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Picasso: das questões políticas a subjetividade.
Luis Fernando Zulietti*

Resumo: Com base na série das 156 últimas gravuras de Picasso, este artigo pretende enfatizar o artista político e suas lembranças mais íntimas gravadas nesta série . Nela Picasso apresenta o prazer do mistério, por considerar a gravura como uma arte privilegiada à qual confiava de bom grado suas reflexões pessoais, seus pensamentos mais íntimos de política, liberdade e independência artística.  

Abstract: Based on the series of Picasso's last 156 engravings, this article questions whether a work of art is enough to save us and give us our inner freedom back. On his last 156 etching engravings, Picasso presents the pleasures of mystery, considering engraving a privileged art to which he willingly trusted his personal reflections, his most intimate thoughts on politics, freedom and artistic independence.

Based on the series of Picasso's last 156 engravings, this article aims to emphasize the political artist and his most intimate memories, recorded in the series. In it, Picasso presents the pleasure of mystery, considering engraving a privileged art to which he willingly trusted his most intimate thoughts about politics, artistic freedom and independence.

Introdução

O que é que você acredita que seja um artista? Um imbecil que só tem olhos, se for pintor; ouvidos, se for músico; ou uma lira em todos os andares do coração, se for poeta; ou, mesmo, se for boxeur, somente músculos? Muito pelo contrário. O artista é, basicamente, um ser político, constantemente alerta perante os dilacerantes, ardentes ou doces acontecimentos do mundo, moldando-se inteiramente à sua imagem. Como seria possível desinteressar-se dos outros homens, e em virtude de que uma vida que eles nos trazem tão abundantemente? Não, a pintura não foi feita para decorar as habitações. É um instrumento de guerra, ofensivo e defensivo, contra o inimigo”. (PICASSO em JONIO, 1972 ).

A função da Arte é fugaz como a função do sagrado, que é ao mesmo tempo uma necessidade necessária para o nosso eu interior.

Na verdade, uma obra de arte é por si uma criação de laços. Laços que proliferam a capacidade de expor questões políticas, questões subjetivas.

“O artista que vive e trabalha de acordo com seus valores não pode e não deve ficar indiferente aos conflitos internos onde os valores mais importantes da humanidade e da civilização estão em risco” (PICASSO em JONIO, 1972).

O artista deve e pode pintar uma obra a partir do seu sentimento, ou apenas as imagens que o atraem como indivíduo, mas, ele tem que ser mais, tem que expor sua época, seus conflitos políticos, seus conflitos sociais, tudo isso é essencial para a arte. O artista na essência é puro sentimento em relação ao mundo que vive, além de suas relações pessoais, familiares, amorosas, sociais e políticas. O artista é como um arquivo que guarda e repassa as informações, acontecimentos e fatos que estão em curso em nossa sociedade, expressando cada um de sua maneira.

Para Picasso “a pintura não é para decorar paredes, é um instrumento de guerra para ataque e defesa contra o inimigo”. “ Mesmo que eu não tenha pintado politicamente, o significado político está presente ali, quer você tenha conscientemente pensado nisso, quer não”. Como relata para Jerome Seckler em conversa sobre Guernica 1945 1:

Lembrei a Picasso que muitas pessoas estavam dizendo que agora, com sua nova filiação política, ele tinha se tornado um líder cultural e político do povo, que sua influência em favor do progresso poderia ser tremenda. Picasso assentiu seriamente com um movimento de cabeça e disse: “ sim, compreendo isso.” Disse-lhe como o havíamos discutido com freqüência em Nova York , especialmente o mural Guernica.

Falei da significação do touro, do cavalo, das mãos com as linhas, etc. e da origem dos símbolos na mitologia espanhola. Picasso continuou sacudindo a cabeça enquanto eu falava. “Sim”, disse ele, “ o touro representa a brutalidade; o cavalo, o povo. Sim, ali usei o simbolismo, mas não nos outros”.

