Da MPB como Fonte para Estudo da Religião: Análise do Elemento Religioso Presente em “Anunciação” de Alceu Valença e “Um Índio” de Caetano Veloso

Carlos Caldas[*] []

Resumo

A tradição de estudos de religião no Brasil tem se caracterizado por uso intenso de ferramentas auxiliares ligadas às ciências sociais, mormente a sociologia. Não obstante, é possível que outras ferramentas auxiliares sejam utilizadas para o estudo do fenômeno religioso ou da experiência religiosa. Este elemento, via de regra, tem sido ignorado pela academia brasileira. O presente artigo pretende trabalhar com a Música Popular Brasileira – MPB – como fonte para estudo de religião. Para tanto, a partir do conceito elaborado por Jacques Derrida de rastros (trace) do sagrado, bem como do conceito de referencialidade (allusiveness) de Calvin Seerveld, far-se-á análise do elemento religioso encontrado em Anunciação, de Alceu Valença, e Um índio, de Caetano Veloso. O pressuposto operacional deste artigo é que o elemento religioso em questão é o messianismo. Para análise do messianismo se utilizará como referencial teórico as elaborações de Henri Desroche.

Palavras-chave: MPB, rastros do sagrado, messianismo, poesia

Abstract

The Brazilian tradition of religious studies is characterized by an intensive use of auxiliary tools in the field of the Social Sciences, especially Sociology. Nevertheless, it is possible to use other auxiliary tools in order to study the religious phenomenon or the religious experience. This element has been, by and large, ignored by Brazilian academy. This essay intends to work with Brazilian Popular Music – MPB – as a source to the study of religion. In order to reach this goal, the essay work with Jacques Derrida’s idea of track (trace) of the sacred, as well as Calvin Seerveld’s concept of allusiveness it will do an analysis of the religious element found in Anunciação, by Alceu Valença, and Um índio, by Caetano Veloso. This essay starts from the basic presupposition that the religious element found in the cited poems is messianism. Messianism will be analyzed from the Henri Desroche’s theoretical framework perspective.

Key words: MPB, tracks of the sacred, Messianism, poetry

Introdução

É fato por demais conhecido que a academia brasileira, no que tange aos estudos de religião[1], tem utilizado preferencialmente a sociologia. Assim como tradicionalmente a filosofia tem sido a ancilla por excelência da teologia, a sociologia tem se prestado ao mesmo papel no campo dos estudos de religião no país. Não há dúvida de que a sociologia pode ser e, de fato, tem sido útil por demais em estudos acadêmicos de religião. De igual maneira, a psicologia, a antropologia e a filosofia também têm se mostrado úteis como ferramentas auxiliares para os estudiosos de religião.

Em que pese a inegável contribuição que esses saberes têm prestado para o estudo da religião no Brasil, não é conveniente esquecer que há diversas outras possibilidades de utilização de outras ferramentas auxiliares e, sem dúvida, outras possibilidades teórico-metodológicas para se estudar a religião. Uma de tantas possibilidades é a exploração de poesias da Música Popular Brasileira (MPB) pela ótica dos elementos religiosos que tais composições veiculam. A MPB é construída em forma de poesia. Como tal, pode ser considerada elemento que expressa sentimentos, aspirações, sonhos e desejos mais profundos do povo, sem embargo inclusive do elemento religioso, da busca do transcendente. Na verdade, a literatura em geral tem sido cada vez mais uma importante parceira de diálogo construtivo e provocador com os saberes da teologia e dos estudos de religião. Neste sentido, é possível considerar-se a MPB como poesia, uma peça literária portanto. Via de conseqüência, urge que estudiosos do fenômeno religioso e experts em teologia descubram o potencial epistemológico da MPB[2]. E a considerar-se o contexto cultural brasileiro como legítimo integrante do contexto cultural mais amplo da América Latina, é ainda mais imperioso que estudiosos de teologia e de religião dialoguem com a literatura. Pensando nesta questão em termos do contexto cultural latino-americano, o teólogo porto-riquenho Luís N. Rivera-Pagán afirmou, de maneira contundente e, ao mesmo tempo, um tanto espontânea:

Es sorprendente que los teólogos no hayan prestado atención a lo que sus colegas literatos escribían acerca de los dilemas y enigmas de los hombres y mujeres del continente […] El diálogo entre la teología y la literatura se hace urgente por los obvios intereses que ambas tienen en la memoria mítica y las ensoñaciones utópicas de los pueblos al margen de la modernidad occidental […]. La producción literaria latinoamericana moderna tiene tan evidentes tangencias y resonancias religiosas que despierta mi perplejidad la falta de atención por parte de la comunidad teológica[3].

