Editorial - REVER dezembro, ano 9, 2009

Por uma Psicologia Cultural da Religião

O tema central deste número da Revista de Estudos da Religião-REVER situa-se na interface entre várias das ciências que tradicionalmente compõem o espectro das disciplinas que estudam o fenômeno religioso em seu todo. Embora o enfoque dos textos seja o da Psicologia da Religião, o material apresentado interessa a todos os estudiosos do tema, na medida em que sinaliza uma recuperação e revalorização da dimensão sociocultural e histórica de todo o campo da Ciência da Religião, buscando delinear uma via concreta para a interdisciplinaridade em nosso campo de conhecimento.

O pensar e o fazer uma Psicologia da Religião atenta à dimensão histórico-cultural se configuram como perspectiva e uma exigência quase que impostas pelo momento vivido pelas religiões no mundo hoje. Este número de REVER tem, nessa linha, primeiro, o objetivo de trazer ao público brasileiro uma tentativa promissora de integrar a dimensão cultural com a compreensão e análise psicológica da religião e, em segundo lugar, o de oferecer aos cientistas da religião uma revigorante teoria psicossocial de matriz europeia. Graças ao Prof. Dr. Jacob van Belzen, é nos oferecido de maneira didática e bem fundamentada um exemplo do que se faz na Psicologia da Religião da Holanda, uma produção que tem circulação diminuta entre os psicólogos/as e psicoterapeutas brasileiros.

Três dos cinco artigos da Secção Temática abordam a chamada “Psicologia Cultural da Religião”. O destaque cabe ao pesquisador holandês acima citado, da Universidade de Amsterdã. Em 2008, o professor van Belzen participou de um Simpósio-debate na PUC de São Paulo, sobre o estatuto, o desenvolvimento e a atual situação da Psicologia da Religião na Europa de hoje. Do citado debate - organizado pelo Grupo de Pesquisa “Psicoterapia e Religiosidade: peculiaridades”, do Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP - participaram renomados cientistas e terapeutas brasileiros interessados no estudo psicossocial da Religião, a saber: os professores Gilberto Safra, Luiz Felipe Pondé, Eduardo Rodrigues da Cruz, Wellington Zangari, Marília Ancona-Lopez, Geraldo José de Paiva e Edênio Valle. Na impossibilidade de publicar uma versão escrita de todas as discussões, graças à Revista REVER, estamos pondo ao alcance dos interessados dois dos textos das palestras então pronunciadas pelo Professor van Belzen.

Quem quiser aprofundar a perspectiva proposta pelo ex-presidente da Associação Internacional de Psicologia da Religião poderá consultar o seu livro Introdução à Psicologia Cultural da Religião, a ser lançado em fins de 2010 pela Coleção “Ideias e Letras”, da Editora Santuário de Aparecida.

Os dois artigos do pesquisador holandês oferecem um panorama das tendências da Psicologia da Religião hoje cultivadas em seu país natal e, de modo geral, na Europa. O primeiro artigo oferece uma visão de conjunto da Psicologia Cultural da Religião. Este é um tema que não nos é estranho no Brasil, um país sabidamente multicultural. Já desde os estudos pioneiros da USP, nos Anos 30 a 50 do século passado, a(s) cultura(s) indígenas e afrobrasileiras eram um eixo central de antropólogos do porte do recém-falecido Claude Lévi-Strauss e de Roger Bastide, dois marcos dos estudos da Religião no Brasil. Contudo, embora R. Bastide tenha, mais tarde, se interessado pela Psicanálise, o prisma psicológico não era levado em conta da maneira como Belzen e a escola holandesa propõem, dando ênfase maior à correlação entre o registro biográfico dos sujeitos e às contextuações culturais e sociais que os relacionam ao fluxo de mudanças históricas concretamente situadas e datadas. Encaminhando e organizando suas considerações em direção a um quadro teórico e metodológico novo, hoje já consolidado na Holanda, van Belzen aborda a chamada “Psicologia narrativa” e, partindo da elucidação do conceito de “self dialógico”, associa, de maneira original e amplamente interdisciplinar, domínios que precisam ser considerados em sua conexão: a cultura, a religião e a narração.

