Experiência Religiosa e Crescimento Pessoal: Uma Compreensão Fenomenológica

Thais de Assis Antunes Baungart[*] []
Mauro Martins Amatuzzi[**] []

Resumo

O objetivo desta pesquisa foi entender em que sentido a experiência religiosa de católicos pode estar relacionada com o crescimento pessoal. Foram realizadas entrevistas não diretivas ativas com quatro pessoas praticantes da religião católica. Os participantes tinham mais de 18 anos e foram indicados por líderes religiosos. As entrevistas foram analisadas qualitativamente dentro de um enfoque fenomenológico. A experiência religiosa dos participantes mostrou-se relacionada com o crescimento pessoal num sentido de mudanças subjetivas. Tais mudanças trouxeram como conseqüência alterações nos comportamentos dos entrevistados, tais como: maior tolerância nos relacionamentos interpessoais, inserção em grupos sociais, autoconhecimento e empatia. Segundo os depoimentos, essas mudanças subjetivas proporcionaram uma melhora na qualidade de vida dos participantes.

Palavras-chave: experiência religiosa; desenvolvimento psicológico; fenomenologia.

Abstract

The purpose of this work is to understand how the catholics religious experience may be related to personal growth. Non active directive interviews were conducted on four catholic practitioners. The participants were over 18 years old and were appointed by religious leaders. The interviews were analyzed qualitatively under a phenomenological focus. The religious experience of the participants was found to be related to the personal growth as to subjective changes. As consequence, behavioral alterations were brought forth such as: higher tolerance in interpersonal relationships, association to social groups, self knowledge and empathy. According to testimonies those subjective changes entailed improvements in the life quality of the participants.

Keywords: religious experience, psychological development, phenomenology.

1. Introdução

Esta pesquisa é parte da dissertação de mestrado da autora que trabalhou na área da Psicologia da Religião com o objetivo de analisar, fenomenologicamente, a experiência religiosa de católicos em sua relação com o crescimento pessoal através de depoimentos colhidos em entrevistas. Para este estudo, crescimento pessoal está sendo entendido como desenvolvimento psicológico pessoal.

Benkö (1981:14), em seus estudos, afirma que “Deus não é objeto de investigação estritamente científica, porém, toda vivência religiosa envolve um ser humano e, como experiência humana, pode ser objeto de investigação científica”. Partindo de tal afirmação como pressuposto, a autora teve como foco de suas análises a experiência humana num contexto específico de uma prática religiosa e, para esse estudo, foi escolhida a prática religiosa católica romana.

Segundo Valle (1998), a tarefa da Psicologia da Religião, no âmbito das Ciências Humanas, é estudar a origem e a natureza da mente religiosa; sendo assim, essa ciência não procura definir o que é a conduta religiosa, e sim por que e como alguns fenômenos religiosos se dão no interno da estrutura psicológica humana. A Psicologia da Religião, portanto, não se preocupa com o teor filosófico ou teológico do religioso enquanto tal; indaga, isto sim, sobre a estrutura psicológica que está por trás das formas de vivência e experiência religiosa.

Este mesmo autor, em seu livro “Psicologia e Experiência Religiosa”, utilizou o vocábulo alemão Erlebnis para explicar o que seria, para ele, a experiência religiosa. A palavra Erlebnis significa experiência, e é utilizada pelos alemães sempre que a experiência está no sentido de algo fundo, vivenciado desde dentro e dotado de um sentido ou valor evidente em si para o sujeito. A palavra traz em si um sentido de emocionalidade e é traduzida nos dicionários por vivência. Neste sentido, a ênfase está mais na vivência da pessoa do que naquilo que lhe é ensinado ou aprendido a partir de fora, ou seja, pelos sentidos fisiológicos ou influências sociais. Utilizaremos neste artigo o termo experiência religiosa de maneira semelhante à definição de Valle; no entanto, cabe ressaltar que tal tema pode ser compreendido de diferentes maneiras. Pode-se entendê-lo como uma experiência única, extremamente significativa na vida de um indivíduo, ou seja, uma experiência marcante em um determinado momento de sua vida que pode ou não trazer como conseqüência mudanças em diversos aspectos do modo de viver da pessoa. Outra forma de se entender a expressão experiência religiosa, de maneira geral, é pensando nos valores, conceitos, tradições e costumes transmitidos ao indivíduo pela religião a que este pertence. A experiência religiosa, em geral, se daria de acordo com a vivência do sujeito dentro do grupo religioso. Neste contexto, entendeu-se, para este estudo, a experiência religiosa como se referindo ao conjunto de significados que foram se formando no indivíduo pelo fato dele ter se encontrado com a tradição religiosa cristã na sua modalidade católica romana e ter se inserido nela, vivenciando sua religiosidade nesse contexto.

