JESUS, Alysson Luiz Freitas de. No Sertão das Minas: Escravidão, violência e liberdade - 1830-1888. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2007. ISBN 978-85-7419-829-3. 242 p.

por Ênio José da Costa Brito
“O Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.” (Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”)[1]

Associar sertão e violência é um bordão historiográfico que se repete há décadas. Felizmente, ele vem sendo colocado sob suspeita por historiadores que abandonam enfoques ingenuamente totalizantes e lentes de longo alcance nas suas análises.

Alysson Luiz Freitas de Jesus, no livro Sertão das Minas: Escravidão, violência e liberdade-1830-1888, fruto de sua dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, em 2005, convida e fornece dados aos seus futuros leitores para superarem essa visão tradicional e olhar o sertão Norte-mineiro como um universo cultural.

No Arraial de Formigas, depois Montes Claros, a violência se faz presente não por se tratar do sertão, mas por ser “o cotidiano de tal forma complexo que comportava solidariedade e violência, negociação e conflito, como formas complementares - e não antagônicas - do viver na escravidão” (p.31). Seu foco de análise é o cotidiano escravista no Norte de Minas Gerais ao longo do século XIX. Num intenso diálogo com as fontes, com a historiografia renovada e os estudos culturais, faz aflorar de dentro desse espaço escravista, mestiçado e dinâmico os elementos constituintes das relações de escravos, forros, homens livres e senhores.

Organizado em quatro capítulos - O cenário, as fontes e o cotidiano; Os escravos, os forros e os homens livres no sertão oitocentista; a escravidão e a liberdade e Depois do Ventre-Livre - e densamente fundamentado, o livro deixa aflorar “as percepções que os atores sociais tinha da escravidão, da violência e da liberdade”.

Do Arraial de Formiga à cidade de Montes Claros

A região norte do Estado de Minas Gerais deve seu povoamento à expansão da pecuária e à ação de bandeirantes como Espinosa Navarro e Fernão Dias. Uma das marcas da conquista, já consolidada em 1690, foi a derrota indígena. A colonização, com base na pecuária, possibilitou a constituição de núcleos permanentes, nos quais os poderes público e o privado disputavam espaços no campo político. No século XVIII, é notória a dificuldade de se implantar na região uma ordem pública.

O Arraial de Formiga, em 31 de outubro de 1831, passou a ser Vila e, em 1850, cidade, processo acompanhado por lentas transformações na estrutura político-econômica da região. Para o autor, a percepção do universo cultural do norte-mineiro pede o abandono da visão dicotômica que opõe o sertão ao litoral, o urbano ao rural, e o concebe como espaço de violência, geográfica e politicamente isolado e reduto do poder privado. Esse quadro não encontra respaldo no cotidiano dos atores sociais.

No entanto, não se pode negar que a violência apresenta-se no sertão norte-mineiro como um componente marcante na constituição cultural da região, não esquecendo que cada sociedade tem suas próprias noções de violência. Sua prática no norte de Minas Gerais tem especificidades, mas não era o único recurso empregado pelos sertanejos para resolver suas pelejas. No século XIX, tanto a violência quanto a justiça corroboraram a ordem nesse universo de relações plurais e complexas. Para Jesus, a leitura da vasta documentação por ele consultada “permite repensar a proximidade entre esses escravos, libertos e homens livres; o papel que as relações afetivas tiveram no cotidiano do sertão; a violência como estratégia importante nas relações entre os agentes históricos, entre outras questões”. (p.72)

Universo cultural complexo

No sertão, as identidades se estabeleciam a partir do contato, da mistura biológica e cultural que aproximava o mundo dos livres e o dos escravos. Proximidade ancorada num cotidiano e numa vida econômica simples, que simultaneamente aproximava e distanciava escravos, forros e homens livres. Dinâmica plasmadora de identidades “trata-se de um mundo que transformou escravos, libertos e homens livres em parceiros no crime e companheiros no lazer”. (p.79).

Gradualmente, a historiografia vem reconhecendo a importância da economia escravista de Minas Gerais no século XIX, antes considerado como “a idade das trevas” para a província. Pesquisas recentes têm mostrado a acentuada vocação da região para a economia pecuária; a preservação e relativo crescimento da população escrava; a importância de famílias cativas e a presença de relações familiares e afetivas.

Os processos-crime analisados “são capazes de revelar maneiras diferentes de se enxergar o mundo, formas distintas de avaliar o que era importante na vida desses cativos e, mais que isso, são ainda capazes de reiterar o contato intimo e dinâmico do mundo dos livres com o mundo dos cativos”. (p.94).

Um dado chama atenção: cativos, libertos e livres encontram na violência uma saída para seus conflitos. Saída quase natural respaldada na estrutura social, um reflexo da ausência de normas. No entanto, não se pode esquecer que a violência não era a única saída para as múltiplas tensões da sociedade norte mineira. A análise de 102 processos-crime ofereceu dados sobre os agentes principais da violência, sobre os tipos de crimes, sobre as armas utilizadas e sobre os agentes e vítimas por sexo. “O contato íntimo, a proximidade, a simplicidade da vida, a solidariedade junto à violência extrema, são características que fizeram dos nossos atores sociais, homens e mulheres, escravos ou escravas, libertos ou livres, agentes do mundo violento que ajudaram a construir”, relembra o autor. (p. 112).

