Epistrophê: Do Duplo Vínculo às Antinomias e de Volta

Otávio Velho[*]

Resumo

Este artigo discute o conceito de duplo-vínculo na obra de Gregory Bateson, a partir de sua inserção no contexto religioso, mais especificamente, na tradição do cristianismo ortodoxo, cujo grande representante é Gregório Palamas. Tal intento justifica o diálogo entre as Teologias de Paul Evdokmov e Vladimir Lossky, a fim de demonstrar como operam as forças paradoxais do discurso religioso, que se contrapõem, em absoluto, com o paradigma da ciência moderna em geral.

Palavras-chave: Gregory Bateson, duplo-vínculo, paradoxo, apofático, Lossky, Palamas, Evdokmov.

Abstract

On this article the author analyses Gregory Bateson’s double-bind concept, based on its insertion in a religious concept, more specifically, in the orthodox Christian tradition, whose greatest representative is Gregório Palamas. This contention justifies the dialogue between Paul Evdokimov and Vladimir Lossky’s Theologies, in order to demonstrate how the paradoxical forces present in religious speech function in absolute opposition to the general paradigm at work since the birth of modern sciences.

Keywords: Gregory Bateson, double-bind, paradox, apophatic, Lossky, Palamas, Evdokmov.

I

No prefácio à coletânea “Steps to an Ecology of Mind” (2000 [1972]), Gregory Bateson (1904-80) descreve como a sua famosa hipótese do duplo vínculo (“double bind”) foi formulada num contexto psiquiátrico na década de 1950, quando trabalhava com o título de “etnólogo” num hospital para veteranos de guerra em Palo Alto (Califórnia). Essa origem na psiquiatria marcaria profundamente o conceito, embora elementos dessa hipótese possam ser vislumbrados nos resultados do trabalho de campo realizado anteriormente por Bateson em Bali juntamente com Margaret Mead, quando constatou a não ocorrência da cismogênese que verificara na Nova Guiné devido a um peculiar tipo de relação entre mães e filhos. E, embora também o seu trabalho psiquiátrico estivesse subordinado à questão geral do “papel dos paradoxos da abstração na comunicação”, que traía o seu encontro com a cibernética nos anos 1940 e que o levaria, a seguir, ao estudo de “material animal”, começando por polvos e prosseguindo com golfinhos, lontras e porcos-marinhos, rompendo a separação entre humanos e não-humanos..

O fato, porém, é que nas suas formulações iniciais (e, para muitos, definitiva) o setting psiquiátrico foi decisivo para o estabelecimento da noção de duplo vínculo. Mesmo porque foi na psiquiatria que o conceito foi mais desenvolvido e aplicado, quando não vulgarizado. Num famoso artigo publicado em 1956, escrito com os seus colaboradores de então e reproduzido em “Steps” (BATESON e outros 2000 [1956, 1972]), logo no parágrafo inicial o conceito é introduzido, caracterizando a situação de duplo vínculo como aquela em que “seja lá o que a pessoa faça, ela não pode sair ganhando” (IDEM: 201). A seguir, o duplo vínculo era definido como uma dificuldade em discriminar entre tipos lógicos, tal como haviam sido postulados por Bertrand Russell: a distinção entre classes e membros dessas classes em níveis sucessivos, ad infinitum. Muito embora, ao contrário do que ocorre na lógica formal, o rompimento dessa distinção entre tipos lógicos já fosse considerada nesse artigo como sendo de ocorrência contínua e inevitável na psicologia da comunicação real, tal como exemplificado privilegiadamente na brincadeira, na fantasia, no sacramento, na metáfora, no humor, na poesia, etc. Seria parte, mesmo, do aprendizado transcontextual e abdutivo que Bateson denominaria de deutero-aprendizado. E a existência de diferentes níveis constituiria a pluridimensionalidade da comunicação. O que ocorreria é que, diante de repetidas mensagens contraditórias em níveis diferentes (em que, por exemplo, a linguagem corporal pode contradizer a fala), acrescidas de ações (sobretudo no contexto familiar) no sentido de evitar que se dê conta da descontinuidade ou de impedir que se produza um enunciado metacomunicativo a respeito, o então caracterizado esquizofrênico criaria padrões (sistêmicos) formais que redundariam em bloqueio geral, impeditivo da discriminação entre tipos lógicos. Embora desde então já fosse reconhecida a possibilidade de duplos vínculos benévolos; por exemplo, no processo de iluminação do Budismo Zen ou mesmo no processo terapêutico.

As vicissitudes do duplo vínculo na própria obra de Bateson, a partir de então, mereceriam uma análise pormenorizada. Mas, para os nossos propósitos no momento, sugeriria pano rápido e um salto até “Angels Fear”, livro escrito com a colaboração de sua filha Mary Catherine Bateson e publicado postumamente em 1987 (BATESON & BATESON, 1987). Ali, salta aos olhos um comentário forte de Bateson incorporado por sua filha a um dos metálogos: “A natureza é uma filha da mãe duplo-vinculante” (idem: 146)! Não só Bateson no metálogo não contesta essa lembrança, como responde afirmando que uma das maneiras pelas quais se teria vulgarizado o conceito de duplo vínculo seria a sua aplicação a “qualquer situação sem possibilidade de se sair vencedor” (ibid.: 146-47). Mas isso – como vimos - é justamente o contrário do que era dito no parágrafo introdutório do artigo supracitado, publicado trinta e um anos antes!

Note-se, portanto, dois deslocamentos:

1) Por um lado, não se trata mais, aqui, apenas do reconhecimento do caráter contínuo e inevitável do rompimento da distinção entre os tipos lógicos - já admitido no artigo de 1956 - mas da generalização do próprio duplo vínculo;

2) Por outro lado, não se trata mais, também, de uma questão de psicologia, mas de uma questão ontológica. É a própria natureza que está em questão.

