A Questão das Seitas na França: Vitalidade Religiosa de uma Mitologia Científica?[*]

Adriane Luisa Rodolpho[**] []

Resumo

Este artigo pretende destacar alguns pontos relevantes para a discussão sobre os caminhos heurísticos da análise do campo religioso na França. O fato de ser uma antropóloga brasileira levou-me à construção de um olhar específico sobre esse campo, identificando o problema social das seitas enquanto parte de uma tradição de longa data que discute o lugar dos grupos minoritários de crença no campo religioso francês.

Palavras-chave: teoria antropológica, etnografia, religião, seita.

Abstract

This paper points out some relevant elements of the discussion about heuristics paths for the analysis of the French religious field. Being a Brazilian anthropologist has led me to construct a specific approach on this field identifying the sects social problem as part of an old tradition that has discussed the minorities’ believers groups position in the French religious field.

Keywords: Anthropological theory, ethnography, religion, sect

1. Introdução

Este artigo retoma a pesquisa realizada há alguns anos em Paris, França (RODOLPHO, 2002). Esta abordava as práticas e crenças do grupo Eckankar, e se inscreveu como uma contribuição na discussão mais ampla sobre as conformações contemporâneas das crenças na sociedade francesa. Tomando como caso de estudo um grupo específico - Eckankar – classificado como seita pelo Rapport de l’Assemblée Nationale (GEST, 1996), esta pesquisa se interrogou sobre as formas das práticas religiosas deste grupo, seu histórico, sua conformação e o lugar que os participantes ocupam no panorama mais vasto da sociedade urbana moderna.

É a partir, portanto, desta posição, enquanto etnóloga brasileira, que Eckankar foi por mim percebido como um grupo religioso entre outros: percebi as definições e as questões que envolvem as utilizações das categorias seita e religião durante o desenvolvimento da pesquisa. Este, a priori, permitiu-me identificar, na situação francesa, a existência, na sociedade, de um espaço de discussão em torno das questões colocadas pela coabitação de grupos religiosos com a tradição republicana e laica, que problematiza e questiona a noção do religioso e de seu lugar na sociedade.

Igualmente, a partir dessa posição construí um olhar sobre o problema social que representam as seitas na França. Nesta abordagem do campo religioso, foi necessário realizar uma análise do domínio da sociologia das religiões e do lugar que ocupavam, nessa área, os novos movimentos religiosos. Neste sentido, as leituras das discussões relativas a estas tipologias foram, de alguma forma, uma porta de entrada ao campo acadêmico francês.

A construção de um problema social é produto da interação dos diferentes atores sociais, e tal polifonia – no caso do objeto seitas – é representada pela opinião pública em geral, pela imprensa, juristas, associações anti-seitas e, igualmente, pelos pesquisadores em ciências sociais. A transformação desse problema pelas ciências sociais – que o transformam em objeto de reflexão – é interessante de seguir, uma vez que a produção de noções acadêmicas e seu uso pelos cientistas sociais são também constituintes fundamentais do terreno minado[1] analisado neste trabalho (BIRMAN, 1999).

O encontro com este campo de discussão permitiu-me inicialmente identificar um quadro conceitual eminentemente sociológico. No panorama acadêmico francês, o que chama a atenção é a quantidade relativamente reduzida de pesquisas etnográficas pontuais sobre os novos movimentos religiosos. As pesquisas etnográficas sobre os NMR ou grupos alternativos de crença, na época desta pesquisa, concentravam-se sobre os grupos mais polêmicos ou mais conhecidos, como as Testemunhas de Jeová (DERICQUEBOURG, 1996ª, 1999), a Sokka Gakkai (DOBBELAERE, 1996; HOURMANT, 1990, 1999), a Ordem do Templo Solar (MAYER, 1999) e a Cientologia (WILSON, 1996; DERICQUEBOURG, 2001), entre outros. Uma produção analítica considerável se interessa igualmente pelos elementos de renovação que aparecem nos quadros das religiões tradicionais.

Segundo a perspectiva adotada neste trabalho, pretende-se fazer uma reflexão sobre o encontro etnográfico, entre os sujeitos envolvidos na situação de pesquisa. Eckankar pode, portanto, ser incorporado no que Françoise CHAMPION entende por nebulosa místico-esotérica, que reagrupa o conjunto dos novos movimentos religiosos contemporâneos (CHAMPION, 1990; 1992; 1993; CHAMPION et HOURMANT, 1999). A expressão proposta pela autora caracteriza um espaço fluido, estruturado a partir de laços (locais de encontro, algumas editoras) que reúnem uma população interessada por sincretismos esotéricos ou psico-religiosos. No estudo A nebulosa místico-esotérica a autora analisa alguns exemplos etnográficos, como uma comunidade rural, uma ashram de ioga e outros grupos:

Estes grupos, estas redes são, portanto muito heterogêneos. O fato de que eles se encontram juntos nas mesmas revistas, nos mesmos editores, nos mesmos salões de exposições – bem conhecidos de todos aqueles que estão em busca de mística e de esoterismo – sublinha seu pertencimento a um mesmo meio, a uma subcultura religiosa, seja ela um movimento aos contornos indefinidos e móveis. (CHAMPION, 1990: 26) [2]

Desta citação retenho dois conceitos que me parecem fundamentais para a compreensão do grupo em questão aqui: a noção de redes e o pertencimento a uma mesma subcultura religiosa. Com efeito, percebeu-se ao longo da pesquisa que o conjunto de crenças de Eckankar se coloca numa subcultura religiosa específica: uma coleção de proposições ocultistas, esotéricas e gnósticas que Wiktor Stoczkowski identificou como um sistema, e no qual os eckistas estão imersos há tempos (STOCZKOWSKI, 1999).

