A Oração como Experiência Mística em Abraham J. Heschel

Alexandre Leone[*] []

Resumo

Este artigo é sobre o tema da oração como experiência mística na obra de Abraham J. Heschel. Para entender melhor as idéias de Heschel sobre a oração é necessário que nos voltemos para suas raízes no hassidismo. A comparação entre as fontes hassídicas e o pensamento de Heschel clarifica a importância do misticismo na sua filosofia. Segundo Heschel, a oração é a essência da vida religiosa.

Abstract

This article deals with the issue of prayer as mystical experience in Abraham J. Heschel’s writings. In order to understand Heschel’s ideas on prayer, it is necessary to turn to his roots in Hasidim. A comparison between Hasidic sources and Heschel’s thought elucidates the importance of mysticism in his philosophy. According to Heschel, prayer is the essence of religious life.

A obra filosófica e religiosa de Abraham Joshua Heschel (1907 – 1972) é um convite ao reencontro existencial e ao espanto radical com o mistério profundo que, segundo o filósofo, é o tecido da vida. Heschel convida o homem moderno a dar um salto existencial, de modo a abrir-se para o encontro a Presença Divina. É nesse aspecto de sua obra que ele expõe de modo mais nítido suas origens hassídicas.

A experiência mística tem como seu foco e concernência última a vivência direta do encontro com a fonte do Sagrado. Tal experiência tem como objetivo último, nas religiões teístas, a união com a Divindade. Essa união tem sido descrita e experimentada de vários modos em diferentes comunidades religiosas através dos séculos. Na Bíblia ela é descrita como profecia; no misticismo medieval cristão, islâmico e judaico, em termos de encontro erótico; no misticismo judaico a partir do século XVI como contemplação e absorção na Divindade. De acordo com Rudolf Otto, a experiência de encontro direto com o Numinoso é o centro de toda experiência religiosa. Heschel denomina o Numinoso de Inefável. A experiência religiosa não se resume apenas à mística, há certamente outras províncias no reino da religião. No entanto, talvez seja possível afirmar que o encontro direto com o Sagrado, para além dos símbolos e das liturgias comunitárias, representa a dimensão de maior profundidade existencial na vida religiosa. Ela é a seiva viva que torna possível a fundação e a renovação dos símbolos, das liturgias e da comunidade religiosa enquanto comunhão diante de Deus.

No Judaísmo, mas certamente não apenas nessa tradição religiosa, a oração tem sido há muito tempo usada como técnica e exercício espiritual de encontro com Deus. Em particular a oração judaica por se caracterizar por longas recitações moduladas e por cantilações repetitivas e, por seu caráter diário, é uma forma de meditação contemplativa. Esse exercício espiritual está cada vez distante do ritmo de vida e trabalho dos indivíduos na sociedade moderna. Não é à toa que um dos aspectos da obra de Heschel como crítico da modernidade seja justamente o de um convite à abertura ao mistério e à transcendência a partir do reencontro com a dimensão profunda da oração. É nesse aspecto que ele deixa transparecer, de forma mais nítida, suas raízes místico-hassídicas. Heschel foi um intérprete e um tradutor dos conceitos da mística judaica, especialmente do hassidismo, para a linguagem filosófica do Ocidente moderno. Isso não significa, no entanto, que sua obra tenha apenas um conteúdo místico. No entanto, enquanto pensador religioso, várias das categorias centrais de sua filosofia são melhor entendidas à luz do pensamento e das práticas religiosas do movimento de renovação e popularização da mística judaica que foi o hassidismo.

