Desafios Islamistas, Respostas Ocidentais[*]

Peter Demant[**] []

Resumo

O 11-9 e os ataques muçulmanos fundamentalistas posteriores contra alvos ocidentais e estadunidenses em particular, vêm afetando profundamente o clima internacional. O texto a seguir analisa (a) a natureza do desafio islamista e (b) as respostas formuladas pelos EUA em particular. Na conclusão, algumas sugestões são levantadas. Rejeitamos posições que tendem a minimizar o significado do fenômeno islamista, que é um projeto antimoderno, anti-democrático, anti-pluralista e parcialmente violento. O desafio é, a princípio, global, mas é preciso evitar comparações levianas entre fundamentalismo e islã. Na política externa estadunidense os ataques fundamentalistas provocaram uma profunda mudança: de uma tendência realista e de contenção para uma agressiva exportação de "valores americanos" (amplamente assimiláveis aos da própria modernidade), considerada como precondição para a segurança dos EUA e exemplificada pelas intervenções no Afeganistão e no Iraque. Seis posições determinam a política externa dos EUA: nova e velha esquerda, neo-realistas, culturalistas, paleo- e neo-conservadores. A mudança nas políticas foi conseqüência da deslegitimação das posições antiintervencionistas comuns à nova esquerda e à velha direita, em combinação com a inaptidão analítica (pois demasiadamente Estadocentrista) dos neo-realistas: o intervencionismo da velha esquerda e da nova direita chegou a ditar as políticas; mas seus resultados até agora não convencem. A ultima parte do artigo discute as implicações éticas do intervencionismo, justificando-o em certas circunstancias, mas negando que uma política unicamente repressivo-militar seja adequada para lidar com o desafio islamista: uma resposta mais eficaz é apenas possível se o ocidente lidar com as raízes sociais do fundamentalismo e não se limitar ás suas expressões terroristas.

Abstract

9/11 and subsequent islamist attacks against western, particularly American, targets have profoundly affected the international climate. This articles deals with two questions: (1) what is the nature of the islamist challenge? (2) which answers have been formulated by the west? It concludes with some tentative suggestions. Islamic fundamentalism or Islamism is defined as an antidemocratic and anti-pluralistic political project with a specific societal countermodel derived from an interpretation of Islam, yet clearly different from it. In fact, islamism has more in common with other fundamentalisms than with Islam. The USA is today at the center of a debate with global consequences, exacerbated by the mutual vulnerability between societies caused by globalization. Arguing against voices tending to relativize islamism's significance and scope, we point at the danger posed by means of violence viz. weapons of mass destruction in the hands of unappeasable groups. Those who accept islamism as an ally by virtue of its 'anti-imperialism' neglect the fact that its profoundly antirationalist philosophy and reactionary program stands closer to fascism than to the left. It is important to clarify that terrorism is just one of the means employed by islamist groups, and that a "war against terrorism" such as advocated by the Bush administration is therefore besides the point. However, while only a minority of islamist groups is violent, all of them are antiwestern: the threat must be taken seriously. Post-9/11 western reactions to the islamist phenomenon are here primarily gauged from the perspective of the US. They provoked a comprehensive rethinking of its foreign policy, from realistic-containment to aggressively idealistic-oriented. This reformulation is analyzed as outcome of the interaction between six positions: (1) the anti-imperialist and sometimes islamophile New Left (both Marxist and post-modernist), (2) the anti-totalitarian democratic Old Left, (3) status quo oriented neorealism, (4) culturalists, (5) the traditional and mostly islamophobic Right, an assortment of old-style conservatives, fundamentalist Christians, and isolationists, and (6) neoconservatives, many of Leftist origin, who militate in favor of exporting "American values" (often undistinguishable from secular democratic modernity as such) across the world in general - and to the Islamic world in particular - as a precondition for US security. After 9/11 the anti-interventionist positions shared (for different reasons) by the Far Left and the traditional Right lost credibility, while the traditional state-centered power politics of neorealists, who had long stood at the helm of US foreign policy, proved unable to come to grips with the islamist phenomenon. It seems that a coalition of interventionist old Leftists and neoconservatives closed the ideological hiatus and provided the justifications for newly interventionist US policies (e.g. in Afghanistan and Iraq). However, the results of these interventions have not so far confirmed the interventionists' predictions. The last part of the article assesses the moral dilemmas of both interventionist and anti-interventionist positions, arguing that while interventions may under certain circumstances be justified - e.g. in self-defense; or when a regime is threatening world peace; or to liberate a "captive" nation oppressed by a non-representative dictatorship - and repression may be inevitable, it provides no cure. There exists no long-term military solution to the challenge of violent Islamism, which can only be treated by addressing its social and political origins. These roots must be sought in mass alienation and social dislocation caused by globalization, which render significant parts of the Islamic world vulnerable to the islamist temptation. An adequate response will have to incorporate elements of distributive justice, empowerment of the Islamic world, and a values renewal in the west.

Em algumas semanas comemoraremos os três anos do 11 de setembro de 2001. Este ato terrorista inédito transformou profundamente a paisagem estratégica e cultural internacional. A guerra contra os Talebãs no Afeganistão não teria ocorrido sem o 11/09; a posição internacional de Israel e dos palestinos teria sido diferente - e, provavelmente, também a da França ou da Rússia. A ocupação do Iraque muito provavelmente não teria acontecido. Todo o clima internacional mudou como resultado desse ataque e a triste seqüência de atentados islamitas menores - mas não menos terríveis - em Bali, Quênia, Turquia, Marrocos, Arábia Saudita, Israel, Filipinas, Tailândia, Madri, Rússia. O maior alvo, atualmente, é o próprio Iraque, cuja população está sendo vitimada mais do que qualquer outra por um pesadelo interminável de homens-bomba, carros-bomba, seqüestros e outros ultrajes, limpezas étnicas, intimidações de mulheres e de minorias, batalhas de rua e demais formas de terrorismo contra civis que devemos entender e, alguns dizem, aplaudir como "legitima resistência" contra uma ocupação "imperialista" - e contra um regime "fantoche" cujas tentativas de democratizar o país quase se afogam no sangue derramado pelos invisíveis "heróis da resistência". Se adicionarmos a isto os inúmeros alarmes e avisos vindos de terroristas, o medo generalizado, os sinais de que populações médio-orientais cada vez maiores rejeitam as intromissões dos EUA - e até a própria existência da ONU - vemos um mundo quase irreconhecível em comparação com o clima otimista que o fim da Guerra Fria parecia inaugurar.

No centro desta transformação há um projeto que desafia a ordem democrática e culturalmente pluralista com um ponto de vista religioso antimoderno e totalitário usando de meios cruéis para destruir a ordem democrática e implementar sua visão alternativa. Alguns autores chamam este desafiador "o Islã" e falam de um choque de civilizações; na minha leitura, a questão não se vincula a essa religião, à qual pertence um quinto da humanidade, mas a uma versão deturpada dela, que chamaremos de Islamismo: este tem mais paralelos com fundamentalismos fanáticos de outras religiões e com os fascismos do entreguerras do que com o Islã tradicional, que pretende representar. Outros facilmente desculpam o terrorismo fundamentalista como reação à globalização desigual supostamente promovida pelos EUA, ou contra suas políticas unilateralistas e pró-sionistas, ou contra um suposto imperialismo cultural do Ocidente, considerando o fundamentalismo muçulmano violento como uma manifestação de descolonização mental e de purificação identitária.

Na minha leitura, os EUA, não obstante seus inúmeros pecados históricos (porém não mais numerosos, nem piores que os de outras potências), estão involuntariamente no centro de um debate cujo desfecho determinará o futuro da Humanidade: por um lado, os EUA atraíram sobre si reações iradas contra políticas injustas e evitáveis - mas, por outro, herdaram uma polarização civilizacional inevitável, uma situação em que a humanidade, para sobreviver, precisa inventar novos modos de coexistir e usar seus recursos criativamente para resolver dilemas urgentes. O Ocidente, a Globalização e as novas tecnologias geraram um mundo que torna acessível a pequenos grupos insatisfeitos armas que ameaçam a todos; vivemos num mundo onde a miséria e a raiva de alguns torna progressivamente mais inviáveis a felicidade e tranqüilidade de outros que estão a milhares de quilômetros de distância. A Globalização faz com que cada vez mais estejamos intra e intervulneráveis, com reações cada vez mais perigosas para todos. Uma reação é inevitável, mas muito dependerá do tipo de reação ocidental em geral e estadunidense em particular. Este é o verdadeiro desafio.