Expliquei minha interpretação de dois de seus quadros na exposição, um dos quais mostrava um touro, uma lâmpada, uma paleta e um livro. O touro, disse eu, deve representar o fascismo; a lâmpada, pelo seu forte brilho, a paleta e o livro representavam a cultura e a liberdade, as coisas pelas quais lutamos, e o quadro mostrava a luta feroz entre os dois.

“Não”, disse Picasso. “O touro não é o fascismo, mas é a brutalidade e as trevas”.

Disse- lhe que agora esperávamos talvez uma modificação, um simbolismo mais simples e mais claramente compreensível dentro de seu estilo pessoalíssimo.

“Meu trabalho não é simbólico”, respondeu ele. “Só o mural Guernica é simbólico. Mas no caso do mural, ele é alegórico. Foi por isso que usei o cavalo, o touro, e assim por diante. O mural é a expressão definida e a solução de um problema, e por isso usei o simbolismo”.

“Certas pessoas”, continuou ele, “consideram meu trabalho de certo período como “surrealista”. Não sou surrealista. Nunca estive fora da realidade. Sempre estive na essência da realidade (literalmente, no “real da realidade”). Se alguém desejasse expressar a guerra, poderia ser mais elegante e literário, fazer um arco e uma flecha, porque isso é mais estético; mas para mim, se quero expressar a guerra, uso uma metralhadora! Chegou o momento, nesta fase de mudanças e revoluções, de usar uma maneira revolucionária de pintar, parar de pintar como antes”. Olhou-me então diretamente nos olhos e perguntou: “ vous me croirez ” (Acredita em mim?)....

Mas, insisti, “você pensa e sente profundamente as coisas que estão afetando o mundo. Você reconhece que aquilo que está em seu subconsciente é um resultado de seu contato com a vida e seus pensamentos e reações diante dela. Não seria por mero acaso que você usou precisamente esses objetos e os apresentou de determinada maneira. O significado político dessas coisas está ali, quer você tenha conscientemente pensado nisso, quer não”.

“Sim”, respondeu ele. “O que você diz é verdade, mas não sei dizer por que usei tais objetos. Eles não representam nada em particular. O touro é um touro, a paleta é uma paleta e a lâmpada é uma lâmpada. Apenas isso. Mas não há aí, para mim, nenhuma ligação política definida. Trevas e brutalidade, sim, mas não o fascismo”.

Fez um gesto mostrando o desenho colorido do copo e limão. “Aí estão um copo e um limão”, disse, suas formas e suas cores, vermelhos, azuis, amarelos. Você pode ver alguma significação política nisso?

“Simplesmente como objetos, não”, respondi.

“Bem, continuou ele”, “o mesmo acontece com o touro, a paleta e a lâmpada”. Olhou-me com intensidade e continuou: “Se eu fosse um químico, comunista ou fascista, se fizesse uma mistura de líquido vermelho, isso não significaria que eu estava fazendo propaganda comunista, não é? Se eu pintar uma foice e um martelo, poder-se-ia ver aí uma representação do comunismo, mas para mim é apenas uma foice e um martelo. Quero apenas reproduzir os objetos como são, e não pelo que significam. Se você der significado a certas coisas em meus quadros, isso pode ser verdadeiro, mas não foi minha idéia dar-lhes tal significado. As idéias e conclusões que você tem, eu também as tive, mas de maneira instintiva, inconsciente. Eu faço a pintura pela pintura. Pinto os objetos pelo que eles são. O objeto está em meu subconsciente. Quando as pessoas olham para ele, cada uma delas deduz desse objeto um significado diferente de acordo com o que vê nele. Não penso em tentar transmitir um significado específico. Não há em minha pintura um sentido deliberado de propaganda”.

“Exceto em Guernic a”, disse eu.

“Sim”, respondeu Picasso. “Exceto em Guernica . Ali há um apelo deliberado ao povo, um sentido deliberado de propaganda...”

