Imagens que falam: Uma aproximação da Iconografia Hindu

Joachim Andrade[*] []

Resumo

Apesar da larga utilização de imagens iconográficas hindus por brasileiros, o estudo da iconografia hindu não tem recebido atenção suficiente no círculo acadêmico local. A iconografia hindu é muito vasta e complexa, e compreende os três mundos: deuses, humanos e animais com todas suas atividades. Os ícones hinduístas são símbolos vivos, portanto mutli-valentes. Sendo simbólicos, podemos estudá-los por diferentes vieses como antropologia, sociologia e ciências da religião. Este artigo visa esclarecer e estabelecer uma compreensão geral da iconografia hindu, conduzindo o leitor para uma viagem panorâmica da Índia. Fazemos uma tentativa de analisar o templo - lugar da preservação dos ícones -, e concluímos o artigo dando atenção especial ao ícone de Shiva Nataraja, o dançarino divino.

Palavras-chave: iconografia, símbolos, ética, estética, religião.

Abstract

In spite of using innumerous iconographic images of Hindu divinities by the Brazilians, the study of Hindu iconography has not received enough attention in the academic circle. The Hindu iconography is very vast and complex, it comprises three worlds: gods, humans and animals with all their activities. The Hindu icons are living symbols, therefore they are multivalent. Being symbols we can study them through different approaches such as anthropology, sociology and sciences of religion. This article tries to clarify and establish a general idea of Hindu iconography guiding the reader to a panoramic journey of India. An attempt is made to analyze the temple, where the icons are preserved and the article concludes giving special attention to the icon of Shiva Nataraja, the divine dancer.

Key words: Iconography, Symbols, Ethics, Aesthetics, Religion

1. Introdução

A iconografia hindu é vasta e, seu estudo, uma tarefa complexa. Os inúmeros ícones de divindades hindus esculpidos em rochas, bronze e outros materiais, carregam um simbolismo muito grande. Qualquer objeto que receba kunkum,[1] seja de pedra, metal ou planta, torna-se o “Deus presente” para um aldeão da Índia. Assim, a importância não está no objeto em si, mas na fé que o indivíduo nele deposita. Os ícones hinduístas são uma simbologia viva, são multi-valentes. Esta rica simbologia obriga os cientistas da religião a analisarem de perto as imagens e a compreenderem o espírito que se encontra por trás de sua criação. A estreita ligação entre a religião e a arte em todo o mundo sugere que um estudo da iconografia nos pode trazer um entendimento das diversas práticas religiosas às quais a arte se dedica.

No Ocidente, inclusive no Brasil, as imagens das divindades hinduístas parecem exercer uma impressão um tanto negativa. Algumas imagens, como a de Hanuman, Deus macaco, ou Ganesh, Deus elefante, ou Kali, Deusa da Morte, chegam mesmo a ser ridicularizadas.[2] Por outro lado, há também no Ocidente um aumento no volume de trabalhos de arte e de escultura hindu, e um interesse crescente no entendimento de seus significados. Muitos brasileiros possuem conhecimento dessas imagens; não raro as encontramos nos espaços onde se praticam o Yoga e a meditação. Algumas representações de deuses são colocadas na porta da entrada, como a de Ganesh, e junto ao cofre, como a de Lakshmi (deusa dos bens materiais).

O objetivo deste pequeno artigo é esclarecer e estabelecer uma compreensão geral e adequada sobre a iconografia hindu. Pretende-se, primeiramente, conduzir o leitor em uma viagem panorâmica pelo universo iconográfico que se estende de norte a sul na Índia; em um segundo momento, faremos uma análise das razões e contextos que levaram o Hinduísmo a investir na sua construção; dos pré-requisitos necessários aos artistas para esculpir, e dos objetivos da criação das imagens. Analisaremos sucintamente o tema do templo, usualmente o lar da preservação dos ícones. Por fim, será apresentada a Tríade hindu, com ênfase na terceira imagem, a do Deus Shiva, em uma análise especifica do ícone Shiva Nataraja: o dançarino divino.

