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Eleições 2006: o discurso do medo e sua variação
Julio Nogueira


Resumo : Este artigo tem por objetivo analisar os principais editoriais do jornal O Estado de S.Paulo1 na Eleição Presidencial de 2006 no Brasil (especificamente o último mês antes do primeiro turno) e identificar neles o “discurso do medo”, recorrente na grande imprensa brasileira em todas as disputas presidenciais das quais Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participou. O fato foi constatado em estudo da cientista política brasileira Vera Chaia: “(...) estratégia política de criar um clima de medo, constante nos pleitos eleitorais, após o período de redemocratização no Brasil, foi utilizada para combater a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores, desde as eleições diretas de 1989 até as eleições de 2002.” (Chaia, in Rubim, 2002: 29). A opinião do jornal demonstra certa “uniformidade” ao longo dos dias que precederam a primeira votação, quando prevê um cenário negativo para o país com base na hipótese (posteriormente confirmada) de reeleição do então presidente. A análise consiste da leitura e interpretação dos textos, sem outras formas de investigação. A constatação é a de que a mensagem transmitida (explicitamente ou nas entrelinhas) foi a de uma ameaça de o Brasil continuar nas mãos de um grupo de incompetentes e inescrupulosos (membros do Partido dos Trabalhadores e aliados), capazes de fazer qualquer coisa para manterem-se no poder.

Abstract: This article aims to analyze the main editorials published by the newspaper O Estado de S.Paulo during Brazil's 2006 Presidential Elections (specifically the last month before the first-round vote) and to identify the “discourse of fear”, which has been found to recur in the Brazilian press in every presidential dispute Luiz Inácio Lula da Silva has taken part in. The existence of such a discourse of fear was verified in a study by Vera Chaia, a Brazilian political scientis t: “(…) a political strategy to create an atmosphere of fear, constantly present in elections after the democratization period in Brazil, was used to fight the candidature of Luiz Inácio Lula da Silva, from the Workers Party, from the 1989 direct elections until the 2002 ones.” (Chaia, in Rubim, 2002: 29). The newspaper's opinion showed certain “uniformity” in the days that preceded the first vote by anticipating a negative scenario for the country based on the later- confirmed hypothesis of re-election of the current president then. This analysis consists of the reading and interpreting of texts, without further investigative means, and its main finding is that the message gotten across (both explicitly and implicitly) constituted a supposed threat of Brazil's ending up in the hands of a group of incompetent and unscrupulous people (members of the Workers Party and their allies), capable of doing anything to stay in power.

As variações do medo


            Até as Eleições 2002, a desconfiança de alguns setores da imprensa quanto ao candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (com base em fatos verdadeiros ou não) concentrava-se na economia e na hipótese de caos caso o petista fosse eleito. Em 1989, o “candidato Collor afirmava no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, que caso Lula vencesse as eleições no segundo turno, iria confiscar a poupança, gerando um clima de temor por parte dos eleitores” (Chaia, in Rubim, 2002: 33). Collor venceu. E foi ele quem, na verdade, confiscou a poupança.

          Cinco anos depois, a novidade era o bem-sucedido Plano Real, implementado pelo principal adversário de Lula naquela ocasião, Fernando Henrique Cardoso (quando ministro da Fazenda de Itamar Franco). Segundo a mídia, na época, o povo não poderia arriscar e pôr a perder a estabilidade e o controle da inflação, em troca de um político sem experiência administrativa. A grande imprensa defendeu a eleição de FHC, o que de fato ocorreu.

          Em 1998, novo “terrorismo”:

 

A interferência do mercado e das instituições financeiras internacionais já se faz presente nas eleições de 1998. O medo está associado à incapacidade de Lula resolver a crise internacional. A propaganda política do candidato do PSDB trabalhou com esta idéia de que somente o atual presidente, com toda a sua experiência poderia resolver a crise e dialogar, de igual para igual, com as lideranças políticas internacionais. (Chaia, in Rubim, 2002: 38).


