voltar
 
 
Práticas contemporâneas de ação cultural - literatura e edição

Ademir Demarchi*

Resumo: Na comemoração dos dois anos de atividades do Coletivo Dulcineia Catadora, o autor faz uma reflexão sobre práticas culturais de literatura e edição contemporâneas como forma de resistência e alternativas ao mercado de consumo.

Abstract: In celebration of two years of activities of the Coletivo Catadora Dulcinea, the author reflects on cultural practices of contemporary literature and publishing as a form of resistance and alternatives to the consumer market.

 

Nota: O presente texto é uma reflexão que foi elaborada e apresentada na comemoração de dois anos de atividades do Coletivo Dulcineia Catadora, ocorrida na Casa das Rosas em 18/6/09. Veja-se, ao final, um “Breve histórico do Coletivo Dulcineia Catadora”

 

Estamos vivendo hoje num clima de rescaldo do anos 60/70/80 do século passado, com mais ênfase na década de 70. É como se tivesse havido um incêndio e depois dele há o rescaldo, aqueles focos de fogo que persistem e ficam voltando. Se estamos um pouco nos anos 70, estamos, é claro, sem militares de cara amarrada no poder, agora trocados por um presidente sorridente e piadista e surpreendentemente vindo do meio do povo, uma espécie de retorno de Getúlio ou do Jango gorado dos anos 60, agora vencedor; porém se estamos sem militares e órgãos nefastos como os DOI-CODIs, estamos com sucedâneos da ROTA agindo nas periferias das grandes cidades como São Paulo ou agindo nos morros cariocas sob a forma de milícias formadas por ex-policiais saudosos do Esquadrão da Morte, aos quais se somam os grupos de guerrilha armados por todo o país. Isso concretiza em tom de tropicalismo antropofágico à brasileira a utopia do foquismo guevariano, ainda que um foquismo autofágico como de certo modo era também aquele dos anos 70, pois a mortandade e trapalhadas dos criminosos marginalizados do sistema de consumo de hoje que “lutam” contra esse sistema para nele se incluírem e viverem a fantasia do consumo das grifes, parecem em tudo com o filme de Tarantino, Cães de Aluguel .

Bom, e cá estamos nós, tentando fazer nossa polpa de ficção à moda Dulcineia Catadora em meio a esses discursos de Brasil Grande que agora até se dá ao luxo de emprestar dinheiro ao FMI - cara, o bagulho é muito louco, cara, para quem levantou bandeira gritando Fora FMI e defendendo o calote da dívida, agora parece um absurdo se afinar com esse regresso dos anos 80 e gritar Devolva a Grana FMI!. Pois então, o Brasil Grande, aquele Brasil Grande dos discursos dos militares está aí de volta e renovado na maior empresa de petróleo do mundo, a Petrobras; na maior produção de soja e carne do mundo; na maior empresa de industrialização e processamento de carnes do planeta, a associada Sadia-Perdigão; na maior empresa de bebidas do universo, que não para de crescer, a ex-Ambev, ex-InBev, atual Interbrew; que se somam aos maiores lucros estratosféricos bancários, tudo isso, entre tantas superlatividades mais, acontecendo aqui onde estamos, neste olho de furacão de riqueza e miséria.

Vivendo espasmodicamente no mundo da fantasia dos escritores, gosto sempre de lembrar que neste país de 183 milhões de habitantes (segundo estimativa do IBGE em janeiro deste ano , no site do Governo Federal) 7% deles são de analfabetos absolutos e 68% de analfabetos funcionais, somando-se a expressiva cifra Brasil Grande de 75% de pessoas às quais nunca chegaremos pois são incapazes de decifrar o que seja um livro. Estamos, portanto, tentando, como escritores e como agentes culturais - agentes no sentido de que fazem ações culturais - estamos tentando minimamente um diálogo com esse 1/4 da população que, teoricamente, seria o país alfabetizado, ou seja, um Brasil de 45 milhões de habitantes. Dos dados confirmados por pesquisas, passo ao achômetro realista e digo que, porém, nem que fôssemos a Polyanna, acreditaríamos que toda essa gente lê um Paulo Coelho que seja e, sendo ainda muito otimistas, poderíamos dizer que o mercado de compradores de livros, excetuando-se os didáticos, deve ser formado por 1% disso, ou seja umas 450 mil pessoas que compram livros e eventualmente lêem. Dessas, será que poderíamos dizer que teríamos possibilidades de, ao longo da vida, nos relacionarmos com umas 45 mil, que lêem regularmente uns 2 livros por mês? E quanto aos letrados, ou seja, os que lêem mesmo, que enveredam pela literatura e pela cultura, que, pela minha experiência nestes anos, eu diria que devem chegar a uns 3.500 neste país! Ou seja, 0,002 % dos habitantes. Talvez seja mais, mas não acredito que muuuito mais. Gosto de fazer esses questionamentos porque sempre acabo numa fantasia borgeana – Borges dizia que gostava do tempo em que tinha apenas uns 5 leitores, pois podia controlá-los...