2. Considerações sobre a arquitetura hindu

Na Índia, as imagens falam. No Hinduísmo, a imagem de um deus é seu símbolo direto, ou melhor, na representação de um deus pode-se ver seu espírito. “(...) quando a imagem é invocada, adorada e zelada com cerimônias rituais tais como banho, alimentação e vestuário, na realidade é o próprio deus que está sendo servido desse modo” (JANSEN, 1993, p.13). Deuses utilizam as imagens como meios para se comunicar conosco. Em todo o subcontinente indiano a arquitetura hindu é uma manifestação de intensa espiritualidade. É a expressão da fé religiosa cujos ritos estão diariamente presentes nas vidas das multidões. O melhor exemplo da arquitetura indiana são portanto, os templos, construídos através dos séculos e hoje encontrados em todo lugar na Índia - nas cidades e vilas, são testemunhas vivas da devoção de tantas comunidades religiosas a seus deuses multiformes. Esses magníficos monumentos são uma rica e variada contribuição à herança indiana da arquitetura.

Segundo a crença dos hindus, os ícones são instrumentos favoráveis à focalização da atenção da mente e do coração em Deus. A arte é uma das principais expressões dos fiéis do Hinduísmo em sua busca espiritual. Segundo Grunwedel, "A base mais importante para o desenvolvimento de uma forma de arte independente, de qualquer povo, está em sua religião" (apud DAS, 1995, p. 23). A expressão da arte no Hinduísmo nasce da crença que os hindus têm na divindade sem nome ou forma (nama e roopa), que, portanto, não pode ser imaginada, concebida e compreendida pela mente. A criação de ícones e imagens das divindades nas pedras ou noutros materiais então dão, de uma forma concreta, nome e forma a essa divindade; a arte, desse modo, ajuda a compreender esta divindade. "Iconografia é a interpretação da arte religiosa de uma raça, expressando-se de múltiplos modos. […] Nos primórdios, a prática da arte entre os homens era de caráter principalmente religioso". (DAS, 1995, p.23).

A arquitetura indiana apresenta-se em quatro estilos diferentes, desenvolvidos em períodos distintos:

  1. O período antigo, no qual muitas obras arquitetônicas da Índia foram cavadas diretamente na rocha. Muitas foram feitas em larga escala e sobreviveram, praticamente intactas, mesmo tendo sido construídas quinze ou vinte séculos atrás, segundo as tradições budistas e bramânicas. Os templos em pedra são cavados nas montanhas ou em grandes rochas, de modo que tem mais em comum com a escultura do que com construções convencionais feitas a partir de tijolos de pedra. O primeiro tipo de templo é como uma caverna produzida artificialmente em uma falésia ou penhasco, e é composto de vastas câmaras. O outro tipo é escavado de massas rochosas, criando volumes arquitetônicos de caráter escultural. O primeiro consiste de espaço interno; no segundo ele pode até faltar (STIERLIN, 1998).
  2. O período medieval caracteriza-se por um deslocamento do local da construção. Até então os templos eram restritos aos afloramentos rochosos, agora passavam a ser produzidos nos lugares escolhidos como propícios para a oração. As pedras eram transportadas, mas a construção mantinha o mesmo sentido e estilo da fase anterior. Essa arquitetura encontra-se principalmente nos templos de Mahabalipuram, na região litorânea do sul da Índia.
  3. A terceira fase promove uma mudança radical, na qual a pedra macia é utilizada na construção. Ao mesmo tempo, as características do templo passam por mudanças. Até então a arquitetura da construção estava orientada para acomodar a divindade; a partir desse momento também se constitui em lugar de outras atividades sociais. Isso é muito mais evidente nos templos de Belur e Halebid, no sul da Índia.
  4. Finalmente, os tempos modernos destacam-se por suas novidades: a tecnologia moderna é embutida na arquitetura; ao mesmo tempo, os templos não se encontram mais nos lugares retirados e sim em meio às habitações. Centenas de templos estão nas cidades e aldeias, possibilitando ao povo uma vivência adequada de sua religiosidade.