Seguem dois artigos escritos, ambos de autoria de psicoterapeutas ativos na cidade de São Paulo, interessados na compreensão da dimensão psicorreligiosa dos sujeitos. Eliana Massih, professora de Psicologia da Religião do ITESP de São Paulo, oferece um exemplo de como se pode utilizar a teoria do self dialógico na prática psicoterapeuta. Em um caso clínico bastante característico de sujeitos religiosos, Massih mostra in actu a relação entre os dados da cultura e a elaboração religiosa subjetiva de um jovem que entra em um seminário católico, visando seu aprimoramento espiritual, mas trazendo marcas profundas de um passado religioso e cultural muito distinto do que lhe é proposto pela instituição católica à qual se integra. A narrativa do caso ajuda a entender o que seja o self dialógico e de como esse conceito pode ser útil na condução terapêutica do processo de amadurecimento da experiência religiosa desse jovem que, através da retomada das matrizes culturais e religiosas de sua primeira infância, se torna capaz de reelaborar seu projeto religioso de vida, no contexto sociocultural e religioso novo em que se colocou ao optar pela entrada na vida religiosa.

O quarto artigo nasce da pena do psicoterapeuta Ênio Brito Pinto, professor da FMU e autor de vários livros. No trabalho aqui apresentado, ele tenta provocar uma interlocução entre espiritualidade e religiosidade. Sua pergunta-chave decorre de sua prática clínica, mas seu foco de interesse tem muito a ver com a Ciência da Religião, uma vez que ele aborda uma questão de grande atualidade ao se perguntar se espiritualidade e religiosidade são, no fundo, uma só e a mesma coisa. É um tema que tem ocupado vários pesquisadores brasileiros ligados o Grupo de Trabalho da ANPEPP (CAPES), que se dedica à Psicologia da Religião. Nos Estados Unidos e na Europa, é um tema muito discutido. Ênio Brito Pinto tenta lançar luz sobre a questão na perspectiva da Psicologia da Gestalt.

O último artigo traz uma pesquisa de duas psicólogas da Universidade Federal de Santa Catarina, Martha Caroline Henning e Carmen L. O. O. More. Dá uma ideia do tipo de estudos que ocupam atualmente a atenção de psicólogos e outros estudiosos da religião no Brasil. Isto porque as autoras estudam e tentam organizar tematicamente os assuntos abordados na Revista REVER entre 2001 e 2009. Nesse período, REVER publicou 27 artigos de alguma forma voltados à temática da Psicologia da Religião. Os autores/as destes 27 textos são quase todos psicólogos, mas, entre eles há, também, sociólogos e antropólogos preocupados em analisar o papel central da religiosidade na compreensão psicossocial e psicocultural do desenvolvimento humano. São artigos que a Comissão Editorial da revista foi selecionando e paulatinamente inserindo nas páginas de REVER, revista que desde seus primórdios tem apostado na interdisciplinaridade, favorecendo um diálogo entre as várias disciplinas das Ciências da Religião, incluídas as do campo psicológico. O resultado, após estes quase dez anos, carecia de uma sistematização crítica, tanto mais que os artigos partem dos mais diversos enfoques disciplinares e metodológicos. O objetivo das duas pesquisadoras catarinenses foi exatamente o de tentar sistematizar esse amplo leque temático, analisando com maior cuidado as interfaces entre Psicologia e Religião assim com essas emergiam dos 27 trabalhos (de um total dos 127 publicados). Elas os distribuíram em cinco agrupamentos temáticos maiores. Ao lado dos aspectos socioculturais e históricos, as autoras chegaram a quatro outras unidades temáticas, a saber: religião e identidade pessoal; religião, sexualidade, saúde e relacionamentos interpessoais; características psicológicas e comportamentais dos grupos religiosos; e influência da religiosidade na Psicologia Clínica.

A contribuição apresentada na Secção Fórum complementa os artigos encontrados na secção temática. Constatando a pouca circulação de livros e autores alemães de Psicologia da Religião no Brasil, a preocupação de Edênio Valle, professor de Psicologia da Religião da PUC de São Paulo, vai no sentido de trazer ao público brasileiro uma visão de conjunto dos autores e temas de maior destaque nos estudos publicados mais recentemente em países de língua alemã. Em vez da apreciação de um ou outro volume ou autor, é apresentada uma amostragem selecionada - embora, não completa - do todo da produção da atual Psicologia da Religião alemã. Com isto, se pretende complementar a bibliografia holandesa trazida por van Belzen em seus dois artigos. O objetivo da resenha não é a de apresentar criticamente as publicações elencadas ou suas respectivas orientações e tendências. Tampouco é o de mostrar a teoria específica deste ou daquele autor. O que se busca - mais através dos títulos e nomes do que de conteúdos - é dar uma ideia dos principais temas hoje em discussão na moderna produção psicológica alemã sobre a religião.

Nossa revista pensa que este número pode trazer um enriquecimento para a Psicologia da Religião no Brasil, abrindo canais de contato com interlocutores europeus que, ontem como hoje, continuam produzindo textos estimulantes que mal chegam até nós provavelmente devido à enorme quantidade e valor dos livros, periódicos e pesquisas que recebemos de nossos colegas de língua inglesa.


Edênio Valle