          Com o fim da era FHC, era necessário um substituto para dar continuidade ao projeto tucano. O escolhido foi José Serra. E novamente a ofensiva anti-Lula foi colocada em prática, desta vez com uma diferença: o petista era o grande favorito. Isso levou ao surgimento de novas “suspeitas” e temores na campanha:

  O “Risco Brasil”, as oscilações da Bolsa de Valores e a subida do dólar se transformaram nas grandes preocupações da mídia e provocaram declarações dos diferentes candidatos.
A associação entre instabilidade econômica e política com a candidatura de Lula foi imediata, estampada nas capas das revistas semanais e jornais, gerando o medo. O mercado adquiriu uma “aura” de autonomia e de algo que pairava no ar. (...)
Novamente a associação de Lula com o caos é feita após a definição dos candidatos que iriam para o segundo turno. (...)
No primeiro dia da propaganda eleitoral do segundo turno, José Serra colocou no ar o depoimento da atriz Regina Duarte que afirmava: “Estou com medo de que o país perca a estabilidade tão duramente conquistada”. (Chaia, in Rubim, 2002: 40-42).

          A crítica à área econômica fez-se presente novamente, em 2006, com OESP 2 , por exemplo, levantando dúvidas de que o presidente, se reeleito, pudesse cumprir algumas promessas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), redução de impostos e dos gastos públicos

          Mas em 2006 houve um elemento novo. A política econômica do governo Lula deu certo, principalmente quando comparada aos oito anos de FHC. Com isso, a crítica tomou outro rumo, mas numa variação do mesmo discurso.

          A opção, ao que é possível perceber na análise dos editoriais, foi o campo da ética, ponto em que o partido do presidente da República ficou mais vulnerável no “primeiro tempo” de governo do PT (após a série de fatos que ficou conhecida como “Escândalo do Mensalão”), até porque os integrantes desta legenda sempre elegeram os valores morais como seus principais ideais de conduta.

          A necessidade maior deixou de ser apenas a manutenção da estabilidade econômica ou a inserção do país na modernidade, via liberalismo, mas também o (clichê) “banho de ética”, que só seria possível por meio da derrota, nas urnas, do presidente e seu partido.

          Como o escândalo do Mensalão (classificado pela grande imprensa como a maior crise do governo Luiz Inácio Lula da Silva) parecia não abalar a popularidade e boa avaliação do presidente (até por conta de sua Virtú e Fortuna , como poderia explicar hoje Maquiavel), a descoberta de um dossiê que seria utilizado contra candidatos do PSDB foi a grande chance para a adoção de novas teses moralistas. Com isso, a ofensiva do discurso do medo tornou-se ainda mais forte no último mês antes do primeiro turno.

          Em todo o período analisado, não houve sequer uma única menção positiva ao governo Lula. Dos 31 dias (incluindo o 1º de outubro), todos os 24 textos que abordaram a administração petista, ou a candidatura do presidente, foram negativos. Mais uma mostra da postura contrária a Lula adotada por O Estado de S.Paulo.

Contra Lula em todas as frentes


           Em qualquer que fosse o campo de avaliação, o jornal O Estado de S.Paulo , conhecido por suas “posições liberais-conservadoras tradicionalistas” (Fonseca, 2005: 173), não causou estranheza ao opor-se à continuidade de um governo que, embora tenha mantido uma política econômica com características neoliberais, deu também sinais de mudanças de rumo com medidas como a interrupção do programa de privatizações (iniciado com Fernando Collor de Melo e continuado nos anos de FHC – 1995-2002) e uma maior intervenção do Estado em políticas sociais. E é claro, um governo que conta com amplo apoio dos movimentos populares.

           O diário paulistano abre o mês de setembro com uma crítica contundente ao aumento de 60% de investimento no Bolsa Família (o principal programa social e de transferência de renda do governo Lula foi tema recorrente na campanha, tanto para elogiá-lo quanto para atacá-lo).

           No entanto, até aquele momento tratava-se apenas de uma crítica a um suposto desequilíbrio de condições entre os candidatos, já que o presidente, por permanecer no cargo estaria, na avaliação do jornal, usando a máquina a seu favor. Este era apenas o cartão de visitas. O discurso do medo começaria no dia seguinte.

          No editorial de 2 de setembro de 2006 (“Os ETs já chegaram”), OESP aborda de forma quase irônica uma declaração do presidente de que “só fatores ‘extraterrestres' poderão impedi-lo, se reeleito, de cumprir as promessas de campanha”. O título do texto, citado acima, dá a exata noção dos objetivos do editorial, que coloca em dúvida algumas das propostas de Lula, pois os supostos obstáculos já se fariam presentes na economia brasileira.