Minha reflexão terá, portanto, como ponto de partida, este evento do 11/09. As perguntas que me coloco são as seguintes: qual e a natureza do desafio islamista? Quais são as respostas que o Ocidente desenvolveu até aqui - os EUA, em primeiro lugar? Como avaliamos as respostas? O que fazer?

1. Quão sério é o "Desafio Islamista"?

Após os estragos do 11/09, logo assumidos pela Al-Qaeda de Osama bin Laden - que constituíram o maior ataque contra uma grande potência em tempo de paz desde Pearl Harbor e que mataram o maior número de civis em um dia desde Hiroshima - pode ter parecido lógico considerar o Islamismo radical como realmente perigoso e precisando de uma análise em profundidade. Interessantemente, encontram-se vozes bastante numerosas que negam (ou pelo menos relativizam) tal percepção. Nos EUA, em Israel, na Rússia e na Índia, alvos preferidos dos terroristas islamistas, a tendência para minimizar o fenômeno é menos perceptível. Por outro lado, na Europa Ocidental e em partes do Terceiro Mundo menos atingidas, inclusive aqui na América Latina, tais vozes são ouvidas com uma certa freqüência. Antes de analisar as reações nos EUA, portanto, cabe verificar as medidas reais do fenômeno.

Embora fundamentalistas muçulmanos estejam divididos em inúmeros grupos, conhecemos bastante bem sua ideologia e programa, que têm sido objeto de pesquisas aprofundadas.[1] Sem entrar nos detalhes da teologia e visão geopolítica da Al-Qaeda e de grupos afins (amplamente analisadas em publicações especializadas e, aliás, facilmente acessíveis na Internet) lembro aqui apenas a declaração "contra judeus e cruzados" de 1998,[2] em que bin Laden condenava à morte todos os americanos, tanto militares quanto civis, como punição pela ocupação da terra sagrada da Arábia, do embargo ao Iraque e do apoio americano à chamada "entidade sionista". O general paquistanês Hamid Gul, um dos ideólogos da Al-Qaeda, recentemente expressou a opinião que para islamizar a terra inteira será necessário matar todos os judeus do mundo.[3] Outras fontes citam Al-Qaeda como chamando para o massacre de quatro milhões de americanos.[4]

Na verdade, ao lado de expressões islamistas que reivindicam a hegemonia do Islã em escala mundial, é possível apontar outras, mais moderadas, que reivindicam "apenas" a restauração do papel do Islã como bússola da sociedade, a purificação das sociedades já majoritariamente muçulmanas e a expulsão de influências ocidentais: demandas que implicam numa redistribuição do poder na comunidade internacional, mas que não necessariamente destruiriam sua estrutura atual.

As reações "diminutivas" que minimizam o risco da Al-Qaeda e da plêiade de grupos islamistas terroristas como Hezbollah, Hamas etc. - de comentaristas como Edward Said, John Espósito (e que possui certos ecos no Brasil) - se prendem a esta esperança do "apenas". Elas se dividem em três tipos.

O primeiro tipo nega a seriedade dos meios dos quais os terroristas dispõem. Seu slogan é "poderia ter sido pior". "Sim, o 11/09 foi terrível, mas não é alarmista demais afirmar que ele se repetirá? Poderia ser um fato único, excepcional. Atos terroristas por grupos extremistas que objetivam explodir o mundo por motivos escatológicos não são nada de novo. Sim, houve estragos posteriores a 11/09 - Bali, Madri etc. - mas foram todos de tamanho bem menor. Não existem provas de que grupos terroristas como al-Qaeda disponham de armas de destruição em massa (ADMs)."

A resposta a este tipo de argumento é simples: a avaliação séria de um inimigo levará em conta não apenas seu alcance passado, mas seu potencial e suas ambições futuras; há muitas indicações de que grupos fundamentalistas ativamente buscam tal arsenal; uma vez dispondo de ADMs, o grupo se torna quase invulnerável e pode chantagear o resto do mundo. A ausência de ataques ainda mais mortíferos com métodos e tecnologias ainda mais destruidoras do que os usados até hoje não pode nos iludir quanto à vontade de extremistas em desenvolvê-los e usá-los. Muitos são os sinais de que eles querem fazer isto. O fato de os grupos terroristas serem minoritários não é um consolo numa época de democratização dos meios da violência quando grupos insatisfeitos cada vez menores dispõem de meios cada vez mais eficientes e letais.

Um segundo argumento vem da escola realista das Relações Internacionais, que quer relativizar a seriedade das metas dos terroristas. Tentando "desmitologizar" o discurso dos fundamentalistas e relativizar seu caráter religioso (e daí absoluto), ela o interpreta como tendo um caráter eminentemente político. "É verdade que as palavras de bin Laden soam extremas, mas isso não acontecia também no discurso dos bolcheviques? Contudo, depois eles provaram poder ser bem receptivos a negociações e negócios com os antes execrados capitalistas. A Revolução Francesa eventualmente se integrou sob Napoleão nos anciens régimes e seus líderes se misturaram com as velhas dinastias aristocráticas. Mao Tsé Tung tinha um discurso ultra-radical, mas depois, "pelo bem da causa", abraçou Nixon e Kissinger. Exatamente a imbricação dos islamistas na vida política, diz este argumento, garante que por fim eles se adaptarão e se comportarão como atores políticos "normais" e "responsáveis". Os aiatolás iranianos prometeram expandir o Islamismo por todo o mundo e destruir Israel, mas aceitaram comprar armas israelenses quando enfrentaram Saddam Hussein e, por fim, se satisfizeram com o controle apenas sobre o Irã. Hoje, os insurgentes iraquianos ameaçam decapitar reféns a menos que o respectivo pais retire seus soldados do Iraque, e Osama ameaça a Europa com novas "Madris" a menos que os europeus não mais interfiram no Oriente Médio. Isto não corresponde a uma comunicação política entre adversários? Em outras palavras - é possível entender de forma clausewitziana os ataques terroristas, por mais detestáveis que sejam, enquanto prolongamento de uma "política por outros meios". Porém, onde há uma abertura para barganhar, "dá para acomodar". Portanto, é possível desviar o perigo do terrorismo mediante pagamento do "preço justo".

Isto se chama apaziguamento. A resposta a este argumento é que o preço, tanto político quanto moral, é demasiadamente alto. O século XX nos ensinou a levar a sério as expressões de profetas "loucos". Quando Hitler profetizou, nos anos 20, que o nazismo aniquilaria os judeus, foi desprezado como um maluco marginal. Ele comprovou ser homem de palavra. Stalin prometeu aniquilar os camponeses independentes e Pol Pot os citadinos cosmopolitas - ambos avisaram os "inimigos da revolução"; ambos cumpriram sua promessa com meios mais primitivos dos que os extremistas atuais. O mundo simplesmente não pode mais se dar ao luxo de apostar na "loucura inocente" dos extremistas de hoje. Não é possível apaziguar grupos cujas reivindicações não são táticas e limitadas, mas estratégicas e ilimitadas: demandas para uma transformação radical do sistema internacional e da estrutura dentro de cada sociedade.[5] Não é viável uma estratégia de dissuasão porque este inimigo não é visível e/ou vinculado a um Estado, e também porque ele não só não tem medo de morrer mas, ativamente, busca o martírio. É preciso acreditar na autenticidade dos ideólogos fundamentalistas.

A terceira leitura se encontra mais à esquerda do espectro político. Ela não nega nem a seriedade dos fins dos islamistas, nem a letalidade dos meios que eles estão prontos a usar, mas opera uma releitura que os transforma de vilões em heróis, interpretando o Islamismo como um movimento antiimperialista e, daí, merecedor da nossa admiração e/ou apoio. "Afinal das contas, os povos do mundo muçulmano não sofriam explorações e humilhações incontáveis? E isto não explica e justifica sua reação, ainda que um tanto exagerada? O homem-bomba não sofreu uma humilhação que torna sua reação compreensível? Ele não demonstra uma coragem admirável? O que os EUA fizeram no Irã em 1953, na Guatemala em 1954, no Vietnã nos anos 60, contra Cuba, no Brasil em 1964, Chile em 1973 etc.... não é muito pior? Não produziu muito mais vítimas inocentes? O que dizer do apoio americano incondicional ao regime 'fascista' de Sharon em Israel? Por que enfatizar as poucas centenas de vítimas do terrorismo em comparação ao sofrimento dos palestinos, dos índios, da violência que aflige os favelados e outras vítimas do capitalismo/imperialismo/neoliberalismo/globalização? Não é verdade que os Saddam Hussein, Osama bin Laden, Arafat, Kim Jong-Il, Qadafi, Khamenei etc. (bien étonnés de se trouver ensemble) resistem a estragos norte-americanos que levam a mil vezes mais vítimas? Que eles protestam, talvez um pouco brutal, mas corajosamente, contra uma divisão injusta de bens e de poder no mundo? Que eles pelo menos tentam mudar um equilíbrio indefensável?"

