Geografia da Religião a Partir das Formas Simbólicas em Ernst Cassirer: Um Estudo da Igreja Internacional da Graça de Deus no Brasil

Alex Sandro da Silva[*] []
Sylvio Fausto Gil Filho[**] []

Resumo

A Geografia da Religião se desenvolve junto com a nova Geografia Cultural no Brasil a partir da década de 1990. Os estudos das relações entre religião e espaço possuem várias abordagens, alguns trabalhos são focados na estrutura espacial da religião, enquanto outras buscam a análise da percepção espacial e do espaço de ação do Homem religioso. Com base na filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer, parte-se do pressuposto de que a espacialização do fenômeno religioso é extensão da ação intuitiva do Homem através do sentimento e do pensamento religioso. Dessa forma, um procedimento teórico fecundo para o estudo do fenômeno deve partir da análise do espaço intuitivo do sentir, conceber e agir do Homem religioso. Para exemplificar essa abordagem da espacialização do fenômeno religioso, analisar-se-á o caso da Igreja Internacional da Graça de Deus.

Palavras-chave: Religião, geografia, formas simbólicas, espacialização

Abstract

Since the 1990 geography of religion in Brazil has developed as a subfield of the area new cultural geography. Several approaches are characteristic for the study of the relationship between religion and space. There are projects which focus on the space structure of religion, while others analyze the conception of space and spatial religious human activities. Based on Ernst Cassirer's philosophy of symbolic forms, this article argues that the spacialization of religion can be considered an extension of man's intuitive action guided by religious sentiments and ideas. As a consequence the starting point for the study of the relationship between religion and space should be the analysis of the intuitive space of human religious emotions, conceptions and actions. In order to exemplify this approach the article refers to the case of the International Church of the Grace of God.

Keywords: Religion, geography, symbolic forms, spacialization.

Introdução

A Geografia da Religião, como área do conhecimento, dirige o foco nos estudos das relações entre a religião e espaço. Essa conexão necessária, inicialmente dada, transfere-se do âmbito ontológico para o epistemológico na medida em que os estudos avançam em várias perspectivas possíveis na própria ciência geográfica.

A presença desses estudos na literatura é fragmentária. O diagnóstico de Kong (1990) e Park (1994) evidencia que, no caso dos estudos das relações entre religião e espaço, dos gregos clássicos até os dias atuais não houve uma produção literária constante. Existiram, sim, períodos, nos quais o assunto foi mais amplamente debatido, e fases em que o tema foi esquecido.

Além da Grécia, outros trabalhos pioneiros foram produzidos pela geografia islâmica e pelas escolas monásticas celtas da Irlanda durante o século X. Porém os cinco séculos seguintes foram de obscuridade. De acordo com os registros literários não houve, na Europa, menção alguma sobre o tema do século X ao XV. Com o Renascimento, as navegações e a expansão das relações entre as diferentes partes do mundo, surgiu uma época de ouro, na qual a religião e sua geografia foram largamente estudadas. Entre os séculos XVI e XIX buscava-se descrever a propagação do Cristianismo pelo mundo; compreender as esferas de influência das religiões sobre uma dada região e explicar os eventos bíblicos de acordo com os conhecimentos modernos. Essas análises foram realizadas predominantemente sob a influência de princípios religiosos (PARK 1994).

No século XIX houve considerável alteração na concepção a respeito da relação entre religião e espaço. Com a transformação da ciência moderna, que através da observação e da experimentação descobriu novas leis da natureza, os estudos passaram paulatinamente de paradigmas teológicos a leis naturais. Nesse contexto, o que se procurava era compreender como o ambiente influenciava, ou mesmo determinava as características em que se apresentavam as distintas hireofanias.

L. Kong (1990) indica que essas abordagens continuaram sendo realizadas até meados do século XX. Somente após a década de 1920, com influência da Sociologia Weberiana, a religião passou a ser vista como um fator ativo na conformação do espaço, o que se caracterizava como o oposto daquela visão utilizada nos trabalhos que vinham sendo feitos desde o século XIX.

Nos anos de 1950 a religião foi bastante estudada em Geografia (CLAVAL 1999). Todavia, sua abordagem raramente ultrapassava o nível descritivo; não havia indicação ou explicação dos seus impactos sobre a paisagem (FICKELER 1999). A característica funcional e utilitarista do Positivismo não ajudou no aprofundamento teórico que explicasse as implicações da relação da religião e espaço.

Claval (1999) aponta que houve uma significativa mudança na forma de conceber o fenômeno religioso em Geografia depois de um diálogo maior com as Ciências da Religião de base fenomenológico. Desse modo foi possível estudar o fenômeno religioso além da manifestação concreta na paisagem.