          O destaque fica com o último parágrafo, que contém um prognóstico:

 

Se o presidente for reeleito, descumprirá, já no início do segundo mandato, a promessa de buscar o equilíbrio fiscal e de elevar a qualidade do gasto público . Com isso, tornará mais difícil a redução dos juros, a menos que passe a aceitar maior inflação. Também o ajuste do câmbio será prejudicado. Pensando bem, os ETs não terão muito que fazer. O governo realizará, voluntariamente, boa parte do trabalho deles. ( OESP , 2/9/2006, ênfases minhas).


          Muitos perceberam a tendência rapidamente (mesmo antes da reta final da campanha), como o professor Bernardo Kucinski:

 

A grande imprensa tenta criar uma nova agenda de debates que assuste o eleitor com (...) previsões catastróficas. O motivo é que o candidato de sua preferência, Geraldo Alckmin, nada tem a dizer sobre o presente. É difícil reclamar dos programas sociais do governo, a queda nos preços dos alimentos, o barateamento dos materiais de construção ou o crescimento do emprego. Também é difícil comparar a atual gestão com a de FHC, porque todos os índices de comparação favorecem Lula. (Kucinski, 2006).


          Mas a crítica econômica não era o suficiente, já que o governo Lula apresentou muitos acertos: zerou a dívida com o FMI; havia diminuído o risco-país, até aquela ocasião, para 235 pontos, o patamar mais baixo desde a criação do índice; reduziu a inflação; os juros (embora de forma homeopática); a desigualdade social (cerca de 8 milhões de pessoas haviam saído da linha da miséria, o poder de compra havia crescido, o salário mínimo teve o maior aumento real das últimas décadas) e, de quebra, a geração de empregos superou em muito a era FHC (7,5 milhões de postos de trabalho em quatro anos, contra cerca de 800 mil em oito anos, respectivamente).

          Havia então a necessidade de atacar o ponto mais vulnerável da gestão petista: a crise ética e os escândalos de corrupção.

          Na tática do medo, o jornal criticou até o eleitor de Lula. Mas para isso não usou palavras suas –reproduziu discurso do senador Jefferson Perez, do PDT do Amazonas (em “O desencanto do senador”), ao analisar o anúncio do parlamentar de que, em 2010, pretendia abandonar a vida pública:

 

Feriram as convicções e as esperanças do advogado, economista (...), a “conivência do presidente da República com um dos maiores escândalos de corrupção” e o fato de estar “a caminho da reeleição, talvez no primeiro turno , porque os eleitores votam nele sabendo que ele sabia de tudo”. (...) Os eleitores de Lula, acusou, “compactuam com isso porque são iguais, se não piores. É a declaração pública, solene, histórica do povo brasileiro de que desvios éticos de governantes não têm importância . E não só povão, não. Temos intelectuais e artistas apoiando isso”. Releve-se o que de certo há de injusto na generalização sobre os brasileiros, assim como o exagero expresso no termo “putrefação moral” que o senador empregou no seu diagnóstico sobre o Brasil de hoje. Mas antes a ira desbragada, para o resgate dos valores cívicos, do que o silêncio dos complacentes – sem falar, é claro, do aplauso solidário dos entorpecidos morais . (3/9/2006, ênfases minhas).


          Embora aponte um certo exagero, OESP endossa a declaração radical do senador em nome do “resgate dos valores cívicos”, o que estaria condicionado à não-reeleição do petista.

          Tal comportamento encontra referência em Maquiavel, quando o pensador italiano fala da necessidade de evitar males já conhecidos:

 

“(...) conhecendo-se com antecedência os males, o que somente aos homens de prudência é concedido, rapidamente se curam; mas quando, tendo sido ignorados, foram deixados em aumento, a ponto de que todos o conhecem, não mais haverá corretivo aos males.” (Maquiavel, 2003: 19).


          No dia 12 de setembro, o principal editorial de OESP tem como título “O ‘modus operandi' da reeleição”, em que o governo federal é acusado de transgredir a lei liberando, durante o período eleitoral, recursos para o Estado do Piauí (administrado pelo PT) e também de utilizar dinheiro público para favorecer o partido do presidente.

          Apesar de não conter nenhuma profecia apocalíptica quanto ao futuro do Brasil, o jornal lança, no último parágrafo, uma espécie de saia-justa para o eleitor de Lula, dando a entender que é responsabilidade dos que votariam no presidente a eventual continuidade do “esquema petista de poder, cuja desenvoltura não conhece limites”: “E assim se move, certa de que chegará lá, a máquina da reeleição de Lula. Afinal, quantos dos seus eleitores mudarão o voto por causa da simbiose entre governo e o PT ou porque o governo transgrediu as regras eleitorais"?