Todavia, a proposta de se utilizar a MPB como elemento para estudo de religião poderá não ser vista por bons olhos por alguns intelectuais. É possível que para muitos a MPB seja “popular” demais. Daí que, não sendo manifestação cultural “erudita”, seria alvo de preconceitos de alguns acadêmicos. Já nos anos de 1960 o conhecido intelectual italiano Umberto Eco chamava a atenção para esse problema em Apocalípticos e integrados. Nesta obra, Eco critica tanto os “apocalípticos”, que não aceitam de modo algum qualquer padrão cultural que não seja clássico e aristocrático, como também os “integrados”, que têm a tendência de serem acríticos em sua aceitação passiva e ingênua de fenômenos culturais de massa. Conforme Eco,

O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicação dos produtos da indústria seja boa em si, segundo uma ideal homeostase do livre mercado, e não deva submeter-se a uma crítica e a novas orientações.
O erro dos apocalípticos é pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento cultural[4].

Certamente a MPB é fenômeno cultural que mais facilmente seria aceito pelos “integrados” do que pelos “apocalípticos”. Todavia, observa-se que é crescente o número de acadêmicos que vêem o potencial epistemológico da MPB, em diversas áreas do saber. O mesmo se dá na área dos estudos de religião. A MPB sem dúvida é expressão da cultura brasileira rica em conteúdo que merece ser explorado, tanto a partir de uma perspectiva de estudos de religião como a partir de uma perspectiva teológica propriamente, visto que suas poesias veiculam conteúdos religiosos ou teológicos. Quanto à possibilidade de observar a MPB a partir de perspectiva de seus conteúdos teológicos, Calvani afirma:

Pensar teologicamente a cultura brasileira nos impele inevitavelmente a dirigir um olhar atencioso a suas composições, captando e trazendo para os círculos teológicos a contribuição dessas vozes e a originalidade de seu olhar[5].

O presente artigo toma como pressuposto a possibilidade de procurar quais rastros (Derrida) do sagrado podem ser encontrados em algumas composições da MPB. O recorte epistemológico se dará a partir do conceito de messianismo veiculado pelas composições Anunciação (Alceu Valença) e Um índio (Caetano Veloso). O marco teórico utilizado para se estudar o messianismo nas citadas composições será a obra do sociólogo francês Henri Desroche[6].

Da potencial da poesia como veículo do sagrado

O presente ensaio estuda composições da MPB, que, evidentemente, são construídas em forma de poesia. Sendo assim, as poesias serão lidas pela ótica da religião. Trata-se sem dúvida de uma leitura difícil. As dificuldades da leitura religiosa de textos literários foi aprsentada com bastante propriedade por Robert Detweiler:

To suggest that an activity called ‘religious reading’ is possible, or is a concept worth taking seriously, is itself a risk that inspires all sorts of presuppositions and prejudices. Objections to the value of discussing such a venture can range from the conservative argument that the issue has already been decided (religious reading is what believers do with their sacred texts) to the liberal assertion (any ‘existential’ reading of any text that addresses matters of ‘ultimate concern’ is religious) to the radical rejection (in a world in which religious belief is no longer plausible it is pointless to speak of religious readings unless to describe objectively the phenomenon of what believers do) to the deconstructive position that in a world without authoritative ‘presence’ religious discourse, including reading, must be redefined along with all other modes. I would like to play with the possibility of religious reading precisely because it appears to be such a pointless and undecidable issue. Its very perceived gratuitousness hints at the likelihood that a most significant complex of irresolutions and anxieties is hidden in the dismissal of the question[7].