Esse diálogo possibilitou o desenvolvimento de uma Geografia da Religião mais interessada na essência do fenômeno religioso. Através de bases fenomenológicas e das Ciências da Religião, a espacialidade do fenômeno religioso deixou de ser considerada apenas a materialidade imediata. A dimensão religiosa inerente ao Homem também se tornou objeto de análise da própria espacialização da religião. No entanto, a abordagem recorrente até início do presente século é aquela que está circunscrita às expressões concretas da religião no espaço.

No Brasil, principalmente nas décadas 1990 e 2000, as pesquisas realizadas sobre a religião em Geografia vêm se multiplicando. Destacam-se as pesquisas no âmbito interdisciplinar do Núcleo Paranaense de Pesquisa em Religião (NUPPER) e, no âmbito específico da Geografia, as ações do Núcleo de Estudos em Espaço e Representações (NEER), que mantém uma linha de pesquisa em Geografia da Religião, assim como o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura (NEPEC).

Os trabalhos realizados podem ser agrupados em duas perspectivas teóricas distintas. A primeira, de caráter majoritário, é aquela na qual o enfoque principal se atém às estruturas espaciais das religiões e a dicotomia sagrado e profano, assim como estudos funcionais sobre cidades-santuário e dispersão espacial das hireofanias. De forma simples, poder-se-ia afirmar que essa perspectiva busca apreender as manifestações espaciais do fenômeno religioso a partir das formas religiosas já impressas na paisagem.

A segunda perspectiva busca compreender as manifestações religiosas partindo das dimensões estruturantes e do caráter fenomenológico e, posteriormente, das estruturas estruturadas da religião. O pressuposto é de que pela ação do Homem religioso se pode vislumbrar o espaço da religião, as representações, as expressões e percepções em face do discurso religioso e do pensamento religioso. Ainda mais quando são realizadas pesquisas sobre as territorialidades institucionais, concebe-se que as mesmas são marcadas muito além da materialidade dos templos, pelos intercâmbios simbólicos que se organizam na mediação das relações de poder.

O presente artigo é construído a partir da segunda abordagem. A intenção é demonstrar uma teorização viável ao estudo do fenômeno religioso, aplicando-a ao processo de espacialização da Igreja Internacional da Graça de Deus.

Teorização para a espacialização do fenômeno religioso baseada na filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer

As formas religiosas são também formas espaciais. Apresenta-se no espaço de ação do Homem religioso, nas representações dos templos, nas cores que as manifestações religiosas marcam a paisagem. Cidades, montanhas, rios, caminhos, uma série de lugares são diferenciados do entorno comum. Tais distinções não surgem ao acaso - pelo contrário, são expressões espaciais do pensamento mítico e religioso.

No pensamento cassireriano, cada uma das formas simbólicas tais como o mito, a religião, a arte, a ciência e a filosofia, há uma dimensão espacial própria do pensar humano. No mito, o espaço é um espaço de ação e expressão. Nas formas mais representativas da cultura, o espaço sofre um processo de simbolização, um esquema do pensamento no qual cada coisa ganha sua individualidade à medida que as práticas simbólicas do ser humano avançam o espaço chega ao caráter de pura abstração.

No sistema filosófico de Cassirer a religião se posiciona entre o sentir mítico e o representar da linguagem. O pensar religioso assemelha-se ao mítico, porém o transcende. A relação que os aproxima mais fortemente é a morte, ambos se originam na consciência da finitude humana. No desenvolvimento da cultura é difícil diferenciar o momento em que uma forma simbólica dá lugar à outra.

Em todo o curso de sua história a religião permanece indissoluvelmente ligada a elementos míticos, e impregnada deles. Por outro lado o mito, mesmo em suas formas mais grosseiras e rudimentares, traz em si alguns motivos que de certo modo antecipam os ideais religiosos superiores que chegam depois. Desde o início, o mito é religião em potencial. (CASSIRER 200:146)

É imprescindível, ao versar sobra tal teorização, conceber o espaço sob o olhar religioso como uma amálgama. Os efeitos da relação religião x espaço são decorrentes da característica complexa pela qual se organiza o fenômeno religioso. O pressuposto de que a religião está impregnada de elementos míticos em sua dimensão espacial revela a saturação do sentir mítico; se a religião se diferencia do mito pela representatividade, o espaço no qual o Homem religioso se realiza também é representacional.