          Trata-se de uma clara tentativa de convencer a não dar carta branca ao suposto “esquema podre do PT”:

 

(...) todo discurso é um simulacro interesseiro, produzido com o objetivo de se conseguir “dar a última palavra” na arena da comunicação, isto é, de ter reconhecida pelos outros as representações, identidades e relações sociais construídas por seu intermédio. Os textos narrativos são os exemplos mais espetaculares disso: a narração é um dispositivo instrumental de distribuição de afetos a serviço da sedução e cooptação ou, como diz o mesmo F. Lyotard (1973, 173) “toda narrativa é não somente o efeito de uma metamorfose de afetos, mas também produz um outro, a história, a diégese”, o referente enfim. Não à toa a narratio é considerada pelos especialistas em retórica como uma parte decisiva da dispositio “por suas virtudes explicativas”, leia-se por sua capacidade de produzir uma “realidade” alinhada com os interesses do emissor (Pinto, 2002: 88-89, o grifo é meu).


           Mesmo acusando o candidato Lula de servir-se da condição de presidente da República para usar a máquina em favor próprio, como numa mistura de funções, é curioso ressaltar que o próprio jornal mistura críticas (às vezes não é possível distinguir se fala do governante ou do candidato).

           OESP não esconde ainda o preconceito com o presidente sem curso superior. Em “Retórica não esconde a realidade”, afirma que:

 

A retórica do presidente Lula sobre o nirvana a que ele teria feito ascender a economia brasileira convence inegavelmente os eleitores cujo nível educacional é igual ou inferior ao dele . Não convence, porém, os agentes econômicos, os investidores e parceiros comerciais, e muito menos analistas, nacionais e estrangeiros, que têm olhos de ver os sinais cada vez mais densos de uma realidade inquietante. (15/9/2006, ênfases minhas).


           Na seqüência, nova teoria de um futuro ruim para a economia caso o atual governo ganhe carta branca do eleitor:

 

Como está e como tende a ficar, se Lula for reeleito, o Brasil é um osso duro demais para o mais brasilianófilo CEO de multinacional que se possa imaginar. O caso da Volkswagen é de livro de texto. O presidente da empresa no País, Hans-Christian Maergner, acaba de anunciar não só a perda de interesse da Volks brasileira em continuar sendo a maior exportadora do setor, mas ainda uma guinada mais desacorçoante: em vez de montar aqui o modelo Fox para o mercado europeu, a VW pretende faze-lo na Rússia. (...) Tudo considerado, não surpreende que o Banco Mundial, o FMI e também o mais difundido jornal econômico do mundo, o Financial Times (FT) , advirtam para um futuro sombrio para o Brasil. Sobra dinheiro para investimento no mundo, constata o FT , mas os que o detêm estão arredios em relação ao Brasil : eles simplesmente duvidam que um Lula reeleito fará as reformas imprescindíveis para restringir o gasto público e por isso vão buscar portos mais atraentes para os seus capitais. O que se teme lá fora é que, se reeleito Lula, o seu próximo governo descambe para uma política populista . (15/9/2006, itálico do jornal, grifo meu).


           Como se vê, o jornal prega que a reeleição do presidente significaria a fuga de várias empresas para mercados que estariam adotando políticas mais atraentes. Isso a despeito de todos os resultados positivos na economia obtidos na gestão petista.

O “dossiê Vedoin”


          Mais uma demonstração da postura contrária à reeleição de Lula está no principal editorial de 19 de setembro, o primeiro após a prisão de Valdebran Carlos Padilha da Silva, ligado ao PT de Mato Grosso –acusado de participar da compra de um dossiê que, com vídeo e fotos, seria usado, segundo apurou a Polícia Federal, para tentar ligar o então candidato ao governo de São Paulo, José Serra (e outros políticos do PSDB), à máfia dos sanguessugas (o famoso esquema de compra de ambulâncias superfaturadas para várias prefeituras do país, por meio da aprovação de emendas parlamentares ao Orçamento da União).

