A Religião Cabe nos Números?

Leila Marrach Basto de Albuquerque[*] []

Resumo

Este artigo trata das exposições apresentadas no Seminário A religião entre números – as pesquisas Datafolha e FGV, organizado pelo GREPO/CRE da PUC-SP. As considerações acerca dos debates têm como horizonte teórico as reflexões de Geertz sobre as religiões na modernidade.

Palavras-chave: religião, modernidade, mulheres, procedimentos metodológicos.

Abstract

With reference to Geertz’s reflections about religions in modernity thisarticle discusses the contributions to the debate on Religion in between numbers – the pools from Datafolha and FGV, organized by the group GREPO/ (PUC-SP).

Keywords: religion, modernity, women, methodological procedures.

Introdução

Este artigo tem como objetivo atender ao convite da Professora. Dra. Maria José Rosado Nunes, para fazer um apanhado e buscar interligar as exposições apresentadas no Seminário A religião entre números – as pesquisas Datafolha e FGV, por ela organizado na PUC-SP. O evento tomou estes dois documentos de pesquisa elaborados por ocasião da visita do Papa Bento XVI ao Brasil, em 2007, como referência para estimular o debate entre os pesquisadores convidados acerca de diferentes aspectos da religiosidade brasileira. A tarefa que me coube não está isenta de riscos, dada a complexidade do assunto e, também, por me dedicar mais aos estudos sobre os Novos Movimentos Religiosos e às chamadas religiões orientais, soluções sacrais que, curiosamente, foram pouco contempladas nos dois documentos analisados neste evento. Assim, faço o que me foi pedido de modo inevitavelmente seletivo e talvez indisciplinado. Para cumprir esta tarefa, busco apoio no artigo de Geertz, cujos argumentos produzem quase que os efeitos de uma psicanálise dos estudos sobre religião na modernidade e, acredito, expressam de diferentes maneiras as inquietações apresentadas neste evento. Ele nos convida:

... a estudar a modernização no seio das religiões, a não mais avaliar o avanço ou o recuo ”da religião” em geral, mas, sim, apreender os processos de transformação e reformulação de cada religião específica no momento em que ela se vê penetrada, de bom ou de mau grado, pelas perplexidades e desordens da vida moderna. (GEERTZ 2006: 10)

Religiões na modernidade

Vou começar meus comentários com uma brevíssima digressão histórica, lembrando a importância dos autores clássicos Marx, Weber e Durkheim para a reflexão propriamente sociológica sobre as religiões. Isto é, o insight original desses pensadores afirmava que a religião refletia a História. Porém, ao longo do tempo, a preocupação com as transformações sociais e suas relações com as religiões foi contaminada pela expectativa do desaparecimento da religião. Esperava-se que o avanço do processo modernizador estimulasse a mentalidade racional, triunfando sobre as concepções sagradas da realidade. Do mesmo modo, os estudos sociológicos e antropológicos sobre temas como gênero, trabalho, representações, profissões, consumo, família e sociabilidade/solidariedade tinham, no horizonte, o mesmo destino inexorável esperado para as religiões. Junto com a religião, desapareceriam também os hábitos tradicionais e a comunidade. Viveríamos num mundo de indiferença religiosa e de laços sociais frágeis. Para o bem ou para o mal, não vemos essa profecia se cumprir para as religiões.

Tivemos surpresas e temos que dar conta delas.

Diante disso, considero importante lembrar alguns fatos históricos para poder indagar como as religiões enfrentaram a modernização do mundo. Os últimos cem anos foram marcados por uma mobilização sem precedentes de populações de países da Europa, da Ásia, da África e das Américas em quase todas as direções do globo, que assistiram, por volta dos anos 50, ao nascimento do turbilhão pós-colonial. É importante considerar estes deslocamentos no estudo das religiões hoje. As pessoas se deslocaram e levaram consigo suas religiões, que foram plantadas em novos solos e produziram aquilo a que chamamos de sincretismo. Isto favoreceu o encontro não só de religiões, mas também de gentes, artes, técnicas, culturas, literaturas e culinárias, o que, de certo modo, deu identidade própria à História do século XX. Consequentemente, esses deslocamentos também desligaram as religiões dos seus contextos de nascimento e de plausibilidade. Nessa situação de desenraizamento e de diversidade, em vez de desaparecer, as religiões foram atravessadas pela modernidade e têm, cada uma à sua maneira, sabido mudar. Ou seja, para a nossa perplexidade, o interesse pelas religiões persistiu e elas até parecem ser mais duráveis que o projeto modernizador. Conseguiram, até, alojar-se nas ciências, na política, nas medicinas e nas terapias, produziram hibridismos, demoliram fronteiras e erigiram novos domínios.