“Sou comunista e minha pintura é comunista”... “Mas, se eu fosse um sapateiro, um monarquista, um comunista ou o que quer que seja. Eu não martelaria necessariamente meus sapatos de uma maneira especial para mostrar minha posição política”. (CHIPP, 1988, pp. 494-496).

Na arte tudo pode. A irregularidade é beleza, a regra é uma constante repetição. Antes de ser regra era irregularidade. No começo a regularidade era também beleza, mas transformou-se numa corrente de repetições, deixou de ser beleza. A repetição de uma flor ou de uma moça durante milênios de primaveras e de gerações é certamente um acontecimento sempre bonito. Mas beleza em arte é revolução; quando um gesto de revolta se transforma em ritual já não é mais revolta. O ritual pode ser sinal de poder mas não de rebelião, liberdade. A beleza pode ser o sinal de tradição em arte, não a presença da arte.

“Os sinais de morte da Arte podem ser muitos. A Arte morreu, viva a Arte. Idênticos são os sinais da Arte que retoma vitalidade no sentimento e na sociedade humana. Entre a Arte morta e a Arte viva há sempre uma paridade de contas. O resto é teoria”. (JONIO, 1944)


A arte como consciência da liberdade

“Digo-o com orgulho, nunca considerei a pintura como uma arte de puro entretenimento e distração. Através do desenho e da cor, pois que eram estas as minhas armas, pretendia penetrar de forma cada vez mais profunda no conhecimento do mundo e dos homens, para que este conhecimento nos fizesse mais livres dia após dia...Sim, tenho consciência de ter lutado com a minha pintura como um verdadeiro revolucionário” (PICASSO em WALTHER, 1994 ).

Segundo Schapiro (2002, p. 17) “a arte de Picasso é para nós hoje um exemplo de obra consolidada, e não pode ser descrita em termos de um único conjunto de características”.

Um dos aspectos mais importante de sua obra é o fato de sua obra apresentar uma consciência. Todo conjunto de sua obra emana um mundo pessoal de reminiscências da infância e de fantasias associadas à acontecimentos políticos e pessoais. Todo esse conjunto de obra fortaleceu o processo criador, e de aparente transformação. Picasso foi capaz de assimilar completamente novas experiências, que dependiam em última instância do poder do olhar e da mão, numa mente, num corpo altamente sensível, reativo, responsivo, e que sente cada momento um acontecimento político, a força do poder e da opressão.

O poder oprime. Como tentar ser livre? A guerra Inútil. Não existem guerras de libertação. Antes que a guerra acabe, o poder, contra o qual combatemos, mudou de fachada e mentalidade. O poder evolui. O poder “produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade” (FOUCAULT, 2002). E é justamente por possuir essa eficácia produtiva que o poder volta-se para o sujeito, ou mais especificamente, para o corpo do sujeito, não essencialmente para reprimi-lo, mas para adestrá-lo, torná-lo dócil e útil para a sociedade (FOUCAULT, 2002)

Se o poder, durante os milênios da existência humana, parece indestrutível, o que nos resta fazer para sermos livres? Existe um caminho: a arte como consciência da liberdade e a sabedoria de chamar o poder pelo nome verdadeiro: poder. Não confundi-lo nunca com liberdade, o que, infelizmente, acontece. A realidade da política está sempre sobre o altar profanado da liberdade e da revolta. O homem lá esta, pronto a ser iludido. E o que sobra? A revolta constante da Arte. Não a guerra de todos, mas a guerrilha cultural. Nunca será possível a auto-rebelião mundial contra o próprio mundo (sistema). O engano sobre a liberdade nos separa sempre. Resta então, só esta vigilância exercida por quem é levado por um destino misterioso a esta função: o artista. Portanto: arte como guerrilha cultural. A sociedade pode revoltar-se chamando o opressor por seu nome: poder e subentendendo-o a um ao outro, a verdadeira liberdade. Para Sartre, “o homem é livre para construir a sua própria vida”. “O homem é vítima de sua própria liberdade”.