Como sobrevivente daquele mundo, Heschel dedicou-se ao estudo da experiência religiosa hassídica. Nesse sentido foi reconhecido como um dos mais importantes estudiosos do hassidismo. Antes dele, o estudo acadêmico da literatura hassídica era praticamente inexistente. A razão disso era que, por um lado, a literatura hassídica é muito difícil e enigmática e, pelo outro, pela atitude negativa que os estudiosos ligados ao Wissenschaft des Jundentums nutriam em relação ao hassidismo. Para além dos círculos ligados ao Wissenschaft des Judentums desde o início do século XX o hassidismo já havia impressionado e influenciado outros pensadores judeus como Martin Buber, Gershom Scholem, Jacob Levi Moreno e Walter Benjamin. Heschel porém, enquanto pesquisador da literatura hassídica, não era apenas um estudioso distante. Assim como o pensamento de Paul Tillich ou Gabriel Marcel não pode ser desvinculado de seus compromissos religiosos, tampouco pode ser a obra hescheliana desvinculada da experiência religiosa que moldou o caráter de seu autor.

Como exemplo da influência direta do hassidismo da obra hescheliana está a centralidade dada à oração em seus escritos. Em Heschel a oração é um dos três caminhos propostos ao homem moderno para a contemplação da Presença Divina. “O primeiro é o caminho do sentimento da presença de Deus no mundo; o segundo é o caminho do sentimento de sua presença na Bíblia; e o terceiro é o caminho do sentimento de sua presença nos atos sagrados.”[1] Citando o Zohar, a mais importante obra mística do Judaísmo, Heschel escreve que ao primeiro caminho corresponde a oração, ao segundo o estudo meditativo e, ao terceiro, a ação humanizadora. A preocupação central da obra hescheliana é inspirar no homem moderno a busca de uma renovação humana baseada no seu despertar para a profundidade e a oportunidade que é a possibilidade da humanização. A condição humana, sendo frágil, se não devidamente cultivada, pode ser perdida. O homo sapiens não tem essa condição como uma “coisa” ou uma essência que lhe é garantida para sempre. Ele deve cultivar sua humanidade a fim de se tornar plenamente humanizado e, assim, ir além de sua condição atual, que é a de uma humanidade possível e ainda não redimida. Isso, porém, só pode se dar na busca da essência última de seu ser. Essa essência é a Divindade que é, também, a essência última da existência. Em outras palavras, o homem precisa buscar a transcendência para poder humanizar-se plenamente. Nesse aspecto, a obra hescheliana apresenta vários pontos em comum com a do filósofo existencialista cristão Gabriel Marcel.

Heschel nasceu em Varsóvia, na Polônia, em 1907, era descendente, tanto pelo lado paterno quanto pelo materno, de longas linhagens de rabinos ligados desde o século XVIII ao hassidismo[2]. Seu pai foi um rebe, o título dado aos líderes espirituais hassídicos. Entre seus ancestrais poderiam ser citados o Dov Beer Friedman, “o Pregador” (Maguid) de Mezritch, (séc XVIII), mais conhecido como “o Grande Maguid” e que foi o mais famoso discípulo direto do fundador do hassidismo, o Baal Shem Tov (séc XVIII). Outro famoso antepassado de Heschel foi o rebe Abraham Joshua Heschel de Apt (sécs. XVIII e XIX), o Apt Rebe, de quem Heschel herdou o nome, como era costume entre as dinastias hassídicas. Pelo lado materno estão entre seus mais famosos antepassados o rebe Pinkhas de Koretz (séc XVIII) e o rebe Levi Ytzhak de Berditchev, o Compassivo (séc XVIII). Heschel cresceu em um ambiente religioso de pietismo místico, como era corrente nas comunidades hassídicas da Europa Oriental antes da Segunda Guerra Mundial. Até então a comunidade tradicional judaica ainda encontrava-se, em grande parte, pouco influenciada pela modernidade que tardiamente chegava a essa porção tão fechada dentro do mundo judeu asquenazi. Lá ainda predominavam as formas tradicionais de estudo da Torá, recheadas de lendas acerca de grandes rabinos e mestres do passado. E onde a oração meditativa, o daven, era largamente praticada. Para os hassidim cada ação humana era imbuída de um sentido cósmico e divino, sendo os seres veículos da manifestação de Deus.