No mito, o espaço é uma totalidade. É o sentir mítico que lhe atribui distinções. Não há uma representação, não há individualidade espacial. As divisões atribuídas ao espaço são muito mais divisões do sentir humano sobre seu entorno (CASSIRER 1998). No mito há uma disposição no espaço daquilo que não é necessariamente espacial (GIL FILHO 2006).

As antinomias presentes no zoneamento espacial do mito são constituídas e produzidas pela noção de sagrado e de profano. O que torna as zonas do espaço distintas umas das outras é a atmosfera mística que as rodeia. Essas divisões não são concebidas antes disso, são percebidas como expressões de poderes demoníacos (CASSIRER 1998).

O pensamento religioso, impregnado por elementos míticos, também atribui qualificativos mágicos aos espaços, mas na religião há outra forma de interpretar o mundo: a representação. A representação - que “ao mesmo tempo em que é presente é um fazer presente” - é presente porque está ao alcance de nosso aparelho sensorial, porém não a percebemos como dado novo. Sendo assim é um fazer presente. O perceber também é representar. Por esse viés, o que se percebe no espaço nunca é dado puro - a forma com que ele é organizado pelo pensar é resultado de um esquema espacial relativo às próprias representações. O espaço é meio no qual são fixadas as particularidades das coisas concebidas (CASSIRER 1998).

As narrativas religiosas confirmam o desprendimento do pensar religioso do sentir mítico. As concepções religiosas estão guardadas nos livros sagrados, nas tradições e nos discursos sobre o transcendente, estão ligadas à função representativa da linguagem. A alienação entre a dimensão propriamente mítica da religião e o pensamento religioso é a marca mais perceptível nas religiões que possuem livro sagrados e realizam o discurso da legitimação histórica. O pensamento religioso perpassa as dimensões das expressões em um espaço de ação para as representações da linguagem e a abstração própria de um espaço concebido. Portanto, trata-se de uma situação distinta em sua natureza, mas com a devida unidade funcional de uma forma simbólica.

A partir desse contexto, de forma aproximada, a espacialização das ideias religiosas se daria primeiramente através do sentir mítico-religioso. Quando se torna dizível se espacializa, através de mediadores, para além do espaço originário. Essa é a esfera do representar e da ação religiosa, esfera na qual o sentimento se torna discurso, se transforma em narrativa.

Entretanto, essa sequência ainda está incompleta. O simples nomear do sentir mítico pessoal não possibilita a dispersão social das ideias religiosas, já que cada pessoa designa uma sensação mítica de modo particular. Para evidenciar o caráter social da religião é preciso considerar que a organização na forma de narrativa do fenômeno religioso ultrapassa a caracterização dada pelo sentir mítico. A religião passa a ser forma de conhecimento. O narrar da experiência religiosa propicia sua reprodução no nominar das experiências míticas alheias. De certa forma, os primeiros veículos para a espacialização das ideias religiosas são as palavras, na oralidade e/ou na textualidade pela qual é difundido o saber religioso. A partir da apropriação desse conhecimento, o Homem religioso é sujeito “espacializador” através da enunciação do discurso religioso. As representações que permeiam os discursos se espacializam para além do espaço originário.

O primeiro passo da espacialização do fenômeno religioso é dado pelo discurso fundador, que transforma experiências religiosas e míticas em verdades religiosas. Trata-se de um discurso que é reestruturado pelo líder religioso que dirigidas aos enunciatários pode haver a eficácia simbólica necessária na espacialização e nominação da experiência religiosa com o mundo.

O êxito do Cristianismo em sua dispersão espacial já estava delineado potencialmente nos evangelhos. Os evangelhos sinóticos proclamam a missão de difusão do Cristianismo como, por exemplo, a menção em Marcos (16, 15-16), “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura”. A espacialização do Cristianismo se baseia desde início na difusão dos ensinamentos religiosos, o que se configurava como uma prova de amor ao próximo. O difundir das escrituras cristãs propiciou o surgimento de comunidades religiosas em vários lugares do mundo.

A enunciação das narrativas altera principalmente a relação do enunciatário com seu sentir mítico. O primeiro ato da espacialização configura-se como extensão da espacialização perpetrada pela difusão dos conhecimentos religiosos incorporados nas tradições.

Pela característica representacional do fenômeno religioso, as particularizações espaciais se encontram em estado de latência nas próprias narrativas. Isso não significa que tais espaços são relativos unicamente àqueles materiais e históricos descritos nas tradições. A impregnação das ideias religiosas sobre a percepção leva o Homem a espacializar o sentimento religioso em ações cotidianas.

