Pensamento e Experiência Religiosa: Contribuições do Jovem Heidegger para a Mística Apofática

José Carlos Michelazzo[*] []

Resumo

O artigo se propõe a apresentar os passos iniciais do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, cujo propósito era o de erigir uma nova ontologia alicerçada sobre três de seus importantes conceitos: o de facticidade, de nadidade e de temporalidade. Por meio desses conceitos Heidegger introduz algo inusitado na História da Filosofia, que é o pensar o ser a partir de seu caráter apofático. Com isso o pensador desconstrói importantes noções da tradição filosófica tais como as de transcendência, de fundamento, de limite, de verdade e de mistério, que lhe permitem apresentar contribuições significativas para as áreas da Filosofia e Ciências da Religião. Tais contribuições se mostram em dois níveis: a) lançam novas luzes para reinterpretar a experiência religiosa radical ao apresentar um novo modo de compreender o problema do nada e do vazio e; b) abrem um diálogo mais expressivo com o fenômeno da mística apofática ocidental e do Extremo Oriente.

Palavras-chave: fenomenologia, ontologia, facticidade, nadidade, temporalidade, apofático.

Abstract

The paper proposes to show the initial steps of Martin Heidegger’s thought, germany philosopher, which nourished the idea of constructing a new ontology founded under three important concepts: facticity, nothingness and temporality. Through those concepts Heidegger introduces something absolutely new into Philosophy’s History, that is to think Being from your apophatic character. So the thinker deconstructs important notions of philosophical tradition as transcendence, ground, limit, truth, mystery, and presents expressive contributions to Philosophy and Sciences of Religion areas. Those contributions are presented at two levels: a) by lighting up the reinterpretation of the radical religious experience through new way to understand the question of nothing and emptiness, and b) by opening a dialogue more significant to phenomenon of apophatic mystic of west and far east.

Keywords: phenomenology, ontology, facticity, nothingness, temporality, apophatic.

Introdução

Martin Heidegger (1889-1976) é considerado um dos maiores ou o maior filósofo do século passado. Seu horizonte de influência há muito ultrapassou o âmbito dos filósofos profissionais para atingir as ciências, especialmente as humanas (Psicologia, Educação, Antropologia, Direito, etc.), mas também as ciências médicas (Psiquiatria), as artes (poesia e pintura) e ainda o pensamento religioso (Teologia, Filosofia e Ciências da Religião). Pensador de difícil compreensão que, pelos temas com os quais trabalha e pela forma com que interpreta antigas questões da Filosofia, gera adeptos e opositores por provocar em seus leitores, na maior parte das vezes, a ambígua sensação de ser muito próximo e, ao mesmo tempo, muito distante, estranho e até mesmo incompreensível. Por mais que pese a veracidade dos argumentos a favor ou contra o filósofo, o que talvez esteja subjacente a todos eles é o caráter estranhamente novo de seu modo de pensar, refletindo um senso de quebra com a tradição do pensamento ocidental e, consequentemente, de ruptura cultural.

De fato, pensar não é o mesmo que filosofar. Filosofia, para Heidegger, é eine Sache der ratio (uma questão da razão), um modo de pensar a realidade pelo único viés da racionalidade, guiado, por sua fez, por uma linguagem lógica e objetificante que lhe fornece razão suficiente para toda a proposição de seu discurso. Nesse sentido, Heidegger não é um renovador da Filosofia como um Descartes, um Kant, um Husserl o foram, pois com suas contribuições originais reafirmaram o lugar e o poder da ratio como sustentação do pensamento filosófico. A contribuição de Heidegger, todavia, ou antes, a sua revolução, não é a de renovar a Filosofia, mas a de resgatar o pensamento (CAPUTO 1986: 3-4). Tal revolução de Heidegger estaria, então, em saltar para fora da Filosofia, uma vez que, tal como ele mesmo afirma em um escrito tardio, infelizmente, “não há uma ponte que conduza da ciência ao pensamento, a única passagem possível é o salto. O lugar aonde este salto nos conduz não é só o outro lado do abismo, mas uma região totalmente diversa” (HEIDEGGER 1958:157).

Talvez esse salto de Heidegger para fora da Filosofia tenha sido possível, em última instância, por ele ter aproximado a categoria filosófica do ser à categoria do tempo. Para os gregos,

há uma incompatibilidade entre tó ón, conceito de ser e da própria ideia de filosofia, e de tó chrónos, conceito de mito. Isto porque o primeiro é um conceito de permanência, enquanto que o segundo é um conceito de fluxo. Juntar esses dois conceitos foi verdadeiramente uma atitude desafiadora. [...] Para Heidegger, o tempo, antes de ser uma noção filosófica, é uma noção religiosa (CASTILHO, 1998).

Esta última afirmação nos parece extremamente importante desde que não a interpretemos no âmbito do jargão religioso, no sentido de o filósofo ter-se iniciado na Teologia e, posteriormente, ter simplesmente transposto suas noções religiosas centrais para o âmbito de seu pensamento filosófico.

Trata-se, muito antes, desse traço do tempo como fluxo, do tempo que passa e que nos lembra do caráter impermanente, contingente e finito do ser, tal como se mostra nos acontecimentos de nossa existência. Esse tom religioso, sem ser religião, na forma de Heidegger interpretar o ser e o tempo, coloca o seu modo de pensar à distância da perspectiva teórica e objetivada, presente nas sentenças e enunciados da Filosofia da Tradição. Esse tom temporal e finito do tempo é o que, em última instância, guia o filósofo, ao longo de sua obra, em seu esforço para recuperar o sentido do ser para além de seu traço entitativo, lógico, discursivo que o apreende em sua mera presença substancial – tal como a metafísica sempre o fez desde os tempos da Grécia clássica com Platão e Aristóteles –, abrindo, desse modo, acesso a uma interpretação mais globalizante do real, resgatando para o pensamento ocidental uma experiência de unidade e de totalidade mais originárias.

Embora o problema do tempo originário seja o grande horizonte de interpretação dos conceitos heideggerianos, ele não é, contudo, o primeiro ao qual o filósofo se dedica. Como veremos adiante, o primeiro é o problema do ser que foi o marco central de seu pensamento do início ao fim de seu itinerário. Todavia, o tratamento inicial dado ao ser é ainda dentro das correntes filosóficas correntes no início do século passado. É só a partir de 1919 – com a introdução do conceito de facticidade e posteriormente com o de nada e de temporalidade –, que Heidegger dá, de fato, início ao seu caminho de pensamento, ou seja, é quando o jovem filósofo começa a se tornar o Heidegger que será conhecido, posteriormente, pela comunidade filosófica mundial, a partir de 1927, por ocasião da publicação de seu Ser e tempo.

No presente trabalho, queremos dar uma visão geral do imbricamento desses três importantes conceitos heideggerianos – facticidade, nadidade e temporalidade –, no período de seu surgimento. Uma primeira intenção com isso é mostrar a gênese desses conceitos com o intuito de podermos acompanhar o motivo e o âmbito de indagação em que eles apareceram e o modo como estavam amalgamados com acontecimentos históricos e vivências pessoais do filósofo, tal como foi para ele, por exemplo, experiência da Primeira Guerra Mundial de 1914. Nosso propósito subjacente aqui está na suposição de que acompanhar a gênese desses conceitos amplia as condições para a sua compreensão, ao invés de apresentá-los de um modo pronto e acabado, tal como aparecem nas obras mais maduras do filósofo.

Mas a intenção mais fundamental é podermos divisar nesses três conceitos – a existência fáctica, o nada privativo e o tempo que flui – o núcleo central do apofatismo ontológico de Heidegger que dará a ele o distintivo de filósofo da finitude, motivo pelo qual um número crescente de pesquisadores ocidentais e orientais têm se interessado por seu pensamento com o intuito de ali apreender novos conceitos e categorias que tem aberto novos caminhos de acesso ao entendimento da experiência religiosa e, em especial, da mística apofática. De fato, se o misticismo é uma experiência não-discursiva da realidade – cujo acesso não é realizado pela perspectiva do senso comum nem pela argumentação racional, mas intuída de modo direto –, o salto que o pensamento de Heidegger realiza, então, para fora da Filosofia, acaba por estabelecer uma proximidade, um estranho parentesco como o intuitus mysticus, na medida em que ele não mais oferece nem pede justificação daquilo que é afirmado, pois não mais se encontra sob o domínio de razão suficiente. É essa proximidade, portanto, que torna o diálogo entre os caminhos do pensamento e da mística mais estreito e intenso, com ressonâncias significativas para ambos os modos de experienciar a realidade.