Aliás, os eckistas não são os únicos neste caso. Uma parte considerável da sociedade francesa partilha várias destas premissas, especialmente a crença, generalizada, no paranormal[3]. O velho debate que opõe o engajamento irracional às tomadas de consciência racionais não sai de cena, como se um termo excluísse o outro.

No panorama religioso contemporâneo, tal como ele se constitui na França, os novos movimentos religiosos ou as novas formas de adesão às crenças aparecem, antes, como espaços ou locais fluidos, onde se podem perceber os processos de resoluções situacionais, retomando Marc Henri Piault (1999). Espaços de trocas, onde cada qual chega com suas expectativas e sua bagagem pessoal. Uma espécie de grande mercado de idéias e de práticas, onde as múltiplas formas de saberes intercambiam-se entre os participantes. Neste sentido, Eckankar apresenta-se como uma destas formas alternativas de esperanças, uma maneira a mais de conceber o mundo e o futuro.

Como já foi dito, Eckankar figura no Rapport que a Assembléia Nacional estabeleceu sobre a questão das seitas; entretanto, a importância e a amplidão desta constatação não foram sempre claras para mim. Foi somente algum tempo após o início do trabalho de campo e concomitantemente que percebi a especificidade do campo religioso francês, logo que abordamos a questão das seitas.

Com efeito, antes de iniciar o trabalho de campo, era minha intenção trabalhar junto a grupos esotéricos ou participantes das espiritualidades alternativas na França. Entretanto, esta definição do universo da pesquisa estava, sobretudo, ligada ao meu próprio imaginário, enquanto etnóloga brasileira. Esse imaginário é composto pelas minhas próprias representações sobre o movimento Nova Era, e estas representações são relacionadas tanto ao conhecimento teórico da bibliografia especializada quanto, igualmente, ao campo religioso brasileiro. Em termos gerais, tal imaginário pode assim ser resumido: um conjunto de noções capazes de reunir sobre o mesmo termo vários grupos oriundos de diferentes tradições, tendo todos, como ponto em comum, especialmente a crítica das estruturas sócio-econômicas. A transformação destas, que se situa num projeto utópico no interior da esfera social, desenvolve-se concomitantemente com a idéia de uma mudança das posturas morais ou éticas do homem moderno, a partir de reflexões subjetivas.

Vários autores trabalharam sobre as definições relativas ao movimento da Nova Era (ROCCHI, 2000). Lembro particularmente a definição proposta por Leila Amaral, antropóloga especialista da área:

Com a expressão Nova Era, estarei referindo-me a um campo de discursos variados, mas em cruzamento, por onde passam: a) os herdeiros da contracultura com suas propostas de comunidades alternativas; b) o discurso do autodesenvolvimento, na base das propostas terapêuticas atraídas por experiências místicas e filosofias holistas, fazendo-as corresponder às modernas teses de divulgação científica; c) os curiosos do oculto, informados pelos movimentos esotéricos do século XIX e pelo encontro com as religiões orientais, populares e indígenas; d) o discurso ecológico de sacralização da natureza e do encontro cósmico do sujeito com sua essência e perfeição interior e e) a reinterpretação yuppie dessa espiritualidade centrada na perfeição interior, através dos serviços new-age oferecidos para o treinamento de recursos humanos, nas empresas capitalistas. (AMARAL, 1998: 01).

No panorama que eu compunha, à época desta pesquisa, sobre a religiosidade francesa que acabava de abordar, tratava-se de estereótipos próprios ao senso comum, e que se cruzavam. De minha parte – e considerando Eckankar como um grupo de espiritualidade alternativa, ou fazendo parte integrante do movimento Nova Era – considerava-me em possessão de uma bagagem cultural que me daria acesso a um espaço de comunicação com o grupo. Mesmo que não se tratasse da partilha de certa visão de mundo, ao menos eu conhecia – ainda que superficialmente – alguns conceitos habitualmente correntes entre grupos alternativos como os mapas astrais, as leis de causa e efeito como produtoras de carma, horóscopo, reencarnação, I Ching e outros temas capazes de iniciar e entreter uma conversação.

Foi-me necessário muito tempo para que eu percebesse que não estava abordando um campo esotérico do tipo incenso, astrologia ou tarô (à brasileira, poder-se-ia acrescentar). Esse campo imaginário que eu tinha em mente rapidamente chocou-se com a representação dominante referente às seitas - assassinas ou suicidas – como espaços de escroquerias múltiplas e perigos vindos, supostamente, de algum lugar como um contágio, ocasionado pelo simples fato de estar-se em contato com uma seita.

2. As Representações Dominantes

O estranhamento do etnólogo é bem visível quando, nos inícios da pesquisa, suas expectativas se chocam com os estereótipos que recobrem a realidade que ele pretende analisar. Partindo do pressuposto de que toda sociedade produz estereótipos, é precisamente ao antropólogo que cabe a tarefa de percebê-los, identificar os agentes emissores destes e de deslindar – se possível – os espaços e as condições de seu uso. A experiência que constitui a aproximação a uma realidade diferente àquela que pertence não é uma tarefa fácil. O estranhamento e as surpresas do início da pesquisa indicam o caminho a percorrer no desenvolvimento do encontro etnográfico.