Dois mestres do hassidismo são reconhecidos pelo próprio Heschel como os que mais o influenciaram: o Baal Shem Tov, que no século XVIII fundou o movimento, e Menahem Mendel de Kotzk, um dos mais importantes líderes hassídicos do século XIX. O próprio Heschel, em uma de suas últimas obras, A Passion for Truth (1973, publicada postumamente), descreve esses dois rabinos com representantes de dois extremos da concepção hassídica de mundo. Por um lado, o hassidismo se manifestava como misericórdia, compassiva e alegre; por outro, se manifestava como sede de justiça, indignado com o sofrimento e ansioso pela redenção da condição humana sofredora. No pólo da compaixão teríamos, assim, o Baal Shem Tov reconhecendo a presença divina, A Shekhiná, em todos os seres, eventos e processos da criação. No pólo da justiça severa, o Kotzker Rebbe que, indignado com o pecado e a corrupção, sentia a dor do mundo. Heschel chega a comparar o sentimento do Kotzker ao de Kierkegaard. A dor indignada gerava no Kotzker a convocação à tarefa do tikun olam, a redenção cósmica.

O movimento acedesse inicia-se na primeira metade do século XVIII na Europa Central quando Israel ben Eliezer, o Baal Shem Tov (“o Mestre do Bom Nome”), que na época pregava a fazia curas de aldeia em aldeia, juntou um grupo de discípulos em torno de uma nova disciplina religiosa. Essa nova disciplina, o hassidismo (Hassidut, em hebraico) tinha como um dos seus aspectos centrais uma técnica espiritual que visava possibilitar a liberação das vicissitudes do mundo através da união mística (devekut) com a Deus. O ensinamento central do Besht é que o ser humano é capaz de desprender-se deste mundo através da oração meditativa, o daven. O objetivo do daven é permitir que o indivíduo possa atingir a experiência de unidade com a Divindade. O hassidismo promoveu no Judaísmo um novo tipo ideal, o místico piedoso, o hassid, em oposição ao intelectual talmúdico, o rabino. O hassid é alguém que está, por assim dizer, “intoxicado com a Presença Divina” alcançada através da oração meditativa. A oração meditativa não inclui apenas as longas recitações comuns às orações judaicas, mas também o canto repetido de peças melódicas, o nigun, e a dança hassídica. Além disso, o hassidismo promoveu uma radical reorganização da vida comunitária judaica baseada na idéia de um misticismo para o homem comum.

A teologia do hassidismo é fortemente “panenteísta”, isto é, ela ensina que Deus é a realidade última. Todos os fenômenos e seres do mundo são receptáculos que contém a luz divina. Os fenômenos e os seres não possuem nenhuma realidade independente em si mesmos. Essa idéia não deveria ser confundida com o panteísmo, que é a doutrina teológica de que o Ser Divino existe através dos fenômenos naturais. Deus é concebido no panteísmo como sendo imanente ao universo e à natureza. O ensinamento hassídico, em sua origem, afirma que nada no universo “existe” verdadeiramente, exceto Deus. O Divino é, para o hassidismo, um transcendente que se manifesta imanentemente através de cada fenômeno no universo. Os fenômenos são, por assim dizer, os veículos da manifestação da Divindade. O mundo é um véu que, se removido, revela apenas a Divindade. Se no panteísmo Deus é imanente à natureza, no panenteísmo a natureza existe em Deus. Também nos seus escritos Heschel escreve sobre Deus em termos muito próximos aos descritos na literatura hassídica. Para o filósofo, o Divino está “dentro” e, estando dentro, está também além, pois todo ser é o “transcendente disfarçado”. “Deus é a unidade onde vemos diversidade, a paz onde estamos envolvidos em discórdia. Deus significa: ninguém nunca está sozinho; a essência do temporal é o eterno; o momento é uma mensagem da eternidade em mosaico infinito. Deus significa: a união de todos os seres numa sagrada alteridade”[3].