3. Origem e desenvolvimento da iconografia hindu

O período mais antigo do Hinduismo é chamado Védico. Em tal período não existiam imagens representando as divindades - somente os sacrifícios, conhecidos por yajna. Parece não ter existido algo como um “ícone védico”. Ainda assim, a idolatria de imagens na Índia pode ser encontrada e reconhecida nos tempos pré-védicos; a civilização do Vale do Indo conhecia esse tipo de adoração. A veneração de símbolos icônicos como pedras sagradas e árvores tem também origens remotas. Mas, a partir do primeiro século d.C., estátuas se tornaram extremamente populares sob influência dos reinados gregos do noroeste (FALLON, 1997, ps. 220-21). Mais tarde, escultores budistas continuaram a tendência ao esculpir estátuas de Buda em estilo grego. Tendo visto isto, alguns dos escultores hindus começaram a fazer o mesmo com suas deidades. Posteriormente, reis e homens ricos estabeleceram uma “rivalidade estético-religiosa” ao determinar a produção de estátuas monumentais e de belos templos. "Esta transição do yajna védico e bramânico sem imagens (não-icônico) para o puja [prática de oferenda aos deuses] icônico estabelece com propriedade a mudança do Bramanismo para o Hinduísmo” (FALLON, 1997, p.221). Antes, a adoração era simbólica e as qualidades divinas atribuídas a Vishnu e Shiva, respectivamente; o próximo estágio veio com imagens antropomórficas seguidas de figuras com muitos braços e cabeças, simbolizando seu caráter sobre-humano. Mais tarde, as imagens eram vistas em formas encarnadas mórficas e antropomórficas.

Um estudo da história dos indianos ancestrais revela que a conexão entre religião e arte é mais pronunciada entre eles do que entre outros povos e raças. As escrituras hindus distinguem pelo menos oito tipos de imagens de acordo com o material utilizado: pedra, madeira, metal, sândalo, uma imagem desenhada em tela ou papel, na areia, na pedra preciosa e – esta última categoria é muito importante – ”imagem mental” (FALLON, 1997, p. 224).

Há duas atividades principais na produção imagética hinduísta: a criação das imagens artísticas (os ícones em si), e, hoje, as filmagens e fotografias dos ícones. A criação de tais imagens é talvez a forma mais antiga de simbolização humana, para sentir a presença e a proteção do divino. Nos tempos modernos encontramos filmes e fotografias dessas imagens instaladas nos templos. Em ambos os casos, a questão principal é criar uma relação íntima entre a ”visão” e a ”imagem”, ou seja, criar-se uma intima relação e necessária cooperação entre os atos de ver e pensar, entre imagem e idéia, uma interdependência entre o visual e o intelectual. Nessa forma, o ”ver” se torna uma atividade imaginativa e construtiva.

Atualmente podemos encontrar duas atitudes em relação à adoração de imagens. De um lado está um grupo de místicos reformistas como Kabir, Nanak, Ram Mohna Roy e Tagore, que condenaram a condenam; de outro, a influência de Vivekananda, Ramakrishna e da Sociedade Teosófica, que propiciaram um ressurgimento da idolatria. Entre os povos simples da Índia atual, a fé ardente é explorada por sacerdotes de pouca formação e corruptos. Entre as seções mais educadas e urbanizadas da população, a mesma adoração de imagens, geralmente menos religiosa (reinterpretada de acordo com visões mais modernas) tende a se tornar um fenômeno mais social ou cultural do que algo profundamente ligado à devoção.

4. Objetivo de criação e consagração das imagens

O já abordado casamento entre arte e religião na Índia evidencia-se nos templos com seus ícones, esculturas e pinturas de divindades, seres humanos e animais. O principal foco e objetivo da criação de imagens é “ajudar a meditação e concentração do adorador [devoto]. Uma imagem mental, para aqueles que sabem como meditar, é tão eficiente quanto uma material” (FALLON, 1997, p.224). Essa realidade aponta para a idéia de que a arte na Índia deve ser entendida como um sadhana – o caminho de busca espiritual – no qual convergem dois elementos: estética e ética. Segundo o pintor e artista Jyoti Sahi,

Arte não é simplesmente uma questão de técnica, ou fazer algo com propriedade, mas uma expressão de uma experiência, um modo de ver e sentir. Surge profundamente daquilo que podemos chamar uma experiência espiritual. É através da procura por esta experiência interior que a arte tenta se expressar; pode-se assim falar do sadhana do artista. (SAHI, 1995, p. 410).

