Os Enganos sobre o Sagrado – Uma Síntese da Crítica ao Ramo "Clássico" da Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-Chave

Frank Usarski[*] []

Resumo

A Fenomenologia da Religião foi a abordagem dominante na fase inicial da Ciência da Religião, logo após da sua institucionalização em universidades européias. Uma "briga de métodos" nos anos setenta do século XX, porém, diminuiu consideravelmente a influência desse paradigma, embora a intensidade desse processo tenha variado de acordo com o status da disciplina em diferentes contextos nacionais. A fim de contribuir para uma discussão mais profunda entre cientistas da religião brasileiros, em sua primeira parte o texto traz um resumo sucinto dos traços básicos da Fenomenologia da Religião. A segunda parte resume as críticas a essa abordagem e confronta os elementos rejeitados com alternativas defendidas por cientistas da religião contemporâneos.

Abstract

The article gives an overview over the basic constituents and the critics of the Phenomenology of Religion, which has been the dominant approach within Science of Religion for decades before becoming the main issue of a methodological debate around the 1970s. The first part of the article resumes the essentials of the approach. The second half summarizes both the counterarguments against Phenomenology of Religion and some of the proposals how to overcome its deficits.

1. Introdução

Há cerca de 30 anos circulava entre cientistas da religião alemães uma piada sintomática sobre a briga de métodos que marcava a disciplina nas universidades daquela época, não apenas na Alemanha, mas também em outros países.[1] A origem da brincadeira caiu rapidamente no esquecimento, mas, por seu teor, é obvio que seu autor não fazia parte da comunidade científica alemã. À pergunta "Por que os cientistas da religião na Alemanha deveriam urgentemente consultar um médico?" era dada a seguinte resposta irônica: "Porque eles sofrem de uma numinose."

A então "nova geração" de cientistas da religião alemães adotaram esse dito engraçado com prazer, uma vez que ele exprimia, de modo pragmático, a oposição crescente à Fenomenologia da Religião "clássica",[2] associada a autores como Nathan Söderblom (1866-1931), Geerardus van der Leeuw (1890-1950), Joachim Wach (1898-1955), Friedrich Heiler (1892-1967), Gustav Mensching (1901-1978), e, sobretudo, Rudolf Otto (1869-1937).[3] Otto foi o criador do neologismo alemão numinoso, termo derivado da palavra latina numen[4] e empregado para designar a forma mais "abstrata"[5] do sagrado, tema central e título da sua "obra magna".

Quem se formou na fase da briga dos métodos em um dos programas de Ciência da Religião[6] na Alemanha foi "vacinado" contra a citada "disfunção intelectual" e seus efeitos colaterais em debates teóricos e projetos de pesquisa. Embora referências isoladas a conceitos fenomenológicos e mesmo tentativas de restaurá-los como legítimas categorias científicas[7] tenham provado a resistência da numinose a esforços de colocá-la em quarentena, ela nunca mais recuperou seu caráter "epidêmico" e o vigor com o qual tinha contaminado as mentes dos autores anteriormente determinantes no discurso disciplinar na Alemanha.

É compreensível que, no complexo e fragmentado mundo contemporâneo, nem todas as comunidades acadêmicas na área de Ciência da Religião têm acompanhado tal debate com o mesmo interesse vital, ou, se acompanham, têm chegado às mesmas conclusões obtidas na Alemanha. Isso vale especificamente para o Brasil, onde inúmeras indicações provam que, em um ambiente propício, a numinose pode se espalhar sem restrições e ganhar um caráter quase invencível. Um sinal disso é o uso inflacionário ou mesmo aleatório da palavra sagrado, que é aplicada à vontade para parafrasear algo que - de uma maneira ou outra - tem (mais ou menos) a ver com religião. Dá-se também o contrário, ou seja, o termo sagrado é intuitivamente associado a um sentido mais específico do que o da palavra religião. Esse fato pode ser exemplificado pela seguinte observação, feita por uma aluna que acompanhou a defesa de uma dissertação sobre a relação entre Budismo e arte marcial: "Acho a obra do colega muito bem feita, mas me perguntei, durante todo diálogo entre o candidato e a banca: em que parte do trabalho ele aborda o sagrado?"[8]

Em relação à suposição de sinonímia da noção do sagrado com o termo "religião", seria uma tarefa sem fim listar todas as citações de títulos de livros, dissertações e teses, anúncios de encontros interinstitucionais, aulas magnas, eventos temáticos e ementas de cursos brasileiros apenas nos últimos anos para provar a "naturalidade" com a qual o sagrado é adotado como se fosse um termo técnico inequívoco e imediatamente acessível para leitores, integrantes de bancas, ouvintes em auditórios e alunos em salas de aula. Damos um exemplo para indicar a referência "ingênua" ao termo: no sistema de busca da biblioteca da PUC-SP, o verbete serve como categoria de classificação temática, mostrando mais de 200 registros, muitas deles de obras sem nenhuma relação literal à palavra "sagrado".

Comparado com a situação da disciplina em outras partes do mundo, especificamente na Alemanha, a freqüente citação do sagrado por autores brasileiros em virtualmente qualquer contexto é metateoricamente problemática e exige a inclusão desse item na pauta da futura discussão sobre a constituição e o caráter da Ciência da Religião neste país. O presente artigo pretende contribuir para esse debate. O próximo parágrafo esboçará de maneira sucinta a Fenomenologia da Religião de acordo com seus pressupostos do ponto de vista ontológico, na área da Antropologia, com relação à sua delimitação do objeto principal da pesquisa e no que diz respeito à metodologia. Esse resumo servirá como base de uma discussão crítica mais detalhada, a ser realizada na segunda parte.

2. As implicações ontológicas e antropológicas da Fenomenologia da Religião e suas conseqüências para a sua abordagem ao mundo religioso empirico

Já em sua primeira formulação, feita em 1913 por Nathan Söderblom - ou seja, quatro anos antes da publicação do famoso livro de Rudolf Otto -, o sagrado assumiu um significado ontológico que, de acordo com uma cosmovisão dualista, representa a esfera "complementar" ao profano; ambas, por sua vez, constituem o ser em sua totalidade. Do ponto do vista do profano, o sagrado é o "totalmente outro" e constitui um fenômeno sui generis, ontologicamente independente e autônomo.