Esse ponto de vista religioso, de que nada existe no mundo independente de Deus, é derivado diretamente do Zohar (séc XIII) e de sua interpretação feita pelo círculo de discípulos de do rabino Itzkak Luria (Safed, séc XVI). Segundo essa teologia mística, tudo que existe pode ser elevado e resgatado de modo a retornar à sua fonte divina. De fato, o Baal Shem Tov sugere que mesmo o ser humano tem uma autonomia relativa, não estando realmente separado da Divindade. “A pessoa deveria estar consciente de que tudo no mundo está preenchido pelo Criador, bendito seja Ele. Mesmo cada produto do pensamento humano é resultado de sua providência.”[4] Cada hassid, e não apenas o messias sozinho, tem a tarefa de elevar e resgatar as centelhas divinas espalhadas. O hassid deve elevar tudo até sua fonte original, deve transcender o parcial em nome do todo, deve ser capaz de ver a essência divina em cada coisa no mundo material. Em cada objeto vibram internamente as Sefirot, os Nomes Divinos que representam Sua ação criadora. Portanto, a verdadeira adoração e serviço religioso feito a Deus são a busca incessante da essência contida no vaso ou no receptáculo, o divino no mundano, o espiritual no material.

Essa é a razão o hassidismo sugerir que não há nada que seja essencialmente mal. O mal é a aparência distorcida daquilo que ainda não foi redimido. Observe esse trecho de um texto hassídico: “Qual é o sentido da elevação das centelhas? Quando você vê algo físico, corpóreo e percebe que isso não é realmente mal - que os Céus não permitam! - você pode servir ao Criador, bendito seja Ele, através daquilo. Pois neste algo material você pode encontrar amor e temor, ou outra das qualidades divinas, de tal forma que pode, então, elevá-lo.”[5] Os ensinamentos do Baal Shem Tov foram, após sua morte, elaborados pelo seu mais proeminente discípulo direto, Maguid de Mezritch, que, conforme acima mencionado, foi um dos antepassados de Abraham J. Heschel. A questão central que o Maguid de Mezritch procurou responder foi a da aparente autonomia da consciência humana que se vê como um eu separado de Deus. Visto que, segundo essa doutrina, Deus engloba toda a existência e não há nada que tenha uma existência separada ou independente da Divindade, a noção de eu apresenta-se como problemática. Segundo o Maguid, a existência do homem tem como finalidade fazer Deus ser conhecido. A razão para isso é de Deus só pode ser conhecido em relação a um ser que, embora não seja separado, tenha uma consciência autônoma em relação à divindade. Se Deus não tivesse criado o mundo, não haveria nenhuma consciência acerca de Deus. O ser humano existe para conhecer Deus. No entanto, para conhecer Deus ele precisa transcender à sua aparente existência separada. A autoconsciência humana é necessária para que ele possa conhecer Deus, e, no entanto, esta mesma autoconsciência é - paradoxalmente - um obstáculo para alcançar Deus. Segundo o Maguid, o ser humano precisa erradicar a barreira que o separa do Divino, causada pela “pseudoconsciência” de ser um eu finito separado do Infinito. A superação dessa barreira é o que o Maguid chama de “adoração de Deus”. Nas palavras do Maguid: “Quando nós tornamos a nossa existência transparente ficamos, então, conectados com Aquele que está Escondido.”[6]

O mundo seria, segundo essa visão, uma ilusão que deve ser superada. David S. Ariel chama essa posição ‘acosmism’, a negação mística da existência do mundo. Tal postura apresenta muitas semelhanças com várias correntes do pensamento budista. O pensamento do Maguid seria, assim, a mais radical formulação do panenteísmo no Judaísmo. No hassidismo posterior essa posição aparece de forma mais moderada. Em tal forma essa teologia mística não nega completamente a existência dos seres, mas afirma a existência do mundo “em Deus”. Tal visão tem suas raízes na mística pré-cabalística do Talmude, em que Deus é chamado de HaMakom (“O Lugar”) do mundo, e na mística medieval do Zohar, em que Deus é chamado de Shekhiná (“A Presença”) feminina e maternal onde tudo existe. De acordo com o Maguid, o hassid necessita transformar sua consciência. Através de exercícios místicos, ele consegue superar a consciência do mundo, tornando-o transparente à presença da divindade que abarca toda a existência. Deste modo o hassid consegue transcender o mundo da gashmiut (corporeidade) de forma tal a habitar na ruhaniut (a pura consciência espiritual). O que torna possível ao hassid desassociar-se da consciência física é que, para o Maguid, o mundo é essencialmente um véu tecido por Deus. Através do daven - a oração meditativa – o hassid pode atingir o estado de devekut (adesão) no qual ele transcende a “pseudoconsciência” de sua própria existência e atinge a união com Deus. Segundo Heschel, “não saímos do mundo quando oramos; apenas vemos o mundo de um ângulo diferente”.[7]