Os Silpasastras, coletânea de textos em sânscrito escritos por artistas conhecidos como silpins, são baseados em antigas tradições transmitidas oralmente e tratam da iconografia. “Estes Silpasastras tratam da produção de imagens, junto à arquitetura e a construção de cidades (…) e garantem que a imagem não é simplesmente a expressão de um artista individualmente, mas a imagem escrita – o ícone – do divino” (ECK,1985, p. 52). Assim, a arte se torna religião e a religião reflete-se na arte. Tal fenômeno poderia ser percebido sob o ponto de vista do artista e também sob o ponto de vista do devoto. Sob o ponto de vista do artista, a criação de uma imagem é parte da disciplina religiosa, pois é ao entrar no estado de meditação e concentração que ele visualiza toda a imagem da divindade em sua mente. Conforme os Sastras, “o silpin, antes de começar um novo trabalho, submete-se a um ritual de purificação e reza para que possa trazer e materializar com sucesso a divina imagem que viu” (apud ECK, 1985, p. 52). Sob o ponto de vista do devoto ocorre a prática mais comum entre os hindus, que é a visita aos templos para o darsan – contemplação da imagem da divindade. “O ato central da adoração hindu, do ponto de vista do leigo, é se posicionar na presença da deidade e contemplar a imagem com os próprios olhos, para ver e ser visto pela deidade” (ECK, 1985, p.4) Neste ”ver” é compreendida uma expressão popular da terminologia hindi, a língua nacional da Índia: Darsan déna e darsan léna (“ver e ser visto pela divindade”).

Darsan dena é simbolicamente atribuído à divindade, pois ela se apresenta para ser vista em imagem, enquanto darsan lena é atribuído ao plano humano ou à percepção sagrada da divindade ou à habilidade real de ver a divina imagem. É um encontro de dois pólos, o humano e o divino. Assim, as representações esculturais dos deuses tinham funções teológicas e narrativas. A imagens das divindades são vistas como teologia visual, e por outro lado são as escrituras visuais em que os mitos são narrados em pedra viva (ECK: 1985, p. 41).

O darsan pode acontecer em duas formas. Na forma tradicional sacerdotal, centenas de rituais são elaborados pelos sacerdotes no templo a favor dos devotos que vem visitar. “Para o ritualista, o artista não é importante – é para o devoto que a imagem foi criada” (SAHI, 1995, p.412). A segunda está mais próxima de uma experiência mística individual, na qual a criação de uma imagem é parte de um processo que pode ser chamado atma-darsana, ou “descoberta de uma existência interior”, que o artista William Blake designou “Divine Spark” (“centelha divina”) e que, de fato, é a imaginação em cada um de nós.

De modo geral não existe qualquer ritual ou puja sem uma consagração da imagem. Quando uma imagem a ser adorada no templo, recebe uma consagração definitiva; em outros casos, principalmente quando uma imagem é dessacralizada, a cerimônia da consagração pode ser repetida, pois a imagem sempre necessita estar no estado de pureza para o puja.

A imagem é purificada com uma variedade de substâncias ritualmente purificadas, como as folhas de banana, pétalas de rosas, mel e manteiga clarificada. Então, através de um rito chamado nyasa, literalmente ”toque”, várias deidades são posicionadas em partes diversas da imagem: Brahma no peito, Indra na mão, Surya nos olhos, os guardiães da direção na orelha, e assim por diante. (…) Finalmente, o prana [sopro vital], é infundido na imagem no rito central chamado pranapratistha, estabelecendo o sopro da vida (ECK, 1985, p.52).

Uma vez consagradas, as imagens são levadas em procissão para o templo, onde são instaladas através de uma celebração ritualística. Tornam-se, assim, o Deus vivo, que estabelece a comunicação com seu povo.

5. Os templos: lugar de preservação dos ícones

Todas as tradições religiosas usam símbolos para expressar não apenas as experiências que lhes trouxeram à vida, mas também a história que as moldou. “A Índia não apenas pensa em imagens, mas também as constrói em um corpo consistente, cuja síntese é o templo. O templo é a expressão mais característica do Hinduísmo, providenciando um foco para a vida social e espiritual da comunidade a que serve.” (ANAND, 2004, p.110). O templo, síntese de muitos símbolos, pode ser abalizado em três funções distintas: como uma construção, como um ritual e como a meta.

5.1. O Templo como construção

É a casa de Deus. Os sacerdotes-arquitetos se preocupam no seu posicionamento, orientação e circunstâncias temporais da sua construção. Mesmo antes da construção do templo, um ritual de fundação é requerido, envolvendo o estudo do espaço e da configuração dos céus; disto depende a escolha do local e a data na qual a primeira pedra é colocada. A construção de um templo hindu segue alguns componentes essenciais e é conformada por certos preceitos ritualísticos. Como diz STIERLIN,

As estrelas devem ser consultadas por um astrólogo e o lugar deve ser inspecionado pelo sacerdote, que pode discernir a influência benéfica ou maléfica do terreno; isto inclui a natureza do subsolo, o nível de umidade da terra, a exposição a ventos dominantes, a drenagem do solo, e assim por diante. Outro ponto está particularmente relacionado a influências a que o templo estará suscetível na cidade ou interior. Em uma cidade, o arquiteto deve levar em consideração o princípio hindu de planejamento, que requer um desenho rigorosamente geométrico. O lugar é também afetado pelo sistema de castas, desde que cada casta possui suas próprias áreas na cidade (STIERLIN, 1998, p. 63-64).