Pois então, esse, para mim, é um retrato do Brasil Grande, que começa em grande angular nos discursos oficiais e econômicos e chega em close no analfabetismo e na miséria e na batalha diária e monstruosa que temos que travar diariamente para conseguirmos manter minimamente uma vida sensível e, além dela, conseguirmos, sobrevivendo ao trabalho estafante e sem sentido para pagar as contas e a enorme cascata de impostos, realizar ações culturais com nossos próprios recursos e meios, comprar livros e, já mais utopicamente ainda, lê-los.

Uma tal situação como essa tem nos aprisionado reiteradamente nessa idéia de que estamos sempre à margem, em se tratando de cultura, como se de certa forma estivéssemos nos anos 70, fazendo livros com mimeógrafos agora eletrônicos, os mimeógrafos contemporâneos que são os blogues, os sites ou mesmo nossas edições artesanais e independentes ou em editoras meio utópicas como a Lumme e a Demônio Negro e o Projeto Dulcineia Catadora. O rigor crítico, é claro, aumentou bastante em relação àquela época, ainda que os novos escritores vivam sempre reinventando a roda por desconhecerem o que já foi feito e existiu antes deles, mas, apesar disso, há muitos novos que surgem, oriundos dessa massa de informações e experiências acumuladas que, de surpreendentes que são, acabam achando o caminho do livro e até mesmo de uma editora de porte. Ainda que uma tal situação de marginalidade seja, portanto, uma condição, ela não é impeditiva, pelo contrário, ela é um valor potencializador e capaz de gerar novos valores e potências.

Nunca tive ilusões quanto a isso, tanto que uma experiência importante que foi editar a revista BABEL, em 6 números em formato livro, um projeto coletivo, foi autofinanciado para não depender de vendagem. E, não acreditando na existência do mercado, que existe somente para um grupo de grandes editoras e algumas distribuidoras e redes de livrarias, a revista foi pensada para ser vendida apenas em lançamentos e ser distribuída de forma direta pelo correio para um grupo de escritores interessados.

Por ter feito isso com a BABEL sou constantemente cobrado a continuar a fazer, por essa experiência ter sido muito importante para uma quantidade de pessoas que perdi a conta de quantas seriam pois recebo manifestações constantes de leitores e escritores que estabeleceram alguma relação de afeto e valor com essa experiência e desejam sua continuidade. Talvez porque era uma revista aberta, em que interagíamos com os que escreviam e participavam dela. Foi uma experiência importante para estimular o trabalho de várias pessoas e até abrir caminhos, como foi o caso do Marcelo Ariel, que todos conhecemos, com dois livros publicados pelo Coletivo Dulcineia Catadora e que foi publicado pela primeira vez na Babel, que passou a ser, para ele, em Santos, uma referência e um rumo a seguir para escrever e sair do gueto da miséria favelada de Cubatão.

Mas fazer a revista de 2000 a 2004 e até hoje estar vivendo sua repercussão e desdobramentos em outras atividades que vamos fazendo como escrever, declamar, falar tem reafirmado a certeza de que é preciso criar projéteis, geringonças experimentais que têm a função de ignorar a lógica para propor outras concepções de pensamento , trazer à luz o esquecido, enfatizar o desprezado, situar-se deliberadamente à margem para buscar a inovação ou o diferente em relação ao que se tem como regra corrente . Se a clareza dos tempos em que vivemos nos diz não ser possível mais uma vanguarda , essa mesma clareza também nos ensina não ser possível o novo pelo novo. Daí a necessidade de mudarmos o foco em relação ao existente na medida em que , como uma câmera , direcionemos o olhar para outro ponto oculto, iluminando pontos frágeis e paradoxais desse sistema social e político injusto que combatemos o tempo todo , porém infindável na mesma medida em que se renova em sua onipotência econômica .

A idéia de marginalidade nos anos 70 assumia um tom idealista, romântico, ingênuo, por isso foi muito criticada e um livrinho do Glauco Mattoso, O que é poesia marginal , é esclarecedor quanto a isso. Por isso tenho clareza que essa idéia de marginalidade é para nós hoje muito mais prática e potencializadora e, sem ser saudosista com relação aos anos 70, repito aqui uma reflexão do Cacaso (1978), que é muito pertinente sobre isso que fazemos. Ele disse que:

  a distribuição manual do livro, ainda que a troco de algum dinheiro, atenua muito a presença do mercado, modificando funcionalmente a relação entre a obra, autor e público e reaproximando e recuperando nexos qualitativos de convívio que a relação com o mercado havia destruído (Cacaso, 1978:41).