O gênero literário poético há séculos é usado para veicular a busca humana pelo transcedente. Neste sentido, religião e literatura têm uma história de milênios. Não poucas tradições religiosas lançam mão da literatura para veiculação de suas crenças e conceitos. E até mesmo alguns textos que não são religiosos em um sentido strictu senso – “profanos” portanto – também servem como veículos transmissores de conteúdos imbuídos de religiosidade. Desde tempos imemoriais existe essa relação. Conforme Suzigan, desde priscas eras

A ciência, a arte e a religiao fundiam-se em uma forma primitiva de magia. Essas função mágica da arte alterou-se gradativamente, cedendo lugar á compreensão das relações sociais, ajudando o homem a conhecer melnhor e a transformar a realidade social. A magia é residual na arte, advinda de sua gênese. Sem ela a arte perde algumas de suas características originais. Mas não é mais a sua principal função[8].

De fato, Susi Frankl Sperber chega a afirmar que a relação entre Literatura e Sagrado é “inalienável”[9]. Por isso mesmo, não sem razão há pelo menos meio século estudiosos, tanto no campo de estudos teológicos e religiosos, como no campo de estudos literários (crítica literária e literatura comparada), têm discutido sobre como esses saberes podem contribuir para a construção de seus respectivos edifícios teóricos[10]. Por isso, é sugestiva a contribuição de Jacques Derrida (1930-2004) que fala sobre traços ou rastros[11]. O rastro evidentemente não passa de uma identificação tênue de algo ou alguém que já passou. A poesia tem por excelência a capacidade de falar a respeito do sagrado sem contudo revelá-lo[12]. Sendo assim, a poesia é por excelência local onde se podem localizar rastros do sagrado. Nas palavras de Jaci Maraschin,

A imagem de rastro ou de traço, bastante debatidas entre os pensadores pós-modernos [...] liga-se ao pensamento apofático e à construção de um mundo que se resolve no presente[13].

Pensador que tem um conceito que provavelmente caminha paralelamente à idéia de “rastro” de Derrida é o estadunidense Calvin Seerveld, ainda pouco conhecido no Brasil. Seerveld é especialista em estética filosófica e, falando sobre as artes em geral, desenvolve uma idéia que também pode servir como embasamento teórico do presente ensaio: a idéia da capacidade referencial da arte[14]. O conceito da arte como tendo um poder de apontar para outra realidade pode ser útil para os propósitos da leitura que se propõe neste texto, pois a intenção é examinar a que idéias religiosas as poesias que serão estudadas remetem. Quanto ao aspecto de allusiveness da arte, Seerveld afirma, em tom bastante coloquial[15]:

If you have law-abiding allusive symbolical objectification of meaning, you have art; if not, you do not have art. If the meaning symbolically objectified is profound or evil-minded or unimportant, you have profound or evil-minded or unimportant art. If the symbolic quality is limpid or complicated or elusive, you have limpid or complicated or elusive art. But no law-abiding allusive symbolical objectification, no art[16]!

No caso do presente ensaio, pretende-se observar que o sagrado deixou rastros nos poemas citados. O rastro em questão é a idéia de messianismo. A respeito do messianismo falar-se-á em síntese a seguir.

Messianismo – breve introdução

O messianismo é tema por demais complexo e abrangente. Portanto, esta seção do artigo não pretende nada mais do que apresentar uma sucinta introdução a respeito. Essa delimitação teórica aponta para o que o artigo não vai tratar – não se abordará a questão dos chamados movimentos messiânicos[17], como o sebastianismo lusitano, o movimento de Antonio Conselheiro em Canudos (BA) ou ainda o messianismo literário como o encontrado no ciclo arturiano da Inglaterra medieval. Antes, pretende-se apenas apresentar uma definição operacional deste intrigante conceito. Conforme Hans Kohn, messianismo é

Essencialmente a crença religiosa na vida de um Redentor que porá fim à ordem atual de coisas, quer seja de maneira universal ou por meio de um grupo isolado, e que instaurará uma nova ordem feita de justiça e de felicidade[18].