Philippe Descola (1993) nos relata sua chegada à pequena vila de Puyo, situada nas fronteiras da floresta, antes, portanto, que ele entrasse na zona dos índios Jívaro Achuar que pretendia contatar. Com efeito, os ribeirinhos da floresta eram os vizinhos mais próximos desses índios, ainda que eles não houvessem nunca entrado na floresta nesta zona nem encontrado, portanto, nenhum Jívaro Achuar. Seus discursos sobre eles, nos relata Descola, parecem saídos de um senso comum fantástico, que mergulha suas origens nos grandes mitos que o Ocidente sempre veiculou sobre a Amazônia.

O saber livresco do etnólogo precede as experiências etnográficas, e é este que permite a identificação dos conceitos que a sociedade envolvente forja sobre o grupo em questão. De certa maneira, as distâncias se relativizam, quando os habitantes de Puyo compensam sua ignorância total do que seja a existência empírica dos índios por uma prolífica fabulação mítica.

O abismo irredutível que eu constatava entre meu saber livresco e racionalista sobre os Índios da Amazônia equatoriana e o universo legendário do qual nos falavam os habitantes de Puyo tornou-se para mim a primeira ilustração de uma lei implícita da prática etnográfica. Se arriscássemos a formulá-la parodiando a concisão da linguagem dos físicos, ela poderia ser anunciada assim: a capacidade de objetivação é inversamente proporcional à distância do objeto observado. Em outros termos, maior é a distância geográfica e cultural que o etnólogo instaura entre seu meio de origem e seu “trabalho de campo” de eleição, e menos ele será sensível aos preconceitos alimentados pelas populações localmente dominantes ao encontro das sociedades marginais que ele estuda. (DESCOLA, 1993: 16-17)

Esta citação de P. Descola chama a atenção para a importância do contexto amplo no qual se inserem nossas etnografias, e sobre o quanto nossos objetos de pesquisa estão imersos em uma teia de significados tecida pelos seus vizinhos mais próximos. Nesse sentido, não pretendo colocar em questão a etnografia feita na mesma sociedade de origem do pesquisador; não se trata disso, e a antropologia contemporânea fornece inúmeros exemplos - particularmente recordo dos textos de Bruno Latour, discutindo a própria noção da produção de fatos científicos a partir da etnografia realizada numa imersão em laboratórios[4].

Trata-se antes de uma perspectiva de estranhamento da própria realidade, compartilhada com algumas pessoas durante o tempo em que o etnólogo está lá, em campo, como diria Geertz. Nesses termos, o fato de ter realizado esta pesquisa em um país estrangeiro modelou, por assim dizer, a construção de um olhar específico sobre o contexto no qual Eckankar está inserido: as revistas, as emissões de televisão, as conversas em geral que tive com pessoas dentro e fora de Eckankar igualmente foram balizas importantes na construção dessa pesquisa[5].

Com efeito, minhas primeiras impressões ao apreender o contexto de existência de seitas potencialmente perigosas no seio da sociedade francesa eram que se revelava, por aí, um imenso preconceito alimentado pela população localmente dominante. Em outros termos, percebi com surpresa a existência de um campo de discussão no qual se apresentava uma posição hegemônica e quase indiscutível contra as seitas.

2.1. Os Componentes do Discurso Dominante

É possível assim identificar um campo de discussão (BIRMAN, 1999 e 2000; GIUMBELLI, 2000) relativo ao problema social das seitas. Esse campo é constituído pelos principais atores cuja voz é considerada como legítima na avaliação do tema em questão, a saber: as associações anti-seitas e os organismos governamentais. Esses dois produtores do discurso que podemos assim caracterizar como oficial mantêm informados a mídia e os autores de livros destinados à grande circulação. Igualmente, existe sobre a questão a produção dita científica, a dos pesquisadores em ciências sociais e juristas, entre outros.

Em torno do debate rapidamente tornado polêmico, instaurado após a publicação do Relatório da Assembléia Nacional, a polifonia era vasta: vários atores entraram na discussão a propósito do problema social das seitas. De maneira geral, um tipo de consenso pode ser claramente identificado entre os três principais participantes do debate: as associações anti-seitas, o governo e a mídia. Essas três instâncias – por intermédio de seus experts – produzem e difundem um discurso de franca oposição ao fenômeno sectário, discurso homogêneo e quase inatacável, uma vez que produzido como único discurso suscetível de ser hegemônico e, portanto, oficial. Em grandes linhas, os componentes deste discurso são os seguintes:

2.1.1. As Associações Anti-Seitas

Como já foi dito mais acima, tais associações e a história de seu desenvolvimento já foram objeto de vários estudos. Constituída em 1974, a Associação em Defesa do Indivíduo e da Família (A.D.F.I.) apresenta-se como representante das famílias de adeptos e ex-adeptos. O Centro Georges Ikor (C.C.M.M.) organiza-se no início dos anos 1980 com o mesmo objetivo. Essas associações originam-se a partir da organização de testemunhos sobre os grupos denunciados e da retransmissão desses dados às instâncias governamentais e à mídia; essas informações são a matéria-prima do arsenal regulador de todos os grupos que podem ser considerados como potencialmente perigosos. O campo de ação destas associações consiste principalmente em: a) reunir informações sobre as seitas (a partir de testemunhos); b) publicar/divulgar esses dados por intermédio da publicação oficial da A.D.F.I., a revista Bulles; c) mais recentemente, as associações receberam o direito de se apresentar como parte civil em processos judiciais contra as seitas.