Como avaliar este tipo de argumento? Wallerstein teve sem dúvida razão quando analisou a ocupação iraquiana do Kuwait em 1991 como o "primeiro sinal da revolta militar do Sul global contra o Norte".[6] Mas há uma diferença perigosa entre análise e aplauso. Num departamento da USP, que conheço bem, apareceu no final de 2001 e durante a greve de 2002 uma faixa gigantesca "gritando" "Valeu Osama!". O saudoso sociólogo da globalização Octavo Ianni, num de seus últimos discursos públicos, proclamou que o 11/09 foi um "ato revolucionário".[7] Os alunos desencaminhados, aplaudindo, provavelmente não estavam cientes do fato de que bin Laden e seus companheiros, antes de agredir os EUA, começaram sua guerrilha contra os comunistas, e que marxistas, feministas e demais progressistas seriam os primeiros a serem liquidados caso ele ou seus amigos chegassem ao poder (como, aliás, aconteceu literalmente com os revolucionários socialistas, socialistas muçulmanos e demais componentes do "adubo da História" fuzilados nos anos 80 no Irã e anos 90 no Afeganistão). Não é correto encarar grupos extremistas violentos e antimodernos como progressistas meramente porque eles se pintam com cores antiamericanas ou antiocidentais e usam uma demagogia antiimperialista (Hitler fez o mesmo em sua época). É preciso dizer, em voz alta, que a Al-Qaeda e seu líder bilionário não representam nenhum progressismo revolucionário-progressista, buscando apenas uma terrível contra-revolução.

Os argumentos tendendo a relativizar o risco parcialmente refletem uma inclinação humana natural, mas lamentável, de enxergar as coisas através de lentes cor-de-rosa. Infelizmente, tal otimismo, nas circunstâncias atuais, equivale a irresponsabilidade. Nosso mundo abriga certos grupos cuja irracionalidade de metas torna o diálogo disfuncional.

Os cidadãos dos centros urbanos do mundo desenvolvido moderno, que achavam que sua liberdade de ir e vir e de segurança pessoal fossem direitos adquiridos, desde o 11/09 entraram num brave new world de medo e de desconfiança mútua. A perda de otimismo e da confiança no progresso é, talvez, o mais amargo êxito do terrorismo. Concluo que o mundo se defronta com um inimigo dos mais sérios. Mas quem é este inimigo? O que ele objetiva? Que vantagens buscavam estas pessoas que sabiam que iam morrer? Que objetivos podem ser alcançados por meio de tais atrocidades? Precisamos entendê-lo para poder nos posicionar. É aqui que começam os problemas.

O inimigo é o fundamentalismo

Um ponto ficou claro de imediato e os americanos o identificaram bem: estamos numa guerra (embora irregular) e não (como muitos europeus acreditam - ou pelo menos acreditavam até o ataque de Madri em março deste ano) em um mero problema de crime ou de violência cega, passível de contenção por meios policiais "normais". Onde há guerra há inimigo, mesmo que ele seja invisível e intangível. E o inimigo tem objetivos e meios pensados para alcançar seus fins. Ainda que sua identificação seja difícil, sabemos algo sobre este inimigo. Sabemos que ele é inimigo da globalização e da modernidade em si, mas sabemos, também, que ele usa os meios e sinais da globalização e da modernidade como a liberdade de informação, a mobilidade cada vez mais incontrolada de bens, capitais e pessoas, o anonimato e a privacidade que permite a cada um desenvolver sua própria vida particular.[8]

O governo Bush (e muitos outros governos) faz uma simplificação que não esclarece nada quando fala de "guerra contra o terror". O terror atual não é uma pessoa, um grupo, um partido, ou uma ideologia. É uma estratégia de luta, geralmente utilizada por grupos oposicionistas que se sentem incapazes de obter seus objetivos por meios políticos pacíficos convencionais e que, portanto, usam violência. O terrorismo não é novo, mas sua forma atual se distingue pelo uso de violência de um tipo específico, que alveja grupos de civis indefesos de forma arbitrária. O novo terrorismo manipula a mídia para - mediante o pavor associado à morte e ao sofrimento das vítimas imediatas - forçar um terceiro público ou um grupo no poder, associado ou identificado com estas vítimas - a introduzir mudanças políticas que, de outra maneira, eles não fariam. Contudo, o terror, o homem-bomba, o avião ou trem-bomba, por mais hediondos que sejam, são meros meios para uma meta de poder.

O inimigo, portanto, não é o terror em si. E ainda menos o Islã. Entre as vítimas do terrorismo fundamentalista estão muitos muçulmanos, no Irã, Líbano, Israel, Iraque, Indonésia, Turquia etc. - pessoas não menos inocentes que as vítimas majoritariamente ocidentais do 11.09. O inimigo é o fundamentalismo radical.[9] O fundamentalismo é uma reação que se encontra em muitas religiões. Constitui uma reação genérica contra a modernização e suas características: individualismo, urbanização, soberania do povo, liberdades do indivíduo - inclusive a liberdade de escolher ou abandonar sua religião, liberdade de interpretá-la, liberdade na vida privada, etc. O fundamentalismo reage, em particular, às tentativas de desenvolver uma acomodação entre a religião e a vida moderna.[10] De desenvolver, por exemplo, numa leitura simbólica das escritas sagradas, a legitimação religiosa de princípios modernos - tais como a igualdade entre fiéis e pessoas de outras religiões, entre homens e mulheres, a liberdade de religião, a tolerância, o diálogo, a neutralidade religiosa da autoridade pública, a igualdade de todos frente à lei, etc. Fundamentalismos tendem a prescrever uma leitura literalista, rígida, intolerante e puritana da religião. Quando se politizam, prescrevem um governo religioso pronto a impor as severidades da religião a todos. Para realizar seu programa, certos fundamentalistas impacientes - ou simplesmente sem esperança desta possibilidade de reforma por métodos pacíficos - chegam a abraçar estratégias violentas, revolucionárias ou terroristas. O que mais atiça a ira do fundamentalista é a liberdade individual. Qual é o contra-ideal que ele promove? Uma visão que combina o controle do pensamento e do comportamento individual e sua moldagem em padrões divinamente pré-estabelecidos, mas utilizando meios tecnológicos modernos. Todo este contra-projeto de engenharia social lembra muito o totalitarismo fascista.

Hoje encontramos a forma mais perigosa deste tipo de raciocínio e atuação fundamentalistas no fundamentalismo muçulmano, ou seja, no Islamismo.[11] Movimentos islamistas atuam no Egito, Turquia, Tunísia, Israel, Jordânia, Paquistão, Malásia, Nigéria, Sudão, Indonésia e em dezenas de outros Estados. Eles alvejam primariamente a própria sociedade muçulmana, que querem transformar num Estado "autenticamente" islâmico. Cabe salientar que a grande maioria desses movimentos não é violenta, ainda que seu projeto a princípio sempre desafie a sociedade moderna-ocidental que define o rumo de desenvolvimento predominante da maioria destes paises. A nós interessa a minoria: os ramos violentos. Suas tendências mais radicais, como por exemplo a Al-Qaeda, agem para fora, contra o Ocidente e em particular contra os EUA, a suposta causa e motor da "corrupção".

O que é, portanto, o desafio islamista?

  1. Uma rejeição à sociedade moderna de origem ocidental e à ordem mundial por ela induzida;
  2. Um contra-modelo inspirado por uma leitura especifica do Islã;
  3. Uma diversidade de estratégias para destruir (1) e implementar (2). Entre elas, algumas violentas.

O Islamismo objetiva a destruição do Ocidente ou tem alvo mais modesto? Na realidade encontramos não um objetivo uniforme, mas um espectro de objetivos que vão da influência social e controle político local até a transformação universal. Contudo, as reivindicações mais imediatas despertam facilmente uma visão geopolítica que (não obstante as derrotas do mundo muçulmano pelas mãos do Ocidente nos últimos séculos) nunca realmente se extinguiu: a do jihad universal para implantar, em escala mundial, a supremacia da "verdadeira fé". Os estudiosos diferem em suas conclusões: Peter Bergen, por exemplo, enfatiza o caráter mais regional da Al-Qaeda; Bassam Tibi, o universal.[12] Essas divergências são naturalmente nutridas pela falta de clareza e contradições (algumas talvez propositais) das próprias fontes islamistas. Nunca enfatizamos o suficiente que, atualmente, islamistas constituem apenas uma minoria entre os muçulmanos; a maioria busca uma acomodação pacífica com a modernidade; islamistas violentos constituem uma minoria dentro de uma minoria. Como observa Bernard Lewis, "A maioria dos muçulmanos não é fundamentalista e a maioria dos fundamentalistas não é terrorista, mas a maioria dos terroristas atuais é de muçulmanos e se identificam orgulhosamente como tais."[13]

É importante, portanto, destacar a diferença entre Islã e Islamismo. A maioria dos muçulmanos no mundo ainda não se identificou com o programa fundamentalista, por mais que se difunda no mundo muçulmano a aversão ao Ocidente e ao modelo social que ele prega - uma globalização que deixa o indivíduo à mercê de forças econômicas e políticas externas incontroláveis e cuja visão cultural parece um escárnio ao ideal da umma virtuosa. No entanto, muitos muçulmanos moderados permanecem abertos a visões de uma acomodação entre sua fé e a modernidade, desde que tal acomodação se faça com a garantia de dignidade.