Absoluto na sua essência, possui uma dinâmica própria que faz com que ele se articule no relativo como "uma força misteriosa [...] relacionada a determinadas formas de existência, objetos, eventos ou ações."[9] Não obstante, trata-se de uma "manifestação de algo de ordem diferente, de uma realidade que não pertence ao nosso mundo natural, profano."[10]

Essas "hierofanias", como Mircea Eliade chamou as auto-revelações do sagrado, constituem um elemento-chave na história humana, embora o lado irracional do sagrado enfraqueça na medida em que uma religião concreta passa por um processo de racionalização. Em outras palavras: "O elemento racional supera o estágio original do ‘rudimento’ e ‘esquematiza’ os momentos irracionais por meio da moralização e cultivo".[11] Embora essa "sublimação" tenha diminuído o vigor do numinoso, ele não deixa de repercutir nas formas posteriores. Pelo contrário: como Rudolf Otto afirma ainda no início da sua obra magna, "o numinoso vive em todas as religiões."[12]

Embora as conotações ontológicas sejam constitutivas para o conceito do sagrado, o foco de interesse dos representantes clássicos da Fenomenologia da Religião está na experiência humana do numinoso, ou seja, na reação do sujeito religioso aos "chamados" do sagrado. Metaforicamente falando, pode-se dizer que há uma instância própria no interior do ser humano que reage à esfera divina transcendental analogicamente a uma caixa de ressonância que, devido a seu material, vibra na mesma freqüência de um som produzido próximo a ela. A Fenomenologia "clássica" da Religião, portanto, parte do axioma antropológico de que o ser humano é equipado com uma faculdade específica que o predispõe para a sensação da presença do sagrado. Esse sensus numinis[13] possibilita a sensação ambígua do sagrado como mysterium tremendum et fascinosum ("mistério tremendo e fascinante"). Em outras palavras, o encontro do individuo com a essência divina nele provoca, simultaneamente, "sentimentos inexplicáveis de horror e espanto, por um lado, e êxtase irresistível e fascinação, por outro".[14]

Continuamente "tocado" pela essência divina no decorrer da história, o ser humano concretiza sua relação com o sagrado na vida através de símbolos, ritos e expressões estéticas culturalmente pré-estruturadas. Embora as formas diversificadas e variáveis no tempo e espaço constituam o mundo religioso empírico, elas não desviam a atenção de um pesquisador comprometido com o programa da Fenomenologia da Religião, uma vez que sua tarefa mais "digna" é a de transpassar a multiplicidade dos fatos produzidos nos âmbitos de diferentes religiões para compreender a essência da religião. Em outras palavras: na busca de compreensão do sagrado como fenômeno universal, único e trans-histórico,[15] os elementos culturais, sociais, filosóficos e práticos constitutivos pela plurivalência das religiões concretas tornam-se secundários ou, até mesmo, irrelevantes em relação ao objetivo final da sua pesquisa.

Do ponto de vista metodológico, portanto, para a Fenomenologia "clássica" da Religião não é suficiente estudar as "meras" manifestações religiosas. Pelo contrário, é preciso que o pesquisador não se perca na complexidade dos fatos, mas abstraia do mundo empírico por ativar seu próprio sensus numinis e "treinar" sua empatia com o sagrado para se deixar penetrar emocionalmente pelo numinoso e experienciá-lo.

3. A crítica à Fenomenologia da Religião

Devido à crítica detalhada ao ramo clássico da Fenomenologia da Religião nas últimas décadas, é hoje consensual que "no âmbito da Ciência da Religião nenhuma outra noção tem sido mais polêmica do que a do sagrado".[16] A seguir será apresentado um levantamento das principais razões do ceticismo diante da abordagem fenomenológica em geral e do conceito do sagrado em particular.

3.1. A crítica à negligência do contexto sócio-histórico do surgimento do termo e a falta da reflexão sobre suas implicações confessionais

Um primeiro argumento em desfavor do conceito sagrado surge da negligência do contexto sócio-histórico em que o termo ganhou importância e da desatenção diante das implicações substanciais que delimitam sua validade como conceito no âmbito da Ciência da Religião.

Para iniciar a síntese da referente crítica, vale lembrar que Rudolf Otto lançou "Das Heilige" em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial - ou seja, em um momento histórico marcado pelo desespero diante da discrepância gritante entre as aspirações humanas e o verdadeiro caráter das suas ações; em um ambiente cuja tensão foi intensificada pela incapacidade das então tendências intelectuais de oferecer perspectivas capazes de curar as profundas mágoas coletivas ao projetar um futuro mais auspicioso. Nesse clima, a obra de Otto foi recebida como um "livro de consolação"[17] pelo leitor comum e como uma fonte de esperança para teólogos desiludidos pela ideologia do Liberalismo e da Teologia Dialética. Para ambos os públicos, "Das Heilige" serviu como "uma espécie de ‘compensação’ da racionalidade do pensamento teológico e o desencantamento do mundo",[18] uma vez que o livro reafirmou a existência universal do sagrado como uma entidade ontológica além e independente dos medonhos "fatos reais", mas acessível para o indivíduo no seu próprio interior.

Uma retrospectiva da "trajetória" do adjetivo heilig na história espiritual alemã deixa claro que a idéia do sagrado assumiu seu potencial de esperança também porque os fenomenólogos da religião fortaleceram e re-contextualizaram determinadas conotações que a palavra tinha adquirido anteriormente. Na verdade, o sagrado já tinha sido um termo preferido por eruditos e poetas alemães no século XVIII. Um deles foi Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803), teólogo formado na Universidade de Jena, precursor do romantismo alemão e, então, o maior expoente do Sentimentalismo.[19] Foi provavelmente a admiração da abordagem e do estilo de Klopstock que inspirou Otto a adotar as expressões heilig e das Heilige em seu vocabulário.

Não se questiona as nuanças semânticas inerentes à palavra em si. A crítica direciona-se à falta da consciência de que o uso afirmativo do conceito do sagrado exprime a conformidade do falante com uma determinada "escola de pensamento" dentro do espectro múltiplo da Ciência da Religião, ou seja, com a abordagem romântica e sentimentalista paradigmaticamente defendida por Rudolf Otto e por seu grande referencial, Friedrich Schleiermacher. Suspeita-se de que a grande maioria dos autores que atualmente cita a noção do sagrado de maneira quase-natural não esteja consciente desse particularismo.