2.1.2. O Lugar do Estado

É igualmente postulado, nesse discurso, que o Estado possui uma função reguladora e um dever de proteção e de salvaguarda com relação à sociedade. Estando o caráter religioso reconhecido pelo Estado de maneira informal delimitado unicamente à esfera das religiões institucionalizadas, os outros componentes deste campo não possuem nenhuma legitimidade em solicitar sua inclusão nesta qualificação. Como o Estado laico e republicano não reconhece nenhuma religião ou cultos oficiais, trata-se aqui de uma atribuição que ele não pode conceder, e sobre a qual os indivíduos esperam uma medida jurídica ou legal. Com efeito, o controle das atividades das seitas é descentralizado na França, e vários ministérios e comissões estão encarregados de fazer a observação e de perseguir, de maneira autônoma, grupos sobre os quais pesem suspeitas.

2.1.3. A Mídia

A mídia é aqui considerada num sentido amplo: a) a imprensa escrita, jornais e revistas; b) as emissões televisivas; c) os livros destinados à grande circulação. As reportagens divulgadas nos canais de televisão quase sempre se caracterizam pela câmara escondida, exemplo típico da maneira como os jornalistas ‘analisam’ os novos movimentos religiosos ou, segundo a acepção corrente nestes programas, as seitas perigosas. É necessário sublinhar que o resultado destas emissões não facilita em nada as relações entre os pesquisadores em ciências sociais e os grupos tidos como objetos de polêmicas pela sociedade.

2.1.4. Os Experts

Existe uma plêiade de especialistas em seitas, participantes de diversas comissões, grupos de pesquisa, associações e outros. Trata-se de psiquiatras, psicólogos, advogados e jornalistas, em sua maioria. Existe igualmente uma produção oriunda das igrejas tradicionais, as quais, não sem razão, tentam encontrar um espaço entre a liberdade de consciência e a “justa” repressão às seitas. Esses experts são geralmente pessoas levadas a expressar seus pontos de vista em programas de televisão e são igualmente autores de inumeráveis obras de divulgação anti-seitas que lotam as prateleiras das livrarias. Alguns são ligados às associações anti-seitas de uma maneira ou de outra, mas podem igualmente ser independentes destas.

2.1.5. As Obras de Divulgação

O setor de livros de denúncia contra as seitas é prolífico. Sob forma de testemunhos, pesquisas ou revelações, as narrativas possuem geralmente um caráter dramático, muitas vezes jornalístico e mediático. Não se trata aqui de recensear esta produção, mas, à título de ilustração, alguns títulos são evocativos do caráter intencionalmente passional dessas publicações: As seitas: estado de urgência (CENTRE GEORGES-IKOR, 1995); A grande des-cerebração (FILLIAIRE, 1993); Cientologia: vôo sobre um ninho de gurus (LENZINI, 1996); Mandarom: uma vítima testemunha (RONCAGLIA, 1995) e Sete anos no inferno de uma seita (SÉBAGH, 1996), entre outros muitos. Existe também uma produção considerável de dicionários e guias recenseando os grupos de crença.

2.2. As Premissas Partilhadas

O discurso dominante se constrói em torno de algumas premissas partilhadas: as seitas são consideradas como eminentemente perigosas em razão da aceitação de certos axiomas não discutidos e, sobretudo, não discutíveis. Essa impermeabilidade do discurso dominante sobre as seitas aos argumentos que colocam questões sobre os pressupostos tidos como legítimos e verdadeiros pode ser o sinal de um discurso de crença. Com efeito, olhando mais de perto, é fácil constatar que o campo dos discursos sobre as seitas possui um núcleo duro inquebrantável: a crença nas seitas.

A desconfiança com relação aos grupos minoritários legitima-se assim sobre a crença partilhada pelos atores sociais do discurso sectário nos poderes maléficos desta “praga social”. A avaliação dos especialistas é, neste caso, fundamental.

2.2.1. A Manipulação Mental e a Fragilidade da Pessoa

Nesse campo polifônico, com efeito, escuta-se uma só e única voz que informa e acusa as ações das seitas, sobretudo a possibilidade de existência da manipulação mental. Entretanto, argumentos colocando em questão esse pressuposto podem ser seguidos nos artigos de Richardson (1996) e Mulhern (1996).

O axioma da manipulação mental e da fragilidade da pessoa é talvez um dos mais singulares, e trata-se aqui realmente de uma proposição admitida por todos sem discussão (PETIT ROBERT, 1996 data). As posições dos autores divergem com relação ao nível desta manipulação e sobre as formas que ela pode tomar, mas ninguém discute a possibilidade (real ou eventual) de uma influência de tal envergadura sobre a pessoa. Esta – e novamente encontramos outro aforismo corrente –, portanto, é a vítima potencial que nenhuma instância interna ou característica pessoal (nível de escolaridade, faixa etária, classe social) pode proteger. A proteção contra as seitas vem exclusivamente do exterior, seja da família, seja do Estado (e as associações anti-seitas – representantes das famílias – colocam-se como uma espécie de intersecção entre o direito afetivo e efetivo de instância protetora). A pessoa, só, não pode nada contra as seitas.