Normalmente o templo é construído no lugar onde está a conjunção de três elementos da natureza, rocha, água e verde, simbolicamente significando a estabilidade, peregrinação e vida. Cada devoto deve apresentar a estabilidade na sua busca e, uma vez estável no propósito, deve fluir ou peregrinar rumo à divindade que se encontra no templo.

5.2. A dimensão ritualista do Templo

Como ritual, a construção do templo reflete a solidez da busca pela divindade. O templo é uma recriação do espaço sagrado ritualístico que dava forma às comunidades ancestrais. O templo hindu é o lugar onde o rito sagrado é celebrado, tanto individual quanto coletivamente.

No nível individual, torna-se ritual quando o devoto começa a jornada, yatra, em direção ao templo, que simboliza Deus não apenas como o criador e juiz do universo, mas também como o fim dos tempos, a meta transcendental dos esforços humanos. O motivo por trás da jornada ritualística é conquistar darsan, pois o templo hindu deve ser visto para que possa funcionar como símbolo. O peregrino inicia sua jornada olhando o ponto mais alto da construção, bindu, o pico. Como símbolo da manifestação do encontro entre o divino e humano, o templo começa pelo bindu, o ponto entre o não-manifesto e o manifesto. A jornada do visível para o Invisível, do localizado para o Onipresente, do material para o Sem-forma, do tempo para a Eternidade (ANAND, 2004).

No nível coletivo, o templo é um lugar onde os diversos rituais são praticados anteriormente. O devoto que chega ao templo pode pedir ao sacerdote para realizar uma oferenda, seja como agradecimento ou um voto, ou para obter algum favor em especial. Em muitos templos a oferenda é celebrada em diversas horas do dia e, em alguns deles, as refeições principais são servidas, para que se crie a experiência de confraternização entre os devotos.

Dois elementos são fundamentais nos rituais coletivos: o recebimento da prasada e da tirtha. A prasada é o alimento oferecido à deidade enquanto é preparado; a tirtha é a água que foi usada para banhar o ícone central. “O simbolismo do ícone e do puja realizados em sua honra dão ao devoto não apenas o sentimento de comunhão, mas servem também como o fio de continuidade entre as gerações e como a teia na qual toda a comunidade está reunida.” (ANAND, 2004, p. 124).

5.3. O Templo como meta

O sanctum (parte central do templo), que contém a estátua ou símbolo da divindade, conhecido como garbha griha, normalmente quadrado. Sobre ele se ergue uma torre em forma de pirâmide, chamada garbhagudi, que simboliza o Monte Meru[3], a morada dos deuses. Esta é, absolutamente, a parte mais sagrada do templo, onde os brâmanes realizam seus rituais. Em frente à torre, chamada shikara, está um grande palco denominado mahamandapa, aberto em todos os lados e, em tempos antigos, reservado às danças religiosas.

Diferentemente das igrejas e catedrais do Ocidente, projetadas para acomodar multidões de fiéis em uma cerimônia coletiva, os santuários hindus são projetados antes de tudo para acomodar a estátua ou emblema sacro da divindade. Os monumentos religiosos indianos não contém, em sua maioria, grandes espaços internos. São muitas vezes decorados com ornamentos e esculturas ilustrando os grandes mitos do panteão hindu. O templo é construído à imagem simbólica do mundo criado, desenhado de acordo com as mandalas – elaborados e mágicos sistemas gráficos baseados em formas circulares e quadradas. As mandalas formam diagramas simbólicos que representam o universo em sua evolução cósmica. Como afirma STIERLIN,

A cosmologia hindu tem características distintivas, nas quais o círculo representa a terra e a natureza irracional, e o quadrado o Céu e a ordem cósmica. Por essa razão, o quadrado é a forma governante para a habitação dos deuses em sua forma concreta, o templo. E os garbha grihas que devem representar o mundo celestial, estão todos em planos rigorosamente quadrados (STIERLIN, 1998, p.64).