A referência não-refletida do termo é ainda mais problemática em função da displicência face à afinidade do conceito de sagrado com um tipo específico de religiosidade resultante da origem familiar e socialização primária dos precursores e pioneiros da Fenomenologia da Religião. Mais concretamente falando, é o "esquema protestante" no sentido da relação imediata do ser humano diante do "seu" Deus que constitui o padrão básico de todas as interpretações do termo.[20] Portanto, quem o emprega de maneira afirmativa não está apenas promovendo uma abordagem sentimentalista e romântica, mas também simpatiza com o pensamento evangélico característico de autores como Schleiermacher, Söderblom, van der Leeuw, Wach, Otto ou Mensching.[21]

3.2. A crítica à suposta universalidade do significado do termo do sagrado

Conforme Söderblom, o sagrado é "uma categoria universal no mundo religioso mais essencial do que a palavra Deus".[22] Com essa afirmação, o autor prova estar consciente da relevância de um estudo da religião o mais amplo possível sem excluir crenças politeístas ou fenômenos como o Budismo primitivo desinteressado em questões teológicas propriamente ditas. Portanto é preciso que o pesquisador emancipe-se de um vocabulário que apenas representa conceitos favorecidos pelas religiões monoteístas. Além disso, o fato de que o termo do sagrado serve como denominador comum no vasto campo religioso mostra que o conceito promete a redução da complexidade empírica do objeto.

Enquanto o caráter comparativo da disciplina está fora de qualquer dúvida, assim como não se nega a necessidade de categorias gerais em função de uma pesquisa adequada do mundo religioso em sua diversidade real, críticos à Fenomenologia da Religião inspirados pelo paradigma interpretativo confrontam o "realismo" do tratamento do termo sagrado com o conceito construtivista, enfatizando as conseqüências de linguagens socialmente estabelecidas no sentido de que a denominação não aponta para algo independentemente existente, mas que esse "algo" é criado pelo ato da denominação.[23] Sob esse ponto de vista, o grau da plausibilidade da noção do sagrado depende do nível da concordância de um grupo de pesquisadores a respeito de seu significado - ou seja, o termo ganhou seu "valor" em um determinado ambiente sócio-cultural. Confirmando esse princípio, Carsten Colpe criou uma lista de palavras usadas nas versões latina, grega e hebraica da Bíblia em lugares onde a tradução alemã traz o adjetivo heilig. Encontrou como correspondências diretas termos como "sacer", "sanctus", "hieros", "hagios" e "qadosch", abertos para traduções alternativas como, por exemplo, ehrlich, (= honesto, sério), züchtig (= casto, pudico), ehrwürdig (= respeitável, venerável), fromm (= pio, devoto) ou erhaben (= sublime, solene). Do ponto de vista lingüístico, portanto, o uso do adjetivo heilig na Bíblia alemã não é obrigatório, mas reflete apenas os esforços para limitar o espectro de possíveis significativos a um único termo em função da padronização da tradução. Por isso Colpe afirma que "nem o uso nem o significado da palavra ‘heilig’ são assegurados, mas apenas hábitos".[24]

A partir dessas observações genéricas, o autor progride no seu raciocínio crítico ao termo sagrado por problematizar a suposta generalidade da interpretação da noção do Rudolf Otto. Resultante da sua pesquisa comparativa, Colpe rejeita a universalidade do significado da palavra e salienta que ela tem apenas um sentido análogo nas tradições monoteístas, nas religiões grega, romana e germânica, bem como em algumas religiões paleolíticas. Em um tom irônico, Colpe afirma:

Vamos imaginar que há tempos imemoráveis, em um jardim paradisíaco [...] um germano, um ariano ou um grego, um melanésio, um polinésio, um judeu ou um romano [...] conversem sobre seus compromissos religiosos, cada um usando as palavras da sua cultura. [...] Eles teriam se entendido? Foi necessário surgir o arrogante cientista dos nossos tempos para sintetizar suas posições.[25]

Resumindo: uma comparação de várias linguagens religiosas revela que a palavra "heilig" não é universalmente traduzível, mas que apenas desempenhou um papel particular conforme o consenso lingüístico de uma geração dominante de pesquisadores nas primeiras décadas da história da Ciência da Religião como disciplina institucionalizada.

3.3. A crítica às implicações ontológicas e "criptoteológicas" da noção do sagrado

Outra dimensão da crítica ao termo sagrado consiste na acusação de que seu uso nas obras dos fenomenólogos da religião ignora a distinção metateoricamente crucial entre a "linguagem teórica" e a "linguagem no nível do objeto",[26] ou seja, de que os autores em questão negligenciavam "a diferença entre afirmações científicas e as afirmações das religiões."[27] Nesse sentido, a frase "é possível que uma verdadeira religião seja isenta de uma determinada concepção da divindade, mas não da distinção entre ‘sagrado’ e ‘profano’"[28] pode parecer banal à primeira vista, mas, do ponto de vista epistemológico, é altamente problemática, uma vez que essa "identificação" do sagrado com relação ao profano não se trata de uma representação das convicções subjetivas de determinados "objetos" religiosos meramente registrados por um observador, mas de uma hipótese sobre a "natureza" e a "estrutura" ontológica da realidade. Em outras palavras: na tradição de Söderblom, Otto e outros, a noção do sagrado não é apenas uma "citação" em um "relatório" de pesquisa de campo sobre a fé de membros de uma determinada religião, mas exprime a cosmovisão dos próprios acadêmicos. Portanto, reclama-se a falta de diferenciação entre o termo sagrado na qualidade de uma "heterodefinição"[29] no sentido de "os membros da comunidade ‘X’ acreditam em algo que pode ser categorizado como ‘o sagrado’", por um lado, e a confirmação da existência do numinoso como "auto-definição" de um cientista da religião que postula que "o sagrado existe", por outro.

Ainda na mesma linha de argumentação, os críticos à Fenomenologia da Religião chamam a atenção para a estrutura semântica analógica das frases "o sagrado existe" e "Deus existe" e salientam que, nas construções semânticas de autores como Söderblom e Otto, o termo sagrado surge em lugares onde, em obras explicitamente teológicas, encontrar-se-ia a palavra "Deus". Em termos mais concretos, para um leitor judeu, cristão ou muçulmano de "Das Heilige", a "mensagem" principal da obra teria sido a mesma se Otto tivesse substituído a expressão "o sagrado existe" por "Deus existe", uma hipótese confirmada por Söderblom na hora da sua morte: "eu sei que Deus vive. Posso provar isso pela História da Religião".[30] Essa não foi uma frase solene motivada por circunstâncias excepcionalmente dramáticas, mas a expressão autêntica de um lema que tinha norteado a vida profissional não apenas do citado autor, mas de uma geração inteira de acadêmicos convicta de que "o pesquisador das religiões tem que ser um homem que foi encontrado e tocado por ‘seu’ Deus".[31] Nesse sentido é sintomático que vários cientistas da religião daquela época - por exemplo, Gerardus v.d.Leeuw – se auto-reconheciam como "testemunhas" das manifestações do sagrado.[32] São afirmações como a acima citada que fizeram com que a Fenomenologia da Religião tenha sido acusada de representar uma espécie de "criptoteologia", uma abordagem incompatível com o ideal de um estudo da religião que "não deve comprometer-se com motivos religiosos, mas deve agir com ‘instrumentos científicos’, renunciando a qualquer discurso religionista [...] que possa servir de sustentação para a validade da experiência religiosa."[33]

O próximo item apontará para uma das conseqüências mais problemáticas da atitude "criptoteológica" implícita no ramo clássico da Fenomenologia da Religião.