Com efeito, no panorama deste imaginário sectário, as idéias do senso comum tomam tonalidades científicas, sobretudo pelo intermédio dos testemunhos dos especialistas. A figura de um psiquiatra como Jean-Marie Abgrall, participante do Observatório das Seitas, empresta seus certificados de autoridade científica àquilo que o governo vai acabar por aceitar como delito de manipulação mental. Segundo ele, existe uma diferença entre a lavagem cerebral e a manipulação mental, assim compreendidas:

Assim que o condicionamento pára, a lavagem cerebral acaba. Em revanche, a noção de manipulação mental é bem mais sutil porque se trata de uma reeducação: retiramos do indivíduo todo o seu antigo substrato cultural, tudo o que ele aprendeu antes da entrada na seita, e vamos substituindo, pouco a pouco, por novas informações às quais vamos adaptá-lo, às quais vamos habituá-lo. E essa nova cultura vai substituir a cultura social tradicional. Lá, podemos falar de manipulação, ainda que a seita o negue. Isto funciona muito bem, e tanto melhor que isto foi teorizado por pesquisas que foram feitas em psiquiatria militar, em particular pela CIA. (LUCA; LENOIR 1998: 242)

Nas palavras deste especialista confunde-se outro componente desse imaginário sectário: o argumento igualmente corrente da pretensão norte-americana a uma hegemonia sobre o mundo, a Europa e a França, em particular. Esse é, aliás, o argumento principal do jornal Le Monde Diplomatique (tido como representante da ”imprensa esclarecida”) que, entretanto, consagrou às seitas um dossiê intitulado As seitas, cavalos de Tróia dos Estados Unidos na Europa (FOUCHEREAU, 2001[6]). A temática da controvérsia entre as posturas adotadas com respeito às seitas, nos Estados Unidos e na França, faz igualmente parte desse imaginário que se manifesta aqui e ali, em todos os lugares.

2.2.2. Um Campo Desregulado: O lugar do religioso

Uma outra premissa partilhada pela maioria dos atores sociais participantes do debate refere-se à noção de desregulação do campo religioso. Essa idéia pressupõe a existência de um domínio nos quais os espaços seriam claramente identificados, como as esferas daquilo que pode (e, ao inverso, do que não pode) ser considerado como incluído dentro do domínio propriamente religioso ou, ao contrário, laico. Essa ordem regulada do campo religioso definiria, portanto, um lugar para o público e outro para o privado, um espaço para os atos e manifestações de crenças e outro para aquelas do Estado, da razão e da laicidade. O binômio x razão resta assim polarizado sem dificuldades ou questionamentos maiores, uma vez que os espaços são claramente diferenciados e identificados.

Isso posto, seria pertinente então colocarmos a questão da natureza dessa hipotética ordem perdida; e que tal noção seja a causa ou a conseqüência do processo de secularização, com efeito, importa pouco, uma vez que esse processo é em si o sinal da busca de colocar em ordem o espaço social e as esferas de ação e de competências respectivas.

Em conseqüência, seguindo esse raciocínio, as opções atuais e alternativas de crenças são diretamente denunciadas como sendo a causa da desordem ou da desregulação do campo religioso. Entretanto, as alternativas sempre existiram; além da possibilidade de ser ateu ou crente, uma infinidade de outras possibilidades sempre coabitou na França – especialmente aquela que consiste em tentar reunir os dois componentes do binômio acima – e os exemplos não faltam, desde a religião civil de Rousseau até o espiritismo científico de Allan Kardec. Ver sobre a questão igualmente a análise sobre o sincretismo laico-cristão (WILLAIME 1993). Ou você pode colocar apenas o nome do autor ou data, ou levar para nota.

É necessário, entretanto, precisar que esses espaços outros jamais reivindicaram uma visibilidade social maior, inscrevendo-se no cenário das crenças numa posição discreta e estável na longa duração histórica e sem contestação da posição hegemônica das igrejas institucionalmente constituídas.

Essas posições são aquelas tidas pelos “atrasados” (arriérés no original, denominação pejorativa dos camponeses crentes na feitiçaria, na região do Bocage francês) descritos por Faavret-Saada (1977), pelos magnetizadores, videntes e curandeiros nos séculos XIX e XX, analisados por Nicole Edelman (1995), pelos mesmeristas e fourrieristas e por suas prolíficas descendências (NATHAN, 1981; DARNTON, 1995; AUBRÉE et LAPLANTINE, 1990).