“Devemos entender a liberdade como uma série de movimentos abruptos e caprichosos... Sou livre para querer não importa o que, não importa quando?” (SARTRE, 1997 p. 558). Independência é algo para bem poucos: - é prerrogativa dos fortes. E quem procura ser independente sem ter a obrigação disso, ainda que com todo o direito, demonstra que provavelmente é não apenas forte, mas temário além de qualquer medida. (NIETZSCHE, 2005 p.34).

Liberdade, independência, livre-arbítrio, autodeterminação, que tenebro mistério encerram estas palavras! “Se nada disto houvesse no âmbito do Universo, não haveria possibilidade do impuro, do feio, do mau. ( ROHDEN, 1990, p.39).

O mais profundo substrato do Universo parece, por conseguinte, ser dualidade e não unidade, como estabeleceu a filosofia e religião de Zoroastro ( Zaratustra), proclamando os dois princípios eternos da Luz e Das Trevas, do Bem e do Mal, de Deus e do Diabo, em interminável conflito. ( ROHDEN, 1990, p. 39).

Não podemos esquecer que esta dualidade leva a verdadeira arte, arte tem de levar o homem da semi consciência para a plena consciência; da Visão parcial da verdade sobre si mesmo para a visão total, porque somente a visão da verdadeira arte é que libertará o homem. Assim a purificação libertadora do homem processará, através de três estágios evolutivos: da escravidão inconsciente, através da escravidão consciente, até à libertação consciente. A verdadeira arte tem, pois, um caráter ético, isto é, fornece novos conhecimentos. Não se conhece apenas pela inteligência mental, conhece-se também pela inteligência emocional; conhecemos não só pelo entender, mas também pelo querer, pelo amor. (ROHDEN, 1990, p. 52). É como a arte integral é a síntese do entender mental e do querer compreender ou saber da razão, segue-se que a filosofia associada à arte é uma fonte de novos conhecimentos, de novos caminhos, de novas esperanças, de nova liberdade. (ROHDEN,1990, p.52).

“Entender mais querer dá compreender. Entender é do intelecto. Querer é da vontade. Compreender é da razão. Filosofia e arte são suprema racionalidade compreensiva. A humanidade está numa dolorosa incubação, preludiando gloriosa eclosão”. (ROHDEN,1990). Costuma –se afirmar que em sua obra patológica Picasso criou deliberadamente uma imagem feia e repugnante da realidade contemporânea, afim de provocar o ódio do espectador contra a sociedade. Segundo Chipp (1988, p. 501) “ Picasso reflete com exatidão a sua época”. Eis, por exemplo, o que o crítico francês Anatole Jakovski em seu artigo em Arts de France: “Nada do que é humano é alheio a Picasso. Ele vê tudo o que é humano exatamente como é, com todos os seus males e sua feiúra”. Ele vê o homem político com todas as suas entranhas, o bem e o mal. É só pensarmos nos vilões de Shakespeare: Iago, MacBeth, Ricardo III. Picasso é a prova que um gênio não pode deixar de refletir os melhores e os piores aspectos de sua época, com todas as suas contradições mais flagrantes. Por essa razão Picasso como artista integral, gênio-talentoso e consciente, nos concebe a fonte do infinito e nos da á luz através de canais finitos. Essa energia política, criadora e libertadora é a característica máxima de Picasso em suas 156 últimas gravuras.


As 156 últimas gravuras: reveladora, libertadora, que agita o mistério da mente do artista.

Que obra de arte é o homem: tão nobre no raciocínio; tão vário na capacidade; em forma e movimento, tão preciso e admirável, na ação é como um anjo; no entendimento é como um Deus; a beleza do mundo; o exemplo dos animais”. (Hamlet, William Shakespeare)

A série 156 gravuras na verdade, conta com 157 águas-fortes e foram criadas entre 1970 e 1971. Picasso representou bordeis onde inseriu entre outros personagens, e a si próprio como nonagenário espectador..... Após tantas criações fabulosas, com um passado de mais de sessenta e cinco anos de obras gravadas, que somam quase 2200 peças, Picasso ainda iria descobrir novos processos e abrir outras portas; a firmeza, tanto de seu espírito independente como de sua mão forte, ainda iriam nos deixar perplexos! Com tanta liberdade.