2. Método

A maneira pela qual se conduziu este estudo aponta, naturalmente, para a utilização da abordagem qualitativa e do método fenomenológico. Segundo Croatto (1992), para se falar de religiosidade é necessário uma linguagem fenomenológica, uma vez que tal linguagem procura se aproximar das vivências subjetivas da pessoa.

Segundo González Rey (2002), as construções qualitativas se convertem em recursos indispensáveis para se entrar em uma zona de sentido que é oculta pela aparência. Tal definição se encaixa no objetivo desta pesquisa, que pretende compreender qual o sentido da experiência religiosa para o crescimento pessoal dos participantes.

O método fenomenológico dispõe de mais de uma tendência, porém, para este estudo, foi utilizada a tendência empírica (AMATUZZI, 1996), pois as conclusões foram, principalmente, baseadas na análise dos depoimentos dos participantes sem a participação dos mesmos.

Tendo este estudo um caráter fenomenológico/exploratório, participaram da pesquisa quatro pessoas católicas indicadas por líderes religiosos. Os participantes deveriam ter mais de 18 anos e poderiam ser do sexo masculino ou feminino.

No que diz respeito aos procedimentos metodológicos, as pesquisas qualitativas de campo exploram, particularmente, as técnicas de observação e entrevistas devido à propriedade com que esses instrumentos penetram na complexidade de um problema (RICHARDSON, 1999). Assim, o instrumento utilizado neste estudo foi a entrevista não diretiva ativa, que teve a seguinte pergunta disparadora: Estou fazendo uma pesquisa sobre experiência religiosa e desenvolvimento/ crescimento pessoal; o que você pode me contar sobre isso de acordo com a sua experiência?

A análise das entrevistas foi de natureza fenomenológica e, neste sentido, foi privilegiado o intencional ou vivido. Os dados coletados durante a entrevista seguiram um processo indutivo, ou seja, a pesquisadora não se preocupou em buscar evidências que comprovassem hipóteses teóricas, no entanto, o fato de não existirem hipóteses ou questões formuladas a priori não implicou na inexistência de um quadro teórico. O desenvolvimento do estudo foi afunilando-se: no início houve questões ou focos de interesse mais amplos, que no final foram se tornando mais diretos e específicos (DENCKER, 2001).

Por se tratar de uma pesquisa orientada para a descoberta, pretendeu-se entrar em contato com a realidade única vivida por cada participante para que se pudesse, a partir daí, chegar a uma estrutura do vivido ou a uma elaboração sobre a natureza do fenômeno.

Para uma melhor compreensão das análises realizadas, será fornecida uma breve apresentação dos depoimentos realizados. Cabe ressaltar que todos os nomes utilizados neste estudo são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.

3. Apresentação dos Depoimentos

O primeiro entrevistado foi André, 41 anos, casado, pai de dois filhos e gerente em uma empresa multinacional. Durante a entrevista, André descreveu sua experiência religiosa e demonstrou o quanto esta esteve relacionada com outros aspectos de sua vida. Começou falando sobre sua infância, família e sobre a questão religiosa dentro de sua casa. Descreveu sua adolescência e os envolvimentos amorosos que teve naquela época da vida.

Segundo André, o início de sua vida religiosa se deu ao conhecer aquela que atualmente é a sua esposa, que participava de uma comunidade católica. Para conquistá-la, começou a freqüentar a igreja e, assim, foi se aproximando cada vez mais da religião. André relatou uma época em que teve uma promoção no emprego e, passada a crise financeira, sentiu uma mudança radical na sua condição social. Tal situação o deixou muito confuso em relação a diversos aspectos de sua vida e, a partir disso, começou a questionar sua vida religiosa.