Assim, nesse início do itinerário do jovem Heidegger, que cobre os anos de 1907 a 1920 – e que neste artigo não será apontado senão seus aspectos centrais –, procuraremos abordar: o despertar de sua vocação para a ontologia (1); o fáctico como um acesso rigoroso ao problema da vida (2) e, por fim, o fáctico como manifestação do caráter apofático do ser (3).

1. O despertar para a ontologia

O impulso inicial da vocação de Heidegger para a ontologia, parte da Filosofia que estuda o problema do ser, já está presente desde 1907 quando, com a idade de dezoito anos e aluno do ginásio Bertold em Freiburg, recebe de presente o livro de Franz Brentano – Sobre o sentido múltiplo do ente em Aristóteles (1862) –, por meio do qual o jovem estudante se sente tocado por uma questão que o próprio Estagirita deixou indeterminada. Se o ser, para Aristóteles, se diz com muitos sentidos (tò ón legethai pollachós), indaga Heidegger, “qual é, então, a determinação dominante, simples, unificadora do ser que permite todos os seus múltiplos sentidos? [...] O que significa, pois, ser?” (RICHARDSON 1974 xi).

Desde os primeiros passos do seu caminho o filósofo já mostra, por conseguinte, grande interesse por esse traço basal e remoto do real que é sempre anterior às suas múltiplas manifestações singulares de sentido, expressas através da profusão dos entes. Por intermédio desse traço em que o ser em geral se mostra, Heidegger descobrirá – ao longo dessa primeira etapa de seu caminho até Ser e tempo –, que investigar esse ser só será possível por meio do seu sentido, palavra-chave que nos inclui nessa investigação. Mas sentido aqui, entretanto, é sempre uma compreensão indeterminada, pré-ontológica, ainda não tematizada, do ser desse ente que somos nós mesmos, numa espécie de círculo de unidade, por meio do qual perguntar pelo sentido do ser e, ao mesmo tempo, colocar a nós mesmos em questão façam parte de uma mesma experiência, de uma única trama inquisitiva. Em 1972, Heidegger ainda se lembra das experiências que marcaram o seu início de pensamento:

No ano de 1908 entrei em contato com a poesia de Hölderlin através de um pequeno volume restaurado, ainda hoje preservado. [...] No ano de 1909 iniciei meu estudo de teologia na Universidade de Freiburg i. Br. que era alternado, nos anos seguintes, com o de filosofia, o de ciências da natureza e do espírito. Desde 1909 tentei me introduzir livremente, sem uma orientação correta, nas “Investigações Lógicas” de Husserl. Através de seminários de exercícios com Rickert conheci os escritos de Emil Lask e, intermediado entre ambos, tentava eu ouvir os pensadores gregos (HEIDEGGER 1978:56).

Também teríamos de falar do profundo interesse do jovem Heidegger em relação ao misticismo medieval, especialmente de Mestre Eckhart, despertado, talvez, pelo curso de Joseph Sauer, do qual participou no semestre de inverno de 1910-11. Esse professor era o editor do jornal católico Literarische Rundschau für das katholische Deutschland, no qual Heidegger publicou alguns de seus artigos. A influência de Eckhart aparece no seu escrito de habilitação sobre Duns Scotus, em cuja conclusão Heidegger explicita, em nota, o desejo de futuramente apresentar um trabalho sobre o problema da verdade, presente na mística eckhartiana (HEIDEGGER 1978:402, n.2).

É também nessa época que Heidegger entra em contato com pensadores e poetas que lhe imprimirão uma profunda marca, tanto na primeira, quanto na segunda etapa de seu caminho de pensamento. Também em 1972 ele relembra que

O que era provocado entre os agitados anos de 1910 e 1914, não se deixa expressar devidamente, mas pode apenas ser sugerida através por uma pequena e seleta enumeração: a segunda edição, significativamente aumentada, da ”Vontade de Poder” de Nietzsche; a tradução das obras de Kierkegaard e Dostoiewski, [...] a poesia de Rilke e os poemas de Trakl; o conjunto dos escritos de Dilthey (HEIDEGGER, 1978: 56).

O que atraía Heidegger para essas leituras, às quais podemos ainda acrescentar Novalis e Schlegel, presentes na conclusão de seu trabalho de habilitação, bem como os românticos alemães? O que propriamente lhe provocavam estas leituras nestes anos agitados? Tudo indica que se trata daquela dimensão que será a marca de seu pensamento – presente não só nos seus trabalhos juvenis, mas ao longo de seu itinerário até os seus escritos da maturidade – ou seja, o caráter da experiência viva, concreta, histórica, da vida contra o “‘cinza-cinza’ da filosofia” (HEIDEGGER, 1978: 203), presente tanto na lógica pura quanto no pensamento teológico-especulativo. Um desses exemplos de experiência viva Heidegger vai encontrar no modo medieval de vida que será objeto de investigação do seu trabalho de habilitação intitulado de Die Kategorien- und Bedeutungslehre des Duns Scotus (A doutrina das categorias e do significado de Duns Scotus).

Esse é o primeiro trabalho de peso do jovem Heidegger, escrito entre 1915-16, que, mesmo que tenha sido elaborado sob o horizonte das correntes filosóficas de maior expressão da época, serve de marco inaugural propriamente dito do seu caminho, cujos ecos serão ouvidos em seus trabalhos posteriores até Ser e Tempo[1]. Ele pretende ser uma contribuição ao movimento de renovação do neo-escolasticismo, presente nos círculos acadêmicos católicos alemães desde o início do século XX, no interior dos quais está Carl Braig, professor de Teologia Dogmática de Heidegger entre 1909 e 1911, anos em que era estudante de Teologia na Universidade de Freiburg. Esse trabalho se proporia, então, a uma espécie de apropriação de um modelo ideal de vida, o medieval, atualizado por meio do pensamento cristão atual e de conceitos da Filosofia moderna como o neokantismo e a Fenomenologia. Por meio desta – guiado especialmente pelo lema de Husserl: “às coisas mesmas” (zu den Sachen selbst) –, Heidegger acreditava que poderia aproximar os autores do “mundo vivido”, presente em suas leituras de estudante, do método rigoroso da pesquisa filosófica. É a esse caráter do vivido, pensava o filósofo, que toda Filosofia deve estar vinculada, em que o trabalho verdadeiramente criador em torno dos problemas investigados só pode acontecer “a partir de intensa vivência pessoal” (HEIDEGGER 1978:191), de forma que toda concepção filosófica fosse sempre interpretada como “uma tomada de posição pessoal do filósofo em questão” (HEIDEGGER 1978:196).

Ora, é isso que faz Heidegger se interessar pelos escritos da Idade Média – que ele apreende na “literatura mística, moral-teológica e ascética da escolástica medieval” (HEIDEGGER 1978:205) –, por eles se mostrarem como um exemplo de harmonia entre a vida vivida (mística) e Filosofia (escolástica), que ele não vê mais no pensamento moderno. Neste, ao contrário, reina uma desarmonia, cujo pensamento perdeu sua força junto ao âmbito do supra-sensível (Filosofia), ficando muito próximo da realidade sensível, fragmentado numa multiplicidade infindável de ciências e conhecimentos técnicos empregados no manejo das atividades práticas dos negócios humanos, sobrando, deste modo, pouco ou nenhum espaço para a transcendência da vida, distendida numa “amplitude fugaz e vazia. Nesta atitude de vida superficial e dispersa, as possibilidades de uma crescente insegurança e completa desorientação são extremamente grandes, mais até, são sem limites” (HEIDEGGER 1978:409). Assim, observamos Heidegger contrapor, nesse escrito sobre Duns Scotus, dois horizontes de pensamento, o moderno e o medieval, procurando fazer uma síntese por meio de uma espécie de dupla desconstrução[2]. Por um lado, ele quer reconduzir o pensamento moderno a um modo mais originário de harmonia e convivência, tal como acontece, em sua opinião, com a escolástica e a mística que, longe de constituírem duas tendências divergentes,

se co-pertencem essencialmente no interior da concepção de mundo medieval. (De tal forma que) os dois pares de opostos: racionalismo-irracionalismo e escolástica-mística não se correspondem. E onde tal equiparação é tentada, sustenta-se sobre uma extrema racionalização da filosofia. Filosofia, enquanto construção racionalista, desligada da vida, é impotente (machtlos); mística, enquanto vivência irracional, é sem objetivo (ziellos) (HEIDEGGER 1978:410).

