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A literatura como mercadoria em Budapeste, de Chico Buarque.

Carlos Rogério Duarte Barreiros*

Resumo : Neste artigo, defender-se-á a hipótese de que Budapeste ¸ de Chico Buarque, é romance que pode ser chamado obra de arte crítica , nos termos propostos por Miguel Chaia, uma vez que a estrutura do texto é reflexo do processo de reificação das relações afetivas, da arte e, no limite, da própria identidade do narrador e do autor. A relação do narrador com as línguas e com seu ofício determina contornos e princípios das relações pessoais, além de condicionar a estrutura do romance, sua composição como um todo e sua organização.

Abstract: In this article, I will defend the hypothesis that Chico Buarque's novel Budapeste can be classified as a work of art criticism, as proposed by Miguel Chaia, since the text' structure of reflects the reification process of relationships, art and the very identity of the narrator and author. The relationship between narrator and the languages and his own work determines outlines and personal relations principles, and creates the novels' structure, its composition as a whole and its organization.


A caminho do mercado búlgaro, onde ia comprar um ventilador, vi o livro numa vitrine e optei por ele, após constatar que um livro novo custava o mesmo que um ventilador usado.

Chico Buarque, Budapeste , p. 124

 

O primeiro contato com Budapeste , de Chico Buarque, talvez impressione fortemente o leitor brasileiro: primeiramente, pelo próprio nome do autor, compositor, dramaturgo e romancista, cujas canções marcaram os últimos quarenta anos do país; depois, pela orelha, em que podem ser lidos breves comentários sobre o romance, escritos por nomes consagrados da crítica literária, da canção popular, da literatura e do ensaio jornalístico. Todos esses elementos parecem conspirar para que Budapeste seja entendida – mesmo antes de começar a ser lida – como obra à sombra do próprio nome do autor, transmutado, ele próprio, em apelo de mercado. Em palavras mais simples, tudo parece sugerir que a obra de Chico Buarque, elogiada por José Saramago, José Miguel Wisnik, Caetano Veloso e Luís Fernando Veríssimo só pode ser boa , como se a credibilidade do nome do autor, por si só, dispensasse a análise detida do romance. Esse é o efeito que será investigado, de forma geral, neste artigo porque, como se observará adiante, ele é fundamental para a força de Budapeste .

As breves afirmações anteriores terão trazido à memória dos leitores algumas afirmações de Theodor Adorno em “O fetichismo na música e a regressão da audição” (2005: 66):

  Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento [sobre uma música de sucesso lançada no mercado] é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida.

Observemos, primeiramente, que o texto de Adorno se refere ao critério de gosto de um ouvinte de uma canção de mercado : a avaliação será positiva ou negativa de acordo com o sucesso da canção, isto é, com a opinião geral, que influencia a de cada um – e será deixado de lado o valor intrínseco da obra analisada. Arriscamos afirmar que a aceitação inicial dada ao romance Budapeste se deve a um processo semelhante: não se há de negar que – ao menos atualmente, entre uma determinada faixa do público brasileiro, a que Luiz Tatit (2004: 64) dá o nome de “elite popular” – Chico Buarque é uma unanimidade , isto é, faz sucesso não pelo valor intrínseco das canções que lança, mas porque as assina ; por mais crítica que seja sua obra, ela depende igualmente do mercado e de seus consumidores – que teriam transmitido, antes de ler Budapeste , a credibilidade do compositor Chico Buarque ao romancista Chico Buarque – o que se confirmaria, de certa forma, pelos nomes que assinam os comentários da orelha do livro.

É preciso ficar claro que a intenção das afirmações acima não é desqualificar as canções ou o romance de Chico Buarque, mas desvendar alguns processos da lógica de mercado em que se vê mergulhada até uma obra crítica e de qualidade intrínseca como a desse compositor e escritor. Pode soar como dilema que as canções – e o romance, como veremos – de um artista como ele estejam inseridas na roda viva alienante da indústria cultural. Trata-se de contradições sumariadas e examinadas por Miguel Chaia (2007: 35), ao comentar textos do mesmo Adorno:

  Qualidades específicas do objeto, sentimentos verdadeiros associados a ponderações políticas e táticas do artista, e certo desencanto e reconhecimento de que a obra de arte exige mais do que a simples entrega por parte do usufruidor são alguns dos elementos que fazem a arte “arrancar-se à existência”. Este resultado que passa a existir torna a arte possível, colocando-a como esperança aos desconsolados e permitindo a crítica da sociedade. Por isso, refletindo a partir da vida danificada Adorno entende que “a tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem”.

Acreditamos que Budapeste ¸ de Chico Buarque, ateia caos na ordem, na medida em que é obra de arte crítica , mais uma vez, nos termos de Miguel Chaia (2007: 23) – porque sua estrutura é reflexo do processo de reificação das relações afetivas, da arte e, no limite, da própria identidade do autor que a escreve, como se Chico Buarque pusesse em perigo a credibilidade adquirida nos últimos quarenta anos só para depois recuperá-la, porque o ato de expô-la ao risco já é, por si só, a ação por meio da qual exige de seu leitor mais do que mero desfrute.

Iniciemos, pois, a análise afirmando que o leitor sensível ao acabamento cuidadoso do livro – ou, se desejarmos, o leitor quase fetichista pelo produto que tem em mãos – não deixará de perceber que a contracapa contém uma versão espelhada da capa, com pequenas diferenças: em letras invertidas, lê-se Budapest , e não Budapeste ; no lugar de Chico Buarque , lê-se Zsoze Kósta – e formula-se, no mesmo momento em que são observadas essas pequenas disparidades, a pergunta que orientará as hipóteses de análise que serão apresentadas a seguir: se o espelhamento da capa e da contracapa sugere que o final e o início do romance são versões invertidas da mesma imagem, quem é Zsoze Kósta e por que ele é igualado a Chico Buarque antes mesmo de se iniciar a leitura do texto?