A segunda entrevista foi com Maria. Ela é solteira, 26 anos, não tem filhos e mora com os pais. Sua formação é de nível superior e trabalha numa escola pública com crianças. Maria falou sobre sua experiência religiosa pessoal a partir da religiosidade familiar. Relatou sentimentos de controvérsia entre os membros da família no que se refere à orientação religiosa bem como nas práticas estabelecidas pela Igreja Católica. Falou sobre seu interesse pela religião desde criança e como conseguiu amadurecer sua experiência religiosa até os 26 anos.

A terceira entrevistada foi Fátima. Casada, 40 anos e dois filhos. Sua formação é de nível superior, mas, atualmente, não está exercendo sua profissão. Sua atividade é trabalhar com crianças na comunidade católica à qual pertence. Fátima iniciou relatando sua história de vida familiar e sua busca pela espiritualidade. Segundo ela, a família e, principalmente, a mãe, tiveram certa influência na sua experiência religiosa, pois, cada membro da família tinha um ponto de vista diferente sobre questões relacionadas à religião. Fátima, a princípio, sentiu-se mais atraída pela religião adotada pela mãe e, foi a partir dessa influência que ela iniciou sua busca por um crescimento espiritual.

A última entrevistada foi Neuza. Com 75 anos, é casada, tem dois filhos casados e mora com o marido. Seu grau de instrução é o 1º grau incompleto (até a 4ª série do ensino fundamental). Durante toda sua vida, trabalhou como vendedora e, agora que esta aposentada ministra aulas de pintura além de cuidar da casa.

Houve uma necessidade, por parte da entrevistada, em descrever alguns aspectos de sua vida antes de falar sobre sua experiência religiosa. A maior parte da entrevista foi marcada por esse relato da história de vida e somente ao final do depoimento é que Neuza falou sobre sua experiência religiosa e a relação que ela faz com seu crescimento pessoal.

4. Análise e Discussão dos Depoimentos

A análise e discussão dos depoimentos foram baseadas na Teoria do Desenvolvimento religioso proposta por Amatuzzi (2001). Este autor, em seu artigo “Esboço de Teoria do Desenvolvimento Religioso”, explica que cada um pode ter uma história de vida diferente a contar, e que, no entanto, para alguns, nessas histórias ocorreram experiências religiosas num sentido mais específico. Seriam acontecimentos marcantes ou transformadores no campo religioso assumidos com certo significado, ou seja, relacionados com o sentido último. Nessa acepção mais específica, uma determinada experiência religiosa corresponde à vivência de um encontro pessoal com outra dimensão da realidade, de que decorre uma compreensão mais radical das coisas e que é, em geral, referido a um pólo transcendente do sentido, denominado Deus. Foi nesse sentido de experiência religiosa, descrito por Amatuzzi, que se baseou o presente estudo. Nos quatro depoimentos, foi possível observar que a relação entre a experiência religiosa e o crescimento pessoal é abordada a propósito de acontecimentos concretos, vivenciados no campo religioso e compreendidos pelos participantes como um encontro com o transcendente.

4.1. Religiosidade Familiar

Nos depoimentos de André, Maria e Fátima, foi possível perceber que a questão da religiosidade no núcleo familiar se fez muito presente. Esta questão é muito importante para a compreensão do crescimento pessoal quando relacionado com a experiência religiosa de cada entrevistado. Os três participantes relataram terem vivenciado, de maneiras diferentes, a experiência religiosa dentro do contexto familiar e atribuem à família, os primeiros contatos com a religiosidade.

Segundo Amatuzzi (2000), podemos entender o desenvolvimento religioso relacionando-o com as fases do desenvolvimento pessoal e, nesse sentido, para a criança com idade até seis anos aproximadamente, a questão religiosa só existe no núcleo familiar, sendo que a religião da família, nessa idade, começa a ser apropriada através de símbolos (imagens sintéticas) que resumem seu significado. Foi nesse sentido que os participantes relataram o início da vida religiosa.