Uma implicação desses deslocamentos é que, como eles se combinam, a diferença mesma entre o rompimento da distinção entre os tipos lógicos e o duplo vínculo, propriamente, tende a esmaecer. Em “Angels Fear”, ao se queixar da sua vulgarização, Bateson afirma que a relevância do duplo vínculo tem de passar pelos tipos lógicos (BATESON & BATESON, 1987: 147). O que nos autoriza a tratar conjuntamente os dois temas e a prosseguir emulando os esforços audaciosamente abdutivos que caracterizam a obra de Bateson.

Adiante no mesmo livro, ele afirma:

É espantoso que as metáforas religiosas sejam tão amplamente paradoxais. Se é o caso de a lógica possuir inadequações para a descrição do mundo natural, inadequações que têm a ver com a circularidade e a recursividade, então essas são barreiras bastante antigas à compreensão humana. Parece provável que os duplos vínculos não sejam simplesmente artefatos humanos, mas sim que sejam pervasivos. Talvez qualquer organismo seja apanhado na incapacidade de fazer a ponte entre todos os níveis lógicos incluídos numa dada mensagem, de modo que esses precisem de alguma forma serem colapsados, mas a linguagem pode tornar isso mais difícil, e não mais fácil. Isso significaria que os duplos vínculos seriam tanto naturais, quanto necessários, imanentes ao mundo vivo. ... Os paradoxos da religião podem ter sido as metáforas que têm tornado possível viver no interior de um duplo vínculo. (idem, 197)

Parecemos autorizados, portanto, a, num próximo passo na nossa démarche – deixando Bateson de lado por um momento –, verificar como a questão tem se colocado no terreno da religião, que ele próprio destaca. Tarefa gigantesca, ainda mais se não quisermos obscurecer as diferenças: no próprio metálogo referido acima, a propósito dos paradoxos da religião Mary Catherine Bateson (que se especializara em Oriente Médio) chama a atenção para o que ela considera ser uma diferença entre o Cristianismo e o Islã, o primeiro contorcido em contradições e o segundo - de acordo com ela - contido unidimensionalmente na página escrita (BATESON & BATESON, 1987: 146). No presente exercício, no entanto, vamos partir de uma tradição religiosa que parece privilegiada para os nossos propósitos devido à ênfase explícita nas antinomias: a da Patrística, tal como vivida e preservada pela teologia do chamado Cristianismo Oriental ou Ortodoxo. Essa teologia tem sido caracterizada como apofática e antinômica. Em trabalho anterior (VELHO, 2006) já foram focalizadas algumas possibilidades de diálogo com a antropologia abertas por seu caráter apofático. No presente trabalho, pretende-se fazer o mesmo partindo do seu suposto caráter antinômico; registrando-se desde já, no entanto, a relação entre os dois assuntos na medida em que, como se insiste desde o Pseudo-Dionísio (séc. V ou VI), a antinomia é constitutiva da apófase, a negação apofática não devendo ser associada à deficiência e sim à superabundância (“Os Nomes Divinos”, in PSEUDO-DIONYSIUS, 1987: 107), a qual deve ser aproximada – como indicaremos adiante ao incorporar a questão da hierarquia à nossa discussão - por meio de um método e de um movimento anagógicos (idem: 140 e 173) que revelem paulatinamente a “chama das coisas” (VELHO, 2006). Como também é antinômica a própria relação entre a teologia apofática e a catafática, baseada em afirmações positivas (LOSSKY, 2005 [1944]: 23). Recentemente, Michael A. Sells, em seu estudo comparativo das linguagens místicas do não-dito, chamou a atenção para o fato de os paradoxos, aporias e coincidências de opostos no interior do discurso apofático não serem apenas contradições aparentes, mas reais (SELLS, 1994: 3, 4), o que não deixa, desde já, de apontar uma aproximação com o último Bateson.

Utilizaremos trabalhos de dois teólogos russos emigrados radicados na França: Vladimir Lossky (1903-58) e Paul Evdokimov (1900-70). Autores, no entanto, firmemente ancorados na tradição, a qual revela extraordinária atualidade para nós, evidenciada, por exemplo, na defesa que o Pseudo-Dionísio já fazia - em linha com a questão das antinomias - pela preferência por “dessemelhanças incongruentes” como recurso descritivo de modo a evitar o que hoje denominaríamos de “ilusão da representação” (“A Hierarquia Celestial”, in 1987: 150-51). Em uma de suas cartas ele mostra, mesmo, como Deus pode ser apresentado com adereços femininos ou com a armadura dos bárbaros - essa elaborada simbologia passível de revelação apenas aos verdadeiros amantes do sagrado (PSEUDO-DIONYSIUS, 1987: 282/83).

II

Observado de um ponto de vista religioso, o niilismo moderno é brutal. Quando Dostoiévski proclamou que, se Deus não existisse, tudo seria permitido, ele quereria argumentar, por absurdo, que a inexistência de Deus era impensável. E, no entanto, os niilistas levaram-no ao pé da letra. Dividiram-se entre os que tomaram como premissa essa permissividade total e aqueles que tentaram, civilizadamente, demonstrar a possibilidade de um humanismo sem Deus, um humanismo ridículo, na expressão de Luiz Felipe Pondé inspirada no próprio Dostoiévski (PONDÉ, 2003). Não satisfeitos, os niilistas resolveram usar a Ciência como arma, argüindo a incompatibilidade entre esta e a existência de Deus. Aí também se dividiram em dois campos: entre os que apenas ignoraram as incompatibilidades no terreno da própria Ciência - como entre as teorias ondulatória e corpuscular da luz ou entre a relatividade geral e a teoria quântica - e aqueles que, mais imperialisticamente, postulavam a Ciência como definidora universal das incompatibilidades legítimas e das ilegítimas. Nesse último caso, instituíram como que um fundamentalismo da Ciência, quiçá anterior e provocador, por um lado dos fundamentalismos religiosos e, por outro, daqueles, modernos, que, aceitando esse jugo, buscavam demonstrar a compatibilidade, forçada, entre Deus e Ciência.