Ou seja, é importante que o mercado cultural/editorial exista, é importante estar nele, ainda que ele seja um engodo e na medida em que isso seja possível, estar nos catálogos e nas feiras, mas é sobretudo ainda mais importante realizar ações independentes dele de forma a sair de sua lógica fria e calculista que neutraliza as afetividades, as trocas, as experimentações, transformando tudo em produto, em evento e logo na própria assimilação dos artistas e escritores à sua lógica que os transforma em trabalhadores, logo em escravos de uma demanda. Digo isso porque se isso acontece, é preciso sempre ter, como Woody Allen, um cantinho para ir tocar um instrumento fora da orquestra barulhenta que é o sistema.

Não importa, assim , a quantidade do que se faça, que é o valor que interessa ao mercado, mas a qualidade ou somatória de sentidos, ou seja, uma complexidade politizada, crítica, do que se publica ou faz. Essas práticas culturais que fazemos, portanto, não têm preocupação de vínculo com o mercado, sendo apenas o ato concreto da vontade de algumas pessoas que escrevem, pensam, sentem e vêem nisso um veículo de experimentação, de expressão de leituras e de reflexão sobre suas próprias escritas e ações, na medida em que se confrontam com outras e dialogam com um número de pessoas possível.

Ações pessoais, isoladas, são fundamentais, na medida em que sejam críticas, autocríticas, reflexivas, mas são ainda mais potentes e problematizantes na medida em que busquem criar comunidades, realizar ações coletivas, tal como uma ótima definição de Hakim Bey (2001), segundo a qual importa criar “zonas autônomas temporárias” de combate, agindo com uma práxis que não seja apenas individual, mas que busque criar novas comunidades fora do instituído existente, e sobretudo comunidades informais, para estabelecer diálogos possíveis e livres, atingindo novas composições, visando abalar a lógica vigente dos espaços estabelecidos com a incorporação de novos sentidos e vozes, alcançando as contaminações sugeridas pelo Carlos Pessoa Rosa.

Por isso, para mim, sendo crítico a esse estado de coisas que é o Brasil Grande oficialesco, é fundamental ter livro publicado pela Dulcineia Catadora, pois esse é um projeto que se comunica diretamente com o meu entendimento do que seja ação de cultura crítica ao sistema. Como escritor, como poeta, estou numa situação de identidade de marginalidade social com os catadores de papel na medida em que praticamente não existo neste país de analfabetos, escrevo a duras penas e não publico porque o sistema não dá valor a isso que faço. Sou, assim, um catador de palavras como os catadores o são de papéis e unindo esses dois sentidos alcançamos uma ação crítica e de intervenção que faz pensar e mobiliza pessoas. Já distribuí 200 exemplares desse meu livro saído pelo Coletivo Dulcineia Catadora e a resposta tem sido tal qual o Cacaso comentou e repito:

  a distribuição manual do livro, ainda que a troco de algum dinheiro, atenua muito a presença do mercado, modificando funcionalmente a relação entre a obra, autor e público e reaproximando e recuperando nexos qualitativos de convívio que a relação com o mercado havia destruído (Cacaso, 1978:41). .

 

Breve Histórico do Coletivo Dulcineia Catadora

 

Dulcinéia Catadora é um coletivo de pessoas que tem por objetivo editar livros com capas de papelão e papel reciclado em oficinas de aprendizado de arte, contando com a participação de artistas , escritores, catadores de papel e de filhos de catadores, os quais são os principais produtores dos livros. Participam também das oficinas adolescentes em situação de risco, morando em abrigos de menores e pessoas com problemas mentais. O coletivo trabalha em sistema de cooperativa em uma sala de 15 metros situada na Vila Madalena, em São Paulo , envolvendo cerca de dez pessoas. O projeto gráfico, a pintura das capas, a montagem dos livros é feita artesanalmente por esses meninos, que integram a equipe e são estimulados a estudar e se aperfeiçoar fazendo cursos como editoração eletrônica. O trabalho é coordenado pela artista plástica Lúcia Rosa e vários são os escritores que colaboram na seleção de textos e/ou na divulgação do trabalho do coletivo, como Glauco Mattoso, Marcelino Freire, Joca Reiners Terron, Carlos Rosa, Xico Sá, Douglas Diegues, Carlos Pessoa Rosa, Ademir Demarchi, Flávio Viegas Amoreira, Marcelo Ariel...