Por ora, digamos apenas que Zsoze Kósta é o narrador de Budapeste – o que se pode descobrir já no primeiro capítulo do texto, em que é possível observar a relação do narrador com línguas estrangeiras, primeiro traço que confere a ele as nuances que lhe orientarão o modo de narrar e que delinearão a estrutura do romance. “Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira” (BUARQUE, 2003: 05) – eis o primeiro período do texto, espécie de pedido de desculpas e, ao mesmo tempo, de ressentimento para com a professora de língua húngara que se diverte com a formulação algo ambígua de seu aluno, o mesmo narrador, numa conversa telefônica. A seguir, Kósta relata como chegou a Budapeste pela primeira vez e qual sua relação com idiomas estrangeiros, de modo geral, depois de lembrar-se de que “campainha em turco é zil”:

  Mas fiquei com o zil na cabeça, é uma boa palavra, zil, muito melhor que campainha. Eu logo a esqueceria, como esquecera os haicais decorados no Japão, os provérbios árabes, o Otchi Tchiorne que cantava em russo, de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil. Tenho esse ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender. (Ibidem: 07)

Para compreender quem é o narrador e qual sua relação com autor do texto, é sensivelmente fértil a expressão “suvenir volátil”: o suvenir é uma mercadoria vendida a turistas como produto característico do lugar visitado. Para Kósta, palavras, expressões, frases, poemas, canções, tudo que se refere a línguas estrangeiras é, portanto, mercadoria volátil . Como observaremos a seguir, essa relação com os idiomas é bastante importante na caracterização de Kósta: um ghost-writer , espécie de não-narrador , cujo ofício é marcado pela alienação da própria identidade e pela escrita volátil, adaptável às expectativas dos clientes e às demandas reprimidas de mercado. É essa relação de Kósta com as línguas e com seu ofício, a escrita, que dá os contornos e os princípios de suas relações pessoais e amorosas, além de determinar a estrutura do romance.

Não adiantemos, entretanto, as conclusões. Por ora, observemos também que, no fragmento destacado acima, Kósta afirma ter um “ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade” – outra expressão que terá feito os leitores se lembrarem do já citado artigo de Adorno (2005). É preciso lembrar que o filósofo, nesse texto, refere-se como infantis aos ouvintes do que chama de música ligeira , isto é, grosso modo, os gêneros musicais que floresceram associados aos meios de comunicação de massas e à indústria cultural. Mais uma vez, a aproximação com o romance de Chico Buarque é possível: não parece estranho que Kósta tenha ouvido infantil, afinal o narrador de Budapeste parece ser uma espécie de personificação ficcional do público de ouvido regredido, incapaz de apreender, no contexto do romance, não uma peça musical erudita, mas um idioma, seja ele qual for – incluído aí o materno. Essa incapacidade está diretamente associada à transformação da língua e de sua utilização artística em mercadoria – pois, para Kósta, a redação é meio de vida e seus textos são produtos rentáveis, aos quais não pode imprimir marca pessoal, mas que precisa produzir em série, como se fossem todos eles o mesmo texto e nenhum, fazendo da literatura mercadoria como qualquer outra. Lembremo-nos de que ao embarcar de volta ao Brasil, depois de uma parada imprevista em Budapeste, o narrador afirma que deslizou “até o portão de embarque através de um longo e cintilante território livre, um país de língua nenhuma, pátria de algarismos, ícones e logomarcas” (BUARQUE, 2003: 10) – espaço da mercadoria, espaço da ausência de sentido , como verificaremos.

Finalmente, o trabalho de Kósta, sempre assinado por outros que nada ou quase nada tiveram que ver com sua confecção, acaba por levá-lo à alienação da própria identidade, na medida em que ela está sempre oculta ou, se quisermos, submetida à lógica do mercado – ser ninguém , experimentar o anonimato é precioso para que o ghost-writer mantenha a clientela. Ao final do romance, essa mesma imagem estará invertida: o narrador anônimo tornar-se-á célebre por meio de um livro que não escreveu e sua única forma de afirmar a própria identidade será a negação da autoria . É esse processo que fará que as relações pessoais de Kósta – sempre mediadas pela comunicação por meio das palavras e, conseguintemente, pelo mercado – se deteriorem e se reifiquem.

Tomando a Antonio Candido (2000: 08) as expressões que esse autor utiliza para explicar os efeitos de sentido e a estrutura de Senhora , de José de Alencar, pode-se afirmar que, em Budapeste , a reificação das relações afetivas e da arte está sugerida “na própria composição do todo e das partes, na maneira por que organiza a matéria, a fim de lhe dar uma certa expressividade”. Com efeito, Kósta compra, furta, “fila” palavras como suvenires voláteis, lembranças que podem ser jogadas fora depois com facilidade, exatamente porque a fala é passageira, descartável: “e pensei que poderia ao menos filar umas palavras deles” é frase que se pode ler ainda no primeiro capítulo (BUARQUE, 2003: 10). É no segundo, contudo, que o narrador relata as origens da Cunha & Costa Agência Cultural, em que presta serviços de redação aos clientes angariados por seu sócio, Álvaro. As expressões que associam o ato da escrita à produção de mercadorias em série são abundantes:

 

Ela [Vanda] me conheceu já bastante aprumado, ignorava o quanto o Álvaro acreditara e investira em mim . (Ibidem: 15, grifo nosso)

Até não-clientes se gabavam por aí de terem dispensado suas assessorias, pagando um pouco mais por nossos serviços diferenciados , o Álvaro falava essas palavras. (Ibidem:17, grifo nosso)

De qualquer maneira, ao alardear na praça a nossa fábrica de textos , tinha agora o cuidado de omitir meu nome (Ibidem: 17, grifo nosso)