A presença da justiça

No século XIX, a província preocupada com o aumento da violência buscou, com a implantação da justiça, regular os costumes. Ação que levou os sertanejos a criarem novos mecanismos para sobreviver no dia-a-dia. A maior presença da justiça não trouxe o estabelecimento eficaz da ordem, nem impediu que a violência continuasse conformando as identidades.

O aparato judiciário embaralhava questões públicas e privadas, mostrando-se muito mais rigoroso na aplicação das penas aos escravos. “A presença da justiça, a tentativa de regular os costumes e a inserção cada vez maior dos sertanejos nas discussões quanto ao poder público, fizeram do sertão oitocentista um universo diferente do percebido na centúria anterior”. (p.125)

Jesus recorre aos processos de “Ações Cíveis de Liberdade” para descortinar o dia-a-dia dos escravos, que vai além de submissão e exploração. Rejeitando a visão tradicional que fazia da vontade senhorial a fonte única da liberdade escrava, resgata a efetividade dos escravos nos processos de alforria, sem negar o papel central dos senhores. Escravos e senhores recorriam aos costumes e às leis para defender os seus direitos.

Um primeiro reflexo dessa postura é repensar e ampliar o conceito de liberdade, que para os escravos está mais ligado à experiência de vida do que a um conceito jurídico. “Durante todo o século XIX senhores e cativos passaram por um intenso processo de relações e contatos culturais, o que levou esses homens a vivenciarem acordos, negociações e a estabelecerem laços de solidariedade com diversos outros grupos sociais ou mesmo a entrarem em conflito no momento de libertação”. (p.147)

A análise de 357 Ações Cíveis de Liberdade possibilitou desvendar e refinar a percepção do significado das alforrias, da escravidão e da liberdade para esses agentes sociais. No norte-mineiro, os crioulos foram os mais alforriados, seguido dos africanos; alforriava-se mais adultos (16-45 anos) do que crianças (0-15 anos). O índice de casados alforriados é baixo, o que não significa que se dava pouca importância à família; este dado, aliás, nos convida a repensar “a noção de família escrava além das uniões legais e sacramentadas”. (p.161).

A região repete um dado constantemente reiterado pela historiografia: alforriou-se mais mulheres que homens mesmo entre os africanos, que superavam em seis vezes o número de mulheres na região.

Lembretes finais

O livro No sertão de Minas, de Alysson Luiz Freitas de Jesus, dá uma contribuição significativa à Historia das regiões periféricas do Império ao integrar o sertão norte-mineiro às demais regiões do país. O autor alcança plenamente um de seus objetivos, o “de contestar as noções de isolamento, atraso e dependência do sertão norte-mineiro com relação às demais regiões da província, em especial no que se refere ao século XIX”. (p.187).

Fiel ao princípio norteador da pesquisa - de olhar para o universo cultural sertanejo de acordo com o que ele tem a oferecer e não a partir de análises a priori -, capta a dinâmica da liberdade e da escravidão no norte de Minas, bem como a sua complexidade. Além disso, avalia o papel dos cativos na formação cultural e na estrutura econômica; o papel dos costumes, da justiça e da violência no universo sertanejo do século XIX.

Tendo optado por elaborar uma história cognitivamente responsável[2], Jesus estabelece um amplo e critico diálogo com a historiografia renovada e com os dados empíricos recolhidos numa cuidadosa pesquisa, que reuniu 102 processos criminais nas categorias de crimes contra a pessoa, contra o patrimônio e contra a ordem; cerca de 20 processos de Ações de Liberdade e 357 Cartas de Alforria.

A análise das relações entre cativos e senhores após a promulgação da Lei de 1871 permitiu ao autor descortinar as mudanças ocorridas no entendimento das regras costumeiras e na legislação, deixando aflorar o papel da justiça na passagem do século XVIII para o século XIX.

O texto em alguns momentos sinaliza para dinâmicas, tensões que estarão presentes na relação entre pré-abolição e pós-abolição, que, mesmo não sendo o foco da pesquisa, mereceriam ser exploradas, contribuindo para quebrar uma distinção muito rígida, entre pré-Lei de 1871 e pós-Lei de 1871. Paradigma dicotômico que vem sendo gradualmente rompido nos estudos históricos. O livro já se insere seminalmente nesse novo modelo que realça continuidades.

O autor, ao acompanhar trajetórias individuais, revela formas, organizações e histórias inéditas de cativos, libertos e homens livres que “foram protagonistas de um mundo marcado pela diversidade, pelo contato, pela proximidade. Foram decisivos na construção de nosso passado escravista e, inegavelmente..., parte integrante do Brasil que vivemos”. (p.210).

O livro No Sertão das Minas torna-se um ponto de partida dos mais valiosos para todos os que desejam investigar a História Social e Cultural da região norte-mineira.


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Notas

[1] Guimarães ROSA, Grande sertão: veredas.11ed . Rio de Janeiro: José Olympio, 1976, p.20.

[2] A expressão é de Dominick LaCapra, ao problematizar a leitura de documentos históricos, que, para ele, são “ textos que complementam ou reelaboram a realidade e não simples fontes que divulgam fatos sobre a realidade”. Cf Dominick LACAPRA. History and criticis. Nova York: Cornell University, 1985, p.11.