3.4. Reflexões críticas sobre o objeto privilegiado pela Fenomenologia

Como já foi dito, o maior desafio que o mundo complexo das religiões representa para um fenomenólogo "clássico" é o da abstração da complexidade dos fatos reais para chegar ao "conhecimento" do sagrado o mais imediato possível, ou seja, da suposta essência de qualquer "verdadeira" religião que repercute no interior de um ser humano sensível para tal "última realidade". Conforme essa hierarquia dos constitutivos da religião, as obras de autores na tradição de Söderblom, Otto e, mediado pelo último, Schleiermacher, privilegiam dois aspectos considerados especialmente dignos de serem "pesquisados": a) o numinoso na condição de entidade ontológica absoluta, e b) a experiência espiritual como reação "autêntica" do individuo ao numinoso no nível dos seus sentimentos.

Segundo Gladigow, essas asserções são problemáticas, uma vez que os fenomenólogos da religião não partem de uma definição nominal da religião, mas tomam como certo que o estudioso e os virtuoses das religiões são inspirados pelo mesmo motivo: o encontro com o sagrado. Com isso, o fenomenólogo não apenas entra em "’competição de reconhecimento’ como o sujeito religioso"[34] mas direciona sua atenção para uma dimensão extra-empírica que não apenas é testemunhada pelo "indivíduo religioso a-histórico",[35] mas também ultrapassa os limites de uma disciplina científica. As observações de Gladigow podem ser esquematizadas da seguinte forma:

Modelo 1:

A crítica à abordagem acima resumida nasce de uma demarcação mais estrita dos limites epistemológicos da disciplina, uma compreensão metateórica que alimenta dúvidas sobre a legitimidade de afirmações metafísicas no âmbito acadêmico. Ao mesmo tempo, acusa-se a Fenomenologia da Religião de um reducionismo porque a concentração exagerada na experiência religiosa negligencia a maior parte das facetes fundamentais para mundo religioso concreto.

Em outras palavras: enquanto os fenomenólogos pretendiam ir além dos aspectos particulares que constituem uma religião no contínuo tempo-espaço para chegar à essência da religião em si, as gerações posteriores dos cientistas da religião defendem o caráter multidisciplinar dos seus estudos e a necessidade de uma colaboração entre especialistas formados em diferentes subdisciplinas e interessados em todas as dimensões que constituem qualquer religião concreta.

Confrontado com o "modelo 1", o seguinte gráfico visualiza a abordagem alternativa à Fenomenologia da Religião.

Modelo 2:

Obs: "Da-Dn" apontam para a totalidade das "dimensões"
(psicológica, sociológica, estética etc) a ser abordada pela
pesquisa multidisciplinar

É esse paradigma que norteia o trabalho da maioria dos cientistas da religião contemporâneos.

3.5. A crítica à negligência das referências múltiplas à transcendência no mundo religioso empírico

As dúvidas quanto à qualificação do sagrado como entidade singular não se esgotam nas observações acima elaboradas; elas implicam, também, na questão acerca da utilidade da categoria com relação à diversificação com a qual diferentes religiões se referem à transcendência. Como já foi dito, a Fenomenologia da Religião insiste na universalidade e na unicidade do sagrado a ser descoberta sob as articulações religiosas sócio-culturalmente determinadas que são tratadas como variações no contínuo espaço-tempo da religião como entidade sui generis. Afirmando -se capaz de compreender a essência de qualquer religião, um representante do "velho" paradigma sente-se instigado a "provar" a existência do sagrado através da sua própria experiência. O seguinte gráfico visualiza essas idéias básicas:

Modelo 3:

A crítica a essa abordagem considera a suposição da universalidade do sagrado como resultado de um "efeito de protótipo"[36] que negligencia as nuanças em que a "última realidade" é concebida em diferentes contextos históricos e sócio-culturais. Conforme Benson Slater efeitos de protótipos são "modelos cognitivos idealizados", ou seja, "assimetrias de julgamentos referentes à universalidade de objetos considerados representantes de uma determinada categoria". Para que o leitor possa entender melhor o impacto de um efeito de protótipo, o autor traz o seguinte exemplo: alguém solicita a um morador da cidade de Massachusetts que cite um pássaro; é provável que esse morador não pense em um pingüim, mas em um tordo americano.[37] Em termos mais genéricos: protótipos representam "uma espécie de teoria que o indivíduo aplica para ganhar rapidamente uma impressão holística do seu ambiente", uma vez que esses modelos "focalizam a percepção em determinados aspectos [...] e determinam, quais informações são registradas e quais são ignoradas."[38]

Uma leitura minuciosa do livro "Das Heilige" indica que seu autor era uma vítima do "efeito de protótipo". Apesar de várias viagens de estudo pela África do Norte, Egito, Rússia, Índia, Birmânia, Japão e China - e independente de afinidades com sua abordagem afirmadas por representantes de outras religiões como, por exemplo, do Sikhismo[39] -, Rudolf Otto não se apropriou na sua obra magna do seu amplo conhecimento[40], mas deu uma ênfase desproporcional às "categorias judaico-cristãs e premissas filosóficas transcendentais".[41]