           O texto, intitulado “O PT chafurda na lama”, inocenta os tucanos sem que a polícia tivesse sequer iniciado as investigações sobre o conteúdo do dossiê:

 

Puro blefe. O material do alardeado “dossiê” contra os tucanos vale nada . Usadas para dar a entender que eles tinham parte com a fraude, as imagens em que aparecem em entregas de ambulâncias, ao lado de futuros denunciados pela maracutaia, são de uma ridicularia atroz : resumem-se a instantâneos das servidões da política, que não permitem ao administrador público selecionar as companhias em eventos que demandam sua presença . (19/9/2006, ênfases minhas).


           Não satisfeito com a “absolvição” dos candidatos do PSDB, algo feito com extrema antecedência e por conta própria, OESP foi além. Mesmo sem dizer quem são os políticos adeptos “das servidões da política” (que teriam sido oportunistas ao aparecer ao lado de pessoas como José Serra), seus partidos e suas práticas, o jornal já classifica as companhias de Lula como sendo piores, como demonstra a continuidade do trecho que foi citado acima:

 

Já o mesmo não se pode dizer das cenas que mostram o presidente dividindo palanque, em Belém, com tipos notórios da estatura de Jader (“Sudam”) Barbalho, Ademir (“Docas do Pará”) Andrade e Paulo (“Mensalão”) Rocha. Afinal, Lula escolheu tê-los como aliados . Mas nem por isso se o acusará de corrupção. (ênfases minhas).


           No dia seguinte, nova tentativa de mostrar que, com o conjunto de documentos contra candidatos do PSDB, o Partido dos Trabalhadores (incluindo um grupo íntimo do presidente) teria chegado (para usar mais um clichê), ao fundo do poço, portanto sem condições de seguir governando o paí s. Para isso, o jornal lança mão de termos mais uma vez pesados:

  Leonel Brizola (...) disse que Lula seria capaz de "pisar no pescoço da mãe" para alcançar o que quer. Assim também a sua turma, com o seu emaranhado de vínculos, afinidades, parcerias e ganâncias que possibilitaram o aparelhamento orgânico do Estado nacional. Por isso chega a ser bizantino discutir se Lula sabe dos seus delitos antes ou enquanto são cometidos: ele sabe do que a sua gente é capaz, porque dela não se distingue. Nem no modus operandi nem nos fins. (21/9/2006, itálico do jornal).

           Por um motivo extremamente justo, a presente análise quebrará um critério adotado para a pesquisa, ao incluir não o principal editorial, mas o terceiro deles, da edição de 22 de setembro de 2006, por conter o referido texto um dos títulos mais representativos da postura do jornal durante os dias que antecederam o primeiro turno: “Por que se duvida de Lula”.

           Desta vez, não foi necessário nenhum arroubo retórico de políticos da oposição, ou daqueles que se auto-intitulam independentes, para que OESP , a exemplo do que fez com declarações de Leonel Brizola e Jefferson Perez, desqualificasse o candidato-presidente e colocasse em xeque a credibilidade do petista.

           O próprio Lula foi quem abasteceu o jornal com novos elementos para que o periódico se tornasse ainda mais incisivo. Tudo por causa de uma simples e aparentemente sincera confissão do presidente, que teria dito, um mês antes, que “Irmão a gente não escolhe, mas companheiro a gente escolhe”.

           O escândalo do dossiê envolvendo pessoas próximas à Lula era a peça que faltava para usar, contra o presidente, as próprias palavras dele, procurando demonstrar ao eleitor que o governante que não sabe escolher bem seus auxiliares não pode administrar bem o país.

 

Com o escândalo da frustrada compra do “dossiê” que vincularia o candidato José Serra à máfia dos sanguessugas, essas palavras , ditas nos funerais de d. Luciano Mendes de Almeida, voltaram a galope para pisotear a de há muito esgarçada credibilidade do seu autor. Pois foi o próprio Lula quem escolheu , de livre e espontânea vontade , os companheiros que participaram da operação que não se cansa de chamar “abominável”. Alguns o acompanham desde a sua ascensão como sindicalista. Outros estavam ao seu lado na fundação do PT ou a ele aderiram na sua fase heróica. Outros chegaram depois e subiram depressa. Lula deve conhecê-los tão bem como a si mesmo . (ênfases minhas).