As conseqüências disso tudo são devastadoras, dostoiévskianas. Inclusive para a própria instituição religiosa, quer quando adere a essas concepções, quer quando reage, por exemplo, reificando e juridificando o texto bíblico, ao invés de tomá-lo como uma linguagem possível para exprimir experiências que não são da ordem do discurso afirmativo. O que se propõe é que melhor seria reportarem-se, todos, à veneranda noção de antinomia, esta sim capaz de referir-se ou mesmo instaurar uma maneira de ver as coisas, uma epistemologia, produtiva e transvaliadora, geradora de uma capacidade de enxergar e experimentar diante da qual essas outras posturas parecem simples, lineares, unidimensionais, quando não mesmo tentativas de a negarem. Deslocaríamos, então, a atenção para o processo de conhecimento, pré-objetivo, abdutivo, no qual, aí sim, talvez pudessem aproximar-se ciência, religião, arte e poesia. Sem falar do modo infantil de experienciar. Uma figura central na tradição ortodoxa para esse e outros assuntos é Gregório Palamas, teólogo bizantino do século XIV (1296-1359). Vladimir Lossky utiliza-o para caracterizar o que seja, justamente, uma “teologia antinômica” – e aqui há uma definição – a qual procederia “por oposições de proposições contrárias, mas igualmente verdadeiras” (LOSSKY, 2001 [1974]: 51). E cita o próprio Palamas: “É um atributo de toda teologia que deseja respeitar a piedade afirmar ora uma coisa, ora outra, quando ambas as afirmações são verdadeiras ...” (idem). E isso por ser necessário manter um equilíbrio entre os dois membros da antinomia. Continua Lossky:

O objetivo dessa teologia antinômica não é forjar um sistema de conceitos, mas servir de suporte para o espírito humano na contemplação dos mistérios divinos. Toda oposição antinômica entre duas proposições verdadeiras cede caminho a um dogma, isto é, a uma distinção real, embora inefável e ininteligível, que não pode basear-se em quaisquer conceitos ou ser deduzida por um processo da razão, visto ser a expressão de uma realidade de ordem religiosa. Se se é forçado a estabelecer essas distinções, é precisamente para salvaguardar a antinomia, impedindo o espírito humano de ser desencaminhado por rompê-la; caindo, então, da contemplação dos mistérios divinos para a ‘platitude’ do racionalismo, substituindo a experiência viva por conceitos. A antinomia, pelo contrário, eleva o espírito do reino dos conceitos aos dados concretos da Revelação. (ibid.: 52)

Lossky dá como exemplo de uma expressão antinômica a teologia trinitária. E cita ainda outro – e aparentemente remoto – Gregório: o Gregório de Nazianzo (cc. 329-90): “Eles são Um distintamente e distintos conjuntamente, por mais paradoxal que essa fórmula possa ser” (LOSSKY, 2001: 24). Outro exemplo dentro dessa tradição são a simultânea incognoscibilidade e cognoscibilidade de Deus, que, na verdade, constitui um ponto de partida para Palamas (PALAMAS, 1983 [escrito em 1338-41]). Bem como o exemplo da dupla natureza de Cristo, ao mesmo tempo Deus e homem, objeto da famosa fórmula do Concílio de Calcedônia (451), que trata do divino e do humano também unidos sem confusão e sem separação, contrapondo-se, assim, ao Nestorianismo (que separava o humano e o divino) e ao Monofisismo (que privilegiava o divino). Todas essas antinomias, aliás, não por acaso foram objeto de intensas controvérsias teológicas (e políticas), bem como de resoluções dogmáticas e conciliares, que, ao contrário do que supõe o senso-comum, em geral trataram de preservá-las; o que mostra o quão centrais e fundamentais têm sido as antinomias, incrustadas no próprio cerne da tradição.

Paul Evdokimov chama a atenção, justamente, para como “ao lado da poesia litúrgica e da fala imagética das homilias, a Igreja criou a linguagem metalógica [OV: lembremo-nos dos metálogos de Bateson], antinômica, dos dogmas”, constituindo “ícones verbais” (EVDOKIMOV, 1959: 174). E cita Santo Hilário (séc. XI?):

A malícia dos heréticos e dos blasfemadores força-nos a fazer coisas ilícitas, a escalar cumes inacessíveis, a falar de assuntos inefáveis, a empreender explicações interditas. Deveria ser suficiente cumprir apenas pela fé aquilo que está prescrito, isto é, adorar o Pai, venerar com ele o Filho e enchermo-nos do Espírito Santo. Mas eis que somos constrangidos a aplicar a nossa humilde palavra ao mistério o mais inenarrável. A falta de um outro joga-nos a nós mesmos na de expor aos azares de uma linguagem humana os mistérios, que se deveria guardar na religião de nossas almas. (idem, 1959: 174)

Evdokimov insiste em como a tradição cristã oriental – em contraste com a ocidental – distingue a “razão” - pensamento discursivo fundado sobre o princípio lógico da contradição e da identidade formal - e a “inteligência”, orientada na direção da coincidência dos opostos e da unidade e identidade pela graça (ibid.: 48). A famosa questão da oposição entre graça e obras, que tanto dividiu o Ocidente cristão, também tem uma solução antinômica (ibid.: 108), bem como a experiência da proximidade (e distância) de Deus ou de sua transcendência e imanência (EVDOKIMOV, 1959: 105, 112). Os dogmas não constituiriam, então, propriamente “palavras humanas” sujeitas à lei da identidade e da contradição, neles havendo a coincidência dos contrários (idem: 175). Salvaguardam a antinomia irredutível na síntese entre o encontro com o Espírito na interioridade do espírito humano e a transcendência absoluta de Deus (ibid.: 176). O dogma trinitário segundo o qual Deus é uno e trino ao mesmo tempo crucifica a razão (ibid: 181). E, enfim, afirma Evdokimov, “a verdade é sempre antinômica (ibid.: 182).

