A renovação Popularizadora Católica

André Ricardo de Souza[1] []

Nos anos 1990 a Igreja Católica reconheceu dois fatos bastante negativos para ela: a explosão neopentecostal (Mariano, 1999) e o afastamento de seus fiéis. Crescera flagrantemente a quantidade de católicos tidos como não praticantes, aqueles que não freqüentam os ritos e sacramentos e tão pouco seguem os preceitos religiosos na vida cotidiana. Na verdade, nunca foi grande a quantidade de católicos que têm a religião como algo internalizado, participando de grupos pastorais e movimentos dentro da igreja. Um levantamento feito a serviço da igreja pelo CERIS (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) na Arquidiocese de São Paulo, a maior do país, mostrou que entre 1989 e 1996 o número de matrimônios caiu pela metade e o de adolescentes que obtiveram o sacramento da crisma (confirmação) foi inferior a um terço da quantidade de crianças batizadas, o que evidencia a evasão religiosa (O Estado de S. Paulo, 14/03/98). Outras dioceses brasileiras também constataram esta redução na procura dos sacramentos. Além disso, é cada vez mais explícita a defasagem entre a doutrina da igreja e a conduta da população católica, sobretudo no que diz respeito à questão dos anticoncepcionais e correlatos do uso de camisinha como meio de prevenção à Aids.

Uma vez reconhecida a crise, a Igreja Católica passou a debater explicitamente as formas de manutenção de sua soberania no cenário religioso e de recuperação da influência moral na sociedade. Antes, os debates se voltavam quase que exclusivamente para a crítica ao governo, sempre num posicionamento político de esquerda. Mas isto vem mudando. Em agosto de 1995 o Seminário da Pontifícia Comissão para a América Latina, realizado em Petrópolis, Rio de Janeiro, discutiu uma "ação evangelizadora da família diante do desafio das seitas". Aconselhado por estudiosos da religião, o episcopado católico passou a não mais designar as denominações evangélicas como seitas. Isso se deu praticamente a partir da 2ª Conferência Geral da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (Cehila) e da 17ª Assembléia da Conferência dos Religiosos do Brasil, ambas ocorridas em julho de 1995. Em dezembro de 1996 foi lançado o Projeto "Rumo ao Novo Milênio", um documento que aponta claramente o objetivo de aumentar o número de católicos praticantes, ressaltando que a adesão religiosa não é mais uma mera herança familiar, dadas as possibilidades de fé ao alcance das pessoas. Passou-se a escrever e falar sobre inculturação, um termo que designa a estratégia da igreja de assimilar práticas e símbolos profanos, sobretudo da vida urbana, a seu enredo religioso.

A Igreja Universal do Reino de Deus, de abominável passou a admirável, em determinados aspectos. Alguns padres freqüentaram templos dessa igreja e detectaram aspectos considerados positivos, portanto passíveis de ser incorporados. O padre Antônio Carlos Frizzo, então subsecretário regional da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), após tais visitas, concluiu que a igreja deveria recuperar alguns rituais de sua tradição para satisfazer o mesmo público que procura a Igreja Universal, referindo-se às antigas bênçãos das velas, das mulheres grávidas e de São Brás, para a dor de garganta, por exemplo (Jornal do Brasil, 18/02/1996). Crescia a adesão à proposta de uma liturgia festiva, de linguagem simples e, portanto, mais facilmente compreensível pelas camadas populares. De modo difuso e fragmentado, a Igreja Católica procurava aprender com a concorrente evangélica. Práticas mágicas, de grande penetração na população brasileira, passaram a ser reintroduzidas ou revalorizadas pelo catolicismo dos clérigos, até mesmo pelo catolicismo oficial.

O uso de certas armas do inimigo passou a ser explícito depois que a guerra contra ele foi declarada. Em outros termos, a partir do episódio do "chute na santa", em 1995, a Igreja Católica assumiu efetivamente a disputa por fiéis com a Igreja Universal do Reino de Deus. Aquele foi o estopim de um confronto indisfarçável. Nenhuma outra religião havia desafiado a Igreja Católica como o neopentecostalismo liderado por Edir Macedo. Isso teve de imediato duas conseqüências relevantes: a unificação do comando episcopal e a indignação de católicos antes indiferentes à crise da igreja. Ao assumir o confronto com a Universal do Reino de Deus, a Igreja Católica apresentou-se como defensora da moral e dos bons costumes da sociedade brasileira e para isso contou com a força nada modesta da Rede Globo de Televisão, interessada evidentemente em fazer frente a sua concorrente neopentecostal, a Rede Record.