Outra definição bastante didática de messianismo é apresentada pelo antropólogo Rubem César Fernandes:

Aguarda-se a vinda de um redentor que trasnformará a presente ordem, substituindo-a por um reinado de harmonia e bem-aventurança universal. Essa idéia “messiânica” é crucial para o complexo cultural que surge da história mediterrânea. O messianismo, embora tendo origem na Mesopotâmia, assumiu diferntes formas nos contextos judaico, cristão e islâmico, e diferentes significados nos tempos modernos[19].

Pretende-se demonstrar que nas canções que servem de objeto de estudo do presente ensaio é possível encontrar a esperança na vida de um ser referenciado com características religiosas. O tu a quem se refere em Anunciação e o anônimo Índio que dá título à canção de Caetano Veloso são assim apresentados, como entidades mitológicas e virtualmente sobrenaturais.

Anunciação – anúncio de messianismo cristão?

A primeira canção a ser analisada é Anunciação, do compositor pernambucano Alceu Valença (1946). Alceu é uma das “revelações” (juntamente com outros nomes hoje bastante conhecidos, como Ivan Lins, Raimundo Fagner, Belchior e outros) da MPB a surgir na primeira metade dos anos de 1970[20]. A produção musical de Alceu é inegavelmente baseada na ampla e rica tradição cultural nordestina. É artista criativo, com uma estética que mescla influência de ritmos populares nordestinos – baião, coco, maracatu, frevo – com o ritmo tradicional do rock n’ roll.

A letra de Anunciação será transcrita a seguir:

Na bruma leve das paixões que vêm de dentro
Tu vens chegando pra brincar no meu quintal
No teu cavalo peito nu cabelo ao vento
E o sol quarando nossas roupas no varal
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
A voz do anjo sussurrou no meu ouvido
E eu não duvido já escuto os teus sinais
Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais[21].

Observe-se, mesmo prima facie, que a poesia de Alceu Valença faz referência a um ser que é no mínimo, diferente dos demais seres humanos. Este personagem não identificado é descrito como alguém que está chegando – tu vens repete-se três vezes na poesia. Esse anúncio que se repete sobre alguém que vem faz lembrar a já citada descrição de caracteres messiânicos elaborada por Hans Kohn e utilizada por Henri Desroche em seu Dicionário de Messianismos e Milenarismos. É bem verdade que talvez a poesia possa ser lida não na perspectiva da chegada de um messias pessoal, mas em uma perspectiva política. Nesta possibilidade, talvez a poesia esteja a fazer referência ao sonho da chegada de um novo tempo de liberdade. Pois a poesia é composta ainda no tempo do governo militar no Brasil. Não obstante essa possibilidade interpretativa, o presente ensaio pretende abordar a poesia em perspectiva de um messianismo religioso. Ainda que Valença não faça em sua poesia qualquer referência a alguma era de felicidade, não há como não perceber elementos nitidamente religiosos que circundam a vinda daquele que se espera. Curiosamente, observam-se elementos simbólicos cristãos na poesia: o anúncio daquele que vem é feito por um anjo, tradicional mensageiro divino nas Escrituras Sagradas da tradição judaico-cristã. A poesia fala de sinais que evidenciam a chegada deste ser não identificado. A palavra sinais é muito usada no Novo Testamento exatamente para fazer referência a indícios indicativos da proximidade do fim dos tempos[22]. Além disso, é dito que este personagem viria numa manhã de domingo, o dia sagrado do Cristianismo. A poesia ainda faz referência aos sinos das catedrais, isto é, espaços sagrados na tradição cristã, templos reservados para o culto divino. O que vem é descrito como chegando montado em um cavalo. Esse cavaleiro não identificado faz lembrar a descrição da visão de João de Patmos em Apocalipse 19:11. Nessa passagem bíblica o próprio Cristo[23] é apresentado como chegando montado em um cavalo. O cavaleiro que vem é descrito como estando peito nu, cabelo ao vento. As palavras transmitem idéia de descontração, pois o cavaleiro não é um militar fardado. Percebe-se na descrição um tom de transgressão, de rebeldia, de não aceitação de normas estabelecidas. Nesse sentido, Alceu Valença faz lembrar um ponto destacado por Rivera-Pagán, qual seja: que a literatura (como já visto, particularmente a produzida na América Latina) deve ser ouvida pelos teólogos devido à sua disposição para transgredir a ortodoxia dogmática. Conseqüentemente, a literatura latino-americana mais de uma vez vai produzir o contrário, isto é, uma ênfase na heterodoxia teológica[24]. Este desrespeito à forma clássica de compreender os conteúdos da teologia cristã é visto como positivo por Rivera-Pagán[25].