Os pais tentam posicionar para o filho alguma coisa no sentido religioso. Lembro que quando criança, eles me ensinavam religião” [depoimento de André 21/02/2005].

Começou como um processo natural. Fui batizada na Igreja Católica, tive uma família católica praticante, aprendi tudo com minha família desde muito cedo” [depoimento de Fátima, 29/05/2005].

Minha família sempre foi muito religiosa, e por causa disso eu achava que também deveria ser religiosa” [depoimento de Maria, 06/04/2005].

Durante a análise dos depoimentos, observamos sentimentos de incoerência percebidos pelos entrevistados (na idade adulta) com relação às orientações religiosas por parte de seus familiares. Para todos eles, embora a família tenha sido a primeira fonte de contato com a religiosidade, esta se mostrou muito incoerente e desestruturada no que se refere às questões religiosas, o que gerou, em todos, sentimentos de desorientação espiritual durante a infância e também na idade adulta. Segundo Amatuzzi (2000), tais sentimentos de desorientação religiosa decorrem, na maioria das vezes, em virtude das atitudes e comportamentos dos pais que também costumam ser de desorientação.

Os meus pais diziam ser católicos. Mas dentro da minha casa eu nunca vi o Catolicismo. Quando você faz a primeira comunhão, aquilo te dá certa noção sobre religião, mas por outro lado, seus pais dizem outra coisa para você, coisas que não batem com a religião, mas eu só fui perceber isso depois [depoimento de André].

“Meu pai sempre foi um homem muito fiel a Deus, e quando ele passou por um problema de saúde, buscou outras religiões, principalmente dentro do Espiritismo. Recebia passe e aquelas coisas todas, eu achava aquilo muito incoerente” [depoimento de Maria].

“A princípio a religião era importante dentro da minha casa, mas, muitas coisas da religião não eram feitas, meus pais não achavam que era importante, era uma coisa mais formal, ai começa a dar uma confusão, mas isso quando eu tinha uns 14 anos” [depoimento de Fátima].

Ainda segundo a Teoria do Desenvolvimento Religioso (AMATUZZI, 2000), é na adolescência que a pessoa começa a questionar a religião dos pais juntamente com toda a identidade que lhe foi recebida. Há uma busca por uma religiosidade definida a partir de escolhas pessoais. Durante a adolescência, o desafio central é passar de uma indefinição (ou definição a partir de fora), para uma definição a partir de dentro, descobrir uma verdade pessoal mais profunda. A percepção de incoerência religiosa na família de origem é questionada nessa fase, como aconteceu com os participantes deste estudo.

Neste sentido, André e Fátima procuram, em sua vida adulta, transmitir para seus filhos um tipo de vivência religiosa diferente da que tiveram em suas famílias de origem. Os entrevistados mostram-se muito preocupados em conseguir transmitir para os filhos uma religiosidade mais estruturada e direcionada. Na idade adulta, o desafio central é passar da esterilidade à fecundidade, descobri-se gerador, criar os filhos e transmitir os cuidados necessários. No caso da religião, esses cuidados se referem à transmissão da religiosidade dos pais para os filhos. O enraizamento religioso tende a se aprofundar, aproximando o sistema de crenças à vida cotidiana da pessoa (AMATUZZI, 2000).

“Eu gosto de explicar a missa para os meus filhos. Quero que eles entendam o motivo deles estarem lá. Eu gosto de explicar alguns momentos importantes como a hora da consagração, eu me preocupo em fazer com que eles aproveitem mais do que eu aproveitei” [depoimento de Fátima].

O depoimento de Neuza, neste sentido, se fez diferente dos demais. Nele, podemos observar outra direção para se falar da experiência religiosa. A entrevistada procurou enfatizar seus sentimentos nas diversas etapas de sua vida, no entanto, só veio a falar de sua experiência religiosa ao final da entrevista e, diferente dos outros entrevistados, só teve contato com a religião católica na fase adulta, o que fez de seu depoimento diferente dos demais no que se refere à estrutura de conteúdo. Pode-se notar que Neuza sentiu necessidade de contar uma parte de sua história de vida, mesmo não relacionada diretamente com a experiência religiosa, o que nos faz pensar que tal depoimento teve um enfoque mais terapêutico para a participante, o que é coerente com a metodologia das pesquisas qualitativas. Neuza não se referiu à religiosidade da família de origem em seu relato, preferiu falar sobre as dificuldades financeiras por que a família passou durante sua infância, o que nos leva a pensar que tal assunto foi muito relevante para a sua história de vida.