Nos três fragmentos acima, destacamos as expressões que apontam a atividade da escrita transformada em mercadoria. Na primeira, “investira em mim”, o verbo investir , do ponto de vista semântico, exigiria, vulgarmente, como complemento, um termo que não designasse pessoa , mas coisa : é o contrário do que ocorre no texto, o que parece fazer de Kósta um ativo da Cunha & Costa Agência cultural, por mais que seja tratado por Álvaro como sócio. No segundo fragmento, percebe-se que a escrita não é vista como arte, mas como prestação de serviço , o que lhe confere caráter utilitário. Finalmente, no terceiro fragmento, a expressão “fábrica de textos” deixa insuspeita a espécie de relação que existe entre Kósta e Álvaro: este é o investidor, aquele é o investimento ; Álvaro é o proprietário, possuidor do capital e dos contatos; Kósta é o artesão, capital humano – não diremos artista – cujas obras acabam por assemelhar-se umas às outras, embora versem sobre temas diferentes e destinem-se à impressão, como textos acadêmicos, ou à leitura em voz alta, como discursos políticos.

As relações pessoais de Kósta – especialmente com a esposa Vanda, com o filho Joaquinzinho e, posteriormente, na cidade de Budapeste, com a professora de húngaro e depois namorada Kriska – são determinadas também pela relação do narrador com as palavras. O fragmento a seguir ilustra o que pretendemos explicar. As horas de trabalho exaustivo na agência fazem que a esposa de Kósta amaldiçoe-lhe a ocupação. Ele relata, entretanto, que, na agência, não trabalhava, mas lia os textos que escrevera:

 

Naquelas horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele. (BUARQUE, 2003: 17,18)

Uma das acepções da palavra ciúmes é medo de perder alguma coisa ; os ciúmes parecem estar sugeridos, portanto, no contexto, como exagero do sentimento de posse – e só os sentirá aquele que tiver medo de perder o outro, que vê como objeto. Kósta sente ciúmes ao contrário de seus textos – isto é, não o medo de perdê-los, mas o gozo de vê-los perdidos, já assinados por estranhos. É essa vaidade – “vaidade mesmo, com desejo de jactância e exibicionismo” (Ibidem:18) – que arruína o casamento do narrador, fazendo-o mudar-se para a agência – o que, por si só, já expressa que o local de trabalho tornou-se o lar do narrador. Note-se: o espaço que deveria ser destinado às atividades práticas do cotidiano, repetidas maquinalmente, transforma-se no ambiente afetivo por excelência: “Dispensei a sopa [que Vanda preparara], abandonei o lar com a roupa do corpo e me ajeitei na agência, onde ficava namorando meus artigos até adormecer no sofá” (Ibidem: 19, grifo nosso). Na expressão grifada, pode-se flagrar a falência da relação afetiva com a esposa, que dá lugar à relação amorosa – se é que é possível concebê-la – com o produto do trabalho. No romance, Álvaro investe em Kósta; este é o operário na fábrica de textos criada com o capital daquele; Kósta enamora-se de seus próprios textos , dos quais sente ciúmes ao contrário .

O levantamento de expressões que apontam para a reificação das relações afetivas pode ser feito ao longo de todo o Budapeste . Não será exagero afirmar, pois, que esse processo é fundamental para a estrutura e para a compreensão geral da obra. Em palavras mais simples: a profissão de ghost-writer não só determina as relações afetivas do narrador, como também orienta a escrita do próprio Budapeste .


Quem é Zsoze Kósta? Esse narrador tem credibilidade?


A resposta à primeira pergunta é irrelevante: da mesma forma que mercadorias produzidas em massa ou que operários envolvidos no processo produtivo – aludir à imagem conhecidíssima dos Tempos Modernos de Chaplin é desnecessário –, José Costa é ninguém e nada, é anônimo, peça dispensável da fábrica de textos em que é operário:

 

É que comigo as pessoas sempre puxam assunto, julgando conhecer de algum lugar este meu rosto corriqueiro, tão impessoal quanto o nome José Costa; numa lista telefônica com fotos, haveria mais rostos iguais ao meu que assinantes Costa José. (BUARQUE, 2003: 102)

O rosto é corriqueiro e impessoal como o nome, que surge espelhado, invertido no fragmento acima. Essa constatação esvazia qualquer resposta que se dê à segudna pergunta do título acima, referente à credibilidade do narrador: se é ninguém, se é escritor fantasma, Kósta é narrador esvaziado, como se não existisse. Levando o raciocínio às últimas conseqüências, perguntaríamos: quem garante ao leitor que o narrador é de fato o sujeito ficcional Kósta, com quem tomamos contato na contracapa espelhada do livro? Os leitores do romance hão de se lembrar de que o narrador de Budapeste é, ao final, o Sr.... , que não tem nome – outra sugestão da alienação da identidade, do vazio absoluto em que se vê a obra de arte imersa no mercado. Ou ainda: Chico Buarque, José Costa, Costa José, são todos nomes que, transmutados em mercadoria, culminam na ausência de sentido, expressa nas reticências.

Note-se, por exemplo, que a sociedade com Álvaro causa problemas ao suposto narrador, embora lhe garanta o sustento e as relações afetivas com as palavras. Depois de participar de um encontro mundial de ghost-writers , Kósta engravida a esposa e aceita viajar com ela a Nova Iorque. Frente a mais uma ausência de seu ativo mais precioso e rentável, Álvaro afirma que iria terceirizar algumas das tarefas do sócio (Ibidem: 23), fazendo que alguns estagiários redigissem textos com o mesmo estilo do narrador. É nesse momento que se desvela o que já havíamos identificado em fragmentos anteriores, isto é, a relação de propriedade de Kósta com seus escritos – causa primeira dos ciúmes que experimenta:

 

A um aprendiz, eu não me negaria a emprestar meus apetrechos, vale dizer meus livros, minha experiência e alguma técnica, mas o Álvaro tinha a pretensão de lhe transmitir o que era mais que propriedade minha (BUARQUE, 2003: 23, grifo nosso).