Em outubro de 1997 João Paulo II veio ao Brasil pela terceira vez. Celebrou uma grande missa no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, com a presença de cerca de dois milhões de pessoas e a cobertura de grandes emissoras de TV, sobretudo da Rede Globo. A cidade foi preparada cuidadosamente para receber o pontífice, tudo sob o comando do arcebispo Dom Eugênio Sales. Em resposta, a Igreja Universal do Reino de Deus protestou contra a isenção de impostos concedida às empresas que patrocinaram a visita do papa, conforme a Lei de Incentivo à Cultura. A Universal cobrou um ressarcimento aos cofres públicos de supostos prejuízos causados pelos benefícios fiscais concedidos, argumentando inclusive a ilegalidade da reforma das igrejas constantes da rota de passagem do papa, paga pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Aliás, nessa cidade, que é seu berço natal, a Igreja Universal viria a construir seu maior templo, no bairro suburbano Del Castilho, numa área de 54 mil metros quadrados, com capacidade para 11 mil pessoas[2].

Como se pode ver, tem havido ataques e contra-ataques nesse confronto armado no cenário religioso brasileiro. Para isso a Igreja Católica conta com a arraigada devoção aos santos, principalmente à Virgem Maria (Beinert, 1980). O culto mariano é forte e visível, sobretudo nas romarias aos santuários dedicados a ela, dentro e fora do país, nos nomes de cidades, bairros, fazendas, lojas comerciais e também nos vidros dos carros que circulam pelas cidades brasileiras. Tem sido comum encontrar adesivos de carro com as imagens de Maria, com destaque para Nossa Senhora de Medjugorje, conhecida como a Rainha da Paz. A estampa começou a ser distribuída pela organização Servos da Rainha, de Brasília, voltada para a divulgação das aparições que estariam ocorrendo em Medjugorge, na Bósnia e Herzegovina, desde de junho de 1981[3]. Outra versão estrangeira da Virgem, bastante popular no Brasil, é Nossa Senhora de Fátima, cuja imagem vez ou outra é trazida de Portugal para ser venerada em estádios de futebol e ginásios de esporte. Aliás, o próprio João Paulo II é um exemplo de devoto à Nossa Senhora, a quem ele atribui a graça de ter sido salvo de um atentado no dia 13 de maio de 1981, dia da Virgem de Fátima (O Estado de S. Paulo, 24/08/1997).

A Renovação Carismática Católica é sem dúvida o movimento organizado eleito pela igreja como trunfo para reavivar o catolicismo. Este movimento tem sido efetivamente abraçado como projeto principal em muitas dioceses do país. Antes, nas décadas de 1970 e 80, a Renovação encontrava fortes resistências da parte do clero conservador e clericalista, bem como da ala progressista afinada com a Teologia da Libertação. Com as mudanças que vêm ocorrendo no episcopado brasileiro - nomeação de bispos e cardeis simpatizantes ou adeptos do Movimento e aposentadoria ou transferência para dioceses menos importantes de bispos contrários - a Renovação vem crescendo e fortalecendo sua estrutura no interior da Igreja Católica. O movimento carismático hoje apresenta diversas facetas e tendências, ora enfatizando um aspecto, ora outro, mas dois traços recentes já parecem ser genéricos:

1. Centralização do clero

A Renovação Carismática é originalmente um movimento de leigos, iniciado e liderado por eles. Os leigos detêm cargos de coordenação em âmbitos paroquial, diocesano, regional e nacional. São eles que coordenam os grupos de oração, que são as células do movimento. E eles também organizam os encontros, seminários e congressos que reúnem membros de vários grupos de oração. Mas o clero sempre teve um papel importante na vida da Renovação. Bispos e padres foram sempre assessores, coordenadores adjuntos ou responsáveis pelo Movimento perante a igreja. Ou seja, de alguma forma, sempre houve tutela.