Mas, por outro lado, Heidegger não quer ser ingênuo de desconsiderar as contribuições do pensamento moderno, especialmente as da Filosofia transcendental kantiana. Neste sentido, seu propósito era trazer esse pensamento medieval harmonioso para os dias de hoje para que, com sua atualização ou modernização, pudesse ser mais bem compreendida e incorporada pelo nosso Zeitgeist, nosso espírito do tempo, uma vez que lhe faltaria uma noção tematizada do sujeito como um princípio sintetizador da consciência. E isso se dá, segundo Heidegger, porque “o homem medieval não é próximo de si mesmo no sentido moderno – ele se vê sempre posicionado no interior da tensão metafísica; a transcendência o impede de assumir uma atitude meramente humana diante do todo da realidade” (HEIDEGGER 1978:199). A síntese almejada por Heidegger entre pensamento medieval e pensamento moderno seria realizada, portanto, por meio da desconstrução do caráter limitador de um, reconstruindo-o com o auxílio das qualidades de outro.

Todavia, esse projeto de síntese filosófica do jovem Heidegger em contato com a experiência da Primeira Grande Guerra, irá sofrer uma profunda crise. Uma das principais consequências deste acontecimento será o desmoronamento, para Heidegger, das estruturas então vigentes na Filosofia sobre as quais o seu projeto se apoiava, ou seja, o neokantismo rickertiano e a fenomenologia husserliana, dando, assim, início ao seu conhecido tema da desconstrução da metafísica. Todavia, o que nesse projeto lhe é mais próprio – isto é, o que é fruto das genuínas intuições do filósofo –, ficará mais forte e seguirá por um caminho mais pessoal em direção a uma nova concepção de metafísica.

Servindo como soldado de estação meteorológica na unidade de Wurtemberg, em Berlim-Charlottenburg, Heidegger testemunhou as últimas etapas da guerra, quando no verão de 1918 os exércitos alemães faziam suas derradeiras investidas contra o avanço vitorioso dos ingleses e dos franceses. Como toda a sua geração, também testemunhou a crueldade da carnificina e o saldo terrível de mortes, traumas e prejuízos de toda ordem. Acrescente-se a isso as decepções da derrota, mas, sobretudo, o sentimento de traição quando até poucos meses antes do seu desenlace havia grande expectativa em toda a Alemanha de que ela seria a grande vencedora.

Para o jovem Heidegger, todo esse banho de sangue, em que mergulharam o seu país e as demais nações da Europa, tinha uma interpretação bastante clara: era o agonizar do mundo moderno, calcado no brilho das conquistas das ciências da natureza e da tecnologia que proporcionavam bem-estar e conforto à vida, fazendo brotar no coração dos europeus a crença de que tais conquistas eram a base de sustentação da ordem política, econômica e social e, como consequência, a fé inquestionável no progresso. Por trás de todo esse brilho, pensava Heidegger, o espírito do Ocidente estava profundamente enfermo. A guerra queimou tudo, mas foi ele, o espírito dos ocidentais, que, em última instância, a guerra destruiu. Por isso que a reação de Heidegger, diante do cenário pavoroso de uma Europa em decomposição, não é a de um abatimento paralisante ou, como da maioria dos alemães, de desorientação e de desespero. Na verdade, esse cenário parece reforçar, em Heidegger, a convicção de que a guerra, apesar de deixar a vida incerta, fez apenas o que devia fazer: expor para os europeus o seu espírito agonizante e destruí-lo.

Mas a segunda convicção de Heidegger, a mais importante, é a certeza de seu próprio caminho de pensamento, ou seja, a de estar entre aqueles que estão dispostos a não fraquejar na busca do “espírito vivo”, que guiará e educará o povo para a sinceridade e para os autênticos bens da existência, devolvendo-lhe, assim, tal como sente vibrar em si mesmo, a alegria de viver. Após o término da guerra, a trincheira particular de Heidegger será, então, aquela do combate incessante contra o academicismo reinante na Filosofia, à qual ele imputa considerável responsabilidade pelo colapso espiritual do Ocidente. Na opinião de Heidegger, os seus representantes, ao invés de guardarem o espírito da sabedoria herdada desde os gregos, brincaram com ele na medida em que se mantiveram numa atitude puramente teorética, distanciada da vida concreta e perdida nas alturas da especulação, instrumentados por uma lógica vazia e um diletante jogo de conceitos à busca de conhecimentos e valores abstratos e universais, em nome de uma pseudo-objetividade. Em 1º de maio de 1919, escreve Heidegger à sua amiga:

A nova vida que queremos ou, antes, que pode germinar em nós, renunciou a ser universal, isto é, inautêntica e superficial – [... para] participar do original, não o artifício das construções, mas a intuição total, tal como ela se impõe com evidência (HEIDEGGER 1996:216).

Essa vida, que Heidegger quer, não é, portanto, uma vida escravizada pelo culto artificioso da razão universal, guiada por um saber teórico desenraizado e fragmentado em uma multiplicidade de disciplinas fechadas em si mesmas, mas um saber que se mostra como intuição ao interrogar apaixonado do ente em sua totalidade, cuja evidência brota das entranhas da vida concreta e histórica. E é para esse saber que o caminho de pensamento de Heidegger se volta e com o qual a Academia deveria, verdadeiramente, se interessar e se responsabilizar por[3].

Tais experiências e intuições são os ingredientes básicos que preparam uma profunda metamorfose de seu pensamento que põe fim ao seu ideal de uma Filosofia enquanto verdadeira concepção de mundo, atualizada pelo pensamento católico com a ajuda do pensamento moderno e, consequentemente, a sua carreira no serviço de pesquisa e ensino da Filosofia cristã-escolástica e da metafísica aristotélico-escolástica. Trata-se, agora, de pôr em causa as posições do neokantismo e da fenomenologia, em seu apogeu no período pré-guerra, por parecerem ser excessivamente teóricas e, assim, terem perdido toda a relação com as questões de vida ou morte, presentes na Alemanha do pós-guerra, de tal forma que teriam se tornado incapazes de apreender o sentido autêntico da vida. Em seu lugar surge um interesse crescente pela Filosofia da vida (Lebensphilosophie) de Dilthey (1833-1911), mediante a qual se sente desafiado a promover a aproximação entre a Filosofia e aquele caráter essencial da condição humana que foi abandonado pela tradição: a vida em sua dimensão concreta.

Era imperioso, portanto, para Heidegger, destruir o fascínio pelo teórico seja na perspectiva de uma “consciência ideal” (o eidos de Husserl), seja na perspectiva de uma “consciência geral” (o Bewusstsein überhaupt de Rickert), por estarem, cada uma à sua maneira, afastadas do mundo histórico; só assim, pois, seria inaugurado outro acesso à primazia da experiência. Tais posições teóricas, pensava o jovem Heidegger, são incapazes de se aproximar da experiência da vida, enquanto existência. Pensado desse modo, o sentido da vida “não pode ser autenticamente apreendido numa perspectiva teórica” (HEIDEGGER 1998:25). Tanto o neokantismo quanto a fenomenologia tinham dado grande contribuição à pesquisa acadêmica antes da guerra e mesmo que pesassem entre si diferenças doutrinárias, compartilhavam, todavia, do ideal de uma filosofia científica que abandonaria sempre mais o âmbito instável do fenomênico para se instalar numa consciência transcendental, fonte de todo a priori que qualquer teoria que se quer rigorosa tem que alcançar como fundamento. Como conciliar, no entanto, o a priori absoluto com o histórico? Admitir tal possibilidade, isto é, manejar as normas estáveis do pensamento lógico-discursivo num mundo de fatos historicamente cambiantes, era o mesmo que abrir uma brecha perigosa para o relativismo, ou seja, para a não-cientificidade.