Como se já não fosse suficiente a utilização do substantivo propriedade , o narrador ainda o modifica com um pronome possessivo , o que parece confirmar as hipóteses anteriores. A imagem da agência ocupada por sete redatores – sete é número que se mostrará fundamental em nossa análise –, todos idênticos a Kósta – “todos de camisas listradas como as minhas, com óculos de leitura iguais aos meus, todos com meu penteado, meus cigarros e minha tosse” (Ibidem: 25) – pode ser lida como a imagem da reificação do trabalho artístico, o que se acentua com a descrição minuciosa que o narrador faz dos textos escritos pelos novatos – exatamente iguais aos que ele próprio escreveria.

A sensação de perda da identidade, causada pela reprodução em série do único talento que possuía, faz que Kósta busque outro gênero de textos para redigir – as autobiografias: “Passei a criar autobiografias, no que Álvaro me apoiou, afirmando tratar-se de mercadoria com farta demanda reprimida” (Ibidem: 25). É a partir dessa “guinada na carreira” – para nos apropriarmos, por um instante, de uma expressão do discurso de Álvaro – que Kósta concluirá, trágica e definitivamente, o processo de reificação das próprias relações afetivas.


O Ginógrafo


Em “Posição do narrador no romance contemporâneo” (2003), Theodor Adorno apresenta a falência do romance como forma literária, especificamente no que diz respeito ao realismo que lhe era imanente: muitas de suas funções foram perdidas para a reportagem e para os meios da indústria cultural. Pior: segundo esse autor, o mundo administrado, a estandardização e a mesmice impedem que haja algo especial a dizer. Um exemplo dado brevemente pelo filósofo nos interessa aqui: para Adorno, a subliteratura biográfica – exatamente aquela a que Kósta se dedica – é um produto da desagregação da própria forma do romance. Bastariam essas informações para asseverar, mais uma vez, que o tema fundamental que dá forma e coerência a Budapeste é a transformação da arte literária, de seu narrador e até de seu próprio autor em produto-mercadoria. Daí a reificação das relações afetivas.

Adorno segue, contudo, adiante: o realismo, que era característica imanente ao romance, é, já na época da escrita do artigo, exatamente a marca que auxiliaria na produção do engodo, porque reproduziria a fachada da sociedade do consumo. Logo, para permanecer fiel à herança realista e para dizer como as coisas são de fato, é preciso abandonar o realismo e dar nome à

 

reificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a auto-alienação universais (ADORNO, 2003: 57)

Observe-se, primeiramente, que, em Budapeste , dá-se nome “à reificação de todas as relações entre os indivíduos” na medida em que é esse o processo que organiza o todo e as partes do romance, conferindo-lhe a expressividade tomada à expressão de Antonio Candido. Atente-se, além disso, para o fato de Kósta redigir a autobiografia do alemão Kaspar Krabbe, chamada de O ginógrafo .

Ginógrafo é palavra que não pode ser encontrada nos dicionários de língua portuguesa. Trata-se de neologismo cujo primeiro elemento de composição
“gino” ou “gineco” carrega a noção de “mulher”, “feminino”, do grego gunê,gunaikós ; o segundo, por sua vez, remete a “grafia”, “escrita”, “escrito”. Com efeito, o ginógrafo será, no romance , aquele que escreve em mulher , de modo literal: Kaspar Krabbe, suposto autor da autobiografia, redige textos nos corpos das mulheres, primeiro no de Teresa, por quem se apaixona ao chegar ao Brasil; depois, abandonado por ela, escreve em prostitutas ou estudantes, que paga para que lhe sirvam de ateliê efêmero de escrita. Finalmente,

 

Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante (1). Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela (2). E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas (3), e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência (4), até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa (5). (BUARQUE, 2003: 40, grifo e numeração nossos)

A numeração de trechos do excerto acima foi feita para facilitar a compreensão da análise que segue. O trecho (1) está diretamente relacionado à contracapa do próprio livro Budapeste , que tem as letras invertidas, como num espelho. Não será exagerada a hipótese de que a obra é comparada, no fragmento, à mulher amada. Em Budapeste , os dois resultados mais delicados da subjetividade humana – a arte, aqui na forma da literatura, e a relação amorosa – estão sujeitos e identificados, afinal, ao caráter quantitativo e repetitivo da mercadoria.

O leitor atento terá percebido que há na agência sete estagiários, que o romance tem sete capítulos e que no quarto – exatamente aquele que seria o ponto médio ou ponto zero entre os três primeiros e os três últimos – Kósta, enciumado pelo encanto de Vanda pela autobiografia de Kaspar Krabbe, que alcançara a celebridade com a publicação do livro, conta à esposa que é o autor de O Ginógrafo : “Naquele instante oco, com uma voz que não era a minha, lhe comuniquei: o autor do livro sou eu” (BUARQUE, 2003: 112). É bastante plausível a hipótese de que Kósta esteja enciumado devido à relação de posse que estabelece com seus textos e sua esposa, pois, levando ao limite as interpretações anteriores, textos e esposa são a mesma coisa , apenas objetos possuídos ; a revelação da própria autoria e, por conseqüência, a da própria identidade estão esvaziadas, daí o instante oco e a declaração numa voz alheia . A capa e a contracapa fazem que o livro se organize em espelhamento, cujo capítulo central equivale ao vazio absoluto. Com efeito, todas as vezes em que declara a autoria – e, portanto, revela a própria identidade – Kósta sente-se vazio ou oco . É o que ocorre, por exemplo, no primeiro congresso de escritores-fantasma de que participa:

 