Há, em outras religiões, outros fundamentalismos que comprovaram seu potencial violento; é o caso, no Judaísmo, do "Bloco dos Fiéis" (Gush Emunim), que coloniza espaços palestinos; no Protestantismo norte-americano, os fanáticos que atacam clínicas de aborto ou que cometem atos terroristas tais como o atentado de Oklahoma em 1995; no Hinduismo, os extremistas do Shiv Sena que, em 1992 (e novamente há dois anos), massacraram inúmeros muçulmanos indianos numa tentativa de limpeza étnica. Porém, ninguém no Ocidente (além dos anti-semitas) culparia todos os judeus pela indiferença exibida por poucos oficiais israelenses quando das atrocidades cometidas por falangistas libaneses em Sabra e Shatila em 1982, ou pelo massacre cometido por um judeu em 1994 contra muçulmanos em Hebron. Ninguém rejeitaria o Cristianismo somente pelas fogueiras da Inquisição. Não é mais defensável acusar todos os 1,2 bilhão de muçulmanos pelos atos terroristas cometidos por poucos extremistas. Ao invés de satanizá-los em bloco, precisamos de toda a cooperação possível dos muçulmanos progressistas - exatamente para conter e combater os fundamentalistas muçulmanos.

Contudo, o fenômeno islamista radical é bastante preocupante em si e pede nossa atenção. O espanto que o terrorismo islamista conseguiu provocar revela sua aptidão para usar os meios da modernidade contra a modernidade. O exemplo poderia inspirar ainda outros extremismos religiosos e/ou outros extremismos. No entanto, não há como negar que, na conjuntura atual, o maior desafio surge de islamistas radicais. Devemos aceitar que pelo menos um segmento deste grupo possui metas universais e está disposto a usar métodos genocidas para realizá-las. Há sempre a possibilidade de tendências mais "políticas" se desenvolverem a partir dos ramos mais extremistas, mas, neste momento, poucos são os sinais neste sentido.

2. As reações ocidentais

Agora que determinamos a seriedade do desafio, estamos melhor armados para analisar a gama das reações ao Islamismo violento no Ocidente.[14]

Contra um "Ocidente" que Huntington define por oito marcas - (1) o legado clássico, em particular o Racionalismo; (2) o Cristianismo católico e protestante; (3) os idiomas europeus; (4) a separação da autoridade espiritual e temporal; (5) o império da lei; (6) um pluralismo social; (7) corpos representativos como parlamentos e (8) o individualismo[15] - é que se volta o Islamismo com seu projeto alternativo. Aliás boa parte deste pacote huntingtoniano é hoje espalhado para sociedades não-ocidentais: a questão não é mais saber se os valores de origem ocidental são universalizáveis, mas se eles merecem e precisam ser universalizados! Quero fazer uma escolha eclética entre algumas das mais destacadas vozes que tentam analisar, entender e prescrever como lidar com este desafio islamista.

Concentrar-me-ei nos EUA e não na discussão européia por dois motivos: em primeiro lugar, o debate nos EUA é muito mais cristalizado em escolas ou tendências com agendas opostas e relativamente bem articuladas. A discussão acadêmica sobre os supostos perigos escondidos no Islã ou Islamismo começou a permear o discurso publico nos EUA antes que na Europa. Em segundo lugar, a discussão na Europa tende a focalizar a questão da imigração muçulmana: estes 15 milhões de árabes, turcos e paquistaneses têm que se assimilar cultural, política e religiosamente ou, ao contrário, podem ou devem manter sua particularidade? Nos EUA esta discussão também existe há muito tempo, mas ali está embutida na questão do multiculturalismo. Tal discussão é aqui, porém, tangencial. A discussão mais aquecida nos EUA lida com os muçulmanos menos como desafio cultural interno e mais como desafio de segurança internacional. E - ao contrário da situação européia - os resultados deste debate ideológico que se trava nos EUA têm prolongamentos estratégicos e militares globais, pois os EUA reagiram ao 11/09, numa palavra, com uma contra-ofensiva que até agora incluiu Afeganistão e Iraque e cujo desfecho ainda não se conhece. Ao contrário da França e Alemanha, os EUA têm amplos recursos para responder à violência com violência. A discussão paralela na Europa está apenas começando.

Historicamente, os laços do mundo muçulmano foram muito mais tênues com os EUA do que com as potências coloniais européias, a França e Grã-Bretanha em particular. Por isso, causa surpresa o antiocidentalismo islamista se virar tão virulentamente contra Tio Sam em particular. Este fenômeno é, na verdade, recente, e data dos anos 80 e 90. Até o 11/09, a conscientização dentro dos EUA acerca dos problemas do mundo muçulmano e de sua relação com este era muito limitada e não especialmente antiislâmica. Na guerra do Golfo, que libertou o Kuwait da ocupação iraquiana, os EUA lideraram uma aliança que incluía muitos Estados muçulmanos; nos anos 90, os EUA iniciaram varias intervenções militares em prol de populações muçulmanas (na Somália, Bósnia, Kosovo); e Clinton tentou, em vão, mas consistentemente, fazer uma ponte entre Israel e os palestinos. No entanto, a atmosfera popular pública no Oriente Médio se tornou cada ano mais antiamericana. Grupos islamistas proliferaram. Eles multiplicaram os ataques contra alvos americanos - no começo contra instalações militares ou soldados estacionados no mundo muçulmano, mas, já desde 1993, no próprio território americano. Porém, apenas o trauma 11/09 transformou a cena totalmente.

O ato, aparentemente não movido por nenhum interesse tangível, mas por uma ideologia suicida, sem reivindicações explícitas, mas calculado (como outros posteriores) para maximizar o número de vítimas e de forçar um efeito midiático máximo, não parecia inicialmente cair dentro de nenhum paradigma conhecido e carecia de precedentes históricos óbvios. Em outras palavras: não parecia fazer sentido.

Os ataques contra o território de uma pátria-mãe considerada até aquele momento como segura desencadearam (previsivelmente) um debate extremamente polêmico e abrangente que ainda não está decidido. Estrategistas, jornalistas, peritos em Oriente Médio e outros defendem aí suas idéias. No imediato se destacaram duas conseqüências: em primeiro lugar, uma reação nacionalista lamentável - mas que podia ter sido (ou ainda poderá se tornar) mais virulenta; em segundo lugar, uma reformulação abrangente (na verdade, a mais abrangente desde o início da guerra fria) da visão estratégica e internacional dos EUA. Podemos entender esta virada da defesa para a ofensiva como o vetor de numerosas linhas de força. É possível distinguir umas seis linhas distintas (embora parcialmente justapostas e com muitas ligações transversais): (1) a extrema esquerda, (2) os "liberals" da velha esquerda, (3) os neo-realistas, (4) os culturalistas, (5) os paleoconservadores fundamentalistas cristãos e outros e, finalmente, (6) os neoconservadores.

