Hischam A. Hapatsch: Facetas da relação entre Budismo e Hinduísmo[*]

Entrevista a Frank Usarski

REVER: O senhor poderia nos dar uma visão acerca dos princípios “dogmáticos” e dos recursos tradicionais relevantes (sutras etc.) que têm servido como referências para o encontro entre o Budismo alemão e o Cristianismo?

HAPATSCH: O aspecto mais evidente é de que no centro da doutrina budista não há um Deus que criou o mundo e o salvou, mas o insight nas chamadas Quatro Nobres Verdades ou – em algumas escolas – na identidade de nirvana e samsara. Do ponto de vista de muitos budistas ocidentais, porém, essa diferença chave tem outras implicações. Acho que o sermão que o Buda deu para os Kalamas (Ang. III, 67) exemplifica bem o que faz com que o Budismo fascine muitos budistas alemães. Naquela fala, o Buda pede para seus ouvintes não simplesmente acreditarem em algo ensinado, mas prová-lo por conta própria. Conforme alguns dos meus interlocutores budistas, o Budismo, diferentemente do Cristianismo, não exige fé, mas reflexão autônoma emancipadora. “Fé”, portanto, é um sinônimo para a falta de maturidade. Enquanto o Budismo é considerado uma religião de autonomia, o Cristianismo é freqüentemente avaliado como uma religião de heteronomia.

REVER: A partir de que momento ou período histórico o encontro entre o Budismo alemão e o Cristianismo se tornou manifesto e quais as circunstâncias geográficas e sócio-culturais nas quais encontros recentes ocorreram?

HAPATSCH: O encontro tem sido relevante a partir do início da adoção do Budismo por alemães, ou seja, já antes de 1900. Nessa época, a adesão ao Cristianismo ainda era uma espécie de uma norma civil. Além disso, o Cristianismo era a religião do Estado, ou seja, era um fator social e político importante, o que se mostrava, por exemplo, nos currículos escolares. Por outro lado, sua influencia ideológica estava fortemente em declínio, especialmente no que diz respeito às camadas intelectuais de então. Devido às atividades como as da Sociedade Teosófica, do chamado movimento de reforma de vida ou do Espiritismo, bem como ao impacto do Parlamento Mundial das Religiões em Chicago (1893), circulavam no respectivo ambiente construções alternativas do sentido de vida. Portanto, o Cristianismo sofria uma ambivalência: por um lado, desfrutava sua dominância social graças à proteção estadual; por ouro lado, sofria uma diminuição da sua credibilidade. Mas não apenas a sociedade de então estava impregnada pelo Cristianismo. O mesmo valia para os protagonistas budistas da época! Por isso havia a necessidade de se distanciar do Cristianismo na busca de um perfil próprio. Uma vez que o Cristianismo era considerado a religião dominante do Estado e da sociedade, acusou-se o Cristianismo pelas falhas dessa sociedade. Especialmente a Primeira Guerra Mundial foi vista como uma derrota moral das igrejas. Confrontava-se a civilização cristã supostamente determinada à guerra e a matar em nome de valores éticos como os de pacifismo e do vegetarianismo. Além disso, os budistas de então apresentaram sua religião como uma cosmovisão compatível com a ciência moderna.

REVER: A relação entre o Budismo alemão e o Cristianismo sofreu modificações no decorrer do tempo, por exemplo em termos de uma rejeição maior ou de uma tolerância crescente? Em caso afirmativo, quais desenvolvimentos dentro do Budismo no contexto global contribuíram para tais mudanças?

HAPATSCH: Sem dúvida houve modificações, mas do meu ponto de vista, elas foram menos significantes do que parece à primeira vista. Até hoje, diversos problemas da sociedade ocidental como, por exemplo, a poluição do ambiente, a exploração da natureza ou guerras, são freqüentemente associados a um fracasso do Cristianismo. Mas há algumas diferenças sutis. A avaliação do Cristianismo varia de acordo com o aspecto que é predominantemente levado em consideração: a igreja, Jesus ou os místicos cristãos. No que diz respeito a questões dogmáticas ou históricas, o olhar às igrejas é quase sempre negativo, enquanto a percepção de Jesus e dos místicos é quase sempre positiva. Portanto, a avaliação negativa ou positiva do Cristianismo é uma questão de que lado é focado. Essa percepção ambígua já existia antes da Primeira Guerra Mundial, mas acredito que o olhar à igreja era mais forte e, conseqüentemente, havia uma opinião predominantemente crítica. Hoje, as proporções são mais equilibradas. Uma das possíveis razões é de que na fase inicial os protagonistas do Budismo alemão eram pessoas que quiseram se distanciar da sua cultura de origem. Hoje, mestres oriundos de países budistas são mais importantes. Isso é uma conseqüência não apenas da crescente globalização e do espírito proselitista mais forte do Budismo, mas também dos acontecimentos acerca de Tibete. Ao mesmo tempo, a atual sociedade alemã é muito menos dominada pelo Cristianismo do que a que existia por volta de 1900. Em parte, as próprias igrejas cristãs mostram hoje uma atitude mais aberta diante das outras religiões e do diálogo inter-religioso. Embora o campo budista seja pluralista, encontra se a avaliação ambígua tanto em grupos isolacionistas quanto em grupos abertos para o diálogo, ou seja, todos eles mostram a tendência dupla de julgar Jesus e os místicos cristãos de maneira positiva e a igreja cristã, como instituição, de maneira negativa. Há apenas diferenças nas acentuações. O lema “Jesus sim – igreja não” é também sintomático para o esoterismo.