2. O fáctico como um acesso rigoroso ao problema da vida

Como, porém, realizar o acesso à primazia da experiência concreta, histórica? Um caminho possível seria seguir Dilthey, que criticava a Filosofia da tradição que era incapaz de distinguir entre construção ideal e experiência de fato. Para o filósofo alemão, a natureza só é acessível indiretamente, a partir de fatos esparsos, cuja unidade e coerência nunca deixam de ser hipotéticas, ao passo que a vida humana é sempre um dado imediato e que, para apreendê-la na sua essência, não há necessidade alguma de uma construção teórica externa a ela mesma, mas somente de uma aproximação, ou melhor, de uma compreensão. Daí, a conhecida afirmação de Dilthey de que nós explicamos a natureza e compreendemos a vida humana. Explicamos a primeira porque não existe um conjunto de afirmações coerentes nas ciências naturais capaz de apreendê-la no seu todo a não ser por meio de raciocínios e hipóteses externos a ela que completam os dados de nossa experiência. Por outro lado, compreendemos a vida humana porque o seu conjunto constitui, por toda parte, para nós mesmos, um dado fundamental e imediato, melhor ainda, constitui a experiência imediata de sermos nós mesmos.

Com a sua palavra-guia vida, que reúne tanto o âmbito filosófico quanto o contexto histórico e psicológico concretos em um todo indissociável, Dilthey preparava e antecipava um dos principais temas de Heidegger dos anos 20, que seria um dos pilares de sustentação de Ser e tempo: a vida fáctica (faktisches Leben), que veremos mais adiante. Mas por que vida? Por que compreender a vida se a questão-guia de Heidegger, tal como temos acompanhado desde o início de seu pensamento, é a do ser? Trata-se, na verdade, da Filosofia da vida que como corrente filosófica nasceu na mesma época da fenomenologia, mas que ganhou força no período posterior à Primeira Guerra. Heidegger faz parte desse entusiasmo e nunca deixou de reconhecer a influência de Dilthey em seu pensamento.

Apesar de Heidegger compartilhar da atmosfera de efervescência dessa perspectiva filosófica – de nela reconhecer tendências positivas, dada a influência do elevado nível das intuições de Dilthey que ele próprio parecia desconhecer –, ele alimenta profundas suspeitas quanto ao seu traço elástico onde parece conviver certo psicologismo, biologismo, vitalismo, assim como esse cunho aventuresco que se vê descomprometido com o rigor do conceito, mas, sobretudo, com o fundamento daquilo que se afirma. Heidegger, entretanto, não se deixa levar por essa onda por não partilhar da apreensão da vida em sua imediatidade pura e simples, guiada por certa fenomenologia descritiva que procura ser conduzida por um caráter classificatório das experiências cotidianas concretas. Heidegger entende que esta atitude também pode ser facilmente presa de certa cegueira, uma vez que ela desconhece a sua base motivacional que dirige o seu olhar que faz distinções e classificações, tornando-a incapaz de servir de ponto de partida para pensar a questão da vida em seus fundamentos.

Resta a Heidegger realizar um caminho próprio para superar o que havia de vago e impreciso na Lebensphilosophie e, deste modo, ter acesso a um conceito originário de vida. Esse caminho será o método fenomenológico. Se havia algo de importante na fenomenologia que deveria ser preservado, pensava Heidegger, não era mais o ideal de seu mestre, transformando-a numa “filosofia como ciência de rigor”, mas o seu método, por meio do qual lhe seria permitido fazer a redução fenomenológica não mais a um sujeito transcendental, mas à vida concreta, em carne e osso como diria Husserl. A fenomenologia de Heidegger será, então, uma reinterpretação daquela criada pelo seu fundador, na medida em que ela possibilitará o acesso a uma nova ontologia enquanto interpretação da vida concreta.

Desse modo, desde quando Heidegger assumiu em Freiburg o posto de professor assistente de Husserl (1919), por quase uma década ele ministra as suas preleções em cujos títulos, por via de regra, está presente a palavra fenomenologia. Todavia, a fenomenologia que Heidegger quer seguir, tal como nos referimos anteriormente, não é mais aquela de seu mestre que segue a via do eu transcendental e absoluto. Heidegger afasta o método fenomenológico do idealismo para aproximá-lo da vida fáctica, isto é, ele não deve mais partir da intuição, no sentido de uma apreensão contemplativa dos objetos, mas do compreender enquanto um acesso direto à vida em sua dimensão concreta, histórica.

Para Heidegger, a vida em sua realidade histórica escapa ao conhecimento transcendental, tal como Husserl entende, por reduzi-la à condição de objeto, cuja origem é sempre, em última instância, o sujeito que o representa. Tal procedimento está assentado sobre o pressuposto de que a dimensão histórica e fáctica podem ser excluídas da constituição eidética que se encontra na consciência que, por sua vez, acha-se sustentada por um fundamento a-histórico absoluto. Assim, esse processo metodológico, que quer ocupar-se exclusivamente das essências, desenraizado da experiência da vida, esquece as suas próprias suposições. É verdade que Husserl fala de vida, mas a vida de um eu puro, nunca a vida imediata, a vida do mundo. Esta vida real, concreta, tal como Heidegger a pensa, não pode ser captada por uma intuição eidética, mas sim por uma aproximação compreensiva.

Assim, se a fenomenologia de Husserl é um esforço para ver objetividades – ou seja, reconduzir objetos à consciência pura –, a vida, como tal, no entender de Heidegger, desaparece. Para apreender essa vida real, Heidegger substituirá a fenomenologia transcendental por uma fenomenologia hermenêutica. Tal palavra, no entanto, não deve, segundo Heidegger, ser entendida de modo corrente, ou seja, como um interpretar os fenômenos a partir de modelos teóricos tomados a priori, mas tomar os tais fenômenos como as próprias mensagens de maneira que elas possam fazer aparecer a coisa mesma. O programa de Heidegger dedicado à fenomenologia será, por conseguinte, praticar uma hermenêutica da facticidade num esforço de compreender a vida concreta como fenômeno, tal como preconiza a fenomenologia, isto é, tal como se mostra por si mesmo, deixando-o aparecer em sua essência, em seu ser.

Será, portanto, nessa direção que Heidegger consolidará o seu projeto de resgatar a metafísica, isto é, interpretando a fenomenologia na perspectiva de uma ontologia da vida, em seu caráter fáctico. Vida fáctica será, portanto, expressão-guia de Heidegger a partir de 1919 e, ao mesmo tempo, o divisor de águas que distanciará, daí por diante, o seu pensamento do de Husserl. Se a vida não pode ser apreendida pelos modelos teóricos, nem por uma fenomenologia eidética ou mesmo descritiva, qual seria, então, o caminho de acesso até ela? Heidegger acredita ter encontrado esse acesso à vida com o seu tema da Faktizität, uma vez que pode conciliar tanto a proximidade com a vida real, histórica, e, ao mesmo tempo, seguir um caminho filosófico rigoroso[4]. A palavra não é nova nos meios acadêmicos, mas sempre interpretada de modo corrente enquanto um saber sobre os feitos em geral que possui o caráter de ser factual, real, efetivo, a partir do conhecimento teórico. A palavra de Heidegger, facticidade, quer evitar justamente isso, uma vez que o factual, o real e o efetivo da vida são mascarados pelo conhecimento teórico. Tais atributos da vida só aparecerão, segundo Heidegger, quando o factum da facticidade for interpretado como o caráter básico de ser da vida. Deste modo, facticidade diz respeito àquele fato onde a vida, enquanto fenômeno, recebe a sua origem.

Esse é o aspecto atraente e até mesmo revolucionário que a Filosofia da vida não consegue ver e que constitui a radical volta heideggeriana às coisas mesmas – um regresso a este fato originário (Ur-Faktum), a este algo originário (Ur-Etwas), a esta questão originária (Ur-Sache) da vida, ou seja, o seu caráter fáctico –, acessível, apenas, por um compreender. Todas essas expressões, enquanto sinônimas de sua palavra guia, facticidade, falam de seu novo projeto, isto é, o da busca de uma nova origem, de um novo fundamento para a questão vida. Ora, com essa ruptura para com toda acepção teórica do termo vida, era o mesmo, para Heidegger, que inaugurar um novo ponto de partida da Filosofia: a vida em seu caráter fáctico. Para falar desse caráter fáctico e circunscrever de um modo metafórico o seu traço concreto, inalienavelmente histórico, Heidegger já se exercita, então, nos primeiros trocadilhos com o vocábulo Dasein, fundamental em Ser e tempo, com o qual ele reúne numa só palavra os conceitos de vida, de existência, de homem – todos sob o traço da facticidade. Viver é ser-aí (Dasein), é ser o âmbito concreto da experiência que surge continuamente do caráter fáctico da vida, de forma que não é o homem que constata seu viver fáctico em um mundo, mas, o contrário, é a própria facticidade que possibilita ao homem o vivenciar e o experimentar em um mundo.