Neomarxistas, antiimperialistas, relativistas culturais e muitas vezes abertamente islamófilos constituem a "nova esquerda": um grupo heterogêneo, mas com influência na academia e com uma visão negativa da atuação internacional dos EUA; simpatizante de grupos de libertação e regimes pós-coloniais no Terceiro Mundo. Quando movimentos sociais no mundo muçulmano evoluíram de majoritariamente nacionalistas seculares e esquerdistas para serem majoritariamente islamistas, os fundamentalistas revolucionários, embora fossem conservadores puritanos, conseguiram quase "sem querer" a simpatia da esquerda antiimperialista. A critica pós-modernista minou pressupostos supremacistas ocidentais. No limite, a nova esquerda interpretava o Islamismo como uma forma compreensível de descolonização cultural e como um integrante legítimo da luta global contra o imperialismo. Após o 11/09, seus críticos acusaram-na de ter mentalmente desarmado os EUA frente a um perigo mortal! E ela se encontra, agora, na defensiva.[16]

Os "liberals" constituem uma linha pluralista, que tem como fio condutor a ênfase no universalismo, uma visão positiva da globalização mas de olhos abertos aos abusos de poder e ao caráter anti-democrático de muitos movimentos e regimes antiimperialistas. Embora difiram entre si acerca da necessidade ou legalidade de intervenções unilaterais norte-americanas, os liberais preconizam o uso do poder estadunidense para "melhorar" o mundo.[17]

Neo-realistas controlam a política externa dos EUA desde o começo da Guerra Fria. Enxergando a vida internacional como um tabuleiro de xadrez permanentemente centrado na busca da hegemonia, eles tendem a minimizar o papel de idéias e ideologias e estão, portanto, pouco preparados a entender um Islamismo que rejeita o "estadocentrismo" e o cálculo racional. Mas sua preferência por uma Realpolitik, sempre alvo de criticas da esquerda, era também fortemente criticada pelo neoconservadorismo.[18]

Culturalistas evidenciam mais sensibilidade a fatores intangíveis como a religião. O protótipo, Huntington, profetizou que no pós-guerra fria e na pós-descolonização os conflitos testemunhariam a volta à cena das grandes divisões civilizacionais-religiosas. Alertou sobre um conflito iminente entre a civilização ocidental e o Islã em particular. Não há uma correspondência nítida entre anílises de cunho culturalista e posições intervencionistas. Culturalistas acham que o problema esta dentro do Islã, mas diferem sobre o quanto o Islã pode se auto-reformar. Contudo, enquanto esta reforma não ocorre, o Ocidente deve se proteger.[19]

Para a velha direita, o único argumento na política externa deveria ser o interesse nacional egoísta dos EUA; eles criticam intervenções americanas "altruístas" ou do tipo "construção de nação". Por outro lado, a direita conservadora tem, também, uma leitura fundamentalista cristã ou de "valores americanos" que pode ser agressivamente antimuçulmana. O resultado - isolacionismo mais islamofobia![20]

Os neoconservadores se opõem a todos os totalitarismos: "ontem a Alemanha nazista e a URSS, hoje o islamismo". Eles são os campeões da exportação agressiva de valores que eles chamam de "americanos", mas que são quase indistinguíveis do pacote da modernização: liberdades individuais, democracia, segurança coletiva, etc. Acreditam que o expansionismo democrático poderia derrotar os terroristas. Embora sua influência tenha sido exagerada, os "neocons" pressionaram a favor da guerra no Iraque, que logo se tornou o símbolo da "cruzada democrática" proclamada por Bush.[21]

Essencialmente o que aconteceu foi que as posições isolacionistas - tanto da nova esquerda quanto dos paleoconservadores - perderam credibilidade após o 11/09. Nem a política de poder tradicionalmente voltada aos grandes Estados - ou seja, a busca racional do interesse nacional dos neo-realistas - conseguiu produzir receitas para lidar com o novo desafio de grupos terroristas ideológicos possivelmente apoiados por "Estados mafiosos". Em conseqüência, uma coalizão intervencionista de neoconservadores com o apoio da velha esquerda democrática "liberal" (ou neoliberal), universalista e internacionalista chegou a ditar a política externa. O unilateralismo instintivo e original de Bush, tão flagrante durante os primeiros nove meses de sua administração, teve que recuar frente às novas realidades geopolíticas e ele chegou a abraçar boa parte das teses neoconservadoras. O 11/09 foi, sem duvida, a alavanca que induziu o profundo reajuste da política externa norte-americana de cripto-isolacionista para intervencionista; do enfoque nas relações (mais competitivas que amistosas) com as grandes potências (China, Rússia) para a "guerra contra o terror" e contra o "Eixo do Mal" suspeito de apóia-los; de um unilateralismo contraproducente a uma diplomacia a meio-termo entre o unilateralismo e o multilateralismo. Para punir e extirpar os terroristas, sacudir e revolucionar o miasma de auto-compaixão de um Oriente Médio morbidamente antimoderno e cujo desespero produz reações fundamentalistas e terroristas, para "tornar o mundo seguro para a democracia" - ou simplesmente para restaurar a grandeza dos EUA ou frear seu declínio geopolítico - intervencionistas invocaram e apóiam as intervenções contra os Talebã no Afeganistão e contra Saddam Hussein no Iraque; presumivelmente eles concordariam, também, com novas intervenções. No processo, porém, alienaram quase todo o resto do mundo, inclusive os aliados europeus tradicionais dos EUA.

Os resultados estão, porém, longe das esperanças neoconservadoras. Se a própria invasão, inicialmente aceita pela população iraquiana como preço a pagar para se desfazer do tirano Saddam, abrisse talvez uma "janela de oportunidade" para os EUA, mediante uma transformação democrática rápida e efetiva do Iraque, os sucessivos fracassos da ocupação acabaram aprofundando o desgaste político. Não e necessário repetir a lista de dramas vergonhosos que, em sua maioria, seriam evitáveis. Paralelamente, investigações públicas nos próprios EUA desvendaram sérias avarias nos órgãos de inteligência pré-guerra em busca dos armamentos do regime de Saddam, suas intenções e seus supostos laços com grupos islamistas terroristas, além de outros graves erros que (dizem alguns) podiam ter prevenido os ataques do 11/09. O acúmulo de tantas derrotas políticas acaba minando a base política de Bush em sua própria casa. Além disso, a atenção americana pareceu focalizar o Iraque à custa de outros teatros da guerra contra o terror. Atentados terroristas continuam e, o que pode ser mais grave, a alienação do mundo muçulmano contra o Ocidente e sua simpatia para com extremistas islamistas parece crescer. Como resultado, "hoje o terror é mais forte do que antes da Guerra do Iraque". Seria surpreendente se isso não repercutisse sobre as posições neoconservadores que inspiraram essas desventuras...

Digamos claramente que a posição moral de ambas as posições americanas principais é desconfortável! Tanto os intervencionistas quanto seus oponentes partem de uma posição essencialmente universalista e são, portanto, vulneráveis a considerações de ordem ética.[22] Os intervencionistas são obrigados a aceitar intervenções que facilmente se entendem como neocolonialismo. Para implementá-las, eles devem engolir violações da lei internacional, da soberania dos Estados e do princípio da não-intervenção. O próprio projeto de "imperialismo liberal" não comprovou sua superioridade: seu registro, até agora, não é dos mais convincentes.

Os antiintervencionistas são, por outro lado, vulneráveis à acusação de serem ingênuos e/ou demasiadamente clementes frente à violência islamista. Na verdade, a oposição ao ativismo americano pode ser não menos interesseira que o ativismo que ela critica. Pior ainda, os antiintervencionistas não dispõem de uma visão estratégica coerente e adequada à nova era em que o mundo entrou. Na prática, eles abraçam políticas de apaziguamento dos terroristas, arriscando estimular ainda mais terrorismo.

3. Conclusão: o que fazer?

Autodeterminação, independência e soberania são realizações em cuja defesa milhares morreram e que continuam sendo abraçadas por milhões. Acredito que elas precisam de uma reformulação; elas seguem constituindo, porém, as bases da lei e da ordem internacional. Apenas argumentos fortíssimos podem derrubar e/ou superar estes princípios cuja violação inevitavelmente acompanha o projeto da guerra preventiva. Quais poderiam ser tais argumentos? Acho que é possível identificar quatro destes argumentos:

1. A onipresença e inevitabilidade de interatividades culturais

Não somente estruturas políticas e econômicas, mas culturas e civilizações podem ser exportadas para outros países. Isto aconteceu muitas vezes na Historia - e às vezes com resultados positivos, foi o caso de episódios da própria expansão muçulmana. O colonialismo ocidental conduziu a muitos resultados negativos e a alguns positivos. Não existe comunidade internacional viável sem exercício de poder e intervenções. Simplesmente abandonar a cena em nome do princípio da não-intervenção, ou para expiar erros cometidos no passado, não é uma opção viável para o Ocidente (ou para qualquer outra área civilizacional), em particular, por causa da unificação mundial de ameaças vindas de um adversário que abraça sua própria versão particularmente grotesca do "choque das civilizações" e está disposto a usar de qualquer meio para converter o mundo à sua visão.

2. O direito recíproco à defesa

Democracia, direitos humanos, paz e segurança coletiva, liberdades civis individuais constituem valores universalmente válidos, sem os quais não será possível construir um futuro comum para a Humanidade. Minha visão rejeita, portanto, os relativismos culturais por um lado e, por outro, os absolutismos das religiões concorrentes. Não posso coexistir com aqueles que negam meu direito à diferença ou, mesmo, à minha existência! Nego que qualquer ser humano tenha uma linha direta com o Ser Supremo que lhe dê o direito de impor, pela violência, sua versão da felicidade perfeita e definitiva. Nosso futuro será coletivo ou não será. Quem nega este pluralismo e tenta impor seu absolutismo comete uma agressão contra a Humanidade e deve ser combatido. Se um país comprovadamente abriga ou estimula terroristas, compromete sua inviolabilidade territorial.

