e do pensamento. A liberação do pensamento e da vida permeiam a exploração, a experimentação da menoridade proposta ao longo de a menor das ecologias. Experimentação de uma vida insubmissa, das traições e das paisagens selvagens que a mobilizam. Ana Godoy não prescinde da ecologia, não a descarta, mas se afasta dela a ponto de não tomar o conhecimento globalizante — maior — da vida, da Terra, como referência. Ela varia os percursos de acordo com as diversas conexões estabelecidas, de Nietzsche a Faulkner.

Um arquipélago é sempre um processo de invenção. Para isso a autora lança mão da arte, como espaço não do modelo a ser transposto para a vida, mas do acento de desvio, expressão do desdobramento, das dobras que a vida cria sobre si mesma, movimentando ecologias. O que se pode experimentar? Nada perdura. Há vidas e experiências transbordantes — a que se possa acusar de fracos teores científicos — furtando-se do corpo-espécie redirecionado para biodiversidade e enunciador comum, para a “reafirmação do processo vital que não está restrito a um organismo”, seja ele o Estado, ou a Casa Terra, subproduto da política internacional e de sua jurisprudência da conservação e conluio dos Estados e dos organismos civis que falam em seu nome a propósito da Ecologia.

Não há terra a ser descartada. Que outra experiência senão apropriar-se do corpo? “A indiferença às proposições apresentadas como incontestáveis e indiscutíveis é a afirmação do estado de coisas não ser o comum que une todos, mas o movimento por meio do qual uns rompem com uma discursividade que nos atravessa e confere identidade” (p.285).

"A ecologia é fraca quando só pode ser pensada na relação entre conservação e estado terminal do mundo. O esforço de estabelecer quem veio antes — a ecologia ou o estado terminal — é irrisório, pois, ao se colocar a conservação em primeiro lugar, consideram-se perdidas as forças de expansão e invenção.” (273). Não há retorno à natureza que não passe pelo estado impessoal da liberação das coerções. Condição selvagem experimentável em qualquer lugar. Uma ecologia pode ser menos a defesa da vida do que sua afirmação e “na borda, na constante relação entre ecologia maior e menor, sobressai a menor como intensidade." (199).

Notas

1 Gillles Deleuze. “Causas e razões das ilhas desertas” [ manuscrito dos anos 50] in A ilha deserta (org. David Lapoujade). São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 17.

2 Id.




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