           O jornal faz ainda uma generalização (intencional ou não) quanto aos participantes da “operação antitucanos” ao afirmar que Lula escolheu “os companheiros que participaram da operação”. Generalização porque, em primeiro lugar, nem todos os acusados eram assessores do presidente. O próprio Valdebran Padilha, filiado ao PT, não pode ser citado como pessoa próxima a Lula. Portanto, não haveria, em princípio, fundamento na afirmação de que “Lula deve conhecê-los tão bem como a si mesmo”.

           A tentativa de ligar o presidente da República a pessoas que teriam cometido irregularidades faz com que o jornal, embora comece o texto abordando o caso do dossiê, não se concentre neste episódio, mas resgate fatos que envolvem outros “próximos” a Lula.

 

Acrescentem-se aos deles os nomes de José Dirceu e José Genoino, que precederam Berzoini no comando do PT, também caídos em desgraça por causa do mensalão. E ainda, da nova geração de petistas notáveis, o de Antonio Palocci - de quem Lula se livrou, como de todos os demais, não por seus malfeitos comprovados em juízo, mas para remover cirurgicamente tudo e todos quantos possam atrapalhar os seus projetos de poder .


           Para encerrar, o jornal novamente põe em dúvida o caráter do presidente. Mas para isso usa as palavras de outra importante figura da política brasileira: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos principais adversário de Lula: “Eis por que o ex-presidente Fernando Henrique está certo quando disse anteontem que não pode acreditar que Lula ‘seja tão ingênuo', e Lula não convence quando disse ontem que o seu comportamento na política é ‘impecável'”.

           A expressão “herança maldita” é freqüentemente utilizada por políticos que, com razão ou não, a empregam para responsabilizar gestões anteriores por possíveis deficiências em seus (dos atuais) governos. Até pela lógica desta expressão, é uma forma de “culpar o passado” pelo que ocorre no presente.

           No entanto, esta lógica às vezes se altera: o passado é substituído pelo presente, que por sua vez cede lugar ao futuro. No caso de OESP , a inversão foi usada e, mesmo antes da administração Lula, já anunciava a “herança maldita” que o petista poderia deixar para o governo seguinte. A famosa expressão está inserida no título do texto que abre os editoriais em 23 de setembro: “A herança maldita de Lula”.

           Nas eleições de 2006 houve outro fenômeno inédito: como a política econômica de Lula deu bons resultados (contrariando as catastróficas previsões do final de 2002), o “senhor” mercado parecia sereno até aquele momento. Mas como permitir que o eleitorado tivesse essa sensação de tranqüilidade sendo que ocorrera diversos escândalos no governo? Novamente o mercado, o “condutor” de todos os comportamentos e desejos, dava demonstrações de mal-humor, ao menos foi o que encarregou-se de dizer o jornal.

 

“Os primeiros efeitos além da esfera política da crise do falso dossiê (...) começaram a manifestar-se no comportamento dos mercados financeiros, traduzindo uma mudança de expectativas dos agentes econômicos, movidos agora pelo pessimismo. (...) O que os inquieta (...) são as perspectivas de que o chumbo trocado entre governo e oposição reduza dramaticamente as chances de as contas públicas serem resgatadas, a partir de 2007, da herança maldita do primeiro mandato do presidente Lula, sobretudo se ele for o seu próprio sucessor, como até agora parece provável . (ênfases minhas)”.


           Nota-se que OESP quer fazer crer que o pior não era somente a eventual herança maldita, mas a própria continuidade do governo petista, com a suposta repetição dos mesmos supostos erros. Algumas linhas adiante, isso se confirma: “Essa história (possibilidade de problemas econômicos – JN) está fadada a um final infeliz: a economia continuará emperrada pela carga tributária e, se Lula continuar presidente, a tentação do populismo será quase irresistível ”. (ênfases minhas).

           Quando já se aproximava o 1º de outubro de 2006, as pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República (todas) apontavam redução da vantagem de Luiz Inácio Lula da Silva sobre os demais candidatos, deixando clara a possibilidade, cada vez mais crescente, de um segundo turno.

           Ao comentar o efeito do escândalo do dossiê na até então inabalável liderança do presidente , o jornal volta a fazer, em seu principal editorial de 26 de setembro, um juízo de valor em relação ao conjunto de documentos apreendido com uma pessoa ligada ao Partido dos Trabalhadores, e o suposto esquema armado para prejudicar candidaturas do PSDB.

           Apesar das ainda prematuras evidências conseguidas pela polícia quanto ao conteúdo do dossiê, com base em pouco ou quase nenhum avanço nas investigações, o jornal novamente classifica como “sórdida” aquela que seria uma ação anti-tucana, planejada pela “quadrilha petista”. E associa tal operação ao candidato preterido pelo periódico.