A discussão crítica à obra de Rudolf Otto fornece material suficiente para confirmar que o conceito do sagrado é "inadequado para servir como categoria universal da história da religião".[42] Peter Antes, por exemplo, aponta para as diferenças fundamentais entre as três "religiões proféticas" (Judaísmo, Cristianismo e Islã) e "religiões místicas" (como o Hinduísmo e o Budismo) e lembra que em contradição à hipótese da homogeneidade do mundo religioso os levantamentos de características de diferentes religiões feitos pelos próprios fenomenólogos revelaram mais divergências do que coincidências. A tensão entre a "sugestão" da universalidade do sagrado e resultados de pesquisas comparativas intensifica-se quando se incluí religiões como as indígenas ou o Xintoísmo. Para fazer justiça a tal diversificação é preciso portar um instrumental conceitual diferenciado, algo de que Peter Antes se ressente em relação aos representantes clássicos da Fenomenologia da Religião, uma vez que eles "estavam convencidos da existência da religião in todas as manifestações religiosas". Todavia, os resultados produzidos por essa corrente disciplinar "eram pouco convincentes e justamente criticados, porque a pesquisa empírica provou quão diferentes as religiões realmente são e, em muitos casos, perdeu-se a suposta e esperada harmonia entre elas."[43]

Uma crítica mais específica à hipótese da universalidade do sagrado encontra-se em um artigo de Donald S. Lopez que problematiza a convicção de Otto de que o numinoso e a sensação dele é comum em todas as religiões. Em função disso, o autor elabora as fundamentais diferenças entre as religiões abrâmicas e o teísmo hindu, por um lado, e as doutrinas e práticas do Budismo tântrico, sobretudo do ramo Gelukpa e o sistema Madhyamika, por outro.[44] A argumentação de Lopez pode ser resumida da seguinte forma: religiões da primeira categoria enfatizam um divino qualificado como o "completamente outro", transcendente, majestoso, poderoso e inacessível pela razão. Diante dessa entidade, o ser humano admite sua insignificância como criatura profana e torna-se um buscador da redenção.

O estudo do repertório espiritual do Budismo prova que essa corrente não compartilha das características acima citadas, embora, segundo a abordagem de Otto, elas devam ser centrais para a religião em geral. O Budismo tântrico não parte do princípio de uma divindade criadora, o que, nesse sistema, impossibilita ao indivíduo a sensação de ter sido criado. Em vez disso, defende um conceito ontológico monista, isto é, uma cosmovisão que nega o dualismo entre "absoluto"/o "nível divino" e o "relativo"/o "nível humano individual" a favor da idéia da universalidade da "vacuidade". Essa "última realidade" permeia tudo, é uma verdade que se impõe na consciência do adepto tão logo sua mente essencialmente "vazia" reconheça sua identidade com a totalidade da existência, algo que a tradição tântrica metaforiza como "água limpa que se confunde com água limpa"[45]. Um elemento-chave do caminho espiritual nessa direção consta do uso do raciocínio como instrumento da destruição do falso conceito da individualidade. A angústia experimentada nas práticas tântricas e iconograficamente simbolizada por seres sobrenaturais terríveis não chega a ser a sensação do tremendum no sentido de Otto. Pelo contrário, trata-se de reações passageiras do praticante à ameaça de se "perder" na vacuidade, uma sensação de medo definitivamente superada no momento da Iluminação. Pode-se abstrair a lição da comparação de Lopez de que quem não quer excluir o Budismo tântrico da lista de objetos legítimos de um estudo no âmbito da Ciência da Religião tem que assumir que os critérios da religião estabelecidos por Otto não são universais, mas justificam-se apenas na medida em que "religiões teístas" constituem o objeto de pesquisa.

Tanto o artigo de Antes quanto a crítica de Lopez a Rudolf Otto sustentam uma abordagem em oposição à Fenomenologia da Religião. Em vez de "homogeneizar" seus objetos por meio de um conceito supostamente unificador, esse "contra-paradigma" (modelo 4) leva em conta o caráter fragmentado do mundo religioso e trata as sub-entidades do seu campo de pesquisa como sistemas próprios cuja análise exige a reconstrução da sua lógica interna impermutável.

Modelo 4:

3.6. A crítica à suposta singularidade da experiência do sagrado

A crítica ao tratamento não-diferenciado das múltiplas referências à transcendência representadas por religiões diferentes é complementada pela negação da singularidade da experiência do sagrado supostamente universal no mundo religioso. Os respectivos aspectos, embora sejam intimamente associados ao raciocínio elaborado no parágrafo anterior, constituem um elemento chave da argumentação contra Rudolf Otto, uma vez que seu livro Das Heilige oferece ao leitor uma "Fenomenologia do objeto da experiência religiosa", no sentido de que a religião é basicamente uma reação a última realidade que se impõe à toda a humanidade.[46]

Autores em oposição a esses pressupostos chamam a atenção para o fato de que as "analises fenomenológicos partem da possibilidade de um acesso direto ao ‘objeto em si’, portanto, optam por uma abordagem ignorante de relativizações por condições sociais."[47] Segundo Comstock, enquanto emoções humanas são pré-formadas pela socialização religiosa, os fenomenólogos da religião têm desvinculado a sensação do numinoso da matriz social em que a experiência humana ocorre.[48] As observações de Baetke apontam na mesma direção, afirmando que o sagrado é apenas um a priori no sentido em que se apresenta para o sujeito religioso sempre como algo pré-definido de acordo com a respectiva tradição de uma dada comunidade - mas os fenomenólogos têm negligenciado o impacto das mediações sócio-culturais sobre a experiência.[49]

Dúvidas sobre a adequação da crítica formulada por autores como Comstock e Baetke podem ser confrontadas com argumentos derivados da discussão mais recente sobre o impacto da estrutura neurobiológica e do papel de fatores sócio-psicológicos sobre sensações religiosas.[50] A maioria dos teóricos contemporâneos envolvidos nesse debate rejeita um modelo que considera o "conteúdo" emocional de uma experiência religiosa como uma sensação "pura" que precede qualquer pensamento e crença e se impõe a um individuo "passivo" como uma sensação imediata, pré-conceitual, privada e não passivel de correção. O paradigma alternativo, por sua vez, leva em conta o papel ativo do indivíduo na condição de ser sócio-cultural e parte da hipótese de que a emoção humana é, pelo menos, cognitivamente mediada. Isso significa que "a especificidade de qualquer sensação implica em alguma espécie de avaliação, apreciação ou julgamento com relação ao contexto em que a experiência ocorre."[51]

As conseqüências para a Ciência da Religião são óbvias e confirmam as observações feitas no fim parágrafo anterior. Exige-se que o pesquisador compreenda "seus" sujeitos de acordo com o sistema específico de crença em que eles são encontrados. Portanto, o cientista da religião tem que "decodificar" o "valor cultural" dos relatos sobre as experiências religiosas promovidas pelo contexto cultural.