Nos últimos anos, muitos padres e bispos vêm procurando dialogar com o movimento e então o vêm assumindo explicitamente. O Estado de São Paulo é centro das atenções do país, neste aspecto também. A Renovação foi trazida inicialmente para Campinas, em 1969, por intermédio do padre jesuíta Eduardo Dougherty. Outro pólo irradiador do movimento é a cidade de Cachoeira Paulista, sob a coordenação do padre Jonas Abib. Mas a maior liderança eclesiástica da Renovação no momento é Dom Fernando Figueiredo, que é presidente do Regional Sul 1 da CNBB, que reúne todas as dioceses do Estado de São Paulo e o bispo da diocese de Santo Amaro, na Grande São Paulo. Estas três localidades são focos do Movimento Carismático no país. Além delas há que se lembrar a sede da Arquidiocese de São Paulo, agora coordenada por Dom Claudio Hummes, que ao contrário de seu antecessor, Dom Paulo Evaristo Arns, tem bastante afinidade com o movimento[4]. Esses clérigos são, sem dúvida, as maiores autoridades dentro do Movimento Carismático hoje.

2. Renovação popularizadora

A Renovação Carismática é tipicamente um movimento de classe média, conforme assinalou Reginaldo Prandi (1997). Os carismáticos têm renda e escolaridade maiores do que a média dos demais católicos. O movimento incentiva a leitura, sobretudo dos próprios autores carismáticos, e promove palestras, cursos e seminários. Há precedência para a emoção, bastante expressa corporalmente, mas não deixa de ser um movimento intelectualizado. Isto é, a RCC produz e reproduz uma linguagem elaborada, levando-se em consideração os baixos padrões de escolaridade dos católicos e da população em geral.

A promessa da cura tem papel fundamental no pentecostalismo e é importante também na Renovação Carismática. As missas de libertação, celebrações em que se enfatiza a cura, junto com as reuniões dos grupos de oração e os cenáculos[5], são os pilares da vida religiosa carismática. Apesar de o diabo também figurar no imaginário dos católicos carismáticos (Carranza, 1998), não se atribui nitidamente a causa do mal a uma figura externa ao indivíduo. Isto é, na Renovação Carismática o mal é tido como desequilíbrio do próprio indivíduo por distorção, limitação ou ausência de fé. Muitas doenças físicas são concebidas como decorrência de problemas psíquicos, para os quais a fé carismática seria o antídoto. Entretanto, com o agravamento dos problemas sociais, sobretudo o desemprego, muitas pessoas estão recorrendo às religiões em geral para a busca de soluções. Sobretudo as pessoas mais pobres e menos escolarizadas, procuram no serviço religioso a terapia, a orientação e o encorajamento que lhes faltam. Os fiéis levam água, sal, e objetos pessoais para serem abençoados nos diversos templos que as cidades apresentam. A Renovação Carismática, que evidentemente não está alheia a tudo isso, vem procurando responder a essas demandas de modo heterogêneo, segundo às especificidades locais e o carisma de seus líderes, em especial dos sacerdotes. A Renovação apropriou-se e tem feito uso de elementos do catolicismo tradicional, resgatando e re-elaborando símbolos e práticas como a reza do terço, as novenas e a procissão com a ostensório portando a hóstia sagrada, o Santíssimo Sacramento, que representa o próprio Jesus Cristo. Nas missas de libertação, a procissão do Santíssimo pela igreja, conduzido pelo padre, é o momento de êxtase maior.

Grande parte da população que procura as religiões nos momentos de aflição não é familiarizada com a terminologia e o conteúdo doutrinário dominados pelas pessoas com vivência religiosa internalizada. Para esse contingente que vem de fora, faz sentido e portanto tem efeito atrativo uma mensagem simples e direta. A música e a dança aí se encaixam como luvas, macias e gostosas, afinal prazer não é necessariamente pecado. Isto mesmo, por que não ligar fé e entretenimento? A música e a dança já ditam o rito católico há tempos, embalando principalmente o público jovem. O que se começou a fazer nos últimos anos foi assimilar ritmos, coreografias e práticas mundanos, de modo mais intenso, tal como tem sido feito em algumas igrejas evangélicas, assumidamente[6]. Os carismáticos parecem ter aprendido com os pentecostais a trazer elementos do mundo secularizado para dentro da igreja, dando às suas formas o conteúdo religioso, desta vez católico[7]. Por isso encontramos hoje acampamento, rodeio, barzinho, quadrilha, carnaval, aeróbica, tudo "de Jesus".