 

Esse clima de bonança, (folgada liderança de Lula – JN), como se sabe, passou a se alterar com a descoberta de que gente do círculo íntimo do presidente participara de uma sórdida operação para incriminar o candidato tucano ao governo paulista , José Serra, por imaginária cumplicidade com a máfia dos sanguessugas quando ministro da saúde. (26/9/2006, ênfases minhas).


           Fica claro mais uma vez, neste ponto, uma tentativa (apressada, ressalte-se) de relacionar o candidato-presidente ao episódio e, ao mesmo tempo, inocentar José Serra, pois além de dizer que as pessoas que teriam arquitetado o dossiê eram próximas de Lula, o jornal já classifica como imaginária a ligação do ex-ministro da Saúde ao esquema dos sanguessugas, antes mesmo, reitero, de qualquer investigação sobre o conteúdo do dossiê –o que aliás, o OESP não cobrou.

           A sentença veio um pouco mais adiante: “Nem no mensalão emergiram – e foram tão amplamente divulgadas – tantas evidências, em tão pouco tempo, de um golpe sujo da companheirada que galgou o poder com Lula”.

           Depois de sucessivos termos pouco amistosos para se referir ao presidente [“o que não se esperava era que entrasse em pânico”, “em pleno ataque de nervos”, “atacado, cometeu a temeridade”, e o pior de todos: “atacado de apoteose mental (...), perdeu de vez a ‘modéstia', como disse – e as estribeiras”], o jornal chegou, naquele dia, ao pleno discurso do temor ao comentar declarações otimistas do presidente.

  Proclamou que “essa (eleição) nós já matamos ela no primeiro turno”. É problema dele a cara com que ficará se não matar. Mas, se matar, será problema dos brasileiros ter, por mais quatro anos, um presidente cujo governo foi uma sucessão de escândalos protagonizados por seus mais íntimos “companheiros” que, agora, além de “imbecis e insanos”, chama de traidores para poder se comparar a Jesus e Tiradentes. Assim, tenta continuar enganando os verdadeiros traídos “deste país”, ou seja, as dezenas de milhões de eleitores que acreditaram na apregoada superioridade ética de Lula e do seu partido. Aproveita-se do fato de a maioria desses eleitores não ter condições de perceber esta enganação. Isso o Brasil não merecia . (26/9/2006, ênfases minhas).

           Entre os editoriais estudados, um dos mais representativos, em relação à intolerância (não só a Lula, mas ao povo que, livremente, optou por ele), é o texto de 27 de setembro (“Desserviços prestados”), que define a “grande massa da população” (expressão que, nestas últimas eleições, viraram praticamente um sinônimo de eleitor do candidato petista) como “desavisados”, “deseducados” e “carentes de cultura cívica”. Preconceito puro. E vai além:

 

O segundo imenso desserviço de Lula aos seus eleitores típicos e à sociedade em geral está nas suas sistemáticas palavras de mal disfarçado desdém pela educação – o bem mais precioso a que podem aspirar os que nada têm, por ser o único meio seguro de ascensão na escala social. Já no discurso de posse, em vez de lamentar, ele se vangloriou de que o diploma de presidente era o primeiro que recebia . Desde então, costuma propagar a enormidade de que escola não é imprescindível para o sucesso pessoal. (...) Nem para governar, ele considera os livros mais importantes do que a experiência de vida e a comunhão com os anseios do povo, como afirma e reafirma. Não é só para acicatar o antecessor, o sociólogo de renome mundial Fernando Henrique Cardoso . Mas, o que é infinitamente pior, porque acredita nisso. A prova é que Lula já declarou publicamente que ler é aborrecido. (...) Lula escolheu não estudar quando já podia. Ruim para ele, pior para o País que o tem como presidente . (ênfases minhas).


           O trecho acima demonstra o que o cientista político e historiador Francisco Fonseca classifica como “unilateralismo” dos editoriais:

 

“(...) o jornal, particularmente por meio do editorial, é canal de expressão de determinados setores – no caso da grande imprensa, sobretudo as camadas médias e o Capital . (...) Embora (os editoriais - JN) objetivem expressar a opinião oficial dos jornais e, nesse sentido, potencialmente tendam a um certo unilateralismo, o aspecto crucial a ressaltar diz respeito ao modo como os editoriais tratam idéias, grupos e instituições que contrariem suas posições, assim como os que apóia . (Fonseca, 2005: 34, grifo e ênfases do autor).