REVER: Há diferenças entre as escolas budistas presentes na Alemanha em termos da postura diante do Cristianismo?

HAPATSCH: Sim, mas eu não acho muito oportuno associá-las a determinadas escolas budistas, como por exemplo o Zen ou o Vajrayana. Encontrei em ambas as correntes tanto percepções positivas como negativas do Cristianismo. Mas fora das correntes há grupos concretos que mostram um grau diferente de interesse em um diálogo inter-religioso. No Budismo alemão pode-se identificar a coexistência de um movimento integrativo interessado em criar pontes com idéias cristãs e ocidentais e uma linha que destaca sua oposição ao Cristianismo. Os “integrativos” não negam as diferenças com o Cristianismo mas buscam uma harmonia inter-religiosa. Pode-se associar a essa facção entre outros, personagens internacionais famosos também na Alemanha, como o Dalai Lama ou Thich Nhat Hanh. Enfatizo que não quero dizer que essa linha não se identifique substancialmente com o Cristianismo ou negue as divergências, mas que ela privilegia uma estratégia de comunicação integrativa e harmonizadora.

REVER: Quais representantes do Budismo alemão têm se destacado no diálogo mais recente com o Cristianismo e quais são as características principais das suas posições?

HAPATSCH: Nesse sentido, algo bastante particular aconteceu no âmbito do Budismo alemão. Se se quiser exemplificar a posição do Budismo alemão por volta de 1900, nos anos 1920 ou ainda em 1960, dever-se-á citar alguns nomes chaves, entre eles Karl Seidenstücker, Georg Grimm ou Lama Anagarika Govinda. Esses budistas alemães se definiram basicamente como tipicamente alemães ou ocidentais. A partir dos anos 1970 – embora já se encontre respectivas indicações antes dessa década – houve uma mudança: a partir de então, destacam-se como líderes de opinião mestres de países asiáticos como representantes de escolas budistas tradicionais. Quem atualmente quer saber o que se pensa sobre o Cristianismo no ambiente budista tem que levar em consideração a posição de personagens-chave não-alemães, como o Dalai Lama ou Thich Nhat Hanh, diferentemente da situação por 1910 ou 1930, quando o Budismo na Alemanha era um fenômeno alemão propriamente dito. Mas pode-se prever que a integração de escolas budistas tradicionais na Alemanha e Europa fará com que, no futuro, personagens alemães e europeus voltem a se articular mais freqüentemente. Quanto a afirmações atuais de budistas alemães, encontram-se aquelas publicadas em revistas como ”Buddhismus aktuell“, isto é, o periódico da União Budista Alemão (Deutsche Buddhistischen Union) e também em alguns livros. Em termos do conteúdo, porém, é bastante repetitivo. Por isso, é mais interessante prestar atenção nas afirmações de protagonistas não-alemães, por exemplo, Taisen Deshimaru Roshi, Thich Nhat Hanh ou o “clássico” Daisetz T. Suzuki. Os últimos argumentam mais no sentido de uma harmonia inter-religiosa. Especialmente o Dalai Lama destaca a convergência entre as religiões em termos éticos. Ele, bem como Thich Nhat Hanh e outros, referem-se freqüentemente à pessoa de Jesus, cuja ética eles prestigiam. As vezes encontra-se até mesmo a afirmação de que a doutrina budista pode ser uma ajuda a realizar os ensinamentos e ideais de Jesus. Uma pessoa que às vezes se articulou nesse sentido foi a alemã Ayya Khema, monja da tradição Theravada que interpretou textos bíblicos do ponto de vista budista e fundamentou uma hermenêutica budista da Bíblia. Fritz Hungerleider, um pioneiro do Budismo Zen em países da língua alemã, até mesmo escreveu um livro sobre o livro de Kohelet. Até hoje também é relevante o postulado Lama Anagarika Govinda, de que tanto o Budismo quanto o Cristianismo podem levar à mesma experiência religiosa profunda. Todas essas afirmações são exemplos para uma abordagem integrativa, embora eles não nos devam enganar acerca do fato de que os mesmos autores se distanciam do Cristianismo especialmente quando se trata do auto-reconhecimento do Cristianismo como a única religião verdadeira. Minha hipótese, porém, é de que a imagem do Cristianismo propagada por budistas alemães baseia-se, sobretudo, em fontes não-budistas, especialmente esotéricas ou críticas á religião em geral. Antes de minha pesquisa de campo, eu esperava que budistas alemães acusassem o Cristianismo de déficits epistemológicos, ou seja, de um realismo ingênuo cristão. Esse tipo de critica, porém, quase não encontrei, mas sim as afirmações esotéricas comuns lamentando que as igrejas não ensinem a reencarnação ou que a última foi excluída do espectro dogmático no ano 553. A argumentação ganha um caráter mais budista quando a doutrina de Jesus é interpretada como se fosse um caminho em prol do desenvolvimento da paz interior ou quando se critica uma imagem pessoal de Deus. Mas afirmações semelhantes são também comuns em círculos esotéricos.