Em 15 de janeiro de 1970, o artista ataca um cobre de dimensões bastante grandes (32 x 42 cm ), trabalho considerável a ponta que exigiu nove estudos: os quatro primeiros a água-forte, os dois seguintes a ponta-seca e gratador e os três últimos a gratador. Trata-se de um grande rosto masculino de Ícaro dominando uma mulher nua, deitada de lado, num ambiente escuro (ver gravura 1).

 

Gravura 1: La chute d'Icare , água forte, 32 x 42cm, ponta seca e gratador,1972. .(Galeria Louise Leiris, Paris).

Fonte: PERSSERON, 1986.

 

A gravura La Chute d'Icare uma das mais escuras e uma das mais belas gravuras da série onde Picasso trabalha ao mesmo tempo água-forte, e a ponta seca e o gratador no cobre onde trata o tema e denota qualidade gráfica inigualáveis, altíssimo nível. A pureza do traço desse desenho impecável alia-se, de maneira inesquecível ao clima geral de puro erotismo, paz e reflexão.

Segundo Schapiro ( 2002, p.49) “ Picasso é um dos primeiros artistas modernos a ler os mitos gregos. Picasso encontrou nessa literatura não a suavidade do classicismo acadêmico comum, mas temas de instinto, da violência primordial, de crueldade e sacrifício, e do conflito e arrebatamento das paixões”. Os gregos foram, para ele, os grandes primitivos, que também possuíam filosofia e ciência. Mas, nesses mitos, tentou conferir ao erótico e ao sentido do sádico e destrutivo, bem como aos temas de morte, seu valor máximo, em contraste com a celebração da estética ou da beleza nos mitos. Como podemos observar na gravura 2 La Chute d”Icare.

Ícaro deslumbrou-se com a bela imagem do Sol e, sentindo-se atraído, voou em sua direção, talvez inebriado pela sensação de liberdade e poder. A cera de suas asas começou rapidamente a derreter e logo caiu no mar. Mas para Picasso um mar com muitas mulheres onde Ícaro encontrou o poder e a liberdade subjetiva. Essa liberdade que procuramos dentro de cada um de nós. Uma liberdade individual, mas uma liberdade plena fora do controle social. .Assim, inspirado pela mitologia a queda de Ícaro nos leva as questões políticas mais íntimas e subjetivas de Picasso.

A beleza do corpo deitado no sofá, muito bem desenhado, vem juntar-se a sobriedade e o extraordinário olhar das mulheres em cena, traçadas com exatidão. Mas o ponto principal é o olhar masculino de Ícaro, para o espectador, o elemento dominante da gravura: enquanto as mulheres o rodeiam de tanta belaza, nos levando a realidade dos maravilhosos Bordeis . Tudo isso desenhado com vários traços de ponta seca, por uma mão genial. É mais uma obra-prima de Picasso.

É o ponto de partida de uma sucessão de gravuras, criadas durante cinco meses de trabalho praticamente diário, que representam mais de um terço da série das 156. Essa série será retomada e praticamente terminada durante o primeiro semestre de 1971.

Picasso continuará a seduzir-nos, ainda mais por suas gravuras que por seus últimos quadros. Não resta dúvida de que se serviu da gravura, muito mais do que qualquer outra forma de expressão artística, para transmitir sua mensagem muito profunda de liberdade e independência política, seus temas favoritos, suas reflexões e obsessões encontram-se, perseguem-se, debatem-se nessa série prodigiosa das 156. Pois, se é bem verdade que a qualidade plástica e gráfica que sempre o caracterizaram se manifestam tanto em suas pinturas como em seus desenhos, esculturas e cerâmicas, foi somente em suas gravuras que o artista introduziu a noção de mensagem, um pouco de enigma... “Arte representa sempre a fase exterior da alma humana, do mistério do infinito que nela se agita”. (UBALDI, 1999, p. 358) Como tudo o que existe tem um rosto, expressão da alma, uma revelação do pensamento divino em que o universo fala incessantemente, assim a arte é revelação do espírito: tanto mais valerá quanto mais a forma for transparente e simples. (Idem). Cada gravura importante dessa série encerra mistérios e reminiscências que, baseados no conhecimento que temos de sua obra, conseguimos compreender e desvendar. Mas, como na gravura de Serenade au Bordel 1971 (ver gravura 2), restará sempre uma parte misteriosa, tal a riqueza e a força dos sinais, dos símbolos e das referência do artista para política, liberdade e independência.