3.7. A crítica às implicações normativas na abordagem da Fenomenologia da Religião

Além dos problemas acima elaborados, o axioma da existência universal do único sagrado implica no risco de uma hierarquização das religiões concretas de acordo com o grau de sua proximidade com uma suposta "religião prototípica" capaz de deixar repercutir o numinoso da maneira mais "direta" e "pura" possível. Críticos da Fenomenologia da Religião argumentam que tal idéia representa uma perspectiva normativa que pode gerar a "expectativa de que a Ciência da Religião possa decidir quais das religiões concretas representam seu ‘objeto’ mais adequadamente do que outras."[52]

Essas preocupações são alimentadas, entre outras fontes, de citações equívocas de publicações de Rudolf Otto, inclusive do "Das Heilige" onde é confirmado, bem no início do livro, que a emoção do sagrado está presente em todas as religiões, mas que ela vive com uma força extraordinária nas religiões semíticas, especificamente nas bíblicas. Mais adiante encontra-se até mesmo o julgamento de que o Cristianismo é superior às outras formas de piedade[53]

A qualificação de um fenômeno empírico como expressão mais ou menos "autêntica" do sagrado, ou seja, da base metafísica universal de uma verdadeira religião, levou Otto não apenas a uma distinção problemática entre o Cristianismo e religiões não-cristãs, mas também a uma comparação duvidosa entre manifestações atuais de uma religião e sua suposta forma original. Isso é provado pela seguinte citação de um artigo escrito na cidade marroquina de Magador e publicado em 1911, ou seja, seis anos antes do lançamento do "Das Heilige":

"Uma sala pequena e meio escura, com menos de dez metros de comprimento e menos de cinco metros de largura. Uma luz ofuscante vinda de cima. Lambris marrons nas paredes, enegrecidos pela fumaça de candeeiros de azeite. Junto às paredes, bancos com assentos separados, como cadeiras de coro para frades mendicantes. Na parede estreita um relicário alto e, no meio, um altar pequeno com um púlpito largo. Para me trazer até aqui, Chajjim el Malek tinha passado comigo por labirintos do gueto e por duas escadas assustadoras e apertadas: uma sinagoga antiga, ainda intocada pelo Ocidente. Há cerca de quarenta sinagogas aqui, em sua maioria fruto de doações de particulares e localizadas em casas privadas, mantidas como capelas domésticas atendidas por rabinos e gente da classe tradicional. São lugares ao mesmo tempo de oração e de ensino do Talmude. É sábado, e já no corredor incrivelmente sujo escutamos o murmúrio de rezas e recitações, aquela cantilena nasal que a sinagoga transmitiu tanto à igreja quanto à mesquita. O som é eufônico e, logo, é possível distinguir certas modulações rítmicas e cadências que se seguem e alternam como temas. Inicialmente não se consegue ouvir palavras distintas; já se está a ponto de desistir quando, de repente, surge o vozerio. Com um sobressalto solene que corre pelo corpo ouve-se, inequívoca, clara e harmonicamente, a entoação ‘Kadosh Kadosh Kadosh elohim Adonai tzevaot male'u hashamajim wahaarez kevodo’ - essas são as palavras mais solenes que jamais saíram dos lábios humanos, sempre de forma emocionante, repercutindo no mais fundo da alma, comovendo de maneira estremecedora o segredo do supramundano que lá dorme. Ao mesmo tempo impôs-se com força na minha alma a tragédia daquele povo, cujos membros, depois de terem rejeitado todos os bens mais autênticos e sublimes de seu folclore e do seu espírito, agora lamentam sobre sua religião mumificada, preservando suas crostas e seus trajes."[54]

Um julgamento desqualificador de práticas religiosas desse tipo explica-se pela convicção do seu autor de que uma tradição religiosa corre o risco de perder, no decorrer do tempo, o vigor com o qual o sagrado originalmente se impôs no meio da respectiva comunidade. Essa afirmação pode ser lida da seguinte maneira: a melhor religião é aquela que não apenas conseguiu conservar a experiência original do numinoso do maneira mais autêntica possível, mas também preservá-la de tendências posteriores de diluição da sua verdadeira substância. Com isso, Rudolf Otto reprovou o caráter a-histórico da sua abordagem e o privilégio dado ao estudo das chamadas "grandes religiões".

Como teria sido a postura do fenomenólogo alemão diante da chamada "Santa na janela" que chamou tanta atenção pública no Brasil, na segunda metade de julho de 2002? Provavelmente muito diferente da de um cientista da religião brasileiro contemporâneo, grato por ter encontrado, na multidão que se aglomerava diante de uma suposta aparição da Nossa Senhora na vidraça da casa de uma família humilde na Diocese de Mogi das Cruzes, um objeto paradigmático para um estudo sobre a religiosidade popular do seu país.

Além do "elitismo" de Rudolf Otto, a leitura de seu relato acima citado revela um segundo problema a ser elaborado no seguinte parágrafo: o autor ficou devendo ao leitor os critérios a partir dos quais ele chegou a sua avaliação tão negativa das práticas encontradas na sinagoga de Magador.

3.8. Críticas à metodologia da Fenomenologia da Religião

Do ponto de vista da Fenomenologia da Religião, o numinoso é uma categoria a priori, irreduzível e não-explicável, porém acessível por uma faculdade com a qual um bom cientista da religião tem que estar equipado para fazer justiça a seu objeto. Para se "qualificar" como um pesquisador digno, ele deve cultivar seu sensus numinis, ou seja, uma modalidade própria de compreensão intersubjetiva do sagrado.[55] As primeiras frases freqüentemente citadas do terceiro capitulo do "Das Heilige" provam quão importante Rudolf Otto considerava esse pré-requisito metodológico. Apelou ao leitor para que se lembrasse de sua própria exaltação religiosa e solicitou aos incapazes dessa lembrança que não progredissem com a leitura.

Uma vez que o público da obra magna de Otto divide-se em duas frações, ou seja, leitores suficientemente sensíveis para entender a mensagem da Fenomenologia e "os outros", que não possuem essa qualidade, surge a pergunta sobre o "destino" acadêmico dos últimos. Por não ter mais nenhuma perspectiva de contribuir para o progresso da disciplina, deve-se recomendar que eles não percam mais tempo com um estudo mal feito no âmbito exclusivo da Ciência da Religião? Ou aqueles "incompetentes" têm ainda alguma chance de se tornar membros "maduros" da comunidade cientifica se eles forem adequadamente treinados? Porém, treinados em quê?