3. A Construção de uma Mitologia Científica

Inspiro-me aqui igualmente no texto de Bourdieu sobre o funcionamento de uma tradição letrada e a constituição de uma mitologia científica, caracterizada pelo autor como um:

(...) discurso fundado na crença (ou no preconceito) que tenta se aproximar da ciência e que se caracteriza portanto pela coexistência de dois princípios interligados de coerência: uma coerência proclamada, d’allure científica, que se afirma pela multiplicidade de signos exteriores de cientificidade, e uma coerência escondida, mítica em seu princípio. (BOURDIEU, 1980: 21)

O conjunto das noções reunidas em torno do problema social das seitas, emitidas pelos diferentes participantes da discussão, indica a existência de um discurso de consenso que, particularmente na França, suscita algumas interrogações. Tudo funciona como se uma teoria simples muito divulgada e uma lógica de argumentação erudita se unissem para produzir um postulado, cujo efeito de persuasão é tão inquietante que ele nem mesmo é colocado em questão por ninguém (e, talvez, ele nem mesmo seja percebido como tal). Todos os participantes estão de acordo sobre as premissas axiomáticas – presentes em todos os discursos, independentemente da posição do enunciador – e a discussão acaba por se localizar na periferia da questão. O perigo das seitas coloca-se, portanto, sob o signo da evidência e do natural, e aqui poderíamos mesmo repetir a afirmação inúmeras vezes entendida durante o trabalho de campo: todo mundo sabe.

Colette Pétonnet (1979) escolheu como título de seu estudo consagrado à etnologia das periferias das cidades a expressão estamos todos na bruma. A escolha do título parece-me bastante adequada para designar uma etnologia das religiosidades contemporâneas na França. A questão das definições teóricas componentes do campo religioso não é uma tarefa simples (novos movimentos religiosos, nebulosa místico-esotérica, etc.); no momento, trata-se de uma definição concernente ao campo social mais amplo, no qual se encontra Eckankar. Neste caso, estamos todos – ainda – na bruma...

Segundo Pétonnet, a discussão sobre a caracterização e a definição da população que formam os habitantes das periferias das grandes cidades parece-me surpreendentemente semelhante àquela que tem lugar quando o assunto são os grupos minoritários de crença. É, sobretudo, o olhar formado pela opinião pública e posto sobre essa população que me parece, aqui, passível de ser colocado em evidência:

O ponto hipotético onde ancorar a busca do real vai nos ser fornecido pela opinião pública. Não é no interior dessa população, privada a priori de denominador comum, que se forma esta espécie de unidade, mas fora dela, na percepção da sociedade global, na prática social. A opinião pública qualifica as pessoas em termos de marginais, associais, inadaptados e mais recentemente, de deficientes sociais. Estes termos não descrevem um modo de vida. Eles sugerem uma noção de perigo, de enfermidade, de anormalidade. Eles designam uma parte da sociedade presumindo-a capaz de qualquer ato aberrante, e traduzem talvez assim um medo social latente. (PÉTONNET, 1979: 14)

Com efeito, a população social extremamente diversificada relacionada ao estudo de Pétonnet possui apenas os signos homogêneos de pertencimento social, que correspondem àqueles que são colocados do exterior, sobretudo pela assistência social e pelas instituições do poder público. Mesmo os sujeitos relacionados mais diretamente pela questão e ocupando uma posição de apoio aos habitantes das periferias (os militantes políticos, sindicalistas ou religiosos) não colocam em questão esta definição em negativo da população. É assim que estes últimos “não colocam nenhuma dúvida quanto à existência de um fenômeno do qual – assim fazendo – eles compõem a prova. Nenhum grupo os reclama como fazendo parte dos seus. Somente, os diversos especialistas da assistência social os reivindicam como uma possessão”. (Idem: 15).

Aquilo que, para Pétonnet, caracteriza o olhar generalizado e exterior dessa população é, portanto, fornecido pela opinião pública, que os considera como indivíduos diferentes, afirmação raramente colocada em dúvida. A força de tal opinião reside precisamente na irrefutabilidade dessa caracterização. Os componentes de medo e contágio apresentados pela autora como suspeitas englobando a população das periferias são, assim, passíveis de ser aproximados daqueles que alimentam o olhar relativo aos membros contemporâneos das seitas.

Clifford Geertz debruçou-se igualmente sobre o estudo do senso comum, aquele do dado por si só e inegável (GEERTZ, 1998). Essas informações do senso comum, entretanto, são historicamente constituídas e definidas; elas formam, portanto, um sistema cultural que repousa sobre a “convicção – daqueles que a possuem – de seu valor e de sua validade” (Idem: 129). Segundo o autor, um conjunto de idéias assim constituídas – e percebidas como formas culturais – pode ser identificado a partir de alguns traços e marcas de atitude (ou propriedades), a saber: “... naturalidade, praticabilidade, leveza, não-metodicidade e acessibilidade” (Ibid.: 129).

Num breve exercício de interpretação, correlacionando os termos citados por Geertz com as asserções acusatórias freqüentemente propostas em relação às seitas, aparece claramente que essas marcas de atitude podem ser identificadas na configuração negativa atual, da qual a maioria dos grupos denunciados como suspeitos são objeto.

É assim que a idéia segundo a qual as seitas têm o poder de fazer a manipulação mental se mantém naturalmente; o espírito prático não duvida de que o único objetivo das seitas é enriquecer facilmente (aliás, não existiria outra razão plausível); a leveza – entendida por Geertz como simplicidade ou literalidade – indica que as seitas são, simplesmente, o que elas parecem ser, ou seja, um grupo de malfeitores; a não-metodicidade (caracterizada pelo autor como a sabedoria vernacular do momento, as piadas ou anedotas) é perceptível no poder acordado incontestavelmente a um guru, e a frase desde que haja um guru no meio, é preciso desconfiar faz parte das máximas que escutei várias vezes; enfim, a acessibilidade (insistência segundo a qual toda a pessoa razoável deve chegar às conclusões assim reconhecidas) pode ser percebida pela expressão, bastante freqüente, de que todo mundo sabe disto.