Um dos elementos que vale a pena ressaltar nos comentários feitos acima é a questão da natureza do dogma. Dogma que aqui aparece bem distante de sua acepção do senso-comum, cristalizada na noção de “dogmatismo” e oposta ao que seria uma verdadeira experiência religiosa. Isso, por si, é uma boa ilustração de como essa tradição busca não operar com esse tipo de oposição – não por acaso ela repudia também, entre outras, a oposição consagrada por Weber entre sacerdote e profeta, assim como a oposição aparentada entre instituição e indivíduo. Os dogmas, pelo contrário, devem ser, nas palavras de Lossky, uma maneira de salvaguardar a antinomia contra a platitude do racionalismo; embora muitos dos ataques aos dogmas tenham sem dúvida sido feitos (e o são ainda) em nome de uma demanda de clareza racionalista segura de si mesma, tipicamente confundida com valores como o da liberdade individual em contraposição à autoridade institucional.

Mas, esse trabalho de salvaguarda contra a platitude racionalista dar-se-ia não só nos concílios, que proclamaram os dogmas, mas também no dia-a-dia dos teólogos – que, por sua vez, não se deveriam opor aos místicos. E Gregório Palamas certamente é, nesse sentido, uma figura paradigmática. A ele provavelmente caberia mais do que a qualquer outro o reconhecimento do esforço em empreender as explicações interditas, a que se referiria Santo Hilário.

Palamas é responsável pela consolidação da distinção entre a essência divina e suas energias, a sua operação. E é graças a essa distinção que foi possível estabelecer a simultânea incognoscibilidade e cognoscibilidade de Deus, já que para Palamas (e contra seus adversários, sobretudo o filósofo Barlaam) as energias seriam tão não-criadas - e, portanto, divinas - quanto a sua essência. Essa distinção, na verdade, já estava contida na tradição, mas foi Palamas que realizou o esforço de empreender as explicações interditas que viria a ser reconhecido pelo Concílio de Constantinopla em 1341 e outros subseqüentes. Não só suas conclusões, mas esse próprio esforço não deixou de levantar oposições: se por um lado ele recusa qualquer escolástica, por outro não deixa de se aproximar da escolástica na medida em que tem que se utilizar de um vocabulário filosófico para exprimir a sua posição. Mais uma antinomia, portanto.

Consta que o prenome dado a Bateson foi uma homenagem do seu pai, William, ao monge Gregor Mendel, considerado o pai da genética, cuja obra ele, William, redescobriu, introduzindo, assim, o termo “genética” no vocabulário científico. Mas bem poderia ter sido uma homenagem a esse outro Gregório do século XIV, o Palamas. Exatamente por terem em comum o uso da linguagem para falar de coisas que em princípio não são da linguagem convencional, que na verdade a crucificam. Graças a isso – e eis mais um paradoxo – é que Bateson pode trazer para a ciência uma contribuição preciosa; justamente por insistir em evitar tornar-se preso do pensamento convencional, que de fato não descreveria adequadamente a natureza ou pelo menos os organismos vivos. Ao contrário, insistiu sempre em buscar o inesperado por via da identificação de padrões mais amplos que conectam, de relações abdutivas, etc. E tal como em Palamas, revelando aquilo que – pelo menos em parte - já estava implícito na tradição (no caso, a científica) por intermédio daquilo que os cientistas sempre fizeram à revelia muitas vezes da retórica científica oficial.

III

Voltemos, então, ao nosso ponto inicial, o da relação entre o duplo vínculo e a religião. E isso apesar de curiosamente o próprio Bateson não ter aplicado a noção à questão da relação entre transcendência e imanência, o Deus transcendente sendo considerado por ele simplesmente como um erro epistemológico dualista, mesmo sendo a experiência religiosa para ele a principal fonte que permite vislumbrar a unidade, o “padrão que conecta”, que associava ao sagrado e à estética. A essa altura talvez se pudesse argüir que o duplo vínculo supõe um elemento que não está contido necessariamente nas noções de antinomia e de paradoxo: a articulação entre diferentes níveis lógicos, no sentido de Russell. Sendo que a existência de diferentes níveis na comunicação seria fundamental para caracterizar a sua pluridimensionalidade. Peter Harries-Jones (1995: 243-251), no entanto, que teve acesso ao arquivo de Bateson (aí incluídas as suas cartas e a versão não editada por Mary Catherine Bateson de Angels Fear), sugere que distingamos a questão crucial dos níveis da questão da utilização dos tipos lógicos de Russell. Segundo ele, Bateson estava consciente da precariedade do recurso aos tipos lógicos, e haveria elementos que indicariam uma tentativa de superar esse instrumento. Um deles teria a ver com a importância concedida ao tempo (e ao aprendizado), não contemplado nos tipos lógicos. E também uma noção muito mais dinâmica da relação entre os níveis que sugeriria a substituição da noção de hierarquia pela de heterarquia; indicativa de muito maior variabilidade. Não se trataria, para Bateson, simplesmente do que nós poderíamos considerar a síndrome do “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” (na verdade, um vínculo simples, e não duplo), mas do caráter necessariamente oscilatório dos modos de lidar com os pólos do duplo vínculo e, conseqüentemente, com as dominâncias que prevaleceriam, a sua resolução necessariamente se dando no tempo. E esses pólos, mais do que níveis, indicariam aspectos diferentes da descrição do mesmo processo (idem: 247-48). Passos, mais do que níveis, que se articulam; o interesse estando mais nas inter-relações e na capacidade reflexiva de por via de um aprendizado enxergar (ou não) totalizações numa lógica aditiva que incorpora a temporalidade.