Os carismáticos ganharam terreno e sinal verde para se expandir conforme a Teologia da Libertação entrou em refluxo. Além desse êxito, à medida que o afastamento de fiéis e a ameaça neopentecostal se tornaram evidentes, eles passaram a falar não mais só em nome de seu movimento, mas sim da Igreja Católica como um todo. Tendo sido praticamente superada a barreira imposta pela ala politizada no interior da igreja, o desafio passou a ser o de reagir contra a concorrência evangélica, sobretudo. Ao defender a Igreja Católica, o Movimento Carismático passou a falar a mesma língua de outros movimentos da igreja e do catolicismo em geral. Especialmente para os clérigos, sempre lembrados em seu dever de obediência ao papa, é mais fácil se auto proclamar católico do que carismático. Falar em "diversidade na unidade" e explicitar a fidelidade à instituição sediada no Vaticano parece mais conveniente do que alimentar a identidade de um movimento interno, o que no limite poderia levar ao nascimento de uma outra igreja, algo sempre difícil e traumático. A idéia de unidade frente à concorrência religiosa externa propiciou a formação de um novo "orgulho de ser católico". Assim surgiu o slogan "Sou feliz porque sou católico", popularizado principalmente através dos adesivos para carro. Um personagem é central nessa renovação popularizadora da Igreja Católica: padre Marcelo Rossi.

As missas do padre Marcelo

Marcelo Mendonça Rossi foi ordenado padre em 1 de dezembro de 1994, aos 27 anos de idade e passou a chefiar a paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Santa Rosália, da diocese de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, onde ele já atuava como diácono e era conhecido pelo modo alegre e coreografado com que conduzia as celebrações. Além de animado, padre Marcelo é considerado bonito e comunicativo, ou seja, um padre ideal para atrair e interagir com a multidão de fiéis que estava afastada da Igreja Católica, alguns aderindo ou prestes a abraçar outra religião. O padre celebrava as "missas de libertação", como outro presbítero carismático qualquer, com o total apoio do bispo local, Dom Fernando Figueiredo.

As "missas de libertação" do padre Marcelo aconteciam às quintas-feiras, de manhã, tarde e noite e aos sábados, à tarde. Logo o padre se tornou bastante conhecido e já em 1997 suas missas especiais reuniam por volta de cinco mil pessoas. Àquela época o templo ainda estava em construção e depois de pronto teria capacidade para apenas 600 pessoas. Milhares de fiéis vinham de bairros e municípios periféricos da Região Metropolitana, em busca de cura e outras graças, a rua se tornava uma extensão da igreja e a celebração acabava acontecendo parcialmente a céu aberto. Os devotos fechavam a rua e ouviam as missas através de caixas de som. A sede da paróquia fica no Jardim Prudência, bairro tipicamente de classe média, com muitos prédios residenciais ao redor da igreja. Junto com os fiéis vinha um exército de ambulantes que acabava deixando sujas as ruas, apesar do esforço da equipe de trabalho da paróquia para limpar e organizar o espaço ocupado. Além disso o trânsito ao redor ficava bastante congestionado e as pessoas tinham dificuldade para entrar em casa com seus carros. Incomodados e argumentando até desvalorização de seus imóveis por causa do transtorno causado, os vizinhos protestaram, ameaçando fazer abaixo-assinado e instaurar ação judicial para que as missas do padre Marcelo fossem removidas daquele lugar (Já, 23/11/1997).

O público freqüentador das missas do padre Marcelo foi crescendo à medida que ele ganhava fama. Ao longo de 1997 muitas pessoas passaram a seguir o padre por onde ele fosse se apresentar, celebrando missas ou apenas cantando. Nessa época ele já recebia cerca de 3 mil cartas por mês. Uma verdadeira legião de fiéis ou fãs estava em formação. Em 2 de novembro do mesmo ano, feriado de Finados, ele foi o principal responsável pela atração de 100 mil pessoas para um encontro chamado "Sou feliz porque sou católico", no estádio do Morumbi, feito nos moldes de um cenáculo. Cerca de 30 mil pessoas ficaram de fora do estádio, acompanhando o evento através de um carro de som (Renovação Carismática, dezembro de 1997). Convites para apresentar programas de rádio e televisão foram aparecendo e Marcelo Rossi foi aceitando. Afinal, esta era a forma de atingir mais pessoas com sua mensagem, entrando na casa delas através da mídia eletrônica. Àquela época ele já apresentava programas nas rádios América e Jovem Pan e nas tevês Manchete e Rede Vida.