Essa perspectiva, aberta por Heidegger, significa um passo novo e, ao mesmo tempo, estranho, porque ele segue na contramão da tradição filosófica. Desde os tempos de Platão a dimensão sensível do real (aísthesis) nunca teve um genuíno interesse para a Filosofia; servia apenas de porta de entrada para procurar por trás da profusão caótica dos fenômenos a sua dimensão supra-sensível (noetón), lugar da verdadeira morada do ser. Neste sentido, todo filósofo, ao longo da tradição, sempre reproduziu o mesmo itinerário idealizado por Platão e realizado na figura do escravo em sua alegoria da caverna: dar as costas ao fundo escuro de seu interior – onde não há verdade, mas apenas opinião – para conquistar a sua liberdade seguindo o caminho da epistéme que o conduzirá até a saída da caverna, onde, finalmente, dar-se-á o seu encontro com a luz permanente do ser.

O caráter novo do passo de Heidegger foi o de olhar de forma direta e imediata para a condição originária em que a existência nos é entregue, isto é, para o seu traço fáctico, e se atentarmos para ela nos daremos conta de que, na verdade, nunca saímos dessa condição. O caminho da epistéme é uma possibilidade, mas deverá sempre ser interpretado como um atalho derivado, artificioso, por meio do qual nos afastamos do originário. A possibilidade de descobrir um novo acesso ao ser no meio dessa profusão de fenômenos pode ser algo mais instável, mais inseguro, mais enganoso, mas, no entender de Heidegger, também mais franco e verdadeiro do que buscarmos segurança e consolo – para a dor da transitoriedade da nossa condição básica do omnia transit – por meio das piruetas sofísticas das construções metafísicas. Poder encontrar o ser na proximidade do desassossego da vida e do mundo é, para Heidegger, em última instância, criar a possibilidade de “reintegração de posse” de nossa condição mais originária, isto é, de resgatar para o pensamento justamente aquela dimensão do real esquecida da tradição filosófica, apesar de, no âmbito da existência pré-ontológica, aquela que se apresenta em nossa vida cotidiana, jamais termos dela nos afastado. A possibilidade desse novo caminho para o ser, segundo Heidegger, só poderá acontecer a partir desse novo espanto.

3. O fáctico como manifestação do caráter apofático do ser

Essa atração que a dimensão concreta, histórica e temporal da existência sempre exerceu sobre Heidegger – desde o seu impulso inicial para a Filosofia e o seu tratamento conceitual dada a ela a partir do início dos anos de 1920 e o seu emprego intensivo até Ser e tempo – pode ter sofrido modificações, incluindo até mesmo o afastamento da palavra-guia Faktizität, na medida em que o conceito ganhou maior radicalidade na segunda etapa de seu itinerário de pensamento, a partir dos anos de 1930, mas nunca foi abandonada até os seus últimos escritos. O que estaria, então, por trás dessa atração do filósofo pela dimensão concreta da vida, interpretada como facticidade?

Essa pergunta nos faz pensar que, apesar de sua importância e fecundidade, a experiência fáctica da vida, expressa no conceito de facticidade, na verdade não nasce de si mesma, não é o seu próprio fundamento, mas a explicitação de um traço fundamental do próprio ser, o seu caráter apofático, nomeado por Heidegger através das palavras finitude (Endlichkeit) e negatividade (Negativität), ou ainda nas variações desta última: nulidade ou nadidade (Nichtigkeit). Respondendo, então, a pergunta formulada anteriormente: o caráter apofático do ser, que se manifesta por meio dessas palavras de cunho privativo, é, por conseguinte, o que estaria por trás da atração de Heidegger pela dimensão concreta da vida. Antes, porém, de seguirmos adiante, façamos uma breve recordação do horizonte no qual nasce essa singular compreensão da facticidade para retomarmos o nosso fio condutor.

A especificidade da intuição de Heidegger em relação a esse conceito nasce do seu ponto de partida do seu projeto de fundar uma nova ontologia, interpretada como uma hermenêutica da facticidade, ou seja, abrir uma nova perspectiva para o pensamento do ser a partir da experiência fáctica da vida, do caráter essencialmente temporal e histórico da existência humana. O que isto significa? Significa que o ser do homem, o Dasein, desde o seu início, encontra-se lançado na tríplice instância do mundo – mundo ambiente (Umwelt), mundo com os outros (Mitwelt) e mundo de si mesmo (Selbstwelt) –, no interior da qual ele é sempre a partir do seu envolvimento com as possibilidades mundanas, isto é, realizáveis no mundo e com as quais se envolveu, escolheu, temeu, construiu. A existência lhe foi transmitida, entregue e isto não foi uma escolha sua, assim como ele também não pode romper, com o simples ato de sua vontade, os liames que o prendem a esta condição de ser enredado nas possibilidades circunscritas no mundo que o ligam ao seu passado, engajam ao seu presente e condicionam o seu futuro. As possibilidades do Dasein são, então e paradoxalmente, circunscritas por essas impossibilidades expressas por esses nãos que determinam a sua condição ontológica. Eis aqui, para Heidegger, a origem mais principial das noções de finitude e de nadidade que falam da impotência originária do Dasein lançado na existência. Impotência, entretanto, não significa aqui uma espécie de desgraça ou fatalidade advinda de fora sobre ele, mas, antes, o essencial caráter apofático do ser, inscrito fundamentalmente no coração do Dasein. Tais noções, portanto, não nascem num pensamento que procura representá-las por meio de conceitos especulativos entre o ser e o não-ser, mas a partir desse fundo de nadidade constitutivo do próprio ser do Dasein.

É esse fundo que orienta o discurso heideggeriano numa perspectiva bem diferente daquele outro, o proposicional, da metafísica. Longe de cair em um relativismo, tal discurso permite que toda afirmação (katáphasis), quanto toda negação (apóphasis) aí colocadas, sejam sempre apreendidas numa relação de pertença mútua, nunca como simples distinção ou oposição. E é somente neste contexto de recíproco-pertencer entre ser e nada, portanto, que afirmações de difícil compreensão de Heidegger, como aquelas pronunciadas na sua aula inaugural de 1929 em Freiburg – tais como: “o nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma do ser” (HEIDEGGER 1969:35), ou “esta disposição de humor [angústia] apela ao homem em sua essência para que aprenda a experimentar o ser no nada” (HEIDEGGER 1969:52); ou ainda “o nada enquanto o outro do ente é o véu do ser” (HEIDEGGER 1969:58) – podem ser compreendidas. Qual seria, então, a base desse não, desse fundo de nadidade, enquanto caráter essencial do ser e constitutivo do Dasein? Heidegger responde:

O não, ou seja, a essência do não, a nadidade, só podem ser interpretados a partir da essência do tempo e que somente a partir deste pode ser elucidada a possibilidade de modificação, por exemplo, da presença (Anwesenheit) em ausência (Abwesenheit) (HEIDEGGER 1975:443).

Portanto, o fato do Dasein estar inextricavelmente, como dizíamos há pouco, enredado nas possibilidades mundanas que o ligam ao seu passado, presente e futuro, faz com que as noções de finitude e de nadidade heideggerianas estejam, em última instância, em conexão com ideia fundamental do movimento (kínesis) presente no tempo originário, a temporalidade (Zeitlichkeit), no interior do qual o que é (presença) e o que não é (ausência) se mostram em seu acontecer. É esta temporalidade, por conseguinte, que faz com que a nadidade não seja apenas o pólo oposto da positividade, mas a fonte mesma de todo aparecer e esconder, de toda presença e ausência. É a temporalidade que permite que a nadidade não se caracterize como uma simples modificação de seu oposto, mas, muito antes, a própria possibilidade de todo modificar, de todo ultrapassar. E aqui se encontra, então, a origem, o trans, da transcendência, outra importante noção heideggeriana.