Curiosamente, a propósito Bateson parafrasearia (sem nominá-la) a fórmula do Concílio de Calcedônia, já mencionada, ao afirmar que “... É uma questão de como manter esses diferentes níveis, anéis ou o que seja, não separados, porque jamais podem estar separados, e não confundidos, porque, caso se tornem confundidos, então se começa a tomar o metafórico como absoluto, tal como o faz o esquizofrênico” (BATESON, 1991: 269). Mas, sobretudo, valeria a pena mencionar que, se ele retornasse à fonte inicial da noção de hierarquia - que, coincidentemente, é nada mais, nada menos, que o já mencionado Pseudo-Dionísio -, talvez verificasse que uma vez incorporadas a anagogia (associada a um movimento de elevação) e a deificação (que imprime direção a essa elevação), essa noção perde a rigidez a que foi associada no Ocidente (e nas ciências sociais) onde formou par com o que então seria considerado o seu oposto, o individualismo. No caso de Bizâncio, pode-se associar, inclusive, hierarquia, individualismo e instabilidade, não sendo ocioso lembrar, por exemplo, que era preferencialmente o sucesso que legitimava o imperador, e não a transmissão hereditária, não sendo esse, obviamente, o único caso, e sim o paradigmático (CAVALLO, 1998 [1992]). Ganha com essas incorporações a noção de hierarquia como uma atividade em que os níveis hierárquicos se reproduzem, inclusive, internamente a cada ser; em que os hierarcas são necessariamente mediadores ou anunciadores (anjos) e em que a própria hierarquia se eleva hierarquicamente, todo esse movimento sendo a própria razão de ser da hierarquia. Atividade que talvez a aproxime daquilo que o último Bateson estaria buscando com a noção de heterarquia (“A Hierarquia Celeste” e “A Hierarquia Eclesiástica”, in PSEUDO-DIONYSIUS, 1987: 145-259). Na mesma direção, é crucial associar a questão da hierarquia à da apófase, como o faz Sells, pois só dessa maneira os níveis hierárquicos do ser poderiam dobrar-se sobre si mesmos por dentro numa dialética radical entre transcendência e imanência (SELLS, 1994: 7), reconhecendo as suas próprias reificações numa linguagem da desontologia e evitando - a partir desse processo de retorno da linguagem sobre si mesma, que introduz um momento anárquico e igualitário, a epistrophê de Plotino - tornar-se um centro de dominação, exclusão e manipulação de poder de um modo que provavelmente escapou à expressão barroca da hierarquia:

As hierarquias fornecem o contexto direcional e a possibilidade de distinção moral e intelectual (onde nem todas as coisas são igualmente certas ou verdadeiras). O movimento anárquico apofático fornece um desafio contínuo ao contexto direcional e à hierarquia, impedindo-os de endurecer num sistema fixo. (SELLS, 1994: 213)

A emanação – como diria Plotino - é o retorno (epistrophê), o que do ponto de vista da tradição religiosa aqui privilegiada parece de acordo com a ortodoxia palamita, uma vez introduzido um vocabulário que inclua noções como procissão e energias. Sells responsabiliza a grande influência do livro de Arthur Lovejoy, “A Grande Cadeia do Ser”, pelo enrijecimento não-apofático da hierarquia e da ontologia, obscurecendo os elementos apofáticos de desontologia da tradição ocidental e a regressão infinita de referenciais cambiantes (idem: 222 e 230).

Feitas essas ressalvas, poderíamos, então, aceitar que Bateson traz uma contribuição na distinção dos “níveis” comunicativos e poderíamos – nessa antropologia simétrica da religião e dos religiosos que estamos propondo – verificar algumas de suas conseqüências para redescrições contemporâneas. Por exemplo, a propósito da união do corpo com o espírito no Cristianismo ortodoxo. União que se contrapõe à oposição entre corpo e espírito, essa união, no entanto, não sendo imediata, mas dependendo da transfiguração do primeiro (o corpo) pelo segundo (o espírito); o que lembra o meta-dualismo ou a unidade recursiva que, segundo Harries-Jones (1995: 209), Bateson buscava. Ou, pelo menos, poderíamos verificar algumas questões que a contribuição de Bateson ajude a levantar. Sempre tendo como pano de fundo comum à tradição religiosa que estamos privilegiando e à démarche batesoniana a idéia de que antinomias e/ou duplo vínculos são constitutivas do real. O próprio caráter oscilatório dos modos de lidar com o duplo vínculo e a unidade recursiva, mencionados por Harries-Jones, poderiam ser aproximados da noção de epistrophê e da regressão infinita de referenciais cambiantes, tal como lembradas por Sells.

Retornemos, então, ao seu artigo de 1956. Lá se afirmava:

Quando uma pessoa é apanhada numa situação de duplo vínculo, ela responderá defensivamente de uma maneira semelhante à do esquizofrênico. Um indivíduo tomará uma afirmação metafórica literalmente ao estar numa situação onde tem que reagir, em que enfrenta mensagens contraditórias, e quando é incapaz de comentar as contradições. ... Como resposta à situação de duplo vínculo, um deslocamento para uma afirmação metafórica [também] traz segurança. ... A indicação de que se trata de uma afirmação metafórica reside no aspecto fantástico da metáfora, não nos sinais que geralmente acompanham as metáforas para dizer ao ouvinte que uma metáfora está sendo usada. (SELLS, 2000: 209-10)