Desculpando-me por me expressar em português, fiz um resumo do meu currículo, mencionei minha tese de doutorado, fui aplaudido, concedi em recitar alguns dos meus fraseados pausadamente, para que os intérpretes pudessem traduzi-los a contento. Em seguida expliquei o contexto de um ou outro trabalho, fiz alusão a personalidades que me deviam favores, daí a pouco estava a desembuchar fragmentos embaralhados de todos os artigos que me vinham à cabeça. Já era uma compulsão, eu fervia, falava, falava, teria falado até o amanhecer se não desligassem a aparelhagem de som. Ao ver a sala vazia e o elevador lotado, subi de fôlego sete lances de escada; eu estava leve, eu estava magro, lá em cima me veio a sensação de ter ficado oco. (Ibidem: 20, 21)

Sete lances de escada , como os sete capítulos e os sete estagiários , no livro que será lido por Kósta para Kriska, ao final do romance, em que a afirmação da não-autoria do texto é que demarcará a identidade do narrador. Trata-se, como veremos, de uma identidade pela negação , de que só resta o vazio , o oco , a repetição imperfeita – por isso a repetição do mesmo período, com pequenas alterações, no trecho final de O Ginógrafo e de Budapeste ; ou ainda, da capa na contracapa de letras invertidas, com as pequenas diferenças que já observamos.

No trecho (2) da página 40 de Budapeste , observa-se que a mulher amada e o livro se confundem. Ela está prenha de um livro, de um produto, não de uma criança – é o que se observa no trecho (3) –, o que indica, ainda outra vez, a reificação das relações. Em termos formais, contudo, é o trecho (4) o que mais impressiona; já vimos anteriormente o amálgama curioso de universos semânticos distintos – filar palavras , investir em pessoas , fabricar textos , namorar artigos . Notamos, agora, que se amalgamam os enredos, as personagens, os tempos, os espaços e – sobretudo – os narradores de Budapeste e de O ginógrafo . É característica marcante da produção em massas o fato de todas as mercadorias produzidas em série serem idênticas; é notável, também, que os produtos da indústria cultural, embora tenham roupagens diversas, também acabem por ser todos idênticos. Daí a importância já observada do trecho (5) que, com uma pequena alteração, é igual ao trecho final de Budapeste .

Não será surpreendente, ainda, que Joaquinzinho, filho de Kósta, surja no segundo capítulo como criança que não sabe falar, ou que repete apenas frases infantis, com apenas uma palavra – mas que, durante o sono, imita sons guturais produzidos pelo pai que, por sua vez, repete as palavras filadas ao húngaro enquanto dorme. Diríamos que a relação com o filho é o resultado da relação de Kósta com Vanda:

 

De tanto me devotar ao ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando os textos, mimando cada palavra que punha no papel, não me sobravam boas palavras para ela [Vanda]. Diante dela nem tinha mais vontade de me manifestar, e quando o fazia, era para falar bobagens, lugares-comuns, frases desenxabidas, com erros de sintaxe, cacófatos. E se alguma noite, na cama com ela, me viessem à boca palavras adoráveis, eu as continha, eu as economizava para futuro uso prático. (BUARQUE, 2003: 106)

Já investigamos construções como mimar as palavras ; o que ainda não havíamos observado de forma tão explícita era a sonegação afetiva de Kósta em benefício do uso prático das palavras. Não será à toa, portanto, que seu filho só saberá repetir fonemas desconexos da língua húngara ou palavras muito simples da língua portuguesa: o garoto herdou o ouvido infantil do pai (ou o ouvido regredido , nos termos de Adorno) e as papagaiadas da mãe, jornalista que, segundo Kósta, “na televisão parecia uma papagaia, porque lia as notícias sem saber do que falava” (Ibidem: 19). Mais do que isso: a babá de Joaquinzinho advertira a Vanda que “bebê que se vê refletido no espelho fica com a fala empatada” (Ibidem: 33) – mais uma evidência, agora em linguagem figurada, de que a criança talvez não seja mais do que o reflexo da infantilidade das linguagens do pai e da mãe, esvaziadas de significados, esta porque apenas repete, nos meios de comunicação de massas, frases sem sentido; aquela, porque está submetida às demandas de mercado.

Em Budapeste , com efeito, todos são o mesmo e o outro , num labirinto de espelhos (expressão roubada ao comentário de Caetano Veloso, na orelha do livro), numa espécie de dialética negativa de que só resta o vazio ou oco da identidade observado anteriormente. Já de volta pela segunda vez ao Rio de Janeiro, depois de um longo período em Budapeste – que comentaremos a seguir, para encerrar a análise – Kósta sai à cata de um exemplar de O Ginógrafo , porque

 

Eu tinha encasquetado que, se os [livros que abandonara na agência] fosse copiando um por um à mão, recobraria o pulso para novos romances de encomenda. Abriria uma agência só minha, ficaria milionário, quem sabe compraria um andar inteiro do Hotel Plaza. (BUARQUE, 2003: 159)

São claras, no fragmento acima, as idéias: a) da escrita como mera reprodução técnica e não como ato criador; b) do desejo por possuir e da finalidade prática – o enriquecimento – da escrita; c) e do desejo de habitação numa espécie de não-casa , um andar de hotel. Mas, na livraria, uma descoberta curiosa frustra as expectativas do narrador: O Ginógrafo desaparecera dos arquivos do computador, para dar lugar a outro produto-mercadoria diferente, mas paradoxalmente igual, o livro O Naufrágio :

 

O Ginógrafo, me faça o favor. Como disse? O Ginógrafo. O senhor deve estar equivocado, aqui temos O Naufrágio, que já vendeu mais de cem mil exemplares. Insisti: O Ginógrafo. (...). Acedeu em consultar um computador, indagou se a palavra se escrevia com gê, falou: guia de Gênova... manual de ginástica... as girafas... ginógrafo não consta. (Ibidem: 160)

Ginógrafo dá lugar a O Naufrágio , títulos díspares no conteúdo, mas quase anagramas um do outro – falta ao primeiro a letra u do segundo, abandonando, mais uma vez, a obra e a identidade de Kósta ao vazio, porque lhe resta uma lacuna . Seu livro mais célebre desapareceu dos arquivos e se oblitera na letra minúscula da última frase do fragmento acima, em que a obra acaba por tornar-se não-obra .