“Transcendência”, diz Heidegger, “significa ultrapassagem. Transcendente (transcendendo) é aquilo que realiza a ultrapassagem, que se demora no ultrapassar [, que] pode ser compreendida como uma ‘relação’ que se estende ‘de’ algo ‘para’ algo” (HEIDEGGER 1971:41). Esse permanente modificar em que se dá o seu constante transcender de algo para algo só pode se realizar sob o horizonte da nadidade, ou seja, para que novas possibilidades mundanas do Dasein possam vir ao seu encontro é preciso que certas outras possibilidades devam ser abandonadas. Daí que, para Heidegger, “a transcendência é, [...] ao mesmo tempo, aquilo que excede e que priva” (HEIDEGGER 1971:67); em outras palavras, toda transcendência, toda ultrapassagem, não é realizada senão sob a forma de uma privação, uma vez que estando suspenso “dentro do nada, o ser-aí já sempre está além do ente em sua totalidade” (HEIDEGGER 1969:35).

Desse modo, o Dasein é, para Heidegger, essencialmente histórico, temporal; ele é temporalidade e sob este aspecto originário ele é, ou seja, ele habita este fundo de nadidade que expõe radicalmente a finitude de sua condição ontológica. Ek-sistir é ser ex-tendido, isto é, estar continuamente trans-cendendo em suas possibilidades mundanas, limitadas entre dois acontecimentos polares fundamentais: o seu nascer e o seu morrer. O habitar sob este horizonte de finitude e de negatividade do Dasein significa, então, o seu pertencer circular a este entre-dois que nasce de sua temporalidade, ou seja, o futuro é a antecipação do seu fim (morte), o passado é a dependência inelutável em relação às condições primitivas do seu ser-lançado (nascimento) e o presente é um agir que responde tanto à atração do seu futuro, quanto às constrições do seu passado. Por isso que ser Dasein é ek-sistir ex-tensivamente no tempo originário circular, no interior do qual ele verdadeiramente é, ou seja, essência (west), e não no tempo derivado e linear dos relógios e dos calendários em que ele, tal como acontece com os entes subsistentes, simplesmente passa.

Todavia, é preciso deixar bem claro a questão – e Heidegger nunca deixa de lembrá-la – de que assim como o Dasein não dá a si mesmo um enredamento previsível e controlado de suas possibilidades mundanas, ele também “não se dá a si mesmo a temporalidade originária que possibilita, em primeira instância, as possibilidades que ele projeta. [...] A despossessão [com isso] é evidente” (HAAR 1990:20). Isso significa, portanto, que o Dasein não produz, nem domina, nem é o mestre do tempo, o que quer dizer, em última instância, que, diferentemente do subjectum cartesiano, ele não detém a possibilidade de autopossessão, ou seja, ele não é dono de si mesmo. Eis aqui a interpretação fundamental da finitude constitutiva do Dasein que Heidegger afirmará numa frase lapidar, proferida no semestre de inverno de 1927-28 em seu curso sobre Kant: “mais originário do que o homem, é a finitude do Dasein nele” (HEIDEGGER 1954:190).

Essa temporalidade originária, portanto, enquanto horizonte de todo acontecer finito do ser, é o que promoveria, então, o aparecimento destes traços apofáticos do real, apreendidos sob diversos nomes e distribuídos em diversas regiões ou perspectivas: o mysterium tremendum (da mística), o Deus absconditus (do Cristianismo de Paulo, Agostinho e Lutero) e, ainda, a finitude, a nadidade, o não-ser (da ontologia da facticidade heideggeriana). Ora, esse tempo originário que sustenta o caráter privativo do ser acabaria por inaugurar um novo fundamento ontológico da existência humana. Isto significa que o Dasein – a partir da sua condição de lançado, entregue à existência, não sendo o mestre de seu tempo, nem dono de si mesmo – “nunca pode superar o fato de que seu projetar (ek-sistir) carece fundamento. Desse ponto de vista, ele é o fundamento nulo (nichtig), que pode apenas assumir a sua nulidade ou nadidade (Nichtigkeit) (LOPARIC 1995:18). Como consequência, esse caráter privativo do ser estaria também inaugurando um novo fundamento para a Filosofia. Ele não seria mais aquele da tradição metafísica que afirma que todo o real está sob o horizonte do princípio de razão suficiente, expresso na clássica afirmação de Leibniz em seu tratado Theoria motus abstracti de 1671, no qual afirma: “nada é sem razão” (Nihil est sine ratione) (HEIDEGGER 1962:97-98). Todavia, esse novo fundamento é, na verdade, um fundamento sem fundo (Abgrund), um fundamento que paradoxalmente inclui o não-fundamento, na medida em que incorpora o caráter apofático do ser. Com isso, “pela primeira vez na história da filosofia ocidental, o pensamento do não-ser [...] passa a determinar o horizonte do pensamento do ser” (LOPARIC 1995:19).

Mas para que esse caráter apofático do ser, presente nos traços de finitude e nadidade que o Dasein experiencia em seu próprio modo essencial de existir, possa ser verdadeiramente apreendido, é preciso atentar para que ele não seja interpretado por um nihil constitutivum, ou seja, por algum princípio ou por alguma característica objetificante, nem por um nihil negativum, enquanto um simples nada, uma mera negação, mas, segundo Heidegger, a partir da perspectiva grega. Entre os gregos, como se sabe, a ideia de finito se liga à ideia de perfeito. Consequentemente, o infinito, como negação do finito, traz a ideia do imperfeito, por ser a negação do perfeito. Desse modo, aquilo que tem limite (péras) e fim (télos) de-limita, de-fine o seu ser contra a indeterminação do seu não-ser. Assim, o limite apresenta, dá, libera aquilo que uma coisa é. Para o grego, portanto, o limite não tem esse traço de simples negação; ser e finito vão juntos.

Heidegger, por conseguinte, assume esta noção grega de finito vinculada à ideia de perfeição, como a base de seus conceitos de finitude e nadidade do ser, interpretando-os não tanto pelo seu caráter de negação, mas pelo positivo, enquanto possibilidade, tal como ele afirmaria na sua conferência de 1951, Construir, Habitar, Pensar: “o limite não é isto onde qualquer coisa termina, mas antes, como os gregos o haviam observado, isto a partir do qual qualquer coisa inicia seu ser” (HEIDEGGER, 1958: 183). Ou como afirmaria ainda, dez anos mais tarde, no suplemento de seu ensaio de 1935, A origem da obra de arte, escrito em 1961:

O limite, no sentido grego não restringe, antes traz somente ao aparecer [...]. O limite liberta para o desvelamento; é pelo seu contorno, na luz grega, que a montanha persiste no seu erguer-se e repousar (HEIDEGGER 1991:70).

Ora, o limite e a finitude, assim compreendidos, significam, então, a condição onde o ser de qualquer coisa começa a se manifestar e não, como se interpreta comumente, onde o ser de qualquer coisa começa a se ocultar, ou seja, limite em um entendimento puramente negativo. Entretanto, essa perspectiva positiva com que Heidegger apreende os traços de finitude e de nadidade do ser, mais que uma simples assunção da perspectiva grega, nasce, em última instância, de sua interpretação essencial de alétheia, palavra com que os gregos designavam a verdade, não no sentido da veritas romana, mas como desvelamento ou desocultamento. Vistos a partir de sua determinação ontológica, ser e verdade, então, iriam juntos, pertenceriam à mesma origem. Em ambos, todo manifestar e todo aparecer é possibilitado, inexoravelmente, por uma recusa, por um ocultamento: o ser (Wesen), pelo não-ser (Un-wesen); a verdade (alétheia) pela não-verdade (léthe). O ser como modos do aparecimento de sua verdade; esta, como modo de manifestação do ser. Um é com o outro; um é condição do outro.