Consequentemente ficamos embasbacados - afinal, ao invés de se constituírem em obstáculo, as religiões se mostram, hoje, como componente da mudança social.

Lembrando que o Protestantismo e a ética protestante nasceram em um solo sem essa experiência de deslocamento cultural e de mudanças bruscas que nós vivemos no século XX, quero chamar a atenção para um aspecto da pesquisa da FGV (NERI 2007). Ao traçar um paralelo entre a ética protestante e o comportamento religioso hoje, apresenta resultados que podem ser interpretados como consequências culturais dos deslocamentos territoriais. Sabemos que o próprio Pentecostalismo é consequência desses deslocamentos.

A forte preocupação entre afiliação religiosa e comportamento econômico, nesse documento, reforça a importância das religiões como uma variável significativa para as metas de uma economia moderna. Ou seja, para a FGV tal recorte é importante para cumprir aquilo que seria a sua vocação: relacionar religião e comportamento econômico para estabelecer previsões para a sociedade moderna. Previsões de consumo, de preços, de emprego, de desemprego, etc. Daí, também, a imprecisão, em todo o texto, da categoria sem religião (ora são “ateus”, ora são “alternativos”) e o desinteresse por aqueles que têm múltipla filiação religiosa, indicados apenas no final do texto. Ambas as categorias não ofereceriam um perfil preciso que permitisse prever o seu comportamento; seriam categorias de difícil mensuração para os objetivos econômicos, micro ou macro, que orientam a pesquisa da FGV. Enfim, para a FGV, todos os dados levam ao mercado.

Já os textos do Datafolha (APÓS... 2007) expressam bem como as diferentes tradições religiosas respondem, à sua moda, às investidas da modernidade. A grande diversidade de crenças e de tipos de envolvimento religioso apresentados nesse documento mostra as religiões como fontes de orientação de vida que conferem sentido às estruturas sociais na modernidade.

Isto é, na atual situação de pluralidade, de deslocamentos, de mudanças e de previsões que não se cumprem, as religiões estão firmes. Diferentes expressões do fenômeno foram abordadas nas exposições apresentadas no Seminário, que destaco a seguir.

O Seminário

A conferência de abertura proferida pelo Prof. Dr. Antônio Flávio Pierucci, da USP, de certa maneira apresentou os muitos “modos de ser religioso” na modernidade e as suas consequências para a política das religiões no Brasil. Inspirado na consagrada classificação do Catolicismo em “tradicional” e “internalizado” (de autoria do Prof. Cândido Procópio Ferreira de Camargo), o expositor trouxe noções e exemplos do campo da Ciência Política e dos movimentos sociais para o campo religioso, destacando, sobretudo, o grau de comprometimento ou descomprometimento do fiel como variáveis para a sua análise do panorama religioso no Brasil. Assim, seu argumento - de que são mais fortes as religiões que exigem mais dos seus fiéis, as religiões que chamam para uma missão -, mostra a importância do compromisso para o vigor das expressões religiosas, como ocorre em muitas das denominações pentecostais. Porém, do mesmo modo, sobrevivem aquelas religiões que têm a habilidade (ou aceitam a fatalidade) de afrouxar suas exigências e acolher os não tão comprometidos, como o Catolicismo tradicional.

Considero que esse “jogo de cintura” (que é do partido, das religiões e dos movimentos sociais) pode ser uma variável importante para análise da dinâmica dos comportamentos religiosos dos tipos seita e igreja, em que o compromisso ou a falta dele é critério central. Ao mesmo tempo, ele expressa a tensão sempre presente entre as experiências individuais e a dinâmica institucional.

Lembro que o compromisso é igualmente central no fenômeno da conversão. É uma das experiências mais fortes da vida religiosa, do ponto de vista sociológico e psicológico, e, como conceito, tem uso corrente e tácito nos estudos sobre religião. Admitindo que as religiões seguem ainda administrando a modernidade (e vice-versa, por que não?), convém lembrar que a variável compromisso ou engajamento é significativa para períodos de identidades líquidas como os nossos.