Evidentemente há diferenças significativas entre o personagem da poesia de Alceu Valença e a descrição bíblica de Cristo. Portanto, não se faz de modo algum neste artigo a afirmação de que o personagem da poesia de Valença seja o mesmo Cristo do Cristianismo. Apenas se faz a observação que a poesia de modo curioso lança mão de elementos simbólicos presentes na tradição cristã.

Um índio – um messianismo panreligioso e multicultural?

A segunda poesia a ser explorada é Um índio, de Caetano Veloso (1942). Caetano é indubitavelmente um dos monstros sagrados da MPB. A seu respeito foi dito:

O que mais distingue a carreira de Caetano Veloso, nascido em 1942, é a experimentação, a busca de inovação, a releitura de clássicos do repertório antigo da MPB e a adaptação criativa de diversos modelosmúsico-poéticos, muitos deles estrangeiros, à sua base cultural, a Bahia [...] além disso, sempre se manteve avesso a rotulações, defendendo a autonomia estilística e política do artista[26].

Sendo baiano, é natural que Caetano esteja à vontade em um ambiente religioso de matriz católica-romana (mas ao mesmo tempo, com forte presença sincrética). O próprio Caetano afirmou a respeito de sua origem religosa católica:

A missa dos domingos, embora por veezes sua obrigatoriedade me impacientasse, não era desinteressante nem desagradável. A liturgia católica é bela e exuberatnte (era-o ainda mais quando não se usava microfone, o padre ficava de costas para nós e falava em latim). Guardei do quarto do santo e das missas na Igreja da Purificação um gosto pelo ritual[27].

A letra de Um índio é transcrita a seguir:

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claroinstante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá, impávido que nem Muhammed Ali, virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri, virá que eu vi
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee, virá que eu vi
O axé do afoxé, filhos de Ghandi, virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro
Em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto, sim, resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará, não sei dizer
Assim, de um modo explícito
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio[28].

Não é difícil observar diferentes referências religiosas e culturais nesta poesia. A começar pelo próprio título: em um país como o Brasil, em que elementos da estética literária romântica deitaram profundas raízes no solo da cultura e do (in)consciente coletivo[29], a figura do índio evoca idéias de pureza original, força e vigor físico[30], em contato direto e constante com a natureza. Considerando que esse índio “descerá de uma estrela colorida brilhante”, pode-se pensar que tal ser tem na verdade origem celestial. Parece ser um mensageiro dos céus, portador de uma mensagem de sabedoria – ele é “mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”. Mais tarde, no final da poesia, será dito que esse ser “virá” para revelar aos povos uma mensagem que vai surpreender, não por ser exótica, mas por ser óbvia:

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio.

Caetano termina sua poesia com estas palavras, de um modo um tanto abrupto, sem dizer exatamente o conteúdo desta mensagem cujo conteúdo é “óbvio”, isto é, já sabido dos povos do planeta, mas que por alguma razão precisa ser revelado por um ser que desce de uma estrela. A julgar pela caracterização do “índio” que vem (como ver-se-á a seguir), pode-se especular que seria uma mensagem que tem seus conteúdos básicos na ênfase à fraternidade universal. Há que se observar que o ponto de chegada desse ser é “num ponto equidistante entre o atlântico e o pacífico”. Encontra-se aí a idéia de centro da terra. A partir desse ponto equidistante a mensagem proferida pelo mensageiro das estrelas poderá alcançar os “povos”, isto é, todo o mundo.

O aspecto multicultural e panreligioso deste ser fantástico e não nomeado que vem está explícito na série de referências que Caetano faz a seguir, quando procura caracterizá-lo:

Virá impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi,
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi,
Tranquilo e infalível como Bruce Lee,
Virá que eu vi,
O aché do afoxé filhos de Ghandi
Virá.