Essa técnica também foi chamada, pelo Maguid, bitul hayesh (a tradução literal seria “aniquilamento da existência”, mas, segundo o Rebbe Zalman Schachter Shalomi, a melhor tradução para o conceito é “tornar a existência transparente”). O processo de bitul hayesh tem início quando o hassid passa a entender que o aspecto físico da existência humana é meramente externo, um invólucro para a luz (consciência) do Um. Isto ocorre quando a pessoa entra no estado de oração. A meditação que precede a oração é devotada ao entendimento da relação entre o eu físico e a consciência. Orar, porém, não é fácil, a oração é dificultada por estímulos físicos que assaltam a consciência. Pensamentos sobre negócios, família e as vicissitudes da vida podem se intrometer na mente daquele que ora. Mais do que isso, para o Maguid os pensamentos eróticos podem ser um grande obstáculo a se chegar ao estado de entrega na oração, na medida em que desviam a atenção do indivíduo que deveria voltar-se para o Um. Esses pensamentos, porém, contém em si mesmos centelhas de santidade a ser redimida. Na se trata, então, de negá-los, mas de encontrar Deus em todos esses aspectos da vida. A oração meditativa é, então, uma oportunidade para que o ser humano se reconcilie com as intromissões que chegam à sua consciência. A esse respeito, Heschel escreve: “A oração não é um pensamento que vagueia só no mundo, mas um acontecimento que começa e termina em Deus. O que vai em nosso coração é uma preliminar humilde a um acontecimento em Deus.[8]” A kavaná (concentração) é parte essencial da técnica hassídica, que visa, através da oração, possibilitar a experiência mística.

O Maguid introduziu um profundo despertar acerca do papel da consciência na prática religiosa judaica. Ele distingue duas formas diferentes de autoconsciência: a primeira, denominada katnut (pequenez), e a segunda, a consciência mística denominada gadlut (grandeza). A pseudoconsciência é um obstáculo para atingir o Divino. Deus não está no céu, mas, sim, em toda a existência. A consciência mística é o objetivo final dos hassidim e a oração, a técnica para a sua aquisição. As várias correntes dos hassidismo que nos séculos XIX e XX se desenvolveram do núcleo original do Baal Shem Tov e do Maguid de Mezerich continuaram, de formas variadas, as técnicas de obtenção da experiência mística através do daven, a oração extática. Heschel desde pequeno bebeu água nessa fonte de forma muito direta e viva. Tal forma se tornou seu modo próprio de rezar. Mesmo quando veio a morar em Nova York, Heschel continuou freqüentando minianin, grupos de oração hassídicos onde podia sentir-se em casa. Essa vivência e experiência existencial são o pano de fundo a proposta de reencontro com a oração que ele faz em “O Homem à Procura de Deus”, onde desenvolve como tema central a oração como proposta de exercício espiritual e técnica de reencontro com o mistério e a transcendência. Neste sentido, Heschel identifica no homem moderno a mesma necessidade premente de transcendência sobre a qual o pensador existencialista cristão Gabriel Marcel escreveu. Marcel identifica a necessidade de transcendência e escreve sobre a necessidade de uma mudança de perspectiva. Heschel propõe a oração como exercício dessa mudança de perspectiva na prática concreta e diária.