A religião, sem dúvida, parece terreno privilegiado tanto para a literalidade (dos fundamentalistas), quanto para a fantasia (dos fanáticos). Num metálogo, contido em seu “Mind and Nature: a necessary unity” (BATESON, 1980 [1979]), ao sugerir que a dança da chuva dos índios norte-americanos não seria para fazer chover, e sim para afirmar a participação na “tautologia ecológica”, Bateson afirma existir “... uma tendência – quase uma necessidade – a vulgarizar a religião, a transformá-la em entretenimento ou política ou magia ou ‘poder’” (idem: 232). Será que poderíamos considerar ambas – a literalidade dos fundamentalistas e a fantasia dos fanáticos - como reveladoras de uma dificuldade em lidar com o paradoxo? A literalidade como versão simétrica e a fantasia como a complementar da cismogênese, cuja ausência em Bali Bateson atribuiria justamente ao aprendizado em lidar com o paradoxo e a conseqüente ausência da atração pelo clímax tal como a modernidade parece ter exacerbado? Literalidade e fantasia, por sua vez, como parte paradoxal da religião até quando pretendem desligar-se do seu terreno, como no caso de tomar-se ao pé da letra o repto dostoiévskiano da morte de Deus, já referido? Se Deus escreve certo por linhas tortas, não será necessariamente o diabo quem faz o contrário? E as controvérsias religiosas (como no caso da tradição religiosa que estamos privilegiando) poderiam ser vistas como oscilações descompassadas entre os pólos de um duplo vínculo, cada momento oscilatório heterarquicamente sujeito a dominância diferente? Quase como nas distintas percepções gestálticas diante de uma mesma figura? Será possível, então, “ver” as duas figuras ao mesmo tempo? Ou pelo menos (e alternativamente) diante de cada uma delas apostar na presença da outra, como sombra, toda mensagem referida necessariamente a outras? Nesse caso, será o tempo constitutivo da experiência religiosa também no sentido de que todo religioso tem que se conformar com o fato de que não pode sê-lo (religioso) o tempo todo e que deve viver boa parte do tempo da memória e da esperança? Que implicações práticas isso tudo teria para uma visão reflexiva das relações inter- e intra-religiosas? Que aprendizados e meta-aprendizados estão em jogo? Haverá uma incompatibilidade de fundo entre os nossos aprendizados modernos e a experiência religiosa, mesmo sendo esta, também, uma categoria moderna? Que temos, então, que esquecer a modernidade, sem necessariamente abrir mão dela? Onde e como isso aparece? É até de se perguntar se no Brasil não teríamos a cristalização de dois modelos de relações inter-religiosas – a da dominância católica baseada numa cismogênese complementar e a do desafio pentecostal baseado numa cismogênese simétrica. Ambos carentes – tal como no caso afim, da fantasia e da literalidade - da passagem pelo aprendizado (balinês) da experiência de lidar positivamente com o paradoxo, constitutivo da religião, que substitui o clímax exacerbante pelo que Bateson associava à imagem mais plácida e prolongada do platô (a ser retomada mais tarde por Deleuze) numa inesperada revalorização da “platitude”. A própria questão do aprendizado está por ser incorporado a nossos quadros de referência.

Em um pequeno artigo intitulado “Double Bind, 1969”, republicado em Steps (BATESON, 2000 [1972]), Bateson descreve como numa experiência se quebrou o clássico ciclo pavloviano, obrigando um porco-marinho, por via de uma falta de recompensa por um comportamento aprendido, a responder de um modo nunca antes registrado para essa espécie, num exemplo de deutero-aprendizado. Ou seja, o sofrimento e o desajuste de uma situação de duplo vínculo eram resolvidos criativamente. Partindo de exemplo semelhante, em outro e mais extenso artigo escrito oito anos depois (1977) e republicado em Sacred Unity, Bateson se pergunta:

Em que circunstâncias um organismo por-se-á numa posição de doloroso duplo vínculo, gratuitamente? Seria tal criatura impelida adiante por uma obscura concepção de que ao final de tal aventura disciplinar – tal seqüência de deutero-aprendizados – poderá haver alguma recompensa ”espiritual” ou mesmo ”hedônica”? (BATESON, 1991: 209)

Tudo isso está contido no último subitem deste artigo de Bateson, significativamente intitulado “Para além do duplo vínculo” (BATESON, 1991: 206-13). No final, ele se indaga como se dá “a afinação de uma adaptação superficial rápida por automação até o controle final habilidoso da automação” (idem: 213). Lá, exemplos privilegiados desse “para além do duplo vínculo” são o do sacrifício do alpinista e o do concertista (além daquele do monge Zen em meditação!), associados à disciplina de não dar atenção ao corpo quando ele clama por alívio.

Não será essa uma maneira adequada de expressar o que se passaria no testemunho-martírio cristão, em que sofrimento e alegria se associam, como se diante de uma esfinge ou de uma encruzilhada se tivesse conseguido responder satisfatoriamente? E não será essa maneira de descrever o testemunho-martírio uma maneira de retirá-lo tanto da crítica quanto da exaltação modernas, irmanadas em ver nele não mais do que uma resposta linear (masoquista ou piegas) a uma situação dramática, mas simples? Veja-se como Orígenes descrevia, no século III, o martírio diante de uma audiência verdadeiramente cósmica, utilizando uma aproximação entre o asceta (num contexto de martírio) e o atleta que se tornaria comum na literatura cristã:

Um grande teatro está repleto de espectadores para ver a tua disputa e o teu chamamento ao martírio, tal como se falássemos de uma grande multidão reunida para ver as disputas de atletas supostamente campeões. E não menos do que Paulo, dirás ao entrar na disputa: ”Tornamo-nos um espetáculo para o mundo, para os anjos e para os homens”. Assim, o mundo inteiro e todos os anjos da direita e da esquerda [OV: ou seja, do bem e do mal] e todos os homens, aqueles da parcela de Deus e os das outras parcelas, voltar-se-ão para nós quando disputarmos pelo Cristianismo. Na verdade, ou os anjos no céu animar-nos-ão a prosseguir e as correntes d’água baterão palmas e as montanhas chorarão de alegria e todas as árvores do campo baterão seus galhos, ou – e que isso não ocorra – os poderes de baixo, que se regozijam na maldade, aplaudirão. .... É provável que sejamos repreendidos por nossos vizinhos e desprezados pelos que nos cercam e que sacodem-nos a cabeça como se fôssemos tolos. ... Mas quando tudo isso ocorrer, é abençoado dizer a Deus a palavra proferida pelo profeta em sua audácia: ”Tudo isso se passou conosco, e não o esquecemos, e não traímos a sua aliança e o nosso coração não recuou” (Salmos 44: 17-18). (“Uma exortação ao martírio”, in ORÍGENES, 1979 [235]: 53-55)

Gregório de Nissa já descrevia a progressão eterna da alma como um “tensionar na direção do que ainda está por vir” (GERGÓRIO DE NISSA, 1978 [390s]: 113). O Pseudo-Dionísio, ao falar na unção com óleo nos ritos hierárquicos, dizia que na iniciação isso se dava invocando à participação nos torneios divinos (tendo o Cristo como organizador do embate e como treinador); tal como, na hora da morte, celebra-se a vitória (“A Hierarquia Eclesiástica”, in PSEUDO-DIONYSIUS, 1987: 207 e 257).