Eu nasci numa família de imigrantes italianos, era um ambiente muito pobre, no qual a luta pela sobrevivência foi muito dura. Tive uma infância triste, pobre, sofrida, com muito trabalho. Para você ter uma idéia, eu trabalho desde os meus cinco anos de idade [depoimento Neuza].

Durante a infância (dos sete aos 12 anos aproximadamente), a experiência básica é a coragem e a iniciativa. O que se espera dessa fase, é que a criança adquira maior segurança interior e auto-estima. A religião é incorporada através de histórias que são contadas pelos pais (AMATUZZI, 2000). Como Neuza vivenciou uma relação difícil com os pais, é muito provável que não houvesse um momento de contar histórias para os filhos, o que pode ter provocado algum prejuízo nessa etapa da vida, como por exemplo, o desenvolvimento de uma baixa auto-estima e sentimentos de insegurança.

Eu era muito carente. Carente de carinho de pai, mãe e irmão. Mas como a vida era uma luta, era cada um por si, não dava para meus pais ficarem dando atenção para todos os filhos. E era muito difícil, tinha muita doença na família. Eu era muito gaga e por causa disso, eu quase não falava, sofri humilhações na escola e eu chorava muito. Quando eu ia me queixar para minha mãe, ela dizia: “ah, pára com isso menina! que bobagem, tanta coisa mais importante para a gente se preocupar!” E ai eu me lembro que eu me recuava [sic], ficada ainda mais calada [depoimento de Neuza].

4.2 Sociabilidade

Paiva (2005), ao explicar as diferenças entre os termos religiosidade e espiritualidade, diz que esta última, por não implicar um laço forte com uma instituição específica, não ofereça o apoio social que a religião institucionalizada oferece para a saúde física e mental. Nesse sentido, observamos que os relatos de André e Maria se assemelham quanto ao suporte que estes encontraram na religião para o desenvolvimento da vida social. André encontrou na igreja a namorada que posteriormente veio a se tornar sua esposa e, segundo seu relato, foi importante que ele encontrasse a namorada dentro da igreja, o que revela a existência de valores morais introjetados a partir da experiência religiosa.

Eu pensava a vida e o relacionamento com as mulheres de uma forma. Até o dia em que eu conheci a minha esposa. Ela era diferente, ela vivia dentro da igreja, e ai eu me apaixonei por ela. Eu já tinha tido contato com outras mulheres e por isso, pude perceber nitidamente a diferença das ações, do conversar, de uma pessoa que realmente considera a religião como parte da sua vida de outra que usa a religião como rótulo. [depoimento de André].

No caso de Maria, a igreja também foi o lugar onde ela pode se socializar. Foi na igreja que, durante sua infância, ela encontrou crianças para brincar, pois, devido à superproteção da mãe, ela não tinha permissão para se socializar com outras crianças. Neste sentido, fica evidente que a religiosidade da participante favoreceu o desenvolvimento pessoal a partir da experiência religiosa.

Eu não tinha amizade fora da família, não tinha amigos. Eu não podia ir à casa de ninguém, ninguém vinha na minha casa. E foi na igreja que eu comecei a me envolver com outras pessoas, a ter amigos” [depoimento de Maria].

4.3. Prática Religiosa

Outro aspecto importante para a compreensão do desenvolvimento pessoal dos entrevistados é a prática religiosa. Nos quatro depoimentos, percebe-se a importância em praticar a religiosidade no dia-a-dia. Todos os entrevistados enfatizaram que a experiência religiosa não faz sentido sem uma prática religiosa.

Para André, tocar bateria na igreja é um meio de se encontrar com Deus, de ter um relacionamento real com o transcendente, ou seja, é uma forma concreta de exercitar sua religiosidade.

O que me fez acreditar profundamente na presença de Deus na vida, foi quando eu comecei a tocar bateria. Eu sempre quis aprender a tocar bateria e eu não tinha tido a oportunidade até então” [depoimento de André].