4. Conclusões

A coerência proclamada da idéia geral do perigo que representam as seitas constitui, portanto, o discurso ostensivo dos experts de todos os tipos: na frente vêm os psiquiatras, seguidos pelo cortejo de testemunhos das vítimas que constroem, assim, a verdade dos fatos. Os signos exteriores de ”cientificidade” passaram dos argumentos sobre o funcionamento da lavagem cerebral – hoje em dia fora de uso – para sua manifestação mais moderna e menos contestável, a desestabilização mental. Da mesma forma, a definição sobre os habitantes das periferias enquanto marginais foi substituída pela de deficientes sociais (handicapés sociaux, no original). O princípio, entretanto, resta o mesmo: o poder indiscutível e perigoso que as atividades da seita, através da figura do guru, podem ter sobre o indivíduo.

Ao lado das “provas” de sofrimentos psíquicos e físicos fornecidas pelos especialistas e pelos testemunhos dos ex-adeptos e de suas famílias, são apresentados os documentos obtidos pelos jornalistas e realizados segundo a tática da câmera oculta, periodicamente repetidos nas transmissões de televisão consagradas ao assunto. Os segredos assim descobertos são, sobretudo, provas da má-fé destes grupos totalitários, que buscam somente obter benefícios econômicos das vítimas. Uma série de provas é assim apresentada à vista de todos; uma maneira a mais de demonstrar o quanto é indiscutível a verificação dos abusos cometidos pelas seitas. O simples questionamento com relação a tais provas indica, por outro lado, a má-fé da pessoa que interroga.

A coerência mística escondida nesse raciocínio resta, entretanto, a questão mais delicada e, talvez, a mais difícil a ser definida e delimitada. Por que uma sociedade em geral parece aderir a tais premissas? Por que todos os participantes do campo de discussão (independentemente da posição que ocupem na polêmica[7]) estão de acordo para aceitar a existência de seitas perigosas? Aqui é importante salientar que os membros de grupos considerados sectários, como os eckistas, aceitam este axioma simplesmente redirecionando a acusação: as seitas existem, mas elas são os outros grupos.

Parece-me que estamos aqui em presença de vários componentes que, embaraçados em um discurso, são difíceis de discernir e identificar: eles formam um núcleo duro raramente colocado em questão. Entretanto, o conjunto destas premissas compõe um julgamento extremamente poderoso. Régis Dericquebourg (1996) traz contribuições importantes sobre o panorama francês das objeções com relação aos grupos minoritários de crença. Segundo o autor, as resistências ao pluralismo na França residem em vários fatores ideológicos como, por exemplo, a tese da alienação social, o papel das instituições como as associações anti-seitas, a crise intelectual e a hegemonia da Igreja Católica, entre outros. Dericquebourg sublinha a oposição histórica às minorias religiosas, oposição esta que existe há muito tempo:

As perseguições às seitas sempre ocorreram. Os cátaros foram erradicados da paisagem religiosa; os primeiros Testemunhas de Jeová americanos eram passados no piche e em penas e expulsos das cidades. Alguns milhares de Testemunhas alemãs foram vítimas do nazismo. Em seu início, o Exército da Salvação foi acusado de cometer as piores abominações. Os ataques atuais contra as seitas das sociedades ocidentais e pluralistas são talvez apenas um novo episódio do conflito entre as seitas e as sociedades. Cada ressurgimento da hostilidade contra grupos minoritários religiosos remete a um contexto específico. (Idem.: 73)

Jean-François Mayer (1985) propõe uma hipótese interessante quando se interroga sobre a possibilidade de que as acusações atuais feitas contra as novas religiões sejam ou não relacionadas a estruturas míticas profundamente enraizadas no inconsciente coletivo. A este respeito, o autor lembra as acusações lançadas pelos protestantes contra os católicos nos Estados Unidos do século dezenove.

Nessa polêmica anti-católica, situada num contexto majoritariamente protestante, são quase os mesmos argumentos dirigidos atualmente às seitas aqueles utilizados contra as então práticas dos católicos: uma série de acusações são lançadas, tais como a influência do clero sobre os fiéis. Essa ação deliberada do poder manipulador dos padres sobre os fiéis, tidos como desprovidos de defesa (e, portanto, como vítimas) se manifesta através do controle dos primeiros, aptos a tiranizar e constranger por meio da prática da confissão. O fechamento de conventos e claustros ao olhar exterior – onde as pessoas poderiam ser mantidas prisioneiras contra sua vontade (idéia à qual se junta o clima de segredos e mistérios que cerca esses locais, dando vazão a fantasias e suposições sobre várias práticas duvidosas) e a exploração financeira da Igreja Católica (freqüentemente criticada por sua riqueza e avidez de poder temporal) são assim acusações graves e correntes dirigidas aos católicos daquele período.

O autor relaciona, portanto, a esse quadro a análise das acusações contra o Exército da Salvação, polêmica que ocorreu na Europa do final do século dezenove. A maior parte dos estereótipos citados mais acima contra os católicos foi retomada com relação aos membros do Exército da Salvação. Nos exemplos fornecidos por Mayer, podemos perceber igualmente as referências ao poder de atuação fanático do movimento sobre os adeptos. A alucinação religiosa e a separação dos indivíduos de suas famílias são traços de acusação constantes, assim como o poder de influência sobre as crianças e o desequilíbrio mental ocasionado pelas práticas plenas de fervor religioso dos membros do Exército da Salvação.