A primeira observação que se faz é a mais óbvia, especialmente quando se ouve a canção. Caetano constrói deliberadamente uma sequência de assonâncias com o som da vogal i – Ali, Peri, Lee, Ghandi, além da tríplice repetição de “vi”. Deste modo faz lembrar o que foi anotado por Calvani:

Assim, os diversos significados de um texto podem ser fortalecidos por meio de flexões vocais, pronúncias que forçam rimas, onomatopéias, entoações, pausas, prolongamentos ou refrões que sugerem ao ouvinte coisas que dificilmente seriam percebdias na poesia gráfica[31].

Nessa sequência fala-se de alguém que tem características de diferentes grupos étnicos, de diferentes regiões do planeta e que fazem lembrar diferentes tradições religiosas. A começar por Muhammad Ali, o conhecido pugilista negro estadunidense, campeão várias vezes na categoria peso-pesado. É curioso que o nome original do boxeador era Cassius Marcellus Clay Junior. O nome foi mudado para Muhammad Ali quando de sua conversão ao Islã. A referência seguinte não é a um ser humano histórico, mas a um personagem literário: o índio Peri, do romance O Guarani, de José de Alencar. Peri é apaixonado (ainda que um amor um tanto platônico) por Ceci, moça branca, a quem inúmeras vezes salva de vários perigos. Em O Guarani, Peri é a encarnação do ideal romântico do herói, uma espécie de “Rambo” brasileiro do século XIX, capaz de feitos humanamente impossíveis para um mortal. A terceira referência é a Bruce Lee, ator chinês considerado o melhor e maior lutador de artes marciais de todos os tempos. A citação de Bruce Lee evoca a China com sua cultura tantas vezes milenar, o misterioso Extremo Oriente com suas tradições religiosas completamente diferentes das até agora referenciadas, a saber, o Islã (evocado na pessoa de Muhammad Ali) e as religiões primordiais indígenas (evocadas na figura de Peri). Finalmente se faz referência não a uma pessoa específica, histórica ou literária, mas a um “espírito” de um grupo: “O aché do afoxé filhos de Ghandi”. Conforme Franchetti,

Afoxé é o nome dado aos grupos de cultura negra, que também saem às ruas no carnaval – Filhos de Ghandi é um desses grupos – da Bahia; “aché” ou “axé” designa a aura, o espírito dos afoxés[32].

Deve-se observar que o afoxé não é um simples bloco de carnaval. Segundo Raul Lody, o afoxé é na verdade um “candomblé de rua”[33]. O “Filhos de Ghandi” é o maior e mais conhecido afoxé de Salvador (BA). Formado apenas por homens, durante o carnaval saem às ruas cantando em iorubá (uma das línguas faladas na Nigéria) e tocando instrumentos de percussão tipicamente africanos, como atabaques e agogôs. Eis aí mais uma mescla: religiosidade africana inspirada em Mahatma Ghandi, o líder indiano célebre pela luta pela emancipação política de seu país da Inglaterra através da não violência[34]. A referência ao afoxé “Filhos de Ghandi” evoca a um só tempo tradições religiosas africanas e hinduístas.

Pode parecer contraditório que haja na poesia referências a dois lutadores – Lee e Ali – e a um promotor (peacemaker) da paz – Ghandi. Todavia, parece que para os propósitos da poesia, o fato do afro-americano muçulmano Muhammad Ali e do sino-americano taoísta[35] Bruce Lee terem sido lutadores não é mais que coincidência. O cerne propriamente da questão não está aí, mas em serem representantes de grupos étnicos e de tradições culturais e religiosas bastante diversos. Sendo assim, seus nomes funcionam como evocativos de atributos do índio que vem de uma estrela colorida e brilhante.

Vê-se portanto que Caetano deliberadamente constrói uma pletora de referências religiosas. O índio que virá evoca Islã, religiões ditas primordiais (indígenas), Taoísmo, Candomblé e Hinduísmo. Sua caracterização faz pensar em um ser com características messiânicas, que vem anunciar à humanidade uma mensagem que, mesmo “óbvia” depois de revelada, é importante.