Para isso chamou a atenção o Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, da UNESP, frente à situação de pluralismo e trânsito, próprios do comportamento religioso hoje. Na sua exposição, argumentou, oportunamente, que o termo conversão se mostra inadequado, posto que remete a uma mudança radical na vida das pessoas e, atualmente, algumas religiões não exigem tanto compromisso dos fiéis. Assim, a ideia de conversão seria uma categoria de análise muito forte, seria over, para a experiência religiosa do presente, pois ela indica muito compromisso para os nossos tempos de pouco compromisso. O professor sugeriu, então, a expressão indicada por Peter Berger para designar a experiência da conversão nas sociedades modernas: a alternação. Certamente temos, aí, um tema desafiador e propiciador, também, de novos modelos de análise da experiência religiosa contemporânea.

As pesquisas sobre as mulheres trouxeram outras tantas surpresas. O uso de contraceptivos e a polêmica em torno do aborto mostraram comportamentos aparentemente contraditórios entre católicos.

Sobre esse aspecto, merecem destaque os dados sobre a participação religiosa por gênero. Na mesa redonda que tratou deste assunto, a Professora Dra. Lucila Scavone, da UNESP, chamou a atenção para a queda da participação das mulheres e o aumento da participação dos homens na Igreja Católica, conforme os dados da pesquisa da FGV. A alteração do comportamento de católicas e católicos chama a atenção para a importância de uma abordagem relacional nos estudos sobre os gêneros: a mudança no comportamento das mulheres se fez acompanhar de uma alteração no comportamento religioso dos homens. Porém, quero lembrar, também, que a mudança que ocorreu no comportamento das mulheres, nos anos 70, desencadeou outras tantas mudanças nas mulheres, e a mulher de hoje não é a mesma do início do movimento feminista. Eu diria que nós temos outros feminismos e outros femininos. Essa jornada das mulheres certamente levou à alteração de comportamento, de identidade e de vínculos entre os homens, para além das expectativas dos anos 70. Abre-se, aí, uma frente de pesquisas necessárias.

É oportuno lembrar, mais uma vez, as sequelas consequentes da adesão ao ideário modernizador como fatalidade e lei da História. Isto é, compromissos inconscientes, cumplicidades inevitáveis, tanto na reflexão teórica como na atuação prática, propiciadores de projetos/programas para o futuro da sociedade, aguardavam um salto na História com a instalação da modernidade. Como um senso comum da ciência, é possível que esses compromissos possam ser encontrados em algumas tradições de estudos sobre religião, modernização e solidariedade social. Nesse sentido, mostra-se importante a recomendação do Prof. Dr. Ronaldo de Almeida, da UNICAMP e CEBRAP, apresentada na sua exposição, de que não nos esqueçamos de que as religiões estão no tempo, na História, evitando, assim, congelar a realidade para cumprir nossas previsões.

Também refletindo nessa mesma direção, o Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos manifestou preocupação com dois aspectos das investigações sobre religião: os limites e os riscos presentes nas pesquisas, quando estas se conformam aos nossos desejos, e a necessidade de se fazer mais estudos quantitativos para compensar a tendência, que ele identifica hoje, de se realizar, preferencialmente, estudos qualitativos. No primeiro caso, sabemos que desse risco sofrem todas as pesquisas, independentemente de serem qualitativas ou quantitativas. Depoimentos orais, entrevistas, testes, documentos, questionários, dados censitários, gravações diversas e outras tantas fontes de informações permitem ampliar ou encolher informações, consciente ou inconscientemente, de acordo com nossas expectativas, ambições, desejos ou determinações históricas. Assim, acrescento às recomendações do Prof. Leonildo a confrontação dos dados, o cotejamento dos resultados, a replicabilidade dos estudos e a circulação criativa de ideias que alimentam a intersubjetividade da comunidade de pesquisadores, como recursos para enfrentar os riscos apontados. Desta interação saudável poderá resultar, então, a objetividade possível. A segunda inquietação do Prof. Leonildo nos sugere que a preferência pelas pesquisas qualitativas indicaria uma tendência a se privilegiar certos níveis, a operar certos recortes no fenômeno religioso, em detrimento de outros, pois sabemos todos, a íntima vinculação que há entre construção do objeto de estudo e escolha metodológica.

É inegável que para compreender a modernização das religiões, como desafia Geertz (2006), neste contexto de deslocamentos de populações, é necessária uma mudança de rumo nas pesquisas sobre religião. O Prof. Dr. Ronaldo de Almeida ofereceu uma contribuição original para essa questão. Ele propôs um modelo de análise onde se podem discriminar três níveis de trânsito religioso: de pessoas, de crenças e do divino. Sua proposta é certamente oportuna para os tempos presentes, quando a dinâmica religiosa se desvinculou dos seus territórios e das instituições. Com isso, o palestrante enfatizou a necessidade de outras metodologias que permitam fazer outras perguntas. As perguntas consagradas teriam se tornado ingênuas nesse novo contexto religioso.