Segundo Mayer, nesses exemplos trata-se bem de um esquema mental preconcebido, partilhado há muito tempo e que retorna à cena pública regularmente. È importante reter essa ressalva feita por Mayer, uma vez que penso que o autor tocou no cerne da questão sem, no entanto, aprofundá-la como desejável. Com efeito, o que Mayer denomina como um esquema mental preconcebido (sem, entretanto, fornecer nenhuma conceituação mais precisa) resta ainda como uma indicação preciosa para pensarmos a questão das seitas sob o ângulo de uma história das idéias, que teriam se desenvolvido e mantido há muito tempo.

Nesse esquema de idéias, é necessário sublinhar um outro conceito sobre o qual não parece planar nenhuma dúvida, aquele da religião ou do religioso. Daniel Dubuisson (1998) discute largamente o assunto, argumentando o caráter especificamente ocidental das representações construídas em torno da noção do religioso, fundamentalmente européia e cristã. Desta forma, o autor, discutindo sobre o conceito do religioso, chega a uma reflexão mais razoável sobre a questão das seitas:

Os limites exteriores reconhecidos à religião são efetivamente tão delicados a traçar que aqui mesmo, no Ocidente, os juristas mais eminentes e os teólogos da mais alta especialização se revelam incapazes de dizer, hoje em dia, o que distingue uma religião de uma seita, embora eles pareçam interessados nesta distinção, e estejam sempre prontos a declarar que ela é indiscutível! (...) De fato, não falta às seitas senão uma coisa, o que não é em si um delito, e que não se situa no nível de sua definição ou de seus princípios: participar de, ou melhor ainda, representar a visão dominante de uma larga comunidade de indivíduos. Elas deixariam então ipso facto de ser consideradas como grupamentos minoritários ou ocultos. (Ibid.: 109-110).

Com efeito, o problema social das seitas aparece assim muito mais como uma questão de representações dominantes no seio de um campo de discussão específico. Neste campo, as igrejas tradicionais tentam evitar que as discussões tomem muita amplidão, uma vez que, elas também, poderiam arriscar muito. Na França, uma forte tradição laica e republicana reservou às igrejas o espaço de guardiãs dos bons modos; os espaços são, assim, definidos e separados. O lugar que resta é aquele de uma zona obscura, indefinida e fluida: o lugar ideal onde um mal desconhecido poderia se esconder. A um lugar ideal, uma figura ideal: as seitas são, justamente, o inimigo que é necessário combater.

O controle dos grupos sectários não pretende, portanto, um melhor conhecimento dos grupos denunciados como sectários pelo discurso oficial, eles são já conhecidos e reconhecidos: esse discurso hegemônico e naturalizado decidiu, há muito tempo, que eles ocupam o lugar da anomalia, do aberrante ou, ainda, do maléfico e do poluente no seio da sociedade.

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Recebido: 15/09/2007
Aceite final: 29/09/2007

Notas

[*] Texto apresentado sob o título “Les voyageurs de l’Âme: vitalité religieuse d’une mythologie moderne?” durante a 29ème Conférence - Sécularié et Vitalité Religieuse - Societé Internationale de Sociologie des Religions/ International Society for the Sociology of Religion - Leipzig (Alemanha) Julho 2007.

[**] Faculdades EST.

[1] A expressão ”Terrains Minés en Ethnologie” é, aliás, o título da revista l’Ethnologie Française (2001/1 – janvier/mars) consagrada e esta temática.

[2] Todas as citações originalmente em francês foram traduzidas livremente por mim.

[3] Segundo Daniel Boy et Guy Michelat : a escala da crença no paranormal compreende a crença em fantasmas, mesas girantes, encantamentos e a telepatia, a convicção que a ciência admitirá a realidade das casas mal-assombradas e da transmissão de pensamento, e que os espíritos dos mortos podem comunicar com os vivos . (BOY ET MICHELAT 1993: 214).

[4] Um cientista social entre ”uma tribo de cientistas do gênero dos Neuro-endocrinologae, variedade californiana” (LANDAIS in LATOUR, 1995)

[5] Da mesma forma, o estranhamento frente às fabulações míticas em torno de assassinatos de crianças, no início dos anos de 1980 no sul do Brasil e suas supostas implicações com rituais afro-brasileiros, serviu como baliza para a pesquisa de mestrado sobre o ciclo ritual de sacrifícios de animais na Quimbanda, em Porto Alegre/RS (RODOLPHO, 1994). Tratava-se de um universo que eu desconhecia e sobre o qual reinava igualmente um ”imenso preconceito alimentado pela população localmente dominante”...

[6] Este jornalista é também o realizador do programa Seitas e espionagem, difundido pelo canal aberto de televisão France 3, segundo o mesmo jornal.

[7] Aqui é interessante notar que este campo não é dividido, como parece num primeiro momento, entre os contra ou a favor das seitas. A priori, todos são contra; os atores que tentam se posicionar de forma mais neutra ou, ao menos, razoável e desprovida da emoção acusatória são, imediatamente, acusados de serem “a favor”. Entretanto, ninguém se coloca nesSa posição por vontade própria, se trata sempre de um espaço de acusação.