Dessa forma o devoto realiza sua meta de sua peregrinação, que é unir-se à divindade. Simbolicamente, todo templo é o universo em miniatura. No centro do universo se encontra a garbha griha, onde os deuses habitam, e na periferia os seres humanos. A meta é cumprida quando o ser humano chega ao centro e tem um darsan da divindade.

6. Iconografia de Tríade Hindu

Ao adentrarmos o mundo hindu nos confrontamos com um modo de pensar que pode ser considerado radicalmente politeísta, e se há alguma grande divisão entre as tradições indiana e ocidental, ela reside neste fato. Existe uma oscilação constante entre na afirmação da unidade e multiplicidade. A experiência da unidade experimentada em um contexto é, ao mesmo tempo, a experiência da multiplicidade experimentada em outro contexto. A declaração ”Deus é Um” não significa a mesma coisa na Índia e no Ocidente (ECK, 1985).

Essa consciência da unidade e pluralidade indiana determinou a criação de uma imagem de Deus em forma de Tríade: ao mesmo tempo Uno e múltiplo.

No Rig Veda – a mais antiga escritura do mundo –, pode-se ler: Eka Sat; vipra bahuda vadanti. Deus (Verdade/Ser) é Um; os sábios o chamam por muitos nomes. Os diferentes nomes e poderes de Deuses e Deusas apenas expressam as várias qualidades do Supremo, que é infinito; Sua Força, Sabedoria, Contentamento, Poder, Amor, etc. (DAS, 1995, p. 25).

A criação das imagens da Tríade hindu - Brahma, Vishnu e Shiva, emula a experiência da natureza, que segue seu percurso regular e, ao mesmo tempo, a experiência da diversidade das culturas. Os três representam os três estágios do jogo cósmico: criação, preservação e destruição.


Fig. 1 – Representação iconográfica da Tríade Hindu (DAS, 1995, p.26, p.32, p.37)

Como afirma Das,,

Após a destruição universal, Vishnu retira-se para o Yoga-Nidra (sono yóguico) nas espirais de Ananta Naga[4] formando sua cama nas águas causais da próxima criação. Prajapati Brahma sentado em um lótus que brotado do umbigo de Vishnu, recebe instruções sobre como proceder com a nova criação. Por causa de tal nascimento, Brahma é chamado Nabhija (nascido do umbigo) e também Kanja (nascido da água) (DAS, 1995, p.26).

A imagem de Brahma tem quatro cabeças. Sentado em uma flor de lótus, possui quatro braços e segura em suas quatro mãos “um kamandalu (vasilha de água), os Vedas (sagradas escrituras), sruva (um instrumento sacrificial) e um rosário (akshamala) (DAS, 1995, p.27). O lótus é o símbolo hindu para a Realidade Suprema. O fato de Brahma estar sentado nele indica seu enraizamento na realidade suprema. Ele veste uma pele de antílope, que simboliza a austeridade. Todo o simbolismo construído ao redor da imagem de Brahma serve para preparar o devoto para uma experiência religiosa.

Para ser disciplinado o suficiente para o estudo das escrituras, o que é sugerido pelos Vedas em sua mão, o peregrino espiritual deve passar por certas austeridades. Quando o peregrino está suficientemente iluminado por sua reflexão constante nas escrituras, está pronto para o trabalho desinteressado que tira sua mente do mundo de seres e objetos. (DAS, 1995, p. 28).

Renúncia conduz o aspirante facilmente à meditação – que é a porta de entrada final para a auto-realização.

A segunda pessoa da Tríade hindu é Vishnu, que se encontra

deitado em uma grande serpente (Sesa ou Ananta) em um oceano de leite (ksheerabhdhi) nos céus (vaikuntha). É dito que está em um sono yóguico. O corpo da serpente está enrolado para formar a cama de Vishnu. A serpente tem mil cabeças, e seu rabo está voltado para dentro, olhando para o seu próprio corpo enrolado. (PARTHASARATHY, 1984, p. 35).

Como observamos na imagem, a forma mais comum do ícone de Vishnu tem um rosto e quatro braços. Segura uma shanka (búzio), charka (disco), gada (clava) e padma (lótus) em suas quatro mãos.