Toda essa divulgação só fazia aumentar a procura de fiéis pelas missas e, consequentemente, as queixas dos vizinhos também. A opção foi alugar outro espaço, um local de shows musicais e danças, com capacidade para 20 mil pessoas, na época conhecido como Gonzagão, no bairro de Santo Amaro. A primeira celebração nesse local aconteceu na manhã de 12 de fevereiro de 1998 e contou com a participação de 10 mil pessoas, sendo cerca de 90% de mulheres que levavam carteiras de trabalho dos maridos e filhos desempregados, além de garrafas d'água, sal, óleo, fotos e roupas de parentes doentes para serem abençoados, tal como velhos santuários milagreiros do catolicismo tradicional. O padre justificou o uso daquele lugar para a realização das missas "esse local transformou-se de palco em altar, de lugar de shows em lugar santo" e durante a missa falou da esperança na obtenção de milagres, da presença dos anjos no local, da prevenção contra o "maligno" e da fé em Nossa Senhora. (O Estado de S. Paulo, 13/02/98). As missas aconteciam nesse local às quintas-feiras pela manhã e à tarde.

Padre Marcelo encarna a figura do bom moço que deixou os prazeres da vida secular para dedicar-se ao sacerdócio e ao celibato e para muitos "está trazendo os católicos de volta". Ele utiliza frases curtas e exemplos facilmente compreensíveis: "Jesus é o caminho, eu sou apenas a seta que aponta para esse caminho". Discursa relativamente pouco e quando o faz, trata muito mais de questões pessoais e genéricas do que de questões sociais e políticas. Ele brinca com sua platéia, canta e dança bastante. Membros do clero e estudiosos do catolicismo dizem que ele vem tornando essa religião algo light, fácil de entender e de seguir. Isto parece tornar-se evidente, também, através de algumas músicas gravadas em seus CDs, em que são aproveitados ritmos populares, como o vira português, em refrães que até lembram sucessos infanto-juvenis, como os da cantora Xuxa, por exemplo[8]. Marcelo Rossi facilitou o canto e a reza também. O terço, comumente rezado nos grupos de oração carismático ou então antes das missas, ganhou uma nova versão mais simples: o terço bizantino. Padre Marcelo tem um livro e um CD com este título. O terço bizantino, chamado de cikotki pela tradicional liturgia bizantina, que o padre propala, é na verdade uma simplificação do terço ou rosário de Nossa Senhora, com 110 contas ao invés de 165. Sua duração é de aproximadamente 10 minutos, contra 30 do terço da liturgia ocidental. Através dessa versão não são contados os chamados mistérios, fatos bíblicos da "história da salvação", que devem orientar a contemplação do fiel na oração. O que se faz é repetir várias vezes a mesma jaculatória, uma frase curta em forma de prece: "Jesus me ajude; Jesus me cure; Eu te amo Jesus; Fique comigo Senhor; Obrigado Jesus". Padre Marcelo afirma que a reza do terço bizantino tem poder curativo, pois o fato de repetir várias vezes faz com que "nossa mente seja envolvida por aquilo que estamos falando". Segundo o padre, as pessoas dizem coisas negativas para elas mesmas e por isso ficam deprimidas e doentes e a reza do terço pode leva-las a ter um sentimento mais positivo a respeito de si mesmas. Ou seja, o terço bizantino seria um instrumento de promoção de auto ajuda, porém com a bênção divina.

Com a popularidade crescente do padre Marcelo, o Gonzagão logo se tornaria pequeno também para a massa que freqüentava suas missas. Ele gradativamente se tornava uma vedete para além dos limites da Igreja Católica. Críticas dentro da igreja apareciam veladamente aqui e acolá, mas Dom Fernando Figueiredo sempre defendia e apoiava as investidas do padre famoso, participando ao lado dele em vários eventos. O bispo só deve obediência de fato ao papa e no caso particular de Dom Fernando, bem situado no arranjo político atual do episcopado brasileiro, o poder é ainda maior. Padre Marcelo sempre mencionou esse respaldo "o meu bispo Dom Fernando me apoia...". Firmou-se assim um casamento perfeito, pois o sucesso do padre revertia em prosperidade para a diocese e sucesso para seu bispo também.