O mesmo ocorre com o Hotel Plaza – idêntico a todos os outros hotéis plaza, espécie de não-lugar , ou de lugar estandardizado, espaço-mercadoria , como o próprio narrador aponta em sua primeira visita planejada a Budapeste:

 

Arrisquei enfim, Hotel Plaza, foi o que me ocorreu, porque em qualquer cidade do mundo existe um hotel com esse nome. (...) Um desses letreiros era do Hotel Plaza, que como a maioria dos hotéis Plaza não ficava em praça alguma, mas numa ladeira. (Ibidem: 47)

E, mais uma vez, no limite da hipótese, até Budapeste – “a cidade ou o romance?” perguntaremos; “ambos” parece a resposta mais adequada, porque o livro é também mercadoria – é um não-lugar , por ser igual a Londres, ambas cidades orientadas pela lógica do mercado turístico, a que estão submetidas as artes e as relações pessoais:

 

volta e meia eu me perguntava o que estaria fazendo Vanda àquela hora em Londres. Sabia que ela é mulher de acordar cedo para as excursões, de fazer amigos, de filmar estátuas, almoçar em pé, entrar em fila, subir escadarias, quando viajávamos juntos só nos encontrávamos na hora do jantar. Não poderia criticá-la; eu mesmo já vi por alto tantas cidades que hoje sou capaz de confundi-las todas. (BUARQUE, 2003: 46-47)

De fato, depois de voltar ao Plaza do Rio, desapontado por não ter encontrado O Ginógrafo nas livrarias, Kósta recebe um envelope da administração do hotel, cobrando as cem diárias não pagas. E afirma:

 

Eu chegara a crer que me houvessem esquecido, até porque os pedidos que eu fazia à copa nunca mais chegavam. Como o gerente tampouco tornara a me procurar, eu supunha mesmo que meu nome, junto com o quarto 707, se apagara da memória do computador do hotel. (Ibidem: 160-161)

A não-obra O Ginógrafo , apagado dos registros da livraria – e o não-nome – José Costa, de rosto comum, quase um anônimo – inseridos num não-lugar – um dos hotéis plaza, todos idênticos pelo mundo das não-cidades , num quarto de número espelhado, como Budapeste , e palídromo, 707 –, inscritos numa não-obra , Budapeste , escrita por um não-sujeito , um ghost-writer : eis aí os corolários da reificação imposta aos indivíduos pela lógica de mercado. O número do quarto em que Kósta está hospedado parece sugerir, ainda mais uma vez, o vazio ou oco do ponto zero da própria obra, em cujo capítulo central dos sete que a compõem está o nada , a afirmação pela negação – “Naquele instante oco, com uma voz que não era a minha, lhe comuniquei: o autor do livro sou eu”, trecho já analisado anteriormente.

Resta investigar a relação de Kósta com Kriska, os acontecimentos do final do romance e o não-tempo em que culmina texto, arrematando-lhe a coerência da estrutura.

 

O não-tempo da mercadoria

 

Na primeira visita planejada a Budapeste, o autor conhece Kriska em uma livraria:

 

Cheguei a uma prateleira repleta de grossos volumes, corri os olhos pelos títulos húngaros em seus dorsos e tive a visão de uma biblioteca deveras desorganizada, caótica. Depois observei melhor, e as capas estavam todas alinhadas, as letras é que pareciam fora de ordem. Por isso me chamou a atenção o livro mais modesto, mas com um título legível: Hungarian in 100 Lessons. (BUARQUE, 2003: 59)

Os livros têm dorsos, como pessoas; as letras fora de ordem parecem lembrar a observação anterior, em que O Ginógrafo é anagrama imperfeito de O Naufrágio . Mais do que isso: ao regressar ao Brasil, Kósta encontrará a autobiografia do alemão jogada na cesta marajoara de sua própria casa e, folheando-a, terá sensação semelhante à descrita acima: “Verguei o livro, com o polegar deixei correr folha a folha como um baralho, e num átimo vi passar de trás para a frente milhares de palavras ilegíveis, tal qual um formigueiro em alvoroço” (Ibidem: 80). A imagem é sugestiva: as folhas do livro estão embaralhadas – isto é, estão vazias de sentido , sem organização coerente , são observadas de trás para a frente – assim como poderíamos observar capa e contracapa de Budapeste – e contêm palavras ilegíveis – como os dorsos dos livros –, comparadas a um formigueiro em alvoroço – imagem que pode remeter ao trabalho de redação.

O trecho da página 59 parece remeter, pois, à idéia de que os produtos da indústria editorial orientados pelas demandas de mercado estão esvaziados de sentido –hipótese a respeito de O Ginógrafo , escrito no Rio de Janeiro, e de Tercetos Secretos , livro de poemas produzidos por Kósta em Budapeste, atribuído ao poeta Kocsis Ferenc, depois de aquele aprender a língua magiar, gravando e transcrevendo ( reproduzindo e copiando , se quiséssemos) falas de escritores do Clube de Belas-Letras da cidade. Será Budapeste , também, obra esvaziada de sentido, escrita apenas para responder às expectativas de consumo dos editores e do público? Mais, apenas a título de provocação: será Chico Buarque um não-autor como Kósta , ambos esvaziados pela celebridade alcançada, ao final da leitura de Budapeste ? São as perguntas que temos a pretensão de responder a seguir.

Já sabemos que as relações amorosas de Kósta são reificadas. Não causará estranheza que o narrador tenha conhecido Kriska quando consultava uma publicação que é subproduto do mercado editorial – livros de línguas, destinados a turistas, que costumam comprar suvenires voláteis dos lugares que visitam e que precisam de publicações práticas e superficiais para comunicarem-se em língua estrangeira. Se lembrarmos que Budapeste se inicia com o período “Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira” e que essa sentença é uma espécie de pedido de desculpas e, ao mesmo tempo, de ressentimento para com Kriska, concluiremos que é a relação com ela a outra chave de compreensão do romance.