Conclusão

Anunciação e Um índio são poesias bastante diferentes uma da outra. Todavia, ambas têm poder de referencialidade (para usar a linguagem de Seerveld) ou apresentam pistas ou rastros (para usar a linguagem de Derrida) de elementos religiosos. Em ambos os casos, o elemento religioso em questão é a expectativa quanto à vinda de alguém especial. Em ambos os casos, espera-se a chegada de personagem especial que não recebe nome. As imagens usadas por Alceu Valença fazem lembrar elementos do acervo religioso cristão. As imagens usadas por Caetano Veloso fazem lembrar elementos de um acervo religioso múltiplo, um verdadeiro melting pot de religiões, culturas e etnias. Enquanto a poesia de Alceu não permite nenhuma localização geográfica (só há uma referência vaga a um ambiente doméstico, o quintal de uma casa), a poesia de Caetano é explícita em localizar o Brasil como uma espécie de centro místico do mundo.

Ainda que nenhuma das poesias apresente promessas de um tempo messiânico (estudiosos de movimentos messiânicos lembram a distinção entre caracteres messiânicos e a esperança na chegada de um tempo messiânico – evidentemente, ambas as idéias estão entrelaças e são interdependentes), isto não as descaracteriza como elementos úteis para estudo de uma crença religiosa. Pois, conforme defendido neste breve ensasio, a ênfase que as poesias analisadas apresentam está em caracteres messiânicos.

Decerto a MPB, com um imenso número de composições dos mais variados estilos estéticos, tem rico potencial epistemológico tanto para travar diálogo com estudiosos do campo teológico como para observadores e estudiosos do fenômeno religioso. O que se apresentou neste breve ensaio é apenas uma amostra, posto que simples, desta potencialidade. Que mais estudos a partir desta interface sejam produzidos.

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Notas

[*] Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Professor na Escola Superior de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Lidera o Grupo de Pesquisa “Expressões do sagrado na literatura” no referido programa de pós-graduação.

[1] É candente a polêmica sobre a terminologia a se usar para se referir à abordagem acadêmica e científica do fenômeno e/ou da experiência religiosa. No Brasil, não há consenso quanto a que terminologia utilizar: Ciência da Religião? Ciências da Religião? Ciência das Religiões? Ciências das Religiões? Conquanto sem a pretensão algo arrogante de resolver a questão, o presente artigo utilizará a expressão alternativa estudos de religião.

[2] Pelo menos duas pesquisas acadêmicas foram produzidas recentemente no Brasil levando em conta esta possibilidade: uma dissertação de mestrado (Substância religiosa nas composições do grupo Legião Urbana, de Reginaldo von Zuben) e uma tese de doutorado (Teologia e MPB: um estudo a partir da teologia da cultura de Paul Tillich – esta pesquisa foi publicada em 1998 por Edições Loyola), ambas defendidas no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, e ambas usando como referencial teórico a teologia de Paul Tillich.

[3] L. N. RIVERA-PAGÁN, Mito, exilio y demonios. Literatura y teología en América Latina, p. 9-11.

[4] U. ECO, Apocalípticos e integrados, p. 49.

[5] C.E.B. CALVANI, Teologia e MPB, p. 18.

[6] H. DESROCHE, Dicionário de Messianismos e Milenarismos, passim.

[7] R. DETWEILER, Breaking the Fall. Religious Readings of Contemporary Fiction, p. 30.

[8] G. SUZINGAN, O que é música brasileira, p. 10-11.

[9] SPERBER, Susi Frankl. Sagrado, Poesia e Efabulação, p. 85.

[10] Para um histórico das relações (algumas vezes um tanto conflituosas) entre especialistas do campo de teologia e estudos de religião de um lado e especialistas no campo literário do outro, consultar, inter alia, D. JASPER, The Study of Literature and Religion – an Introduction, p. 2-9.

[11] J. DERRIDA, De la grammatologie, p. 68-70.