Com essa força Marcelo Rossi partiria para outra empreitada, alugar um espaço ainda maior. E assim o fez. Em 31 de maio de 1998 ele celebrou a primeira missa no galpão de uma antiga fábrica desativada, em Interlagos, para um público presente estimado em 40 mil pessoas. O novo espaço, com 20 mil m2, foi oficialmente inaugurado na manhã do domingo seguinte, 7 de junho, com a presença de Dom Fernando Figueiredo e foi batizado como Santuário do Terço Bizantino. As missas passaram a ser celebradas ali às quintas-feiras pela manhã e à noite e aos domingos, de manhã e à tarde. Posteriormente um verdadeiro exército de cerca de 900 voluntários seria formado para trabalhar no santuário. Segundo contou Flávio Andrade, coordenador da Renovação Carismática na Diocese de Santo Amaro, há autonomia de trabalho na estrutura montada ao redor de padre Marcelo, em relação ao Movimento Carismático "o trabalho dele é coisa dele, com uma diretriz própria". No Santuário do Terço Bizantino formaram-se grupos pastorais, independentes da paróquia do padre. Foi o que me contaram, aparentemente sem ressentimento, os membros do grupo de oração que se reúnem na sede da paróquia.

O novo santuário comporta mais gente até do que a Basílica de Aparecida, capital da fé católica, com capacidade para 30 mil pessoas, aproximadamente (O Estado de S. Paulo, 01/06/98). Cinco meses antes, no dia 1 de fevereiro de 1998, antes mesmo de o padre Marcelo transferir suas missas da igreja de origem, foi inaugurado o maior templo da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo. Tal igreja foi construída para receber até 10 mil pessoas sentadas, dispondo também de espaços para estacionamento, berçário, escola bíblica e uma loja para vender bíblias e produtos ligados à igreja. O que confere relevância maior a esse ocorrido é o fato de o templo situar-se no bairro de Santo Amaro, muito próximo do local onde viria a ser montado o Santuário do Terço Bizantino. No Santuário do padre Marcelo também há estacionamento e se vendem bíblias, terços e produtos ligados à fé católica, sobretudo livros, CDs e fitas de vídeo cassete relacionados ao padre comunicador, sem falar na legião de ambulantes que informalmente vendem uma profusão de artigos nas ruas do lado de fora. A instalação ironicamente próxima, de ambos os templos, foi mais uma batalha da tal "guerra santa".

O público do Santuário do Terço Bizantino

No dia 12 de dezembro de 1999, um domingo, realizamos um pequeno survey para caracterizar o perfil do público que então freqüentava as missas no Santuário do Terço Bizantino[9]. Entrevistamos uma amostra de 270 pessoas na entrada e na saída das missas das 9 e das 15 horas. Além das perguntas com alternativas fechadas de respostas, quando possível, captamos e registramos por escrito algumas impressões a fim de fazer uma avaliação mais ampla e minuciosa.

O contingente feminino foi realmente grande, quase três vezes maior que o masculino, 73% contra 27%. Este dado ressalta a preponderância de mulheres no catolicismo praticante, sobretudo entre os carismáticos, conforme pesquisa nacional feita em 1994 (Prandi, 1997: 165).

A maioria afirmou ir com certa freqüência ao santuário, pois 67% já participaram das missas pelo menos duas vezes. O motivo para ir às missas do padre Marcelo também foi perguntado e a maior parte, 46%, respondeu que foi porque se sente bem e a missa é alegre. Entre os demais, 20% porque gosta muito do padre, 17% por curiosidade e também 17% por motivo de necessidade devido a problemas de saúde ou outros. Quanto à procedência, 46%, a maior parte, vieram de outro município enquanto 29% vieram da Zona Sul da cidade de São Paulo e 25% vieram de outras áreas da capital paulista.

Os dados acima nos permitem concluir que há dois grandes grupos distintos, o das pessoas que moram próximo ao Santuário e o das que vêm de outros municípios, às vezes de outros estados, muitos deles de ônibus em romarias. Em ambos os casos o motivo apontado para ir à missa, que prevalece, é o fato de ela ser alegre, das pessoas se sentirem bem. Sendo que a busca da solução de um problema não é tão mencionada, apenas 17%. Pode-se deduzir que a ida às missas do padre Marcelo Rossi se tornou também um programa de passeio e lazer. Muitas pessoas parecem conceber essas celebrações como oportunidade de distração, sem pagar, ao menos para participar, evidentemente. Cabe aqui o comentário de que a participação religiosa, independente da opção de fé, vem sendo cada vez mais caracterizada como busca de sociabilidade e de entretenimento também[10].