3. O direito à soberania não pode ser absoluto

Ela depende de como o Estado respeita a soberania dos outros. Quem usa a independência para planejar e preparar a supressão ou aniquilação de outros perde o direito a independência. Quando o Kuwait, um país pequeno e indefeso, foi agredido e anexado pelo Iraque, em 1990, os EUA colocaram imediatamente uma força inicialmente simbólica (tripwire) na fronteira saudita com o Iraque, para funcionar como "alarme" e garantir a integridade territorial da Arábia Saudita. Os EUA não tiveram grande dificuldade em mobilizar uma armada multinacional para liberar e restabelecer a independência do Kuwait. Doze anos depois, o próprio Iraque pareceu se tornar alvo de um mesmo tipo de violação territorial como antes havia sido o Kuwait. As reações factuais da comunidade internacional demonstraram bem, porém, quão condicional é a soberania de um Estado: desta vez, nenhum Estado veio efetivamente ajudar o Iraque. A França e a Rússia não colocaram seus soldados para proteger o Iraque, embora tal presença pudesse ter inviabilizado a invasão da "coalizão dos voluntários" de Bush. Em outras palavras, o regime de Saddam Hussein não valia, para eles, o risco político e militar. Portanto, o princípio sacrossanto da inviolabilidade territorial não prevaleceu. O regime de Saddam devia dinheiro a alguns países, mas - ao invés do Kuwait - não era considerado como realmente fazendo parte da família das nações e merecedor, portanto, de uma defesa coletiva. A razão estava no comportamento e na própria natureza do regime de Saddam Hussein, que, além de torturar seu próprio povo, comprovou suas ambições territoriais por agressões passadas contra seus vizinhos e era suspeito de possuir ADMs.

O fato de que estas armas não tenham sido encontradas após a invasão do Iraque é pouco relevante, pois a suspeita dessa existência era amplamente compartilhada antes da guerra e o próprio Iraque não fez o bastante, aos olhos da comunidade internacional, para cancelar essas suspeitas. Nem o inspetor da ONU, Hans Blix, nem a própria França, estavam totalmente convencidos, antes da guerra, de que o Iraque estava limpo de tais armas.[23] Uma vez que um regime dispõe de ADMs, ele é quase invulnerável - inclusive invulnerável à censura da comunidade internacional: os casos da China no Tibete, de Israel para com os Palestinos e da Coréia do Norte ilustram este ponto. A presença de um regime genocida e agressivo em combinação com uma forte suspeita de desenvolvimento de ADMs constitui um argumento suficiente para violar a independência do país que este regime controla.

4. Libertar um povo preso

É sempre melhor que um povo vivendo sob uma ditadura combata e realize sua emancipação por suas próprias forças. Mas não é sempre possível. O povo espanhol teve que esperar 35 anos sob Franco e os brasileiros 20 anos sob o governo militar. Hoje é cada vez menos possível agüentar opressões duradouras em nome da não-intervenção. Uma invasão militar constitui, obviamente, um limite extremo. Porém, pressões externas provocaram a democratização da URSS, da África do Sul e da Sérvia - e as populações agradecem.

Em última instância, a justificativa para intervenção é quando a alternativa de não intervir é a pior. Porém, será sempre difícil avaliar estes critérios. O que teria acontecido sem intervenção? O Afeganistão estaria numa situação melhor? O Iraque? A comunidade internacional? O Sudão? Qual é, então, a alternativa proposta pela França, pela China? Há alguém que acredita que a famosa "multipolaridade" sem clara liderança esconderia algo mais do que uma receita para a impotência e a passividade internacional? Seria seu tipo de governo proposto algo melhor? Um mundo guiado pelos EUA está longe de ser ideal. Porém, todas as alternativas parecem ser piores ainda.

No que diz respeito à guerra do Iraque, o mais complexo test-case tanto das teses intervencionistas quanto antiintervencionistas, é fácil ver que os EUA cometeram uma longa serie de erros e estão longe de alcançar o desarmamento, a integração regional e global - para não falar da democratização - do Iraque. O erro central não consiste no fato de os EUA terem feito a guerra quase sozinhos e contra a vontade da maioria da ONU (ainda que isto faça parte do problema). Tanto Bush quanto Chirac aprenderam algo nos últimos meses e, hoje, existe uma certa internacionalização da intervenção no Iraque. A ONU está voltando ao Iraque. A soberania foi transferida e, embora a legitimidade do novo governo de transição de Allawi seja questionável, ela é com certeza melhor do que a do pró-cônsul estadunidense Paul Bremer. Goza de reconhecimento internacional e, contra fortes oposições internas, está preparando eleições democráticas para janeiro de 2005. É difícil ver que fórmula seria a menos ruim na atual desastrosa conjuntura - a não ser que alguém proponha dar o poder ao líder terrorista Mus`ab al-Zarqawi e aos rebeldes de Falluja ou ao autoproclamado líder xiita Muqtada al-Sadr (que nem reivindica esse poder). Aliás, uma tal rendição suicida provocaria uma instantânea guerra civil.

Espero que a comunidade internacional, na forma da ONU, vá progressivamente assumindo o papel de mandatária do Iraque. Mas temo, também, que o processo para democratizar o Iraque seja longo e frustrante e que a ONU herde também o ódio que até agora se concentrava quase que exclusivamente nos EUA. Tenho esta preocupação porque as fraquezas tradicionais dos EUA no Exterior - pouca atenção e paciência para com os compromissos estrangeiros, falta de vontade coletiva de instilar nos outros respeito às regras comuns e reticência em assumir os custos financeiros e humanos decorrentes de um projeto de "construção de nação"[24] - espelham exatamente as fraquezas da Europa e das demais democracias capitalistas desenvolvidas que fazem parte da ONU e que tanto criticam os EUA.

Porém, o problema não é o fato de a ocupação ter cometido e ainda cometer graves erros, mas que a resposta ocidental ao desafio terrorista não pode ser apenas repressiva. Isto não quer dizer que nós não precisamos também de uma política repressiva. A ausência de qualquer proposta prática para manter a segurança física das populações ameaçadas por terroristas constitui exatamente a grande fraqueza da esquerda, fato que a deslegitimou tão amplamente no discurso público norte-americano. A eliminação do violento potencial terrorista é imprescindível - mas só porque ela pode preparar o terreno para soluções políticas mais positivas. Não há solução militar ao conflito entre os mundos muçulmano e ocidental - por mais que islamistas radicais tentem exacerbar o aspecto militar deste conflito e por mais que governos ocidentais respondam a este desafio com seus próprios meios militares.

Para ser efetiva, a resposta ocidental precisa de um outro elemento, sem o qual qualquer ação militar não pode ser mais do que paliativo: não há solução duradoura sem lidar com as raízes sociais do terrorismo. Estas raízes dizem respeito à desigualdade e à globalização selvagem e incontrolada do mundo. Walter Laqueur e outros tentam comprovar que a pobreza não gera terrorismo.[25] Formalmente, eles têm provavelmente razão: se mais miséria econômica gerasse mais violência antiocidental, então a África subsaariana exportaria o maior numero de terroristas e a Alemanha ou o Canadá abrigariam quase nenhum; o que não corresponde aos fatos. O bilionário Osama bin Laden e seus companheiros sauditas não estão entre os cidadãos mais indigentes de nosso mundo. Mas eles estão entre os alienados deste mundo. Al-Qaeda representa a crista de uma onda de milhões de jovens muçulmanos educados e meio-ocidentalizados que não são necessariamente tão pobres em termos absolutos, mas o são de modo relativo: pois eles têm menos perspectivas para obter um emprego, para uma moradia adequada, para estabelecer uma família, para participar na vida pública de seus países - em resumo, para se realizar - do que seus colegas em países ocidentais, menos do que a pequena elite pró-ocidental em seu próprio país e menos do que eles acham que lhes é devido.