Por isso, Heidegger procura realçar este lado positivo da finitude do ser ligada à não-verdade dizendo, num texto de 1940 referido anteriormente, que é necessário, primeiramente, “uma apreciação disto que a essência ‘privativa’ da alétheia contém de positivo. Este conteúdo positivo deve ser, em primeiro lugar, apreendido como o traço fundamental do ser, ele mesmo” (HEIDEGGER 1968:163). Desse modo, a “positividade é construída pela nadidade, à medida que a finitude da compreensão dá acesso ao ser. [Assim como] a alétheia é a privação do velamento. Mas essa privação, vista a partir do velamento, é afirmação do velamento enquanto possibilidade do desvelamento” (STEIN 2001:124). É nesse contexto que se poderia, talvez, apreciar melhor aquele comentário que Heidegger faz à sua amiga Elizabeth Blochmann, em outubro de 1926, dizendo: “a coruja de Minerva, diz Hegel em algum lugar, não faz seu vôo senão quando a noite cai. Tudo o que é positivo ergue-se a partir da obscuridade do nada” (HEIDEGGER 1996:219). Em outras palavras, o positivo para a coruja (as possibilidades de apanhar o alimento) só se manifesta quando surge o privativo (o velamento da luz), ou seja, “a positividade do nada e da finitude (léthe) reside precisamente no fato de o ser somente assim poder ser experimentado em sua manifestação (alétheia)” (STEIN 2001:123).

Esses traços de nadidade e finitude – presentes nos aspectos de recusa, reserva e obscuridade, enquanto expressões do caráter apofático tanto do ser quanto da verdade, e apreendidos em sua determinação ontológica originária – permitem a Heidegger se aproximar ainda de uma outra importante noção: a de mistério (Geheimnis). Talvez aqui, também, possamos ter reunido condições mais adequadas para afirmar que todos esses desdobramentos de temas apofáticos ligados ao ser – seguindo o fio condutor das palavras-guia que temos estado acompanhando até aqui: mysterium tremendum, algo originário, Deus absconditus, a-létheia, finitude, nadidade, não-ser – sejam resultados dessa sua intuição, à qual se dedicou com uma ascese monástica, quase “obsessiva”. Essa intuição de Heidegger é o caráter profundo, inefável, abismal, do ocultamento do ser que o acompanha desde seu trabalho de Duns Scotus e que banha inteiramente o horizonte de seu pensamento, não só desta primeira, mas também da segunda etapa de seu itinerário.

O tema do mistério em Heidegger – tal como o tema do sagrado que o filósofo apreende da poesia de Hölderlin na segunda etapa de seu itinerário de pensamento –, não é restrito ao âmbito do religioso, seja ele o mundo da fé cristã ou da experiência mística. Ele quer reivindicar que o mistério pertence à experiência em geral apreendida no horizonte da vida fáctica, isto é, aqui em nossa vida concreta, cotidiana, terrena, seja em nossa vida política ou social, acadêmica ou religiosa, pessoal ou profissional. Nessa vida fáctica, o mistério é a região mais recuada do pensamento do ser, o que significa, então, para Heidegger, que ele é “a região originária da filosofia” e, como tal, ele “não é [...] nada místico (isto é, apreensível apenas religiosamente)” (HEIDEGGER 1993:203)[5]. Isso nos faz pensar que o mistério, assim como os demais temas apofáticos, poderia ensejar, então, uma espécie de ontologia negativa, uma “parente” próxima da Teologia negativa, isto é, uma ontologia que se instituiria em torno de um discurso calcado sobre os atributos negativos do ser. Apesar de haver motivos que nos permitam ser tentados a admitir essa perspectiva, veremos, contudo, que ela não passa de aparência porque, em Heidegger, como veremos a seguir, o mistério, enquanto o âmbito privativo e velado do ser, não está voltado para um inacessível além transcendente metafísico, mas para um aquém, em contínua sintonia com o desvelamento dos entes que permeiam o nosso cotidiano. Deste modo, ao contrário de uma conexão com a ideia de obscuridade, o mistério estaria, então, vinculado muito mais à claridade.

Antes, porém, de entrarmos diretamente na interpretação do mistério feita por Heidegger, iniciaremos falando de como este tema é colocado pela tradição metafísica. De um modo geral, pensa-se que não há como se referir a esta questão sem cair em contradição, pois, afinal, não é contraditório querer conhecer aquilo que ostensivamente recusa a todo conhecimento? Ou ainda, querer tornar manifesto aquilo que se oculta não é, pois, aniquilá-lo por este mesmo ato que crê apreendê-lo? Apesar da inquestionável pertinência dessas perguntas, elas ainda se situam, no entender de Heidegger, no âmbito lógico da metafísica no interior do qual, como vimos, ser e não-ser, verdade e não-verdade, colocam-se numa relação de simples oposição; assim, seguindo a mesma perspectiva, o mistério também estaria em simples oposição ao que é conhecido. Se, por outro lado, apreendermos a questão do mistério sob o horizonte ontológico originário, tal como foi realizado anteriormente com as questões do ser e da verdade, tomando-as em sua co-pertinência, nos daremos conta, então, que outra perspectiva nos é aberta. Em um de seus cursos sobre Hölderlin ministrado no semestre de inverno de 1934-35, Heidegger afirma:

O escondido e o velado se mostram ser um modo próprio do ser manifesto. O mistério não é uma barreira situada para além da verdade, mas é, ele mesmo, a mais alta forma de verdade; pois para deixar o mistério ser verdadeiramente o que ele é – a salvaguarda que reserva o ser autêntico –, é preciso que o mistério seja como tal manifesto. Um mistério no qual a potência de velamento não é conhecida, não é, na verdade, mistério. Mais alto é o saber do velamento, mais autêntica é a palavra que o diz como tal e mais intacta permanece sua potência de reserva (HEIDEGGER 1980:119).

Tal interpretação do mistério está, contudo, muito distante daquela veiculada pelo pensamento corrente, do interior do qual nascem aquelas questões que falam da impossibilidade de falar do mistério sem cair em contradição. A partir dessas palavras de Heidegger pode-se até falar em conhecimento do mistério desde que por conhecimento não mais tomemos por simples dissipação ou transparência de seu conteúdo escondido, trazendo-o à luz do entendimento, tal como acontece em toda forma de elucidação. Ao contrário, conhecer o mistério, nesta perspectiva, é acolhê-lo nele mesmo, como mistério, e quanto mais esse conhecimento for acolhedor disso que nele se retrai, maior é a sua abertura e proximidade para com ele, uma vez que “não é desvelando-o e analisando que nós o saberemos, mas unicamente velando-o como mistério” (HEIDEGGER, 1981: 24). Conhecer o mistério é, portanto, guardá-lo. Mas esse verbo não significa aqui escondê-lo, impedir que alguém se aproxime dele, mas, ao contrário, mostrá-lo, tentar dizê-lo, fazê-lo se manifestar, como mistério. Neste sentido, então, “o mistério é sempre manifesto. Ele é manifesto porque o fato de se recusar, de se retirar, de se subtrair, é, a cada vez, estar numa relação essencial com isso que se recusa ou se subtrai, com isso que se retira” (CHRÉTIEN 1983:236). O mistério, portanto, visto a partir dessa perspectiva, deixa de ser o simplesmente obscuro como sinônimo de obtuso ou confuso, para ganhar uma obscuridade originária. Esta, no entanto, diz Heidegger,

Nada tem a ver com a espessa escuridão, enquanto a completa e simples ausência de luz. A obscuridade é antes o secreto mistério do que é luz. A obscuridade guarda o que é luz em sua presença; o que é luz pertence a ela. A obscuridade, portanto, tem sua própria claridade e pureza (HEIDEGGER 1976:56).

Aqui nos damos conta de que a própria luz, no interior da qual as coisas ganham presença, faz parte dessa obscuridade originária, à medida que ela mesma pode ser o que há de mais misterioso. Essa obscuridade, à qual pertence o próprio claro, é o que conduz e protege, a partir de sua retração, todo aparecer e todo visível. Assim, o misterioso, em última instância – ao contrário do distante e do que simplesmente se recusa –, acaba por se mostrar, então, como o próximo e o generoso; ele não é o que nega, mas o que dá; ele não é o que fecha, mas o que abre. Esse modo de pensar insistente e recorrente, próprio do discurso heideggeriano, nos força a dissociar a noção de mistério, nesse sentido originário, daquele outro da representação corrente que o associa ao tenebroso, complicado, impenetrável, que o distancia de nós por uma série infindável de véus e obstáculos que o torna inacessível. Longe de todo hermetismo e esoterismo, a noção de mistério em Heidegger, vai, paradoxalmente, em direção ao que é mais simples, ao que é mais luminoso.