A relação entre Kósta e Kriska é, primeiramente, profissional – ela lhe ensina o magiar; é previsível, pois, que ele a tenha abandonado, na primeira visita a Budapeste, por capricho; e, finalmente, é natural que ele tenha encerrado a relação amorosa com apenas uma palavra, adeus , e com um pagamento seguido de um calote: “dei outras voltas na sala e me lembrei que lhe devia duas aulas, seis mil forintes. Deixei o dinheiro na mesa, debaixo da garrafa térmica, mas ficou esquisito, peguei-o de volta” (BUARQUE, 2003: 59). Na segunda visita, depois de ser humilhado pela professora, que o acolhe, mas relega-o à vida numa despensa, antes de retomarem a relação amorosa, Kósta afirma que “E [Kriska] me fez calar, magoada com razão, porque o idioma assim desaprendido, para ela, devia ser como a branca pele dela que eu teria esquecido tão depressa” (Ibidem: 122-123) – trecho que reafirma a hipótese de que a relação com Kriska também está pautada pelo processo de reificação. Não será à toa que, nas últimas páginas do romance, Kósta lerá o próprio Budapeste – ou Budapest , se quisermos – para a amada, e que a leitura se assemelhe ao ato amoroso: “Devagar, Kósta, mais devagar, e as primeiras páginas foram duras de vencer” ou “Rápido, Kósta, mais rápido, falava Kriska, quando eu me detinha além da conta nos episódios do Rio de Janeiro” (Ibidem: 173).

Já comentamos, além disso, que o último período do livro é quase idêntico ao de O Ginógrafo : “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa” (Ibidem: 174). Neste e naquele, o sujeito gramatical da última oração não pode ser encontrado: quem “lavou a blusa”? O eu , primeira pessoa expressa em “eu já sorvera o leite”, ou ela , na terceira pessoa expressa em “mulher amada” sujeito da oração “E a mulher amada (...) me deu”? A oração isolada entre vírgulas inscreve na última frase de O Ginógrafo e de Budapeste , apesar das pequenas diferenças, a ambiguidade do narrador , que é também não-narrador .

O surgimento de uma nova personagem, o Sr....., bem como o paradoxo temporal das últimas páginas do romance servem de fecho a esta análise, que já se estende.

O emprego no Clube das Belas-Letras faz que Kósta se familiarize com a língua húngara e crie sua própria fábrica de textos – Álvaro diria que ele consegue “subir na vida”: primeiramente, o narrador executa “trabalho braçal, para imigrantes” (Ibidem: 116), o de empurrar móveis e instalar microfones, para registrar os debates dos escritores que frequentavam o Clube; depois, transcreve as fitas em que gravara aquelas discussões, tomando para si o trabalho de Puskás Sándor, escrivão do clube; a seguir “para preservar a reputação de uns e outros [escritores frequentadores do clube], fui tomando a liberdade de substituir certas baboseiras por tiradas de espírito, de minha autoria” (BUARQUE, 2003: 129), passagem que indica que Kósta retoma a atividade de ghost-writer, o que de fato ocorre quando o narrador, depois de subcontratar um sonoplasta búlgaro para operar o gravador, ocupa o escritório de Sándor e publica no jornal um classificado – com a assinatura do escrivão – oferecendo-se para redigir monografias, teses, discursos e peças de ficção. Seu primeiro trabalho é a redação de uma dissertação de cinco laudas sobre o dialeto székely, encomendado por um jovem estudante de letras. Depois de tentar iniciar o trabalho ordenando de diferentes formas as palavras e as frases – o que parece remeter à diferença e à semelhança entre os títulos O Ginógrafo e O Naufrágio , cujas letras estão reordenadas –, Kósta afirma que

 

ainda que fossem parcos meus conhecimentos lingüísticos e antropológicos, eu julgava dispor de recursos de estilo suficientes para encher com brilho laudas e laudas de um trabalho universitário. (Ibidem: 133)

Trecho que já não nos soa tão curioso, porque já sabemos que Kósta é hábil não com os sentidos profundos , mas apenas com as formas superficiais dos idiomas, tanto do português quanto, agora, do húngaro – porque o espaço da mercadoria é o espaço da ausência de sentido . O que nos soa sensivelmente relevante para esta análise é o fato de esse ser o início da carreira de poeta do narrador, que será o ghost-writer do livro Tercetos Secretos , de Kocsis Ferenc – exatamente o mesmo poeta que ouvira declamar versos no consulado brasileiro da Hungria, anos antes, com Vanda, evento já delido na memória: “Kocsis, ele mesmo me lembrava um poeta húngaro que eu avistara no Brasil, muitos anos atrás” (Ibidem: 135).

Entenda-se: a carreira de poeta de Kósta é iniciada exatamente depois de ele concluir que, apesar de não conhecer conteúdos da linguística e da antropologia, pode manipular as palavras de forma tal a ponto de encher as páginas. Diríamos, portanto, que o que está em jogo é a ausência de significado das obras feitas sob encomenda e que a poesia dos Tercetos Secretos nada mais é do que jogo de palavras. Com efeito, não faltam no romance trechos em que Kósta atribui a palavras e frases os significados que mais lhe convém, como ocorre na briga com Kriska antes de abandoná-la da primeira vez.