Já que o Real sem excepcionalidade seria duplo-vinculante, não será essa, ainda, a chave para dar sentido aos dilemas da experiência humana em geral? Aí talvez de fato começássemos a roçar nas questões mais gerais que interessavam a Bateson, para além do duplo vínculo.

IV

Por várias vezes Bateson sugeriu que ele buscava uma “unidade sagrada” que contivesse menos erros epistemológicos que as versões oferecidas pelas diversas religiões. Neste texto temos argumentado que efetivamente a contribuição de Bateson pode ser vista como relevante nesse sentido, pelo menos por atualizar tais questões para a linguagem de nossa época. E que a distinção de níveis no duplo-vínculo introduz uma novidade não contemplada na noção de antinomia que pode ser esclarecedora. Mas é possível, também, argumentar que a visão que ele tinha das religiões em geral e do Cristianismo em particular era, por vezes, curiosamente simplificadora, influenciada provavelmente por experiências pessoais. Não por acaso, próximo do final da vida ele afirmaria: “Sempre detestei a confusão mental e sempre pensei que esta fosse uma condição necessária para a religião. Mas parece que não é bem assim.” (BATESON, 1980: 231).

Atendo-nos a nosso tópico, poder-se-ia assinalar que Bateson pareceria subestimar, por exemplo, a complexidade da relação transcendência-imanência no Cristianismo (a que já nos referimos). Como deixava de reconhecer que o Cristianismo não pretendia realizar a separação mente (espírito)-corpo que ele abominava em Descartes, e que tal não-separação é o próprio cerne da questão da encarnação. Sem mencionar que desconhecia o apofatismo e a liturgia como críticas à consciência e à linguagem. Reconhecido tudo isso, talvez fosse possível, em contrapartida e numa nova torção do parafuso, levantar uma possível contribuição da tradição ortodoxa para avançar o pensamento derivado do próprio Bateson, justamente no que diz respeito à “unidade sagrada”. Unidade que ele via como relação entre partes e níveis com o todo do mundo da vida. Essa contribuição poderia ser atrelada à noção de catolicidade, cuja associação à Igreja não a restringiria, na medida em que se trata de uma concepção cósmica de Igreja que estaria em jogo. A expressão catolicidade vem da junção no grego de cat (para baixo) e holon (todo), indicando, nas palavras de Evdokimov (1959: 156-57), uma “unidade vertical em profundidade” que se distingue da unidade horizontal do ecúmeno (terra habitada), mais restrita e secundária. O todo está presente nas “partes” de tal maneira que a perda de qualquer parte não corrompe essa relação. E de tal maneira, também, que se cria o que Sells, pensando no Ocidente, já considera uma tensão entre a relação imediata com o todo e a gradação hierárquica (SELLS, 1994: 38), o que outros descreveriam originalmente como complementaridade. A imagem consagrada na tradição ortodoxa é a de uma sinfonia, aplicável não só a essa relação entre partes e todo, mas igualmente à própria relação entre catolicidade e ecúmeno ou à relação entre a autoridade religiosa e a autoridade política, tal como formulada desde Justiniano no século VI e que se tornaria a base do pensamento político bizantino, distinguindo-o – ao reverso do que supõe o senso-comum erudito ocidental - do cesaropapismo (MEYENDORFF, 2001 [1982]: 8 e 246). Em outro registro, afirmar-se-ia que a estrutura se oporia tanto a um igualitarismo anti-hierárquico quanto ao princípio monárquico (EVDOKIMOV, 1959: 155-58).

Tudo isso poderia ser tomado como uma resposta às mesmas questões que levaram Bruno Latour recentemente a substituir as noções de local e de global pela capacidade - diferencial, variável e sem solução de continuidade - dos diversos atores em uma rede de realizarem conexões (LATOUR, 2006), bem como sua insistência em focalizar a questão das mediações. Mas também seria resposta às questões postas por Bateson e relatadas por Harries-Jones a propósito de níveis e de hierarquia. Sinfonia, afinal, não parece tão distante de heterarquia. Mas tudo isso, também, parece dar razão a Bateson no que ele tem de mais importante: seu espírito abdutivo, seu interesse pelos indícios. Formas, padrões, textos que ultrapassam os contextos de cada um de nós. Ou que talvez até ponham em dúvida a pertinência da noção de contexto.

V

Neste momento gostaria de reaproximar o nosso tema da questão do discurso apofático, mas já ensaiando ir além das referências iniciais. Quando Sells afirma que os paradoxos, aporias e coincidências entre opostos no discurso apofático dizem respeito a contradições reais, afirma que isso ocorre quando a linguagem se engaja com o transcendente inefável. Porém, Sells acrescenta (SELLS 1994: 3 e 4) que a regra lógica da não-contradição deixa de funcionar também sempre que o assunto do discurso é um não-objeto e uma não-coisa, o que incluiria a arte e o humor, por exemplo. Sells chama a atenção para os problemas advindos nesses casos da tendência (sobretudo moderna) a parafrasear o significado em linguagem não-apofática ou a preencher o referente aberto (será disso que se trata, afinal, o “fundamentalismo”, em consonância com o que já havíamos detectado a partir de Bateson como dificuldade em lidar com o paradoxo?).