Para Maria, o encontro com Deus ocorreu através do relacionamento com outras pessoas. Ela sentiu necessidade de colocar em prática as condutas de vida que aprendeu na igreja para que sua religiosidade fizesse sentido. Fowler (1992, apud VALLE, 2005) ressalta que a fé é uma orientação para a pessoa. Esta oferece um propósito e metas para as lutas e esperanças, para os pensamentos e ações, é uma forma ativa de ser e comprometer-se, um meio para se adentrar e modelar novas experiências de vida.

“Para mim, a fé só tem sentido na vida, no dia–a-dia, porque se não, não tem sentido” [depoimento de Maria].

Fátima pratica sua religiosidade ministrando aulas para as crianças na igreja. Desse modo sente que, ao ensinar as crianças, ela está tendo um encontro verdadeiro com Deus. Sua preocupação está em transmitir uma religiosidade coerente e estruturada para as crianças na catequese. Observa-se uma integração da religião com a vida e a necessidade de auto-realização, o que é comum no desenvolvimento religioso de adultos (AMATUZZI, 2000).

Neuza pratica sua a religiosidade através de orações. Para ela, freqüentar as missas diariamente e seguir o exemplo de vida de Jesus Cristo é o que torna sua religiosidade mais concreta. Aqui, é observada uma necessidade de seguir modelos, de ter parâmetros quanto à conduta de sua vida.

Hoje eu sigo o que Jesus fala: seja uma nova pessoa, perdoe, perdoe sempre” [depoimento Neuza].

4.4. Experiências Corporais da Religiosidade

As experiências religiosas dos participantes também se assemelham muito quanto às sensações físicas. Estas foram entendidas pelos participantes como manifestações concretas da presença de Deus. Todos relataram terem sentido, fisicamente, sensações corporais diferentes em algum momento da experiência da religiosidade. Para os entrevistados, essas sensações foram entendidas como uma forma de comunicação com Deus.

Minha mãe insistiu para eu tomar o remédio e eu não tomei. Hoje, eu acredito que não fui eu quem falou isso para ela. Eu era criança, ingênua e eu não iria falar com tanta firmeza, com tanta convicção, fui muito teimosa! E eu creio que foi pelas mãos de Maria, eu era só uma criança, não iria conseguir sozinha, foi Ela quem falou por mim, Ela foi a minha boca [depoimento de Fátima].
Eu não sei dizer o que, mas eu senti que alguma coisa dentro de mim estava diferente. Era uma força que passava dentro do meu corpo, algo que me deixava inquieta. O que eu sei é que eu entrei em Fátima de um jeito e sai de outro. E foi ai que começou a minha experiência com Deus, com Jesus e Nossa Senhora [depoimento de Neuza].
Eu senti uma coisa muito diferente, uma sensação que eu nunca mais senti. Foi como uma energia dentro de mim que vinha das pontas dos meus pés e corria por dentro. Sabe aquela sensação de formigamento nos pés e nas mãos? Quando parece que fica adormecido? Era mais ou menos isso, eu não sei te explicar direito, só sentindo para você entender. Eu sentia aquilo no meu corpo inteiro, principalmente no peito e depois senti meu coração disparar. Eu sei que essa foi uma manifestação física que eu senti naquele momento durante a missa [depoimento de Fátima].

4.5 Crescimento Pessoal

Após relatarem suas histórias de vida, os entrevistados procuram relacioná-las com seu desenvolvimento pessoal e, neste sentido, muitos aspectos do crescimento psicológico mostraram-se semelhantes, sendo que, todos enfatizaram a questão da mudança de vida e visão de mundo como resultado de um crescimento pessoal. Em todos os relatos observa-se uma religiosidade latente colocada pela família durante a infância. Esta religiosidade um dia foi vivenciada de forma explícita, e isso colaborou para que os entrevistados tivessem um amadurecimento emocional, ou seja, um desenvolvimento pessoal a partir de mudanças subjetivas e comportamentais.

André relatou que o maior crescimento que teve foi a mudança de percepção em relação à família e ao trabalho. Na prática, sentiu que seus comportamentos foram se modificando e isso fez com que ele tivesse uma melhor qualidade de vida.