[12] O conceito de inspiração derrideana de traços ou pistas do sagrado serviu como marco teórico para o trabalho intitulado Religião e Literatura: suas inter-relações possíveis a partir da obra de Mario Quintana. Trata-se de dissertação de mestrado em Ciência da Religião defendida por Vinícius Mariano de Carvalho na Universidade Federal de Juiz de Fora em 2001.

[13] MARASCHIN, O traço e o poema, p. 81.

[14] Seerveld fala da allusiveness da arte. O termo não tem correspondente direto em português. Talvez seja possível traduzir allusiveness por referencialidade.

[15] O tom coloquial da citação de Seerveld se explica porque na verdade A Christian Critique of Art & Literature é uma coletânea de quatro palestras (lectures) ministradas em 1962 e 1963 em conferências acadêmicas em Unionville, Ontário e na Banff School of Fine Arts em Alberta, Canadá.

[16] C. SEERVELD, A Christian Critique of Art & Literature, p. 46-47.

[17] Para detalhes quanto aos movimentos messiânicos, consultar, inter alia, M.I.P QUEIROZ, O messianismo – no Brasil e no mundo, passim. Esta obra, indubitavelmente - não obstante já terem se passado mais de quatro décadas desde sua publicação - ainda se constitui em clássico sobre o tema.

[18] H. KOHN, ‘Messianism’ in The Encyclopedia of Social Sciences, apude Desroche, p. 20.

[19] R. C. FERNANDES, ‘Messianismo’ in Dicionário do pensamento social do século XX, p. 462-463.

[20] Alceu foi uma das revelações do VII FIC – Festival Internacional da Canção, de 1972.

[21] Anunciação aparece no álbum Anjo avesso, de 1983. A letra transcrita no presente ensaio foi extraída de http://vagalume.uol.com.br/alceu-valenca/anunciacao.html [acessado em 30 de agosto de 2006].

[22] Exemplo típico é Mateus 24:3: “No monte das Oliveiras, achava-se Jesus assentado, quando se aproximaram dele os discípulos, em particular, e lhe pediram: Dize-nos quando sucederão estas coisas e que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século”].

[23] É interessante lembrar que a palavra Messias, de onde vem o termo messianismo, é de origem hebraica, tendo o mesmo significado da palavra Cristo, de origem grega.

[24] RIVERA-PAGÁN, op. cit., p. 13.

[25] Poder-se-ia argumentar que, com uma afirmação deste jaez, Rivera-Pagán dificilmente vai conseguir construir pontes entre alguns teólogos e alguns literatos. Pois sua afirmação pode espantar e destruir mais que atrair e construir.

[26] CALVANI, op. cit., p. 175.

[27] C. VELOSO, Verdade tropical, p. 335.

[28] P. FRANCHETTI, Caetano Veloso, p. 76-77.

[29] Romances românticos de cunho indianista e caráter nacionalista escritos no Brasil no século XIX, como Ubirajara, Iracema e O Guarani (todos de José de Alencar), além de poesias épicas como A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, contribuíram para cristalizar esta visão do índio na cultura brasileira. Percebe-se que, via de regra, a visão do índio continua marcada por estereótipos: seja a visão do índio como preguiçoso e avesso ao trabalho como esta visão romântica do índio como um super-homem. Decerto, nenhum desses estereótipos corresponde à realidade.

[30] Observam-se em rótulos de alguns produtos medicinais populares a imagem de um índio representado como um homem musculoso e atlético.

[31] CALVANI, op. cit., p. 19.

[32] FRANCHETTI, op. cit., p. 77 n. 61.

[33] R. LODDY, O Povo do Santo.

[34] Mohandas Ghandi, o Mahatma, com seu princípio de não violência inspirou a campanha de Martin Luther King Junior, pastor batista negro estadunidense, em prol da concessão de plenos direitos civis aos negros do seu país.

[35] Bruce Lee não era propriamente um exemplo como religioso. Não obstante, fora criado em um típico ambiente cultural chinês que mescla Budismo e elementos das antigas religiões tradicionais chinesas. Deve-se observar que ele criou o Jet Kune Do, que é ao mesmo tempo um estilo de arte marcial e a apresentação de uma filosofia de vida. A influência do Taoísmo é notável no sistema Jet Kune Do de Bruce Lee.