Uma questão que se coloca na análise dos dados coletados é que tipo de católico tem freqüentado essas missas. E aí duas classificações gerais são pertinentes: os carismáticos e os católicos chamados tradicionais, aqueles que não participam de grupos ou movimentos. Afinal pretendia-se avaliar se essas missas têm realmente contribuído para "trazer os católicos de volta para a igreja" e esses que estavam afastados, evidentemente, só podem ser católicos tradicionais. Ao responder à pergunta se se consideravam carismáticas, 57% das pessoas responderam que sim, enquanto 26% disseram que não sabiam e 17% disseram que não eram carismáticas. Entretanto, na seqüência das respostas verifica-se que o número de carismáticos é muito menor, na verdade. O critério que definiu a condição de carismático ou católico nominal foi o pertencimento ou não a grupo de oração. Aí então ficou claro: 76% dos entrevistados são católicos tradicionais, ou seja, alcançados pelos traços da mídia eletrônica.

Classificados os dois grupos, carismáticos e católicos tradicionais, distribuíram-se suas freqüências quanto a outras variáveis. Enquanto 9% dos carismáticos têm entre 19 e 25 anos de idade, 23% dos católicos tradicionais estão nesta faixa etária. Os carismáticos entre 41 e 60 anos são 42% do total, já entre os tradicionais 24% estão nessa faixa. Isso nos permite concluir que o público católico nominal é mais jovem do que o carismático, ou seja, que a atração dos fiéis que estavam afastados é maior entre os mais jovens. Isso talvez se deva ao caráter de entretenimento, aliado à dança e à música, enfim, ao caráter de espetáculo que a missa inegavelmente tem.

Conhecida a proporção dos católicos não carismáticos, que vêm participando da missa no Santuário do Terço Bizantino, o passo seguinte foi verificar a taxa dos que freqüentaram outra religião. 77% dos entrevistados sempre foram católicos, algo portanto muito próximo dos 74,9% levantados na pesquisa de 1994 (Pierucci & Prandi, 1996: 215).

Entre os 23% que já abraçaram outra religião, 54% disseram ter sido evangélicos, 34% foram adeptos de religiões mediúnicas (espírita e afro-brasileiras), 6% não tiveram religião e 2% não responderam. Quanto ao tempo de pertença a outra religião, 34% disseram ter feito outra opção religiosa até um ano antes dessa entrevista. Esta proporção nada baixa dos que declararam ter freqüentado outra religião em pouco tempo dá indícios do chamado "trânsito religioso", a busca efêmera do serviço religioso sem adesão consolidada, em que se encontra parcela significativa da população.

Uma dúvida pertinente ainda é quanto à freqüência ou não das pessoas também às missas no lugar onde elas vivem. A proporção dos que vão à missa na paróquia do bairro é de 73% dos entrevistados. Este grupo específico representa 82% dos que sempre foram católicos, portanto os mais fiéis à igreja.

Perguntadas finalmente se tinham passado a freqüentar ou não as missas da igreja, em geral, depois que conheceram o padre Marcelo, 29% confessaram que sim. Mas ao cruzar essa informação com a anterior, sobre a freqüência ou não à missa do bairro, verifiquei que na verdade 16% dos entrevistados realmente passaram a freqüentar a missa depois do sucesso do padre. Assim pude obter dois dados importantes: 8% da população entrevistada freqüentaram outra religião e passaram a ir às missas e por último, 6% apenas eram evangélicos e passaram a freqüentar a missa depois que o padre Marcelo virou uma estrela.

Isso tudo nos permite concluir que a tal "volta de católicos por causa do padre Marcelo" não é, ao menos por enquanto, efetivamente grande como se pode imaginar. Afinal essa "volta" não pode ser tomada apenas pela ida vez ou outra ao Santuário do Terço Bizantino.

O fenômeno e as novas tendências

A popularização das missas do padre Marcelo é a parte mais visível deste fenômeno que extrapolou a Renovação Carismática e que pode ser chamado de renovação popularizadora católica contra o afastamento de fiéis e o avanço religioso concorrente, principalmente o neopentecostal. É portanto uma contra-ofensiva da Santa Madre, à busca de seus filhos desgarrados ou indiferentes. Este movimento difuso e inorgânico se desdobra, apresentando aspectos diversos. Traços do catolicismo tradicional são reincorporados, passando por uma adaptação. Enfatiza-se o poder de cura católico e se fala com mais liberdade em milagres, o que era impensável no período pós-Vaticano II até os anos 1980. Promove um sincretismo entre formas mundanas e conteúdo religioso.

Esta renovação popularizadora católica é, em essência, afirmação da identidade católica, ou seja, propaganda explícita da religião. Aos poucos o ser católico vai se sobrepondo ao ser cristão no discurso primeiro de clérigos e depois de leigos. No mesmo movimento, A Renovação Carismática, esse reavivamento católico, vai se camuflando num discurso de defesa da Igreja Católica como um todo.