O vínculo do devoto para com Vishnu é estabelecido a partir deste rico simbolismo. Com um sopro no búzio, Vishnu desperta a consciência do Homem e chama sua atenção para a meta final da evolução humana – a realização do Ser, como indicado pelo lótus. Todo o ícone resume, de certa forma, a ordem moral do ser humano, como afirma PARTHASARATHY:

Se um homem, apesar de seu crescente senso de atividade e agitação, ainda persiste em suas indulgências sensuais e não se volta para os caminhos espirituais, ele se encontra em total desastre. A clava na terceira mão significa um aviso para chamar a atenção do homem para esta severa lei da natureza. O disco serve para mostrar ao homem este inevitável fim ao qual chegará, se permanecer desatento com o aviso da natureza. (PARTHASARATHY, 1985, p.40).

A terceira figura da Tríade é Shiva (literalmente ”o amigável”), considerado o Destruidor. É o destruidor da ignorância, apegos, desejos e avidez no Homem, de forma a que este possa ser recriado e abençoado com maiores liberdade e conhecimento do que realmente possui.

Há cerca de 250 ícones de Shiva, cada um carregado de múltiplos significados. “Suas manifestações podem ser, de forma geral, divididas em cinco categorias: o jovem asceta, o dançarino cósmico, o senhor da destruição, o terrível fogo (bhairava) e o marido benevolente e amoroso” (JANSEN, 1993, p. 108). Apresentaremos detalhadamente o ícone hindu mais conhecido e elaborado no mundo atual, Shiva Nataraja.

7. Shiva Nataraja

Em Tua Dança, Ó Dançarino Divino, a liberdade encontra imagem, e sonhos nas suas formas. Sua cadência tece as coisas com linhas e as desenrola por séculos e séculos; transforma a rebelião dos átomos em beleza, oferece o ritmo à sinfonia das estrelas; enche a vida com a dor e transforma a existência em alegrias e sofrimentos (TAGORE).

Nataraja é provavelmente uma das mais sofisticadas peças de escultura em todo o mundo, na medida em que reflete as idéias e princípios da arte e filosofia hindu (Fig. 2). O ícone Nataraja é talvez o mais universalmente conhecido e largamente apreciado. Conforme J. F. Carpenter, Nataraja é “uma mescla feliz do asceta e do dançarino em uma só figura, e expressão daquela profunda alegria (ananda) que o pensamento indiano associa com Infinidade, Realidade e Inteligência” (apud RAO e DEVI, 1999, p.14). Para compreender essa imagem é necessário entender a função da dança na vida humana; os símbolos e metáforas usados para expressar nosso entendimento do Divino podem nos tocar precisamente porque se originam da nossa experiência e ressoam com ela (ANAND, 2004, p.141).

Na Índia, Nataraja é visto sob duas perspectivas: a primeira é a da religião, a segunda, a da dança. Na perspectiva da religião, o ícone de Nataraja reflete totalidade de vida de um hindu a partir da vivência dos três ideais, que são conhecidos como Satyam Shivam Sundaram (Verdade, Shiva [divino] beleza). A vivência desses três ideais significa a vivência do dharma, a verdade estabelecida pela sociedade ao longo dos séculos. Essa prática da vivência do dharma faz do Hinduísmo um ”way of life” que surgiu simplesmente sem ter um fundador.

Na perspectiva da dança, Shiva Nataraja é um centro exemplar, o dançarino Supremo. Nata significa o dançarino; Raja, o rei. Por meio desse símbolo, pretende-se revelar o Mistério Absoluto à humanidade, Líla, isto é, a Dança Cósmica de Deus. A dança cósmica de Shiva simboliza o eterno movimento do universo que foi impulsionado pelo ritmo regular da dança e começou, assim, a manifestar-se em todas as formas. Ela é realizada a partir de três atividades do plano divino: a criação, a preservação (sthithi) e a destruição (samhara) e, no plano humano, descreve a ilusão ou a ignorância (tirobhava), assim como a possibilidade da iluminação (anugraha). Estas cinco atividades são definidas como panchakria, a penta-atividade de Shiva (RAO E DEVI, 1999, p.15).