           Em artigo para a agência de notícias online Carta Maior , o professor Bernardo Kucinski identifica o que chama de “cartilha” da grande imprensa ao analisar textos de vários jornais.

           De uma maneira geral, Kucinski classifica tal comportamento dos periódicos como uma “orquestração”, e aponta o que considera as razões para esta ofensiva. Uma delas seria “ditar a agenda” para o próximo governo.

Considerações finais


           Independentemente da forma (se implícita ou explícita), o jornal O Estado de S.Paulo valeu-se de recursos da argumentação/discurso pelos quais se posicionou e pôde provocar reações no público leitor/eleitor. Isso era fundamental para garantir os possíveis efeitos esperados num período que antecedia a disputa eleitoral, já que foram colocadas para o público situações que, se não fossem revertidas, poderiam comprometer o futuro da nação brasileira, do ponto de vista ético e econômico.

           O jornal colocou-se, obviamente, como defensor de um crescimento econômico, o que implicaria a necessidade de mudanças de rumo na política do governo, às vezes omitindo bons resultados da gestão petista, já mencionados neste trabalho. É o que Perseu Abramo chamava de “Padrão ocultação” da grande imprensa: “Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade. Esse é um padrão que opera nos antecedentes, nas preliminares da busca pela informação” (Abramo, 2003: 25-26).

           A abordagem constante da questão ética, ao que sugere, procurou transmitir ao eleitor a idéia de que algo deveria mudar no país. Para usar as próprias palavras de OESP , no principal editorial de 1º de outubro, dia da votação em primeiro turno: “Ao contrário do que afirma o presidente Lula, para justificar a bandalheira de seus ‘meninos', nem todos os políticos são iguais e nem todos os partidos são semelhantes. Hoje é dia de o eleitor consciente exigir a volta da ética na política e da probidade na administração”.

           Conforme nos explica o doutor em Comunicação e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Milton José Pinto: “Como a arte retórica argumenta dentro do senso comum, visando a criação de verossimilhança, o crédito do orador junto ao público é um fator decisivo, pois a confiança do público abre o caminho para a persuasão”.(Pinto, 2001).

           Tal postura de veículos da grande imprensa não é nova. Para encerrar, é possível ligar este fato à cobertura jornalística da Constituinte, no final dos anos 80:

 

(...) trata-se de uma antiga estratégia da grande imprensa de se autonomear intérprete da sociedade (...). A imagem catastrófica é reiterada, constituindo-se em verdadeiro bombardeio retórico, utilizando-se para tanto de expedientes ao estilo cassandra, pois o futuro certamente seria sombrio (Fonseca, 2005: 400-4001).


Bibliografia


ABRAMO, Perseu (2003). Padrões de manipulação na grande imprensa . São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo.

CHAIA, Vera & TEIXEIRA, Marco Antonio (out/dez/2001). Democracia e Escândalos Políticos. In Revista São Paulo em Perspectiva , vol. 15, nº 4, São Paulo, Fundação Seade.

CHAIA, Vera. Eleições no Brasil: o medo como estratégia política. In Rubim, A.A. (org.) (2004). Eleições presidenciais em 2002 no Brasil: ensaios sobre mídia, cultura e política , São Paulo, Hacker Editores.

FONSECA, Francisco (2005). O consenso forjado: a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil . São Paulo, Hucitec.

KUCINSKI, B. Quem entende o economês? Agência Carta Maior , São Paulo, 1 jul. 2006. Disponível em <http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=11697>. (consultado em 20/07/2006).

MAQUIAVEL, Nicolau (2003). O Príncipe . Tradução Deocleciano Torrieri Guimarães. São Paulo: Rideel.

PINTO, M. J (2002). Comunicação e Discurso . São Paulo, Hacker Editores.

PINTO, M. J (2001). “Retórica e análise de discursos”. In: Fronteiras – estudos midiáticos , vol. II, 1, São Leopoldo: UNISINOS.

THOMPSON, John B (2000) . O Escândalo Político – Poder e visibilidade na era da mídia . Petrópolis, Editora Vozes.

Site : LULA PRESIDENTE: http://www.lulapresidente,org.br
 
 
 
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