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Poder e informação: dilemas da comunicação social em emissoras públicas
Genira Chagas Correia1




          O uso político que caracteriza a radiodifusão brasileira, o tênue limite entre a informação e a propaganda em emissoras públicas, a falta de traquejo com o emprego desse instrumento de comunicação de massa na democracia e a incompreensão da função da comunicação social são temas abordados por Eugênio Bucci em sua obra Em Brasília, 19 horas: a guerra entre a chapa-branca e o direito à informação no primeiro governo Lula (Record, 2008). Em 286 páginas o autor relata sua dura batalha para dar um sentido social à radiodifusão pública enquanto esteve à frente da Radiobrás, durante o período de 2003 a 2006, relativo ao primeiro mandado de Luiz Inácio Lula da Silva.

          A Radiobrás foi fundada por decreto em 1976 no regime militar. Seus mentores eram, ao mesmo tempo, donos e clientes da empresa. E, como tais, mandavam e desmandavam, fazendo o que bem entendiam com o patrimônio público. De modo geral, o cidadão, verdadeiro interessado, sempre foi o negligenciado na escolha da programação. Bucci destaca que os funcionários eram, com freqüência, convocados para filmar as comemorações particulares da primeira dama Dulce Figueiredo, esposa do presidente João Figueiredo, último do regime, cujo mandato foi de 1979 a 1985.

          Os gestores da estatal a consideravam veículo estratégico para promover a integração nacional e combater o que, então, consideravam subversão. Dentre as finalidades de suas emissoras, figurava a desestabilização de sinais que vinham de Cuba, do Leste Europeu, da União Soviética e da China, países em regimes socialistas. No período da ditadura, diz Bucci, eram 42 emissoras, com 40 delas instaladas e funcionando, sendo 33 rádios, 2 geradoras e 5 repetidoras de televisão.

          Os relatos nos fazem pensar que os anos da Radiobrás a serviço dos militares parecem tê-la marcado definitivamente como uma empresa cuja única motivação era promover a expressão política de seus representantes. Numa demonstração de pouca habilidade com os instrumentos democráticos — a comunicação social, por exemplo —, os presidentes dos primeiros anos da democracia tentaram desativar suas emissoras de radiodifusão. Em pleno furor da privatização das comunicações (1995 – 1998), o então presidente Fernando Henrique Cardoso e seu ministro da Comunicação Social, Sérgio Amaral, diz Bucci, cogitaram fechar a estatal. Embora tenham mudado de idéia, o número de emissoras foi bastante reduzido. Das 42 sobraram apenas 9, entre as quais, algumas ainda não instaladas.

         Jornalismo sem partido — Mudar a mentalidade dos funcionários da estatal e dar um sentido para uma emissora foi, para Bucci, uma tarefa hercúlea. Segundo ele conta, uma de suas primeiras iniciativas para levar ao ar um jornalismo cidadão e combater a falta de hierarquia na organização foi basear-se na própria lei da radiodifusão. A iniciativa poderia parecer paradoxal se não fosse observada a forma como até então a emissora era utilizada, isto é, fora da proposta de contemplar a informação como um bem de interesse estratégico para o desenvolvimento, razão de existir da empresa. “A nova direção da Radiobrás começou a repetir em todo o lugar que a máquina pública, para cumprir suas funções legais, deveria estar a serviço da cidadania e do direito à informação, não mais às causas pessoais dos governantes”. O livro mostra o início de um trabalho para fortalecer a empresa no âmbito de seus preceitos constitucionais de impessoalidade e de moralidade.

          Tendo como palavra-chave objetividade e como idéia fundamental a do direito à informação , Bucci relata a concretização de um projeto para pôr fim ao jornalismo chapa-branca — aquele cujo objetivo é enaltecer os atos dos governos. Sua idéia era priorizar, com clareza de redação, um conteúdo informativo com o foco no cidadão e acabar com as mensagens cifradas com o único propósito de divulgar ações políticas. A virada, ainda segundo o autor, foi mais perceptível no trabalho posto em prática pela Agência Brasil, a agência de notícias da Radiobrás. Mas houve mudança também na forma como eram escritas e narradas as notícias do Poder Executivo que integram o programa A voz do Brasil , então sob responsabilidade da Radiobrás.