 

Gravura 2: Serenade au Bordel, água-forte, ponta seca, 32 x 42cm,1971.(Galeria Louise Leiris, Paris).

Fonte: PERSSERON, 1986.

 

Não porque Picasso tenha pretendido uma apresentação esotérica qualquer, pelo simples prazer de ser misterioso, mas por que sempre considerou a gravura como uma arte privilegiada à qual confiavam de bom grado suas reflexões pessoais, seus pensamentos mais íntimos, suas mais caras lembranças. Observando a gravura 2 “Serenade au Bordel”, Picasso nos leva as nossas mais intimas reflexões, sobre moral e pudor, como uma arma para nossas liberações.

A gravura Serenade au Bordel é uma imagem esplendidamente iluminada; a luz inunda a cena de uma alegria dionisíaca, dividindo a cena em duas partes as mulheres deitadas no sofá e o tocador de viola e a mulher atrás do sofá, ambas maravilhosas. A parte branca de grande superfície atrás da cena da gravura funciona como equilíbrio entre a água-forte e a ponta seca. Os tons de cinza, tanto no envolta do cabelo, como em volta da cena dos seus corpos e em volta do tocador de viola, são de grande agressividade e primorosa sutileza, que contribuem substancialmente para o encanto que a cena emana. Tudo nessa gravura são sensualidade e beleza pura, os corpos das mulheres deitadas no sofá durante uma serenata musical são puro êxtase. A combinação das técnicas denota magistral equilíbrio. Ao mesmo tempo desenhada em ponta seca e água-forte, constituem ao mesmo tempo uma delicadeza e a beleza de seus tons de cinza e preto isso nos dá a verdadeira noção das qualidades pictóricas da maioria das gravuras picassianas. A gravura Serenade au Bordel nos transporta a Paris da década de 20 e 30.

E tudo isso se concentra, com maior intensidade talvez, nessa série das 156 últimas gravuras. Conforme Pesseron (1986) Seu amigo, o poeta e escritor Michel Leris escreveu, no início do prefácio de apresentação dos desenhos picassianos de 1966-1967: “Não fora do tempo, mas para um tempo em que nada chega a ser anacrônico, é para lá que se transporta aquele que observa essas folhas em que Picasso registrou e, às vezes justapôs, figuras de todos os estilos e de qualquer século, idade sem idade da mitologia, época dos antepassados saídos de suas molduras, dias de ontem e de hoje”. O segredo de uma grande arte consiste em saber realizar o milagre da revelação do mistério das coisas; em saber exprimi-lo à luz dos sentidos, após íntima e profunda comunhão com o mistério que palpita na alma do artista. Este tem de ser um vidente, normal no supranormal, onde tudo é espírito e nossa concepção de vida comum não chega. A nova grande arte deve ser integral: presume o artista total, o super-homem que realizou sua maturação biológica; não um diagnostico meramente técnico, mas o espírito completo sob todos os aspectos. É indispensável que o homem tenha englobado em si a visão do universo, e nela tenha atingido as mais profundas concepções de vida. (UBALDI , loc. cit .)