REVER: Está o diálogo entre o Budismo e as religiões monoteístas parcialmente institucionalizado em termos de reuniões especiais ou regulares ou, ao menos, contextualizado em reuniões inter-religiosas de um objetivo mais amplo? Se há reuniões especiais, quem é responsável pela organização destes eventos? Quem está engajado nessa espécie de diálogo?

HAPATSCH: O diálogo cristão-budista ganhou apenas momento no fim dos anos 1970 e no início dos anos 1980, respectivamente. Desde então há uma série de encontros regulares entre cristãos e budistas. A presença do Dalai Lama nos eventos cristãos de massa chamados “dias de igreja” (Kirchentage) chama a atenção da mídia alemã, mas a maioria dos encontros ocorre no nível local ou em academias cristãs e outras instituições de instrução. Em Berlim, por exemplo, há um diálogo católico-cristão cujos participantes encontram-se várias vezes por ano para discutir sobre determinados temas. Quanto ao nível europeu, vale a pena lembrar o “Monastic Interfaith Dialogue”, encontro entre monges beneditinos e monges zen que ocorre a cada dois anos. Porém, duvido que esse tipo de encontros tenha um impacto considerável sobre a imagem que a maioria de budistas alemães tem da igreja cristã. Pelo menos, essa percepção não surgiu nas conversas que tive durante minha pesquisa.

REVER: O senhor teria comentários adicionais, por exemplo, no que se refere ao possível futuro do encontro entre o Budismo alemão e o Cristianismo?

HAPATSCH: Minha impressão é de que a percepção do Cristianismo por parte de budistas de língua alemã é, em grande parte, bastante esquemática. Conforme o lema “Jesus sim – igreja não”, há certa flexibilidade no sentido de que é possível rejeitar as instituições cristãs e ao mesmo tempo, por referir-se à mística cristã, sentir uma solidariedade com praticantes do Cristianismo. A conseqüência é de que, apesar de existir um olhar crítico para a Igreja, há uma disponibilidade relativamente grande para o diálogo com cristãos. Fiquei surpreso sobre a abertura e o interesse para conversas sobre temas cristãos, embora seja lamentável a falta de vontade de superar a retórica dicotômica do tipo “Jesus sim – igreja não”. Nem encontrei questionamentos críticos sobre o Cristianismo feitos em um espírito budista propriamente dito. Tive a impressão de que a percepção do outro, nesse caso do Cristianismo, ainda siga os clichês cunhados pelo Esoterismo. Mas algo análogo vale também para o Cristianismo. Em muitas igrejas cristãs ainda predomina uma imagem estereotipada tanto do Budismo quanto de indivíduos que se converteram a essa religião. Na verdade, não se trata de alguns românticos, mas na maioria de pessoas muito bem formadas, eloqüentes e capazes de discutir em um alto nível. Desejo que ambos os partidos aprendam a deixar os clichês de lado e tentar entender o outro a partir do seu próprio auto-reconhecimento.

Notas

[*] Hischam A. Hapatsch, doutor em teologia pela Universidade Humbold, Berlin, Alemanha com uma tese sobre a recepção da Igreja e do Cristianismo no Budismo de língua alemã. A obra foi publicado como livro sob o título Die Rezeption von Kirche und Christentum im deutschsprachigen Buddhismus (Hamburg : Kovac, 2007).