A religião permite um crescimento interior. É um crescimento de sentimentos, uma mudança de percepção. Eu consegui me colocar no lugar de outras pessoas, entender um pouco mais a vida, entender as dificuldades que a vida proporciona, e também, ao mesmo tempo, me deu sabedoria para saber como lidar com as situações que me aparecem [depoimento de André].

Maria enfatizou que seu desenvolvimento pessoal ocorreu principalmente no campo do autoconhecimento, pois, ao entrar em contato com a espiritualidade, ela começou a refletir sobre questões existenciais e hoje sente que, sem a religião, essas questões ficariam sem respostas.

E eu vivi esses dez anos assim, crescendo enquanto pessoa, conversando comigo mesma. Eu acredito que sozinha não teria nem chegado a perceber que eu não sabia quem eu era. Foi na oração que eu percebi que eu não sabia quem eu era. Na religião eu encontrei a força para agir [depoimento de Maria].

Fátima relatou que seu crescimento pessoal ocorreu através de uma busca pelo transcendente e que, sem essa busca, ela não conseguiria sentir o mundo como sente hoje. Sua experiência religiosa proporcionou uma nova maneira de lidar com os problemas cotidianos e, à luz do que compreende hoje, foi somente ao entrar em contato com uma religiosidade que fez sentido em sua vida que ela conseguiu mudar algumas atitudes e sentir o mundo de outra maneira.

Eu acho que a minha busca pela espiritualidade trouxe principalmente amadurecimento. Porque você só se desenvolve quando começa a entrar em contato com as coisas do mundo, quando tem sentimentos envolvidos. Foi nesse momento de busca, de sofrimento e mudanças que eu acabei crescendo. Toda a minha busca foi necessária. Antes eu era uma pessoa mais insegura, sinto que ainda sou, mas, hoje eu tenho Jesus do meu lado, hoje eu sinto o meu anjo da guarda me dando a mão. Hoje eu não sou uma pessoa totalmente segura de tudo o que eu faço, eu tenho os meus medos, meus defeitos, mas hoje eu luto, não fujo com tanta facilidade como eu fazia antes, e tudo isso mudou porque eu sinto que tem alguém mais forte lutando ao meu lado, junto comigo. Eu diria que eu nasci de novo! [depoimento de Fátima].

Para Neuza, o crescimento pessoal ocorreu junto com o desenvolvimento religioso. De acordo com sua compreensão, esse desenvolvimento pessoal só ocorreu quando ela pôde sentir que na religião encontraria apoio para lidar com suas dificuldades emocionais. Nesse sentido, pode-se entender que Neuza se desenvolveu, psicologicamente, à medida que conseguiu desenvolver um auto-apoio para lidar com algumas questões de sua vida que ainda não estavam totalmente resolvidas. Segundo Amatuzzi (2000), durante as fases do desenvolvimento religioso, o desafio central do idoso é passar dos apegos à libertação, descobrir o que é simplesmente viver, independente de fatores outros. A conseqüência disso é uma sensação de serenidade e sabedoria. A religião torna-se uma relação experimentada na humildade diante do mistério, como ocorreu com Neuza.

A gente só cresce enquanto pessoa quando realmente sente que tem algo mais forte nos ajudando a crescer. Você pode ter muitas experiências na vida, mas, nenhuma destas experiências te ajuda a amadurecer os seus sentimentos, nenhuma te ensina a olhar para uma pessoa que te fez sofre durante uma vida toda com olhos de perdão e compreensão. Foi exatamente esse crescimento que a religião me proporcionou. Eu aprendi a sentir o mundo de outra maneira, mais sereno [depoimento Neuza].