É provável que um fenomenólogo da religião se referisse à chamada "redução eidética" que promete capacitar o pesquisador a "pôr entre parênteses" os aspectos "secundários" do "fenômeno religioso" para finalmente revelar sua essência. Infelizmente, até hoje não foi encontrada nenhuma "fórmula" que deduzisse da descrição erudita desse "método" um roteiro prático cujos passos fossem inequivocamente definidos para que um pesquisador realmente chegasse ao objetivo proclamado e os programas em Ciência da Religião pudessem instruir seus alunos naquela abordagem. O fato de que uma espécie de "iniciação ao método de pesquisa fenomenológica" não existe é sintomático para o caráter esotérico da Fenomenologia da Religião no sentido de que seu verdadeiro objeto consiste em uma experiência individual e irracional, portanto incomunicável entre os membros de uma comunidade científica.

Resumindo: enquanto a ciência é, por definição, um empreendimento público, portanto exotérico,[56] os representantes da Fenomenologia da Religião exigem do leitor um acordo com seus procedimentos, substituem uma discussão metodológica séria por uma "contemplação sobre o fenômeno" e omitem a questão chave: "Como um observador distingue a religião de uma maneira que pode valer também para outros observadores e que se poderia distinguir de simples atitudes da fé"?[57]

4. Conclusão

Já foram indicadas acima diversas conseqüências da Fenomenologia da Religião. Por merecem maior destaque, duas serão repetidas nessa conclusão.

Primeiro, espera-se um uso mais consciente e cuidadoso da noção do sagrado. Como foi mostrado, trata-se de uma palavra altamente problemática se aplicada como um termo teórico supostamente consensual ou até mesmo auto-explicativo. Porém, não se tem nada contra uma citação da expressão em prol da descrição de uma determinada crença compartilhada por membros de dada comunidade religiosa. Encontram-se, no mundo religioso, "livros sagrados", sim. Porém, afirmando-se isso em um contexto acadêmico, essa não deve ser uma confirmação de que tais textos são "realmente" manifestações do numinoso no mundo relativo. Mas, se for usado como uma referência a crentes que acreditam na qualidade sagrada da sua tradição escrita, o recurso à palavra é legitimo.

Segundo, recomenda-se a integrantes de uma disciplina que há décadas têm buscado um lugar próprio nas universidades levar a sério a crítica à insuficiência da discriminação entre a Ciência da Religião e a Teologia nas publicações de fenomenólogos da religião. Preocupações desse tipo assumem formas diferentes, inclusive irônicas, como por exemplo no caso de Edmund Husserl, afirmando que em vários momentos "o teólogo Otto levou em suas asas o fenomenólogo Otto embora"[58], ou metafóricas, como no caso de Rainer Flasche, diagnosticando um "síndrome de profecia" nos fenomenólogos.[59]

Esses comentários sensibilizam para o preço "político-acadêmico" a ser pago por uma Ciência da Religião que continua a cultivar retoricamente uma linha de pensamento que teve seu auge na primeira parte do século XX, mas que perdeu sua confiabilidade devido a uma "briga de métodos" cujos resultados foram apresentados de maneira sucinta no capítulo anterior desse artigo. Caberá ao leitor a avaliação do seu possível impacto sobre a futura discussão a respeito de uma Ciência da Religião brasileira metateoricamente fundada de maneira adequada.

Notas

[*] Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[1] Cf. Terrin, Aldo Natale: O Sagrado Off Limits. A Experiência religiosa e suas expressões, São Paulo: Loyola, 1998, especialmente o primeiro capítulo.

[2] Quanto às diferenciações internas da Fenomenologia da Religião, ver Hock, Klaus: Einführung in die Religionswissenschaft, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft 2002, pp.56-78. A noção Fenomenologia da Religião "clássica" aqui utilizada corresponde à Fenomenologia da Religião "no sentido estrito" na terminologia de Hock.

[3] Cf. Anttonen, Veikko: Sacred, in: Braun, Willi; Russell T.McCutcheon [orgs.]: Guide to the Study of Religion, London; New York: Cassell 2000, 271-282; McKenzie, Peter R.: Otto, Wach and Heiler: Towards a Systematic Phenomenology of Religion, in: Diskus, 2 (1994) no. 1, pp. 29-41.

[4] Aproximadamente significando "vontade divina", "atuação divina" ou "essência divina", cf. Feldtkeller, Andréas: Numinos, in: Religion in Geschichte und Gegenwart4, Vol.6, Tübingen: Mohr Siebeck 2003, colunas 428-429.

[5] Cf. Otto, Rudolf: Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen, [1917], München: Beck 1997. Otto afirma (cf. pp.5-8) que o termo "numinoso" designa a esfera supernatural da existência ainda isento de qualquer ideação, elemento racional ou implicação ética.

[6] "Ciência da Religião" no singular (Religionswissenschaft) é a nomenclatura "oficial" da disciplina na Alemanha. Pessoalmente estou a favor de uma "adaptação" dessa designação no Brasil.

[7] Cf. Kamper, Dietmar; Christoph Wulf (orgs.): Das Heilige. Seine Spur in der Moderne, Frankfurt/M.: Athenäum 1987.

[8] Diálogo por ocasião da defesa da dissertação do meu orientando Rodrigo Wolff Apolloni, no dia 5 de outubro de 2004.

[9] Cf. Gladigow, Burkhard: Religionsgeschichte des Gegenstandes – Gegenstände der Religionsgeschichte, in: Zinser, Hartmut (org.): Religionswissenschaft. Eine Einführung, Berlin: Reimer 1988, pp.6-37, especialmente p.9.

[10] Cf. Dicionário Enciclopédico das Religiões, Vol.1, orgs. Por Hugo Schlesinger e Humberto Porto, Petrópolis: Vozes, 1995, p.1265.

[11] Obergethmann, Frank: Rudolf Ottos "Religiöser Menschheitsbund", in: Zeitschrift für Religionswissenschaft: 6 (1998), pp.70-106, especialmente p.98.

[12] Cf. op.cit. p.6.

[13] Cf. Colpe, Carsten: Die wissenschaftliche Beschäftigung mit „dem Heiligen" und das „das Heilige" heute, in: Kamper, Dietmar; Christoph Wulf (org.) op.cit. pp.33-61, especialmente p.44.

[14] Cf. Anttonen, op.cit. p.272.

[15] Cf. Colpe, op.cit., p.50.

[16] Gantke, Wolfgang: Der umstrittene Begriff des Heiligen. Eine problemorientierte religionswissenschaftliche Untersuchung, Marburg: Diagonal 1998, p.13.

[17] Cf. Colpe, op.cit. p.45.