A ausência de sentido está sumariada, de certa forma, no nome do ex-marido de Kriska, que tem grande influência no Clube das Belas-Letras “mesmo sendo homem de poucas palavras, sem obra publicada” (Ibidem: 135), o Sr..... Esse personagem misterioso, que não tem nome – e que exatamente por isso se assemelha ao narrador, pela ausência de identidade –, será o responsável pela expulsão de Kósta de Budapeste e pela sua celebridade, no final do romance. No encontro anual de autores anônimos, na própria Budapeste, Kósta descobrirá que seu grande rival afetivo , porque foi casado com Kriska, e profissional , porque é também ghost-writer em Budapeste – é o verdadeiro autor das obras assinadas por Hidegkuti István, primeiro apreciadas e depois desprezadas pelo narrador. Nesse encontro, instala-se entre esse dois escritores anônimos, Kósta e Sr...., a relação de concorrência. A disputa custa ao narrador a deportação para o Brasil, em que procura, em vão, Álvaro, O Ginógrafo e Vanda, seguida de retorno a Budapeste sob a fama da publicação de Budapest , com a assinatura Zsoze Kósta , exatamente como na contracapa de Budapeste .

A identidade de Kósta é revelada, como tudo em no romance, às avessas: ele não é o autor do livro Budapest , mas ganha, graças a essa obra, a celebridade de que fugira ao longo de toda a vida. O livro, na verdade, fora escrito pelo Sr..., que tramara a redação de Budapest para vencer Kósta definitivamente: o narrador do livro que o leitor brasileiro tem em mãos, afinal, não é Zsoze Kósta, mas o Sr..... que desbanca, por meio da publicação de Budapest , seu maior concorrente, Zsoze Kósta, cuja celebridade aquece o mercado de trabalho dos ghost-writers :

 

Estranhos artigos com meu nome apareciam na imprensa todo dia. Fui recebido no Parlamento, jantei no Palácio do Arcebispo, na Universidade de Pécs me concederam um título de doutor, que agradeci com um discurso empolado, surgido em meu bolso não sei como. (BUARQUE, 2003: 170)

Célebre, tendo perdido o trabalho que lhe conferia utilidade , só resta a Kósta admitir a não autoria de Budapest – isto é, mais uma vez, obter identidade pela negação da autoria . Mas também esse intuito malogra, porque, ao repetir mais de uma vez que não é o autor do livro, Kósta não é ouvido: “O autor do meu livro não sou eu, me escusei no Clube de Belas-Letras, mas todos me fizeram festa e fingiram não me ouvir, talvez porque, como se diz, eu falasse de corda em casa de enforcado” (Ibidem: 170). O processo acentuado de reificação transmuta os homens em forma-mercadoria – isto é, torna-os celebridades.

Já sabemos que o período final de Budapeste é também o trecho final de Budapest e de O Ginógrafo – com pequenas alterações. Resta observar que nas páginas finais de Budapeste , o narrador – já não podemos escrever Kósta – lê para Kriska os fragmentos que não escreveu. Inicialmente, considera humilhante essa tarefa, mas o gosto de Kriska pela obra e o medo de magoá-la o fazem aceder. E o tempo do romance se torna o tempo da leitura , no amálgama definitivo de Budapeste , o não-tempo da mercadoria:

 

E no instante seguinte [Kriska] se encabulou, porque agora eu lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia. Querida Kriska, perguntei, sabes que somente por ti noites a fio concebi o livro que ora se encerra? Não sei o que ela pensou, porque fechou os olhos, mas com a cabeça fez que sim. E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa. (BUARQUE, 2003: 170)

A coincidência do tempo do romance com o tempo da leitura faz que ressalte, mais uma vez, a coincidência entre O Ginógrafo , Budapest e Budapeste , ou, se quisermos, entre Kaspar Krabbe, Zsoze Kósta e Chico Buarque, todos no vazio sugerido nas reticências do Sr...., na ambiguidade do sujeito gramatical da oração final e no sujeito oco pela ausência de nome: trata-se, mais uma vez, da reificação das relações afetivas e da arte.

Mas chama a atenção o detalhe de que Budapeste é obra que dá nome e forma a esse processo, o que sugere que o romance de Chico Buarque se insere no que Chaia chama de obra de arte crítica , exatamente porque ateia o caos à ordem algo entediante da subliteratura biográfica. O jogo de espelhos de Budapeste desorienta o leitor, levando-o, talvez, à tarefa de análise do romance. Caso ela seja empreendida cuidadosamente – como tivemos a pretensão de fazer – notar-se-á que estrutura de Budapeste expõe o processo de reificação das relações afetivas, da arte e, no limite, da própria identidade do autor, trazendo à luz as entranhas da lógica do mercado. O leitor desconsolado devido à constatação de que as relações amorosas e a criação artística estão determinadas por aquela lógica observará em Budapeste a crítica radical à sociedade que mergulha o narrador na miséria do esvaziamento de sentido e perceberá que a celebridade e a credibilidade do nome Chico Buarque , que figura na capa do romance, estão postas em xeque como a sugerir que, mesmo crítica, mesmo desvelando o engodo e a fachada da sociedade de consumo, mesmo servindo de esperança aos desconsolados, a arte literária continua imersa na própria lógica que critica – condição trágica, tanto do narrador, quanto do autor, quanto do leitor do romance. Não haverá miséria maior do que o fato de o amor de Costa por Kriska, que abre e fecha o romance, ser delineado pela lógica do trabalho: a leitura do livro para a mulher amada é um instante oco, repetitivo, declarado em voz alheia, voz de ninguém, de um sujeito ambíguo, espelhado, vago, de reticências.

 

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. (2003). “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: Notas de Literatura I . Trad. e apres. Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.

__________________. (2005). “O fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Textos escolhidos . São Paulo: Nova Cultural.

BUARQUE, Chico (2003). Budapeste: romance . São Paulo: Companhia das Letras.

CANDIDO, Antonio (2000). Literatura e Sociedade . São Paulo: T.A. Queiroz, Publifolha.

CHAIA, Miguel. (2007) “Arte e política: situações”. In: Arte e Política. CHAIA, Miguel (org.). Rio de Janeiro: Azougue Editorial.

TATIT, Luiz (2004). O Século da Canção . Cotia: Ateliê Editorial.

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