A Professora Dra. Lucila Scavone, destacou aspectos interessantes da história do feminismo nos anos 70, que não estão distantes das reflexões antes mencionadas, isto é, objetividade e desejo. Ela lembra a forte presença da militância feminista na origem dos estudos feministas. Isto é, os estudos de gênero, que são produzidos na sua maioria por mulheres, não se envergonham de enfrentar esse verdadeiro tabu acadêmico e de reconhecer, no seu nascedouro, o impulso dos movimentos sociais. É deste enfrentamento corajoso que se alimenta a objetividade possível assentada na intersubjetividade dos pares. Essa é uma questão importante e boa para pensar também outros campos das Ciências Sociais, que reivindicam uma neutralidade axiológica. Certamente, nos alicerces de diferentes ciências - humanas, naturais ou exatas - estão presentes muitas negociações, provavelmente inevitáveis, entre interesses políticos, éticos e ideológicos e preceitos epistemológicos. No caso da Sociologia da Religião, perguntaríamos sobre a presença de uma militância modernizadora ou conservadora, em direção desta ou daquela Teologia.

Lembrando o papel diferenciado do conhecimento científico nas questões polêmicas que envolveram os debates sobre o aborto e a canonização do Frei Galvão, a Profa. Dra. Maria Tereza Citeli, da UNICAMP, chamou a atenção, na sua exposição, para as relações entre religião e ciência nos meios de comunicação. Destacou ela as mobilizações que esses meios fazem das funções legitimadoras da ciência na difusão de visões, positivas ou não, de comportamentos, valores e posturas pautados pela religião. Essa relação contraditória entre ciência e religião, no âmbito do Catolicismo e divulgado pelos meios de comunicação, certamente surpreende, mas também estimula indagações em outra direção. Pergunto: que ciência é essa? E ainda: há uma concepção de ciência unívoca e inequívoca? O que vemos, nos meios de comunicação, para casos como os citados pela palestrante, é uma concepção de ciência como verdade, como saber definitivo, distante da epistemologia popperiana que lhe resguarda o caráter de conhecimento provisório. Com essas características, trata-se, certamente, de uma ciência de relações públicas. Além disso, este modelo tem servido à legitimação, também, em setores da sociedade nos quais a saúde e a religião têm íntima relação, como as medicinas paralelas. Nesse caso, procedimentos terapêuticos advindos da cultura popular, da tradição, de culturas distantes da nossa, como as orientais, ou mesmo criações híbridas alternativas, com forte conteúdo religioso e que ganham espaço cada vez maior no Ocidente moderno, procuram identificar-se como práticas científicas, guardando essa acepção de conhecimento definitivo e, portanto, legítimo.

Considerações finais

Enfim, frente a todo o debate, retorno à questão que me foi proposta: “a religião cabe nos números?”, e respondo: “Cabe, sim. Mas também transborda.” Porque os números mostram, principalmente, a persistência do interesse religioso. Mas esse interesse não é mais nem homogêneo e nem igual ao do passado. Isto chama a atenção, então, para a necessidade de criatividade metodológica e, também, de combinar os estudos quantitativos aos qualitativos, que favorecem a identificação de como a modernização penetrou no seio das diferentes tradições religiosas, e não mais o declínio ou o retorno da religião nos tempos modernos ou pós-modernos.

Em síntese, o evento trouxe questões boas para pensar a relação entre nossos horizontes históricos e nossos procedimentos de pesquisa. Ou seja, questões da Sociologia do Conhecimento que, para Berger (1981), informa e abarca a Sociologia da Religião.

Bibliografia

APÓS dez anos, Papa encontra Brasil menos católico 06/05/2007 Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Religião, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/inde06052007.htm. Acesso em: 13 mar 2008.

BERGER, P.; KELLNER, H. 1981 Sociology Reinterpreted: an essay on Method and Vocation, New York, Anchor Press/Doubleday.

GEERTZ, C. 14/05/2006 “O futuro das religiões”, Folha de São Paulo, São Paulo, Mais!, pp. 10.

NERI, M. C. (coord.) 2007 Economia das religiões: mudanças recentes. Rio de Janeiro: FGV, IBRE, CPS.

Recebido: 12/10/2008
Aceite final: 11/2008

Notas

[*] Universidade Estadual Paulista, UNESP, Câmpus de Rio Claro, SP.