Segundo Alfredo Borodowiski, a oração proposta por Heschel envolve mais do que um exercício intelectual: “ela deve envolver o indivíduo em sua totalidade, o corpo e a mente tomados como uma única entidade. Na oração as diferenças entre os domínios espiritual e material são completamente obliteradas”.[9] Na medida em que implica em envolvimento total da pessoa, a oração é descrita por Heschel como uma forma suprema de oferenda a Deus. “A afirmação de que desde a destruição do Templo em Jerusalém a oração tomou o lugar do sacrifício não implica que o sacrifício tenha sido abolido quando o culto sacrificial deixou de existir. A oração não é um substituto para o sacrifício. Oração é sacrifício.”[10]

Acerca dessa passagem Borodowiski afirma que, para Heschel, após a destruição do Templo de Jerusalém (no ano 70 da Era Comum) - até então o local mais sagrado para o Judaísmo - um novo tipo de sacrifício foi instituído: a oração. Essa mudança envolve a mudança do objeto do sacrifício do animal para a própria pessoa. “O individuo é a nova oferenda (korban) consumida durante a oração[11]”. A oração, enquanto oferenda, não é interpretada por Heschel como sendo um diálogo com Deus. Heschel não entende a oração em termos de uma relação pessoa-pessoa, eu-Tu, como Buber. “É incorreto definir a oração por analogia com a conversação humana. Nós não nos comunicamos com Deus. Nós nos tornamos comunicáveis com Ele. (A oração) é um esforço para que a pessoa se torne objeto des seus pensamentos.”[12] O indivíduo é convidado a “viver no pensamento de Deus”. Aqui também a linguagem hescheliana aparece como intérprete do hassidismo. Assim como no altar do Templo o sacrifício era consumido pelo fogo, também, de acordo com as fontes hassídicas, aquele que ora deve chegar a ponto de ser “consumido” pelo fogo do êxtase durante suas orações. Em termos hassídicos, a oração é descrita como “hitlahavut”. A raiz hebraica dessa palavra usada freqüentemente na literatura hassídica é lahav, termo que poderia ser traduzido como flama. Hitlahavut significa “ser completamente absorvido durante a oração até o ponto de perder próprio “self” e despir-se da natureza corporal, hilahavut ha-gashmiut (deixar-se queimar de desejo pelo divino)”[13].

Os mestres do hassidismo foram freqüentemente descritos orando desse modo intenso. Acerca do rabino Aharon Kalin (1736 – 1772), um discípulo direto do Maguid, foi dito que ele “queimava” de temor pelo Criador quando recitava o Cântico dos Cânticos. O rabino Barukh, neto do Baal Shem Tov, é descrito na literatura hassídica como alguém especialmente famoso por sua capacidade de atingir o hitlahavut durante suas recitações. Sobre o próprio Baal Shem Tov se diz que, nos dias de lua nova, sua face queimava como uma tocha durante o daven[14]. De acordo como todas essas fontes, hitlahavut é descrito como um fogo flamejante que consome o indivíduo durante a oração. A ligação entre a oração e o fogo sacrificial reflete, também, na relação que as fontes hassídicas fazem entre a oração e o ato de morrer. Comparando a oração ao sacrifício, Heschel cita as palavras do Baal Shem Tov, que dizia ser “um milagre que uma pessoa possa sobreviver à hora da meditação”.

Por fim, um outro aspecto relevante da mística hassídica que transparece na interpretação hescheliana da oração é a noção de dignidade das palavras. Essa noção, de dignidade das palavras como veículos do espírito, já está presente nos poemas do jovem Heschel. Neles, a experiência com o Inefável se apresenta na forma de uma poesia densa, que chega a tomar a forma de oração. Aqui vem à tona a noção de piut, os poemas litúrgicos que caracterizaram a expressão artística e piedosa dos judeus medievais. Vários piutim passaram a integraram com o tempo o sidur, o livro das rezas diárias, e aparecem em grande número na liturgia de Rosh Shaná e Yom Kipur. O piut heschelino quer trazer a experiência do divino para perto da experiência do homem moderno. Em Heschel a palavra tem como função estimular a pessoa, para que ela busque a experiência do pathos. Deste forma, a palavra em Heschel pensa a palavra como um veículo de inspiração. Quando descreve a função da palavra na recitação da oração, Heschel reconhece nela não um símbolo, mas, antes, um instrumento expressivo para a concentração e um veículo para o espírito humano. Também de acordo com as fontes hassídicas, cada palavra é, em si mesma, uma entidade completa e, como tal, um veículo que faz a interface humano-Divino[15].