As missas do padre Marcelo Rossi ganharam bastante popularidade, chamando a atenção das grandes redes de televisão. Outros padres cantores e comunicadores passaram também a receber sobre si os holofotes da mídia. A católica Rede Vida de Televisão foi certamente um canal importante de divulgação desses padres, mas foi aparição em programas das redes comerciais de TV que os tornaram conhecidos pelo público afastado do igreja. Esses "padres-espetáculo", capazes de tornar missas em shows para multidões, efetivamente ganharam atenção da mídia e estão revigorando a Igreja Católica no enfrentamento do mercado religioso (Prandi, 2000).

Não são só os padres cantores os atores da reação católica ao mercado religioso. Os profissionais e as organizações de marketing e publicidade católica estão estendendo as azas que já vinham colocando de fora há algum tempo e agora procuram fazer a igreja voar para recuperar um suposto tempo perdido. Manifestações de massa vêm sendo organizadas como explícita demonstração de força. Paróquias, dioceses e associações católicas estão se estruturando profissionalmente nos moldes de empresa e com isso aprimoram a comercialização de seus produtos. Enfim, a Igreja Católica vem assumindo uma postura combativa no plano religioso e, indiretamente, no econômico também.

Bibliografia

BEINERT, Wolf (org.). 1980. O culto a Maria hoje. São Paulo, Paulinas.

CARRANZA, Brenda, 1998. Renovação carismática: origens, mudanças e tendências. Aparecida, Santuário.

MARIANO, Ricardo. 1999. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Loyola.

PIERUCCI, Antônio Flávio, & PRANDI, Reginaldo. 1996. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo, Hucitec.

PRANDI, Reginaldo. 1997. Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismático. São Paulo, Edusp e Fapesp.

_____ 2000. Religião, biografia e conversão: escolhas e mudanças. Tempo e Presença. Koinonia, Rio de Janeiro, nº 310, pp. 34-42.

SOUZA, André Ricardo de. 2001. Padres cantores, missas dançantes: a opção da Igreja Católica pelo espetáculo com mídia e marketing. Dissertação de mestrado em sociologia. São Paulo, USP.

Notas

[1] Mestre e doutorando em Sociologia na Universidade de São Paulo.

[2] Um acontecimento curioso nesta disputa religiosa foi o fato de um prédio que antes era ocupado por uma paróquia católica ter sido alugado pela empresa, sua proprietária, para a Igreja Universal do Reino de Deus instalar um templo (Folha de S. Paulo, 27/11/1997).

[3] A estampa de Nossa Senhora da Rosa Mística, também recente, já se propagou pelo país.

[4] A Arquidiocese do Rio de Janeiro, segunda maior do país, também é coordenada por um grande apoiador da Renovação Carismática, Dom Eugênio Sales.

[5] Encontros anuais por ocasião da data festiva de Pentecostes, a vinda do Espírito Santo aos apóstolos de Jesus Cristo, narrada na Bíblia. Os cenáculos são feitos de pregações, testemunhos, apresentações musicais e missa carismática, durante um dia inteiro em estádios de futebol ou ginásios de esporte.

[6] A assimilação de elementos mundanos, neste contexto, se refere sobretudo ao caráter de show, de espetáculo que as missas assumiram.

[7] É emblemático o caso da neopentecostal Igreja Renascer em Cristo, especialmente voltada para o público juvenil. Essa denominação é conhecida por promover shows de música gospel e a já conhecida Marcha para Jesus, que desde 1992 reúne anualmente milhares de jovens em blocos na rua, como se fosse um desfile de carnaval.

[8] Alguns católicos carismáticos que entrevistei disseram que várias músicas cantadas por padre Marcelo já eram há bastante tempo conhecidas na Renovação, "padre Marcelo não inventou nada, porque tudo que ele faz já existia na Renovação. O que acontece é que ele foi descoberto pela mídia." (José Guilherme, 20, coordenador do grupo de jovens da paróquia do padre Marcelo).

[9] Agradeço a Eva Turin, Patrícia Ricardo de Souza e Margareth Cecoti, que participaram desta etapa da pesquisa.

[10] Um exemplo eloqüente é o da neopentecostal Igreja Renascer em Cristo. Antes e depois dos cultos em seus templos, voltados sobremaneira para jovens, costuma haver sessões de patinação e shows musicais.