Fig.2 – Shiva Nataraja (ANDRADE 1988:5)

O Shiva dançarino é representado com 4 braços. A mão direita superior segura um pequeno tambor, damaru, que regula a vibração primordial no momento da criação e mantém o ritmo da dança. A mão esquerda superior segura o fogo, na posição de ardhachandra (meia lua), simbolizando a destruição. Existe um equilíbrio entre as duas mãos superiores, apontando para o equilíbrio dinâmico entre criação e destruição. A segunda mão direita, abaixo, designa manutenção e proteção; a segunda mão esquerda, libertação. O pé esquerdo erguido sugere a busca da libertação; o anão-demônio, que está sob seu pé direito, simboliza a ignorância ou “cegueira” em relação à vida. O círculo de chamas em volta de Shiva é, ao mesmo tempo, energia em sua forma mais pura, o fogo de cremação e o símbolo do mantra sagrado OM, o som primordial da criação.

O palco da dança de Shiva, Chidambaram, é representado no sentido espiritual pelo coração de cada pessoa, onde se encontra a imagem de Deus dançando, procurando destruir a ignorância para despertar o espírito interior. “O Supremo dança na alma, dissipa a escuridão ilusória, queima todas as impurezas, elimina todos os maus pensamentos, abençoa as graças com compaixão e leva a alma ao contentamento perfeito.” (ANDRADE, 1990, p.14) O ícone de Nataraja resume todo o conteúdo do Hinduísmo e, ao mesmo tempo, todo o desejo do ser humano de unir-se ao Divino a partir de sua própria purificação.

Na atualidade, considera-se que quaisquer que tenham sido as origens da dança de Shiva, o ícone de Nataraja tornou-se uma das imagens que reflete com nitidez da atividade de Deus, que nenhuma arte ou religião pode vangloriar-se de ter inventado.

8. Conclusão

A iconografia hindu permanece ainda hoje como algo extremamente complexo e variado: a sobrevivência das atitudes animistas e superstições de longa data, rituais altamente elaborados e racionalizados, técnicas de meditação, simbolismo luxuoso e panteões mitológicos do reconhecimento da Divina Transcendência encontram-se resumidos nesses ícones. Todas essas imagens, preservadas nos inúmeros templos indianos, remetem a dois pontos principais. Em primeiro lugar, a estabilidade da tradição, dos símbolos transmitidos desde a aurora dos tempos; por exemplo, a continuidade da representação do templo como montanha cósmica e residência dos Deuses. Segundo, a extraordinária permanência de formas e técnicas que continuaram em serviço por mais de mil anos (STIERLIN, 1998). Portanto, a iconografia indiana, com sua rica simbologia, torna-se um meio de preservar a tradição religiosa e vivenciar a religiosidade.

Bibliografia

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Notas

[*] Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-SP.

[1] Kunkum é um pó vermelho, normalmente utilizado como uma marca na testa. Essa marca carrega diversos significados. No caso dos homens, simboliza a presença divina. Conforme as leis hinduístas, os homens devem estar em oração o dia todo, em um dos quartos de sua casa reservado para tal propósito ou no templo. Mas o trabalho diário em prol da sobrevivência os leva para fora. Conscientes da impossibilidade de estar no quarto de oração, eles marcam a testa com o pó vermelho que simboliza a presença de deus o dia todo, inclusive no trabalho. No caso das mulheres, essa marca simboliza que ela é comprometida pelo ritual sagrado do casamento.

[2] Essas três divindades são muito populares na Índia atual. Hanuman, o deus macaco, símbolo da lealdade e devoção. Sua primeira aparição acontece no épico Ramayana, no qual ele é visto carregando uma montanha com todas as ervas medicinais para tratar Lakshman, o irmão da figura central da história, Rama. O surgimento dessa figura deve-se à experiência com os macacos, que carregam dentro de si ações repetitivas e capacidade da imitação. Ganesh, o deus elefante, simboliza a retirada de todos os obstáculos que nós enfrentamos na vida. Antes de qualquer jornada, ritual ou aventura maior, Ganesh é invocado e adorado. Ele é o símbolo da força mística e do discernimento, aquele que protege o conhecimento, os livros sagrados e a educação. A deusa Kali é a força que ativa e desativa o tempo. Tudo vem dela e tudo é devorado por ela. Personifica a força da destruição e a sabedoria divina que põe fim às ilusões.

[3] O Monte Meru, um dos picos da cadeia dos Himalaias, é considerado a moradia de Shiva ou de Vishnu.

[4] Ananta Naga, a serpente primordial. Simbolicamente, é a cobra da fertilidade e de descanso. Em algumas tradições, como a egípcia e africana, a cobra é também é um símbolo de fertilidade.