A parte final de “O Homem à Procura de Deus” é dedicada à crítica da teoria dos símbolos na teologia e na filosofia da religião. Como explicar essa aversão a uma teoria aparentemente tão bem sucedida e aceita? O interessante é que nos escritos de Paul Tillich, um dos mais importantes defensores da teoria do simbolismo na religião, pode estar a chave para entender este aspecto da obra hescheliana. Em “Dynamics of Faith”, um de seus escritos centrais, Tillich distingue um tipo de fé e, portanto, de concernência religiosa, que tem como característica a vontade radical de transcender os símbolos em nome do encontro com o Inefável: o misticismo. “Mas como é esta mesma experiência possível, se o ultimal é tal que transcende toda a experiência possível? A resposta dada pelos místicos é a de que há um lugar onde o ultimal está presente no mundo finito: as profundezas da alma humana[16].” Segundo Heschel, a oração é um caminho para o despertar do ser humano, que ela é um veículo para a manifestação do Divino. O ser humano tem na oração um instrumento para a descoberta de si mesmo como símbolo, isto é, a manifestação viva do Deus vivo. Este é a promessa contida na obra de Heschel. Mas será que tal promessa mística é compatível com a racionalidade necessária para a filosófica? Novamente é Tillich quem responde: “O misticismo não é irracional. Alguns dos maiores místicos da Europa e da Ásia foram, ao mesmo tempo, seus maiores filósofos, despontando com claridade consistência e racionalidade[17]”. A consistência da obra hescheliana encontra-se na radical adesão a suas origens hassídicas.

Bibliografia

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TILLICH, Paul – Dynamics of Faith. New York: Perenial Classics, 2001

Notas

[*] Sociólogo, mestre em Estudos Judaicos pela USP.

[1] Heschel, A. J. – O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas 1974a, p

[2] Merkle, John C. - The Genesis of Faith, New York: Macmillan Publishing Company, 1985, p. 4 - 5.

[3] Seltzer, Robert M. - Povo judeu, pensamento judaico. Rio de Janeiro: Koogan Editor, 1989 (Coleção Judaica), p. 748.

[4] Sefer Tzevaat Ha-Rivash. Jerusalem, 1973, p. 21

[5] Levi Itzhaak de Berditchev - Sefer Kedushat Levi. Jerusalem, 1958, Parashat Pekudei

[6] Hayim Hayke de Amdur - Sefer Hayim va-Hessed. Jerusalem, 1953, p. 14

[7] Heschel, A. J. – O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas 1974a, p. 23

[8] Heschel, A. J. – O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas 1974a, p. 32

[9] Borodowiski, Alfredo Fabio, “Hasidic Sources in Heschel’s Conception of Prayer”, in Concervative Judaism, vol L, number 2-3, Winter /Spring 1998, p. 36

[10] Heschel, A. J. – O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas 1974a, p. 97

[11] Buber, Martin – Tales of Hasidim:Early Masters. New York: Schocken Books, 1947, vol 1, p. 49

[12] Heschel, A. J. – O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas 1974a, p. 27

[13] Jacobs, Louis – Hasidic Prayer. New York: Schoocken Books, 1972, p. 94

[14] Heschel, A. J. – O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas 1974a, p. 65

[15] Likutin Yekarin, Lvov: 1863, 2a

[16] Tillich, Paul – Dynamics of Faith. New York:2001, Perenial Classics, p. 69

[17] Tillich, Paul – Dynamics of Faith. New York:2001, Perenial Classics, p. 69