O coletivo iniciou suas atividades em fevereiro de 2007 acreditando no papel social e político da arte e suas ações se nortearam por três frentes: artística, social e cultural. Seus objetivos são a valorização dos catadores, a inclusão social , procurando abrir novas possibilidades de atividades profissionais e desenvolver o potencial artístico dos participantes. As atividades no ateliê, que visam também gerar renda para os jovens envolvidos promovem a auto-estima, a troca de experiências e estimulam o prazer de criar .

Na seleção de autores, a preferência é por textos de caráter social e político . A irreverência , o questionamento de valores sociais , o tratamento de temas ainda considerados tabus em pleno século vinte e um são outros aspectos presentes na maioria das obras publicadas pelo projeto . O coletivo conta com a colaboração de autores renomados, como Manoel de Barros, ao mesmo tempo em que procura dar voz a pessoas às vezes em situação de rua, que dificilmente teriam chance no mercado editorial.

Dulcinéia Catadora integra a rede de selos cartoneros na América Latina : além do Eloísa na Argentina, existe um núcleo no Peru , o Sarita Cartonera, o Yerba Mala na Bolívia, Yiyi Jambo no Paraguai, Animita no Chile, La Cartonera no México, entre outros. Esses projetos-irmãos abrem a possibilidade de divulgação de escritores por toda a América Latina , trabalhando na contramão do mercado editorial , trilhando caminhos paralelos na história da literatura latino-americana e as coleções de livros têm sido solicitadas por bibliotecas européias e norte-americanas, evidenciando que se tornou um fato social e cultural importante neste cenário de globalização econômica, pasteurização de culturas e marginalização de imensos contingentes de pessoas, entre os quais artistas e escritores que primam pela reflexão desse contexto.

 

Títulos Publicados

 

Ademir Demarchi - Do Sereno que Enche o Ganges

Alice Ruiz - Salada de Frutas

Almandrade - Malabarismo das Pedras

Antonio Miranda - S. Fernando Beira-Mar

Camila do Valle - Roubei e Engoli um Colar

Carlos Pessoa - Rosa Não Sei Não/Sobre o Nome Dado

Celso de Alencar - Livro Obsceno

Coletânea - Uma Antologia Bêbada

Douglas Diegues - Uma Flor/Rocio

Eunice Arruda - Olhar

Flávio Amoreira - Oceano Cais

Glauco Mattoso - Delírios Líricos/A Bicicleta Reciclada

H. de Campos - O Anjo Esquerdo da Poesia

Índigo - A Minhoca Eulália e Outras Histórias

João Filho - Três Sibilas

Joca Reiners Terron - Transportunhol Borracho

Jorge Mautner - Susi

José Geraldo Neres - Pássaros de Papel

Lau Siqueira - Aos Predadores da Utopia

Lisette Lagnado - Rirkrit e Thomas, em obras

Luis Chaves - Anotações para uma Cúmbia

MaickNuclear - Meu Doce Valium Starlight

Manoel de Barros - Auto-retrato aos 90 anos

Marcelino Freire - Sertânias

Marcelo Ariel - Me Enterrem com a Minha AR 15 e O céu do fundo do mar

M. D'Ávila e V. do Val - Do Nada ao Infinito

Plínio Marcos - Homens de Papel

Poetas da Cooperifa - Sarau

Ronaldo Bressane - Corpo Porco Alma Lama

S. Nicomedes - Cátia, Simone e Outras Marvadas

Teruko Oda - Vento Leste

Vera do Val - Os Filhos do Marimbondo

Virgínia de Medeiros - Studio Butterfly

Whisner Fraga - O Livro dos Verbos

Wilson Bueno - Chuvosos/Ilhas

Xico Sá - Tripa de Cadela

 

Contatos:

dulcineiacatadora.pedidos@gmail.com

http://noticiasdacatadora.blogspot.com/

Bibliografia

BEY, Hakim (2001). TAZ – Zona Autônoma Temporária . São Paulo: Conrad Editora.

CACASO [Antônio Carlos de Brito] (1978). Tudo na minha terra. Bate papo sobre poesia marginal. São Paulo: Almanaque, n.º 6.)

Entrevista com Lúcia Rosa, do Coletivo Dulcineia Catadora, feita por Carlos Pessoa Rosa em 13/7/2009: http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=1014

Notícia saída na Folha de S. Paulo de 15/07/2009, “Editora que usa papelão para confeccionar livros já publicou obras de Xico Sá e Manoel de Barros”:

  http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u591879.shtml

Download versão .pdf

 
 
 
Direitos Reservados Neamp, 2008. Desenvolvido por Syntia Alves e J.M.P.Alves. Versão html - Gustavo Araújo