[18] Vorgrimmler, Herbert: Neues Theologisches Wörterbuch, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2000, p.271.

[19] Cf. Colpe, op.cit. p.45.

[20] Cf. Gladigow, op.cit. p.8.

[21] Enquanto o cristão ortodoxo Mircea Eliade não se enquadra nessa lista, pode-se incluir nela até mesmo Friedrich Heiler, que, embora católico por nascimento, é considerado um representante do chamado "catolicismo evangélico", uma imagem adquirida por seu envolvimento na chamada "Hochkirchlichen Bewegung" (hoje, Evangelisch-Ökumenische Vereinigung [ = Associação Evangélico-Ecumênica]).

[22] Cf. Söderblom, Nathan: Holiness, in: Encyclopaedia of Religion and Ethics, ed. by James Hastings, vol.VI, 1913, pp.713-741.

[23] Cf. Colpe, Carsten: Wie universal ist das Heilige?, in: Klimkeit, Hans-Joachim (org.): Vergleichen und Verstehen in der Religionswissenschaft, Wiesbaden: Harrassowitz 1997, pp.1-12, especialmente p.7.

[24] Cf. ibid., p.4.

[25] Colpe, Carsten: Die wissenschaftliche Beschäftigung mit „dem Heiligen" ... , op.cit., p.54.

[26] Cf. Seiwert, Hubert: ‚Religiöse Bedeutung’ als wissenschaftliche Kategorie, in: Annual Review for the Social Sciences of Religion, 5, 1981, pp.57-99.

[27] Cf. Idem: ‘Religionen und Religion’. Anmerkungen zu Jacques Waardenburgs Einführung in die Religionswissenschaft, in: Zeitschrift für Missionswissenschaft und Religionswissenschaft: 71, 1987, pp.225-230, especialmente p.229.

[28] Cf. Söderblom, Nathan: Holiness, in: Encyclopedia o Religion and Ethics, ed. by James Hastings, vol.VI, 1913, pp.713 ss.

[29] Cf. Colpe, op.cit., p.52.

[30] Cf. Biezais, Harald, 1989, Die heilige Entheiligung des Heiligen. In: Alcheringa oder die beginnende Zeit. Studien zur Mythologie, Schamanismus und Religion, hg. von Hans-Peter Dürr, Frankfurt: Athenäum-Verlag, S. 163-190, especialmente , nota de rodapé 21 na página 181.

[31] Cf. Ratschow, C.H.: Methodik der Religionswissenschaft, in: Enzyklopädie der geisteswissenschaftlichen Arbeitsmethoden, Vol.9, München H.R. Oldenbourg, 1973, pp.347-400, especialmente p.347.

[32] Cf. Gladigow, op.cit., p.11.

[33] Cf.Terrin op.cit., p.18.

[34] Cf. Gladigow, op.cit, pp.6-7.

[35] Cf. Anttonen, op.cit. p.273.

[36] Cf. ibid., p.274.

[37] Cf. Saler, Benson: Conceptualizing Religion: The Matter of Boundries, in: Klimkeit, Hans-Joachim: Vergleichen und Verstehen in der Religionswissenschaft, Wiesbaden: Harrassowitz 1997, pp.27-35, especialmente p.32.

[38] Cf. Thomas, A.: Grundriß der Sozialpsychologie. Grundlegende Begriffe und Prozesse. Göttingen: Verlag für Psychologie 1991, p.169-170.

[39] Cf. Singh, Darshan: Rudolf Otto's Analysis of Numinous and Sikhism, in: SikhSpectrum.com Monthly Issue No.6, November 2002 http://www.sikhspectrum.com/112002/otto_sikhism.htm.

[40] Algumas alusões aleatórias para outras religiões encontram-se, por exemplo, no parágrafo 3 do capítulo XII e no item 10 do capítulo XVII.

[41] Cf. Gladigow, op.cit., p.9.

[42] Cf. ibid.

[43] Cf. Antes, Peter: Mystische und prophetische Religionen: Eine gültige Unterscheidung?, online http://religion.orf.at/projekt02/religionen/weitere/fachartikel/re_andere_fa_mystisch_prophetisch1-98.htm (acesso: 15/12/2004).

[44] Cf. Lopez, Donald S., Jr : Approaching the Numinous: Rudolf Otto and Tibetan Tantra, in:
Philosophy East and West 29, no.4 (October, 1979) pp.467-476.

[45] Cf. ibid., p.471.

[46] Cf. Weber, Edmund: Die Wiederkehr des Heiligen. Rudolf Ottos hagiozentrische Grundlegung einer autonomen Religionswissenschaft und Religionskultur, in: Journal of Religious Culture / Journal für Religionskultur Nr. 40 (2000) <http://web.uni-frankfurt.de/irenik/relkultur40.PDF> (acesso: 15/2/2005)

[47] Cf. Luhmann, Niklas: Die Religion der Gesellschaft, Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2002, p.11.

[48] Cf. Comstock, W.Richard: A Behavorial Approach to the Sacred: Category Formation in Religious Studies, in: Journal of the American Academy of Religion 49 (1981), pp.625-643.

[49] Cf. Baetke, Walter: Das Heilige im Germanischen, Tübingen: Mohr 1942.

[50] A seguir, refiro-me especificamente a Azari, Nina P.; Dieter Birnbacher: The Role of Cognition and Feeling in Religious Experience, in: Zygon, vol.39, nº4 (Dezember 2004), pp.901-917.

[51] Cf. ibid., p.905.

[52] Cf. Gladigow, op.cit., p.7.

[53] Cf. Otto, Rudolf, op.cit., p.6 e p.72-73.

[54] Otto, Rudolf: "Vom Wege", Die christliche Welt, vol. 25, nº 30 (1911), pp. 708-709.

[55] Cf. Colpe, Carsten: Die wissenschaftliche Beschäftigung..., op.cit., p.44 e p.55.

[56] Cf. Gladigow, op.cit., p.10.

[57] Cf. Luhmann, Niklas, op.cit., p.12.

[58] Apud Schütte, Hans Walter: Religion und Christentum in der Theologie Rudolf Ottos, Berlin, Walter de Gruyter, 1969, p.141.

[59] Cf. Flasche, Reiner: Religionsmodelle und Erkenntnisprinzipien der Religionswissenschaft in der Weimarer Zeit, in: Cancik, Hubert (org.): Religions- und Geistesgeschichte der Weimarer Republik, Düsseldorf : Patmos, 1982, pp.261-276, especialmente p.262 e p.271.