Conclusão

A título de conclusão deste trabalho – que não pretendeu ir além da apresentação de traços gerais e introdutórios sobre o tema do apofatismo heideggeriano –, poderíamos dizer que as noções de facticidade, nadidade e temporalidade, enquanto expressões do caráter apofático do ser, pretendem ser, em última instância, um esforço supremo e continuado de Heidegger em erigir um pensamento privativo-negativo que rompa com toda e qualquer forma de substancialização e de objetificação do ser. Um esforço que procuraria, portanto, se sustentar num discurso que, paradoxalmente, falasse da presença do ser enquanto apenas apontasse, porém, para a sua ausência: uma espécie de a-ousiologia (falta de substância), de léthelogia (primado do velamento) ou ainda de mysteriologia (prioridade do ocultamento) (VAN BUREN 1994:302).

Se esse discurso pode ser chamado ainda de fenomenologia, enquanto um mostrar-se por si mesmo, ele o será também uma espécie de a-fenomenologia, onde a luz, no interior do qual todo fenômeno pode aparecer, deve estar em sintonia com a ausência de luz, ou melhor, o aparecer recebe sua luminosidade daquilo que fica retido na obscuridade. Talvez esse discurso fosse, então, uma fenomenologia do invisível que excede toda a aparência, da ausência que excede toda a presença, de uma parousía que nunca chega plenamente ao presente, de um kairós do que nunca está inteiramente no tempo, de uma práxis que nunca se esgota nos afazeres cotidianos. Enfim, uma fenomenologia em que cada coisa que é afirmada (katáphasis) aponta sempre para o âmbito para além dela mesmo, em direção ao qual ela é negada (apóphasis).

Essa é a razão para termos feito os desdobramentos que acreditamos necessários dessas noções de facticidade, nadidade e temporalidade, porque com a inclusão do não, do nada, do traço apofático ao discurso filosófico, Heidegger apresenta um novo caminho de acesso ao problema do ser até então não experimentado pela tradição do pensamento ocidental, desde a antiguidade clássica grega[6]. Essa abertura proporcionada pelo apofatismo ontológico do filósofo tem proporcionado contribuições significativas para a Filosofia da Religião, especialmente a que investiga os fundamentos da mística apofática ocidental, assim como a que dialoga com a palavra-chave Vazio (śūnyatā) – noção central do pensamento oriental e, em particular, do Zen-Budismo e do pensamento japonês da Escola de Kyoto.

Esse caminho de acesso, entretanto, só é possível pelo fato de – tal como nos referimos na introdução deste trabalho – o pensamento de Heidegger, que não é mais Filosofia, manter-se nas cercanias do pensamento místico. Mesmo o Heidegger maduro não esconde sua admiração e reconhecimento pelo pensamento místico, que o acompanhou ao longo de seu itinerário de pensamento – tal como ele se expressa em um de seus escritos tardios intitulado O princípio de razão (1957), no qual ele, apontando dois importantes místicos ocidentais, faz uma referência explícita dessa vizinhança essencial entre mística e pensamento.

A rosa é sem porquê, floresce porque floresce. [...] Toda a sentença (de Angelus Silesius) é construída de uma maneira tão admiravelmente clara e concisa que se poderia chegar a pensar que a uma genuína e grande mística pertence a mais extrema precisão e profundidade do pensamento. [...] Mestre Eckhart testemunha isso (HEIDEGGER 1992:71).

Com isso Heidegger está admitindo de forma clara e aberta a importância do místico como um parente próximo do pensamento, ou seja, o místico é um aliado que diz uma grande parte daquilo que Heidegger, ele mesmo, quer dizer: há mais para o pensamento do que para o raciocínio; a linguagem verdadeira depende do silêncio; na Gelassenheit uma verdade mais profunda se revela (CAPUTO 1975:80).

Ora, isso parece ser um acontecimento privilegiado no que se refere, por um lado, ao problema da veiculação ou comunicação entre o portador da experiência mística e o homem comum, não iluminado e, por outro, ao problema da interpretação levada a cabo por estudiosos e interpretes do fenômeno místico. De fato, antes de Heidegger, a comunicação da experiência mística do homem desperto e a compreensão das palavras do iluminado pelo homem comum era algo extremamente difícil, justamente porque entre eles existia apenas o pensamento da tradição, carregado de noções e conceitos objetivantes e por uma linguagem lógica e discursiva, impróprios e incapazes de veicular o caráter genuíno e inefável da experiência mística.

O homem da finitude, no horizonte do pensamento de Heidegger, está imensamente mais próximo do místico, do homem desperto e é por isso que os novos operadores heideggerianos, na forma de noções, conceitos, categorias, etc., têm motivado inúmeros scholars – teólogos, filósofos e cientistas da religião, ocidentais e orientais –, a realizar um profundo trabalho de revisão do aparato categorial e conceitual empregados hoje no estudo das questões relativas à compreensão da experiência religiosa radical, presente na vivência mística ou no despertar búdico, vinculando, desse modo, mais estreitamente, portadores e intérpretes dessa enigmática experiência humana trans-antropocêntrica.

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Notas

[*] Filósofo, psicólogo, psicoterapeuta. Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Pesquisador do Programa de Pós-Doutorado da PUC-SP, com financiamento do CNPq.

[1] Cabe lembrar, tal como ficou provado pouco tempo depois com Martin Grabmann – no seu livro intitulado Mittelalterisches Geistesleben. Abhandlungen zur Geschichte der Scholastik und Mystik (A vida do espírito medieval. Tratados de história da escolástica e da mística). Band I, München, 1926, pp. 120 ss –, que a autoria da obra em que Heidegger baseia a sua investigação não é, na verdade, de Duns Scotus, falecido em 1308, mas de um outro franciscano medieval chamado Tomás de Erfurt, que viveu mais para o final do século XIV, em cerca de 1376. Segundo especialistas, esse fato em nada invalida o trabalho de Heidegger, que apenas na segunda parte do seu trabalho se apoia no De modis significandi de autoria deste último, ao passo que a primeira está inteiramente calcada em citações de obras consideradas autênticas do corpus scotisticum. Cf. MacDowell 1970: 27, n. 69.

[2] Embora este procedimento de Heidegger de promover a desmontagem do traço teórico e especulativo, como elemento constitutivo da metafísica – reconduzindo o pensamento ao seu modo mais originário de ser, levado pelos ventos da redução propostos pela iniciante fenomenologia – já esteja presente neste trabalho, todavia o surgimento dos termos “destruição” (Destruktion) e “desconstrução” (Abbau), enquanto palavras-guia de seu pensamento, acontecerá apenas por volta de 1919.

[3] Esta questão da responsabilidade da universidade tanto no que se refere ao colapso quanto no resgate das questões do espírito vivo, é tão presente em Heidegger que um dos cursos que ministra no ano seguinte ao término da guerra, verão de 1919, é “Sobre a essência da universidade e do estudo acadêmico”, recolhido hoje no volume 56/57 de suas obras completas (HEIDEGGER, 1987). Em certo sentido, poderíamos dizer que o seu discurso de posse do reitorado de 27 de maio de 1933 – “A auto-afirmação da universidade alemã”, em sua missão de salvaguardar o espírito do povo –, seria uma espécie de reedição dessas suas preleções de 1919, apenas que refletindo, evidentemente, um Heidegger mais amadurecido pela experiência de Ser e tempo.

[4] A palavra Faktizität, pelo que se conhece até o momento, começa a ter o seu uso técnico por Heidegger nas preleções de Grundprobleme der Phänomenologie (Problemas fundamentais de Fenomenologia - 1919-20) – GA 58 (HEIDEGGER 1993), empregando a expressão faktische Lebenserfahrung (experiência fáctica da vida) que manterá a sua marca obrigatória em todos os seus cursos até Ser e tempo.

[5] Com isso vemos Heidegger ir na contramão de um entendimento corrente do pensamento religioso, até mesmo de um fenomenólogo da religião como Rudolf Otto, que diz que o “mistério” (mysterium tremendum), o “sagrado” (das Heilige), o “numinoso” (das Nominöse), entre outras, são categorias exclusivas do âmbito do religioso (OTTO 1961:5 ss.).

[6] Todavia, apesar dessa perspectiva ser “a única no mundo ocidental, ela é familiar para os orientais, especialmente para os budistas” (UMEHARA 1970:274).