Amatuzzi (1997:35) ressalta que “a experiência religiosa tem uma repercussão direta na vida da pessoa. Ela é tal que transforma ou modifica a vida”. Esta proposição vem explicar o sentido de mudança subjetiva relatado pelos participantes deste estudo, ou seja, as transformações internas vivenciadas por eles foram tão significativas que a conseqüência foi um crescimento pessoal no sentido de mudança de visão de mundo com a conseqüente modificação de suas ações cotidianas. “A experiência religiosa abre a pessoa para um mundo inteiramente novo e diferente do cotidiano, do qual só é possível dar conta a partir de dentro dele mesmo” (AMATUZZI, 1997:37). Nesse mesmo sentido, Teixeira (2005) ressalta que a grande obra da espiritualidade é justamente sensibilizar a pessoa para captar o outro lado das coisas, perceber aquilo que está sempre presente, mas escapa ao olhar desatento. Para o autor, fazer a experiência do mistério gratuito não é romper com o mundo e a realidade envolvente, mas sim entrar em profunda comunhão com estes, como ocorreu com Neuza, que a partir da experiência religiosa conseguiu mudar seu olhar em relação ao mundo e as pessoas a sua volta e com isso obteve maior amadurecimento pessoal. Teixeira (2005:19) explica que

na trajetória de muitos dos buscadores espirituais há a presença de um movimento de saída de determinada perspectiva de vida e a retomada de um novo caminho, que possibilita um olhar distinto sobre tudo, capaz de perceber o abraço generoso e envolvente do Mistério.

Dessa forma, podemos dizer que a experiência religiosa proporcionou aos participantes uma mudança de visão de mundo que só pode ser compreendida a partir de dentro da própria vivência da pessoa (diretamente ou por compreensão empática).

5. Conclusão

Concluímos que a experiência religiosa dos participantes esteve relacionada ao desenvolvimento pessoal num sentido de mudanças subjetivas, particulares e singulares que trouxeram, como conseqüência, alterações comportamentais na vida cotidiana dos entrevistados. Essas mudanças de comportamento foram sentidas pelos participantes como algo importante para melhora da qualidade de vida.

É interessante observar que envolvendo o divino, o transcendente ou o mais profundo do Eu, a experiência religiosa aparece como algo que ultrapassa o plano das idéias, sendo difícil para os participantes descrevê-la tal e qual foram vivenciadas. Por ir além do plano das idéias, usar apenas a linguagem verbal ou escrita para transmiti-la, é como reduzi-la a um contexto empobrecido de significado. Dessa forma, não podemos atribuir à experiência religiosa um caráter passivo ou uma relação mágica de causa e efeito na qual, por acaso, o sujeito vivencia algo diferente e de repente não é mais o mesmo. Para reforçar a compreensão de mudanças subjetivas relatadas pelos participantes, nos reportamos a Catalan (1999). Este autor ressalta que uma experiência religiosa autêntica tende a ser transformadora. Tal experiência poderia ser entendida como uma conversão que não tem nada de mágico e que possibilita ao indivíduo um voltar-se para Deus e um desviar-se de tudo o que possa interferir negativamente nessa relação.

É importante ressaltar que os resultados desta pesquisa não sugerem uma relação simples e direta entre experiência religiosa e transformação existencial, nem apontam exclusivamente para uma relação geral e positiva entre experiência religiosa e comportamento saudável. O que podemos afirmar, com este estudo, é que a experiência religiosa dos participantes contribuiu para uma mudança subjetiva com conseqüente modificação de comportamentos e que tais mudanças podem ser entendidas como uma faceta do crescimento psicológico. Podemos afirmar com segurança que a vivência religiosa proporcionou uma melhora na qualidade de vida dos entrevistados à medida que estes modificaram seu olhar em relação ao mundo. Concordamos com Hill e Butter (1995: 141) quando afirmam que “tanto a experiência religiosa como a prática do comportamento saudável são entidades com diversas ramificações, cada uma envolvendo uma variedade de crenças, valores, atitudes e comportamentos”.

Destacamos, ainda, que a legitimação da experiência religiosa, como uma variável de pesquisa, nos revela que desprezar a centralidade e a importância dessa variável na vida humana seria negligenciar uma faceta do humano.

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Recebido: 24/09/2007
Aceite final: 3/12/2007

Notas

[*] Thais de Assis Antunes Baungart é psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Campinas. Doutoranda em Psicologia como Profissão e Ciência pela PUC-Campinas.

[**] Mauro Martins Amatuzzi é psicólogo, doutor em Psicologia pela Unicamp, professor titular do programa de pós-graduação em Psicologia da PUC-Campinas.