Isto acontece mundialmente. O processo da exclusão é um efeito colateral inaceitável da globalização, desta integração cada vez mais intensiva das economias, sociedades e culturas. As conseqüências são cruéis. Gerações inteiras de jovens sadios de origem modesta fazem esforços para obter um diploma, entrar de forma produtiva na sociedade, contribuir ao desenvolvimento de seu país - e até os mais brilhantes e preparados entre eles se encontram, depois, numa situação de esperanças diminuídas e de impotência diante da sociedade e do mundo que os cercam. Pela proliferação das mídias eletrônicas, todos vêem o contraste entre sua realidade e as oportunidades existentes alhures. A escassez de oportunidades produtivas e criativas causa uma sensação de estar "fora de controle". O sentimento de "sem saída" constitui logicamente um chão fértil para radicalizações. O Ocidente, embora contenha no próprio bojo bastantes desigualdades e frustrações, coletivamente se beneficiou dessa polarização global, talvez ainda se beneficie dela e, certamente, contribuiu para criá-la. O mundo precisa enfrentar esta situação que produz radicalizações. Entre estas, o Islamismo radical.

Ainda devemos entender porque o terrorismo vem do Oriente Médio muçulmano e não cresce da mesma forma em outras sociedades. As mesmas frustrações, que ocorrem em grande parte do mundo, produzem desespero, depressão e apatia em certos lugares, respostas pró-ativas pacíficas e construtivas em outros - mas reações violentas ainda em outros.

O Islã é responsável por abrigar esta última categoria de reações? Só o mundo muçulmano parece produzir este tipo especial de reação ideológico-religiosa antiocidental cuja expressão mais extrema são os ataques terroristas. E nem todo o mundo muçulmano, mas particularmente seu "centro" histórico e ideológico no Oriente Médio; muito menos a Indonésia. E não vemos fenômenos semelhantes ao Islamismo violento na África meridional, em paises budistas, entre populações indígenas da América Latina. Por quê? Varias soluções têm sido propostas a este enigma.

Ernst Gellner diz que, de todas as grandes civilizações, só o Islã mantinha intacto seu próprio contra-modelo da realidade, uma certa utopia social-religiosa. Como conseqüência, a "invasão cultural" de liberdades individuais e da permissividade ocidental geraram contra-reações mais expressivas em ambientes muçulmanos do que em outros.[26] Bassam Tibi aponta para valores tribais na sociedade peninsular árabe que produziram o Islã: lealdades fragmentadas ou limitadas ao próprio clã, tradição de vingança, obsessão com o controle patriarcal das mulheres etc. Estes teriam complicado o desenvolvimento de Estados estáveis, neutros e desvinculados da pessoa do autocrata -dificultando também uma modernização; fatores que, com a expansão da religião islâmica, se transplantaram para todo o Oriente Médio. Hoje, estes valores infectariam populações militantes, que acusam o Exterior, os outros, pela própria miséria.[27] Máxime Rodinson, John Espósito, Edward Said e outros analistas da esquerda lembram a mais prolongada experiência de derrota e humilhação que o mundo árabe vivenciou pelo Ocidente, produzindo ali um orgulho talvez mais ferido e uma identidade coletiva mais insegura que em outras partes.[28] Daniel Pipes fala da cultura de conspiração e das teorias conspiratórias tão espalhadas no Oriente Médio.[29] Bernard Lewis lembra a impossibilidade teológica da derrota e do encolhimento no Islã.[30] Huntington e vários liberais destacam a combinação letal única, que se encontra em particular no vasto "arco da crise": estruturas familiares, sociais e políticas autoritárias, ditaduras, estagnação econômica e explosão populacional. Se este último argumento é correto (e me parece que é), então há uma certa lógica na receita intervencionista da velha esquerda e dos neoconservadores: promover a democratização e as liberdades como pré-condição para a derrota dos extremismos violentos no mundo muçulmano. Falta resolver se intervenções militares constituem o melhor começo para estimular tal transformação. Neutralizar as causas profundas da atração terrorista e transformar os corações tentados pela receita islamista - este é o desafio que clama por uma estratégia mais criativa.

A solução não pode ser mais contra-violência. A globalização é provavelmente um processo irreversível e, no longo prazo, positivo para toda a humanidade; no curto prazo, porém, ela produz demais desigualdades, desejos frustrados, desespero e raiva. A globalização tem, portanto, que ser domesticada e regulada; exatamente como o capitalismo selvagem foi regulado. O capitalismo, que explorou os proletários, foi amenizado pelo equilíbrio entre trabalho e capital, pela legislação social, a previdência e a distribuição de renda, que criaram um início de justiça social, um consumo de massa e uma demanda popular que, juntos, re-viabilizaram o próprio capitalismo. Exatamente como a industrialização selvagem, que gera riquezas mas que destrói o meio ambiente do planeta, tem que ser domesticada pela regulação ambiental, a globalização tem que ser um processo democraticamente controlado e não um robô à solta. Os EUA não são os únicos responsáveis pela globalização (embora eles, às vezes, pareçam assumir este papel), mas têm - junto com os demais paises desenvolvidos - grande responsabilidade, bem como os meios para mitigar e transformar esta situação. Para conter terroristas é preciso, portanto, uma cooperação de segurança internacional, preferivelmente multilateral, mas eficaz. Mas não apenas isto! O mundo precisa não só de uma OTAN global, mas também de um novo Plano Marshall global que distribua globalmente e injete recursos econômicos e humanos para um desenvolvimento mais adequado. Sem isto, nos esperarão apenas mais extremismos. Acredito que atualmente só os EUA ocupem a posição para lançar e inicialmente liderar tal processo. Porém, no longo prazo, a globalização fatalmente pedirá uma cooperação transnacional mais profunda do que qualquer Estado pode providenciar. A globalização comprometerá a supremacia dos Estados, porque o Estado-nação não é mais equipado para lidar com problemas mundiais maciços, tais como a crise ecológica, o desenvolvimento desigual empurrado pela globalização, a crise da segurança coletiva e o desafio de desenvolver modos de coexistência cultural entre diferenças - o Islamismo violento sendo apenas sua mais nítida expressão atual. Em conseqüência, a solução implicará necessariamente numa integração transcendendo o nível dos Estados.

O slogan dos fundamentalistas é "O Islã é a solução". Discordo completamente. 25 anos de governo fundamentalista no Irã demonstram que o Islamismo não tem soluções nem para os problemas de desenvolvimento, nem para os da coexistência das diferenças. Porém, ainda que o desafio islamista ofereça soluções equivocadas, ele coloca o dedo em feridas verdadeiras. Nisto não difere de outros desafios lançados no passado ao Ocidente. De fato, desafios anteriores geraram movimentos sociais significativos exatamente porque sabiam articular questões não respondidas pela sociedade como um todo. A revolução russa se alimentou da rejeição à pobreza, desigualdade, tirania e militarismo na Europa central e oriental - questões urgentíssimas não atendidas pelos regimes autocráticos da época; uma ditadura de desenvolvimento estalinista provavelmente não era a resposta certa. Eventualmente, o mundo aprendeu a domesticar o capitalismo. O nazismo cresceu, explorando queixas completamente realistas - as injustiças da Paz de Versalhes, o desemprego, etc. - embora os judeus obviamente não fossem sua causa nem uma guerra mundial entre raças a resposta certa. Eventualmente, o mundo aprendeu a integrar uma Alemanha democratizada. A revolução chinesa surgiu após um século de humilhações imperialistas e de um regime imperial obsoleto e incapaz de solucionar a crise - motivos justificáveis, ainda que o extermínio da classe dos mandarins e as convulsões maciças da Revolução Cultural para criar o "novo homem" não fossem a resposta certa. Hoje, a China está se integrando na estrutura internacional.

O Islamismo também parece identificar uma profunda questão. Ele aponta para um buraco no coração da civilização ocidental. A separação entre religião e Estado é positiva e constitui um bem coletivo e provavelmente até uma pré-condição para a coexistência de diferenças dentro de e entre as nações - mas ela não é um valor: é meramente uma maneira para fazer as coisas, uma técnica, um jeito. É uma contribuição especificamente ocidental, que parece funcionar relativamente bem em muitas sociedades. Porém, as próprias coisas centrais, que queremos valorizar - e que nos são dadas fazer graças a tais instituições - não são idênticas às próprias instituições. O progresso material e organizacional do Ocidente tem superado sua capacidade de gerar significados e sentidos para a vida das pessoas? É nesta contradição que o Islamismo lança seu desafio. Esperemos que seja um desequilíbrio temporário. Porém, esta ponte precisa ser construída.... rapidamente!