Cerca de setenta personagens animam essa última série das 156 últimas gravuras: são personagens que se movimentam alegremente ou permanecem rígidas, que se beijam ou se contorcem. Espectadores ou atores no palco se entregam aos folguedos do circo da política e aos do amor, desenham sobre um tema, visitam casas de tolerância ou mostram sua nudez, oferecem flores ou manejam o pincel do artista, fazem propostas ou as provocam, representam adivinhos ou pitonisas, pessoas importantes ou prostitutas, pintores ou modelos, freqüentam os banhos turcos, teatro e a política, representam Celestinas ou matronas casadas, príncipes árabes de turbante ou noctâmbulos afortunados, palhaços ou amazonas do circo, tocadores de violão ou espadachins, Edgar Degas ou freqüentadores da Maison Tellier, as três Graças ou odaliscas, que freqüentam os haréns ou as arenas, as alcovas ou os gineceus, fantasiando-se de polichinelos ou vestindo fraque, que têm gestos eróticos ou sussurram ao ouvido, representam reis Herodes importantes ou Salomés frenéticas, apresentam flores ou membros viris, oferecem um pássaro ou um sexo entreaberto, tocam a flauta de Pan ou dançam com entusiasmo....( Idem). Como pode ser visto na gravura Repos deux files 1971 abaixo :

Gravura 3: Repos deux files, ponta seca e gratador, 32 x42 cm, 1971. .(Galeria Louise Leiris, Paris).

Fonte: PERSSERON, 1986.

 

A gravura Repôs deux files realizada em ponta seca e gratador, é também excepcional dentro da produção da série das 156 últimas gravuras produzida por Picasso, constituindo uma das mais eróticas e a mais perturbadora. Na narrativa da cena e a correlação da ilustração entre as duas mulheres, há sempre uma história que se insinua ou tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado. Picasso partiu de um cobre atacando a sua superfície em profundidade com o gratador e a ponta seca, em seguida, tratou seu tema, como se fosse o último, raspando e polindo o cobre.

Mais alguns riscos de ponta seca e a cena resplandecem. Fantasticamente iluminada pela parte esquerda do cobre. À direita, há duas mulheres de lindos seios de fora, a mulher da esquerda de perfil puro e angelical mostra sua parte mais íntima, e a outra mulher reflete uma expressão jovem e sem pudor, como se estivesse descansando de um dia de trabalho, compondo prodigiosamente nesta gravura um clima de sensualidade, liberdade e independência .

São duas figuras que nos levam a um mundo em movimento, onde não há lugar para o tédio, para o pudor e nem para regras, cuja contemplação faz com que dele participemos dessa independência, dessa liberdade interior que existe em todos nós, com alegria e euforia de seguirmos os nossos instintos.

Segundo Nietzsche( 2005 p.43). “É preciso testar a si mesmo, dar-se provas de ser destinado à independência e ao mando; e é preciso fazê-lo no tempo justo. Não se deve fugir às provas, embora seja porventura o jogo mais perigoso que se pode jogar, e, em última instância, provas de que nós mesmos somos as testemunhas e os únicos juízes” É preciso saber preservar-se : a mais dura prova de independência (NIETZSCHE, 2005 p.43).

“É preciso muito tempo para nos tornarmos jovens” (PICASSO em JONIO, 1972 ).

A série das últimas 156 gravuras, tão rica em belas peças, é uma prova de que a criatividade, a liberdade criadora e a independência de Picasso nunca se esgotaram. O que chama atenção é a força, a intensidade nesta série. Nos últimos anos de sua vida, esse ardor foi ainda mais violento e andava de mãos dadas com a excepcional energia física e política de ser artista, que, aliás, nunca o abandonou; e é graças a essa vitalidade incrível, que hoje podemos admirá-lo sob seus múltiplos aspectos. Principalmente como uma artista político, que proporcionou em suas obras a liberdade interior.

Notas

* Doutor em Ciências Sócias pela PUC-SP. Prof. da Faculdade FMA( Anhanguera), Facudade IBTA e do Colégio Objetivo, zulietti@directnet.com.br

1 Trecho de uma entrevista com Jerome Seckler, “Picasso Explains”, New Masses (Nova York), LIV, 11 (13 de março de 1945),p.4-7.

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