Há duas linhas de raciocínio em Bateson que se aproximam dessa questão. A primeira e mais óbvia diz respeito ao seu tratamento da comunicação no processo primário, justamente – segundo ele próprio - tal como se revela na arte, no humor e no terreno do sagrado, mencionados também por Sells a propósito da inoperância da regra lógica da não-contradição. Comunicação sujeita ao que Bateson denomina “silogismo da grama” (o homem é mortal, a grama é mortal, logo o homem é grama), que também não respeita o princípio da não-contradição e que, como vimos, ele associa à superação do duplo vínculo. Mas há, ainda, uma outra ordem de raciocínio em Bateson, na qual o diálogo imaginário que estamos aqui propondo poderia apresentar um rendimento interessante. Essa linha de raciocínio tem a ver com a sua preocupação em torno do que, seguindo o filósofo e matemático Alfred N. Whitehead, ele denominava de falácia da “concretude mal colocada” (“misplaced concreteness”) e que sugere uma crítica bem próxima à da confusão do assunto do discurso com objeto e coisa, referida por Sells. O que esse diálogo imaginário poderia, agora, acrescentar à posição batesoniana, seria, então, o auxílio na apreciação do diagnóstico da falácia da concretude mal colocada em sua positividade, enquanto abertura referencial – o diagnóstico, bem entendido - não a um nada, mas na verdade a um evento, que é um não-objeto e que também não se reduz a uma experiência no sentido moderno. Tudo em linha com o que, em trabalho anterior (VELHO, 2006), foi denominado de “antropofanias”. Com isso poderíamos, uma vez identificados esses não-objetos com o auxílio do instrumental batesoniano, buscar não simplesmente exorcizá-los, mas submetê-los a um discurso do tipo apofático. Acompanhando, talvez, o que sugere a sabedoria prática, quando, por exemplo, no terreno da política, diz-se que toda ação que precisa se explicar já é uma má ação, que os entendidos, a partir de habilidades adquiridas, reconheceriam como tal.

Sem falar, então, das possibilidades abertas para o “diálogo inter-religioso” uma vez que se desista do caminho improdutivo da busca de um “Deus” substancialmente comum, estaríamos, no que diz respeito às chamadas ciências sociais, no âmago da questão de um novo discurso. Questão que já se inaugura com a própria antinomia entre o não-dizer ou o não-dizível e o discurso. Mas Sells insiste em que o que está em jogo é, na verdade, uma “regressão lingüística”:

Cada afirmação que faço – positiva ou ‘negativa’ – se revela como demandando correção. A afirmação corretiva precisa então, ela mesma, ser corrigida, ad infinitum. O autêntico sujeito do discurso desliza continuamente para trás, para além de cada esforço para nomeá-lo ou mesmo para negar a sua nomeabilidade. A regressão é atrelada e se torna a força semântica guia, a dynamis de uma nova espécie de linguagem ... [O] discurso místico volta-se sem piedade contra as suas próprias proposições e gera paradoxos distintos que incluem em si mesmos um grande número de transformações radicais, particularmente na área das relações temporais e espaciais. (SELLS, 1994: 2 e 3)

Talvez isso já estivesse presente nos escritos de Bateson desde “Naven”, bem como na experimentação que realizou com diversos tipos de discurso, especialmente com os metálogos (GEIGER, no prelo). Como também não parece distante da questão do duplo vínculo, sobretudo quando focalizamos o caráter oscilatório dos modos de lidar com ele referido por Harries-Jones.

Nós mesmos já poderíamos, a esta altura, realizar um exercício similar ao deixar de falar em não-dito ou não-dizível e passar a falar em des-dito ou des-dizível, acompanhando uma tradução possível do inglês unsaying no título do livro de Sells. E, acompanhando também comentários como o de Evdokimov, de que toda afirmação humana é uma negação dela mesma (EVDOKIMOV, 1959: 174). O significado seria gerado, assim, na tensão entre o dizer e o desdizer, esse último sempre colocado um nível acima, como numa hierarquia, por sua vez constitutiva do duplo vínculo uma vez reafirmado o seu sentido pleno com o auxílio do Pseudo-Dionísio. E ela própria, hierarquia, sujeita então a ser desdita. A contribuição original de Bateson poderia, dessa maneira, ser apropriada pela tradição para a qual, afinal de contas, a hierarquia é central e o desdizer apofático, sempre, superior. Mesmo a hierarquia não sendo contemplada especificamente na concepção usual de antinomia.

Poderíamos realizar um exercício como o do compositor Chico Buarque no “Samba do Grande Amor”, que passa boa parte da canção a tratar de um grande amor que é desmentido no final de cada estrofe, para ao assumir, enfim, o desmentido, logo a seguir terminar a canção desmentindo o desmentido. A própria palavra do desdizer - “mentira” – serve no caso como epístrofe, num significativo encontro entre o modo de discurso e o motivo apofático (a epistrophê) nesse tema inobjectificável por excelência que é o amor.

Essa substituição poderia, de fato, produzir textos muito diferentes daqueles a que estamos acostumados nas ciências sociais, mas que talvez mimetizassem a própria atividade de pesquisa de um modo que não costuma ser revelado. Textos (como em estado nascente teria sido, em nossa avaliação, o caso dos de Bateson) que se apresentariam como uma alternativa à crítica empirista e do individualismo metodológico a noções como sociedade, cultura, natureza: ao invés de “desconstrui-las”, simplesmente, procuraríamos, então, ser capazes de reconhecê-las; porém inobjectificáveis, e, sempre, des-dizíveis. Inspirados na noção de “público fantasmático” de Walter Lipmann, recentemente retomada por Bruno Latour e seus associados (LATOUR e WEIBEL, 2005) e que se referia à política que prevaleceria numa era tecnológica – política que vai-e-vem, é heterogênea, diz respeito a assuntos desconhecidos e nem é necessariamente política - poderíamos, então, adjetivá-las todas assim. Ou, então, considerá-las como antropofanias. Em todo caso, construídas, mas reais, sem dúvida. Mas, além disso, sobretudo inobjetificáveis. Como seria o caso, também, da teofania “Daquele que não tem nome”. Ou que tem. Ou que, como lembrava o Pseudo-Dionísio, pode ser apresentado com adereços femininos ou com a armadura dos bárbaros.

Não por acaso, um bem-humorado homem santo já provocou reações variadas – fundamentalistas, quiçá, tão mais solertes quanto menos assumidas e generalizadas – ao dizer: “Afinal, eu não me importo de que tradição você venha, contanto que você se envergonhe dela.”

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Recebido: 19/07/2007
Aceite final: 25/08/2007

Notas

[*] Professor emérito da UFRJ.