Instituições são imprescindíveis, mas insuficientes para a vida de uma comunidade. Instituições são como o esqueleto da vida social e política de uma comunidade, mas valores constituem o sangue que precisa circular e levar oxigênio a todas as células. Parece que o Ocidente tem, hoje, um problema com a coerência de seus valores. As fraquezas internacionais mencionadas acima correspondem, na verdade, a deficiências culturais e de mentalidade mais estruturais. A falta de uma visão abrangente, o individualismo exacerbado, o hedonismo às custas de um comprometimento com o futuro da comunidade mais ampla, a fraqueza e o vacilo da vontade coletiva - todos estes traços são comuns a todas as sociedades globalizadas. Será que eles constituem o reverso da medalha das liberdades individuais, da igualdade de oportunidades e da abertura que caracterizam a modernidade? Obviamente, tais atitudes e comportamentos são observados em todas as culturas. Mas o mundo que se globaliza e que quer tanto manter suas liberdades quanto estabelecer um mínimo de igualdade e justiça não pode se permitir uma sociedade progressivamente perdendo sua identidade coletiva. O Islamismo tenta, não sem êxito, explorar estas fraquezas, beneficiando-se da coesão e dos sentidos coletivos mais evidentes, que estão ainda presentes na umma islâmica. A visão islamista, por enquanto, atrai poucos não-muçulmanos (e só uma minoria dos muçulmanos), mas o Islamismo sim poderia desestabilizar e provocar uma crise de confiança dentro da nossa civilização que quer derrubar. O Ocidente e o mundo moderno em geral terão que transcender estas dificuldades para poder superar o desafio islamista.

Notas

[*] Aula magna proferida no Programa de Pós-Graduação em Ciências de Religião da PUC-SP (São Paulo 18 de agosto de 2004).

[**] Professor-doutor no Departamento de História da USP onde leciona Relações Internacionais e História da Ásia.

[1] P.ex. Gilles Kepel, Jihad, expansion et déclin de l'islamisme. Paris, 2003. Olivier Roy, L'échec de l'Islam politique. Paris, 1992. Peter Bergen, Holy War, Inc.: Inside the Secret World of Osama bin Laden. New York, etc., 2002. Malise Ruthven, A Fury for God: The Islamist Attack on America. London and New York, 2002.

[2] Al-Quds al-'Arabi em 23 de fevereiro de 1998. Cf. Bernard Lewis, "License to Kill: Usama bin Ladin's Declaration of Jihad". In: Foreign Affairs novembro/dezembro de 1998.

[3] Hamid Gul, em entrevista com Harald Doornbos, De Groene Amsterdammer, 27 de março de 2004. (em holandês).

[4] Suleiman Abu Gheith citado em Walter Laqaueur, No end to war: terrorism in the twent-first century. New York and London, 2003. p. 56. Tradução do artigo "Na sombra das lanças" em inglês: MEMRI Special Dispatch 388, 12 de junho de 2002: http://www.memri.org/bin/articles.cgi?Page=archives&Area=sd&ID=SP38802#_edn1

[5] "O Islã quer a terra inteira e não se satisfaz com apenas uma parte dela. Ele quer e precisa de todo o mundo habitado. Ele não o quer de forma que uma nação predomine na terra e monopolize suas fontes de riqueza, depois de roubá-las de uma ou mais nações. Não, o Islã quer e precisa do mundo para que a raça humana possa se beneficiar conjuntamente do conceito e do programa prático da felicidade humana através dos quais Deus honrou o Islã e o colocou acima das outras religiões e leis. Com a finalidade de chegar a este elevado objetivo, o Islã quer usar todas as forças e meios possíveis para realizar uma revolução universal e abrangente. Não poupará esforços para realizar este objetivo supremo. Esta luta de longo alcance que continuamente exaure todas as forças e este uso de todos os meios possíveis se chamam jihad." Abu al-Ala Mawdudi, ideólogo do fundamentalismo sunita, citado em Rudolph Peters, Jihad in Classical and Modern Islam. Princeton, N.J., 1996, p. 128.

[6] "Social science and the communist interlude, or interpretations of contemporary history". In: Immanuel Wallerstein, The end of the world as we know it: Social science for the twenty-first century. Minneapolis and London, 1999. pp. 16-17.

[7] Congresso "Sistema Mundial: Oriente e Ocidente - Colóquio: A Questão da Hegemonia e Contra Hegemonia - Hegemonia e Contra Hegemonia em Escala Mundial", Universidade de São Paulo, 28 de agosto de 2003; observação pessoal.

[8] Cf. Olivier Roy, L'islam mondialisé. Paris: Seuil, 2002. Strobe Talbott and Nayan Chanda (Eds.), The age of terror: America and the world after September 11. New York, 2001.

[9] A visão de Amos Oz de que o problema é o próprio fanatismo, está na direção certa, mas fica específica demais: Veja 23 de junho de 2004, "O fanatismo é o mal".

[10] Karen Armstrong, Em nome de Deus: O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[11] Outros nomes pelo mesmo fenômeno pluriforme incluem o Islã radical, o integrismo, o Islã político, o revivalismo islâmico etc.

[12] Peter L. Bergen, Holy War, Inc.: Inside the secret world of Osama bin Laden. New York, etc., 2002. pp. 199-224. Bassam Tibi, The challenge of fundamentalism: Political Islam and the New World Disorder. Berkeley, 2002.

[13] Bernard Lewis, The crisis of Islam: Holy war and unholy terror. New York, 2003. p. 137.

[14] Excluímos aqui os pensadores muçulmanos cujas reações ao terrorismo islamista, interessantes em si, variavam de choque e denúncia até negação de seu caráter ou autoria muçulmana - ou até alegria e aplausos do tipo "Os próprios EUA provocaram a lição que eles agora receberam".

[15] Samuel Huntington, The clash of civilizations and the remaking of world order. New York, 1997 (1996, 1st). p. 69-72. Em português: O choque de civilizações - e a recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1997.

[16] John Esposito, Noam Chomsky e Edward Said são alguns nomes representativos desta posição. O jornal The Nation articula freqüentemente os debates dentro da esquerda estadunidense.

[17] Michael Walzer, Paul Berman e Thomas Friedman exemplificam bem esta linha. Uma revista representativa é Dissent.

[18] Henry Kissinger, Zbigniew Brzezinski e Paul Kennedy representam algumas tendências neo-realistas.

[19] Além do próprio Huntington, cabe lembrar os nomes de Bernard Lewis e Fouad Ajami.

[20] Menos bem representados na academia e nas mídias do que as demais tendências, os "paleoconservadores" constituem uma coalizão pouco coesa de protestantes fundamentalistas mobilizados acerca de temas pró-família e contra a permissividade sexual, nacionalistas estadunidenses anticomunistas e antiglobalistas opostos a intervenções "idealistas"; e libertarians que denunciam as intromissões do Estado federal na vida do indivíduo e dos Estados dos EUA e rejeitam a previdência social e a ação afirmativa; margens mais extremistas da velha direita estão perto dos movimentos neonazistas americanos. Ronald Reagan é o herói comum a todos. Entre as vozes mais destacadas, Newt Gingrich, Milton Friedman, Pat Robertson, Patrick Buchanan e organizações tais como American Enterprise Institute e Heritage Foundation. Nas relações internacionais, tendem ao isolacionismo; alguns combinam islamofobia com anti-semitismo.

[21] Além de políticos ativos no governo de Bush, tais como Paul Wolfowitz, destacam-se vozes mais intelectuais tais como de Francis Fukuyama, Charles Krauthammer e Robert Kagan; os principais órgãos são Commentary e The National Interest.

[22] A posição moral da ultima, isolacionista, é confortável, pois ela rejeita critérios universais para julgá-la!

[23] O relatório do inspetor de armas Charles Duelfer retoma a tese do relator David Kay (de outubro de 2003), agora a base de pesquisas mais extensas, da quase ausência de ADMs no Iraque antes da guerra de 2003; mas afirma ter provas da intenção do regime de Saddam Hussein de desenvolver tais armas desde que o embargo e as inspeções da ONU tivessem sido suspensas: New York Times 18 de setembro de 2004.

[24] Cf. Niall Ferguson, Colossus: The price of America's empire. New York, 2004.

[25] Walter Laqueur, No end to war: Terrorism in the twenty-first century. New York and London, 2003. Cf. Daniel Pipes, "Does poverty cause militant Islam?". In: Militant Islam reaches America. New York and London, 2003. pp. 52-63.

[26] Ernest Gellner, Pós-modernismo, razão e religião. Lisboa, 1992.

[27] Bassam Tibi, Die fundamentalistische Herausforderung: Der Islam und die Weltpolitik. München, 2002. pp. 116-160.

[28] Edward W. Said, Covering Islam: How the media and the experts determine how we see the rest of the world. New York, 1997; John L. Esposito, The Islamic Threat: Myth or Reality? New York, 1999 e do mesmo autor Unholy War: Terror in the Name of Islam. New York, 2002.

[29] Daniel Pipes, The hidden hand: Middle East fears of conspiracy. 1996.

[30] Bernard Lewis, "The roots of Muslim rage". In: The Atlantic Monthly, setembro de 1990.