          Bucci relata ter enfrentado pressões de diversos setores do governo em razão de seu projeto de colocar a estatal a serviço da cidadania e do direito à informação. Elas vinham de todos os lados, algumas do então ministro chefe da Casa Civil José Dirceu, na forma de bilhetinhos para o ministro da Secom Luiz Gushiken, a quem estatal deveria prestar contas. Dirceu não admitia a posição pública da direção em acabar com a obrigatoriedade do programa A Voz do Brasil . Além disso, o ministro considerava sua nova postura jornalística uma atitude ingênua e oposta aos interesses do governo. O ministro Ricardo Berzoini, da Previdência, compartilhando a mesma opinião de Dirceu, também se utilizava de bilhetinhos para manifestar sua irritação com a Radiobrás. Esses conflitos mostram como soa natural, a quem governa, controlar a informação e, além disso, o quanto os grupos no poder dependem dos meios de comunicação.

          As propostas da nova Radiobrás foram bem aceita por boa parte dos veículos que reproduziam as notícias da Agência. Mas causou estranheza em jornalistas do primeiro escalão dos grandes jornais diários em circulação. Conta Bucci que, na ocasião, a colunista da Revista Época , Joyce Pascowitch, chamou de masoquismo a iniciativa do governo de utilizar seus veículos para comunicar-se de forma mais transparente e menos corporativa com os cidadãos, como prevê a finalidade da radiodifusão pública.

          A nota intitulada “Tiro no pé” (18/06/2004), ainda segundo Bucci, debochava do programa A voz do Brasil porque anunciava aumento de gasolina, aumento no índice de desemprego, greve da Polícia Federal e outras notícias impensáveis se a tônica da comunicação considerasse um noticiário partidário. A manifestação da jornalista revela o estrago causado pelos anos de ditadura para a compreensão do sentido da comunicação social na democracia. Como se censura fosse algo natural à profissão.

           O autor também mostra sua perplexidade quando leu reportagem publicada no jornal o Estado de S.Paulo (14/09/2003), escrita pelo repórter João Domingos, para quem concedeu entrevista. Bucci, que havia liderado uma prática jornalística inédita para os padrões anteriores da estatal, viu-se acusado de reeditar o estilo getulista de antijornalismo, segundo ele, exatamente contra o qual lutava. A matéria acusava a Radiobrás de estatizar a informação, deixando clara a necessidade de uma mudança profunda na cultura jornalística para se perceber o valor da liberdade de imprensa num regime democrático.

           A obra mostra que durante os quatro anos do primeiro governo Lula a estatal trabalhou para fazer jornalismo e desfazer a cultura de propaganda política como se fosse notícia com valor jornalístico. Os profissionais foram então instruídos a trabalhar dentro dos preceitos da liberdade de imprensa, apesar de a grande imprensa ter custado a entender o trabalho pioneiro. Foi preciso que o próprio presidente falasse publicamente para que parte dela compreendesse a proposta. Em evento pelos 25 anos de fundação da Associação Nacional de Jornais, entidade que representa os periódicos brasileiros, Lula discursou: “Só com a plena liberdade de imprensa o direito à informação pode ser atendido”. A revista Veja , o mais crítico entre os veículos contrários ao governo petista, manifestou reconhecer o compromisso da gestão com a liberdade de informação com o texto intitulado “Sincronia Constitucional”, publicado na seção Carta ao Leitor da edição de 22/09/2004.

           Mais do que contar a transformação da estatal sob seu comando, Bucci coloca o dedo na ferida do Brasil. Ele aponta os tropeços dos políticos nos meandros dos jogos democráticos, como pessoas que ainda teimam em fazer da agenda pública uma prática partidária. Mau costume que aparece na comunicação com os eleitores, na forma de constante campanha publicitária, eficaz para a perpetuação no poder.

          Outro mérito do livro é estampar o quanto ainda soa estranho, até em profissionais da grande mídia, um trabalho que respeite o direito do cidadão à informação. Talvez isso até faça parte do inconsciente de grande parte dos brasileiros, tendo em vista sermos um país forjado na falta de liberdade de expressão. E se foi pelas idéias dos representantes do Estado que a nação se acostumou a viver a reboque desse direito, a Radiobrás de Bucci mostrou como é possível o próprio Estado agir para desfazer o engano.

          A difusão de um jornalismo ágil e comprometido com habitantes de regiões distantes dos grandes centros urbanos evidenciou que a liberdade de imprensa só se efetiva quando o próprio jornalista a tem como um dever. E este é o mais difícil dos deveres do jornalista porque o coloca em constante perigo de ser mal interpretado. Ao mostrar as falhas na formação dos profissionais de imprensa, Bucci também mostra o quanto ainda é frágil a prática jornalística no país. “Não há o enunciador do discurso jornalístico se ele não se emancipa de seu objeto e de sua fonte”, diz o autor. A exemplo do jornalismo chapa-branca, este parece ser um problema ainda recorrente na cobertura de imprensa nacional. Se realizada dentro dos preceitos da liberdade de imprensa teria muito a contribuir com a democracia e com o desenvolvimento.

 
 
 
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