Na tradição judaico-cristã aparecem intencionalidades de conquista e também de sacralização do espaço. É pela expansão territorial que se espacializam as ideias religiosas. “O Senhor disse a Abrão: Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai, e vai para a terra que eu te mostrar. Farei de ti uma grande nação; eu te abençoarei e exaltarei o teu nome, e tu serás uma fonte de bênçãos” (Genesis, 12, 1-2). A partir dessa premissa há o nascimento de uma Terra Santa e de uma cidade sagrada. A Terra Santa é consubstanciada e legitimada pelo texto sagrado, se perpetua como sagrada em outros lugares na forma de sinagogas e igrejas que cotidianamente são confirmadas pelas práticas religiosas.

Esse processo é simbolicamente semantizado na clássica passagem da Torá onde Moisés, ao se aproximar da sarça ardente, ouve de Deus: “Moisés, Moisés! – eis me aqui! Respondeu ele. E Deus: não te aproximes daqui. Tire as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa” (Êxodo, 3, 3-5). Na sacralização do espaço, as crenças, os ritos religiosos encontram um centro de referência no qual o espírito humano pode fixar mais facilmente a identidade das coisas religiosas. O Homem passa a espacializar o sentir religioso quando sacraliza os lugares e difunde suas representações religiosas.

Além do texto, a religião se caracteriza por suas institucionalidades. Na conclusão de sua obra “Ensaio Sobre o Homem”, Cassirer (2001) expressa que a vida cultural do Homem gira em torno de uma incessante luta entre tradição e inovação, entre forças reprodutoras e forças criadoras, dualismo presente em todos os domínios da cultura humana. Na religião existem bons exemplos do dualismo exposto por Cassirer. No Cristianismo, mudanças na forma de interpretação de seus preceitos foram empreendidas pela Reforma protestante e por movimentos de renovação em detrimento de tradições católicas ancestrais.

As instituições erigidas a partir de uma interpretação religiosa visam manter e perpetuar-se enquanto verdade, na tradição ou na inovação. Não como fim em si, mas como meio de conservação simbólica dos preceitos orientadores da vida. Com a instituição, se fecha o circulo das espacializações de uma ideia religiosa. A partir das contribuições de Ernst Cassirer foi possível sistematizar a espacialização do fenômeno religioso. (Quadro 01)

Quadro 01 – Espacialização do Fenômeno Religioso

Fonte: SILVA, A. S. da (2009)

O exemplo da espacialização da Igreja Internacional da Graça de Deus

A espacialização da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) é extensão da dispersão espacial da narrativa que lhe anima. Nessa denominação, os tradicionais textos de difusão das ideias cristãs são reinterpretados por uma hermenêutica própria, na qual a ação do Espírito Santo é a característica de maior distinção.

A Igreja foi fundada por Romildo Ribeiro Soares, conhecido por missionário R.R. Soares, no final da década de 70, logo após a sua saída da Igreja Universal do Reino de Deus. Entretanto, a interpretação cristã condutora das ações institucionais é alusiva às experiências religiosas pessoais do seu organizador.

A instituição IIGD é elemento posterior ao surgimento das ideias que lhe dão forma. A ação primeira de seu fundar refere-se à decisão de Romildo Ribeiro Soares pela vida religiosa. O agora pastor afirma que, quando jovem, pretendia seguir a carreira de médico, no entanto Deus o inspirou a decidir pela pregação, pois, como orador evangélico, poderia curar mais pessoas (QUERINO; MONTEIRO). Para Soares, aquele foi o dia de sua decisão e é comemorado em grandes pregações organizadas pela Igreja.

A decisão pela vida religiosa foi uma escolha pessoal do R.R. Soares. O Cristianismo presente nas Escrituras passa a ser reinterpretado pelo discurso de R.R. Soares. Pode-se inferir que o jovem de vinte anos que opta pela missão religiosa toma essa decisão baseado em uma forma religiosa de perceber o mundo. A experiência da escolha é atinente ao sentimento mítico-religioso da inspiração divina. Esse fato apresenta-se como decisivo na espacialização da interpretação cristã da Igreja Internacional da Graça de Deus. Cada novo adepto deve passar por essa mesma experiência da escolha e conversão. No ato de escolher, o sentir mítico passa a ser a experiência religiosa narrada, o que se conforma como base da espacialização.

Quando um Homem busca dar uma explicação religiosa à sua vida, se vê diante da necessidade de nomear suas experiências. Como justificativa, seu pensar é impregnado pelo simbolismo presente nos discursos religiosos já existentes e dominantes na cultura. Optando por uma dessas explicações, as sensações mítico-religiosas se tornam dizíveis, o Homem passa a organizar sua realidade, guiado por uma forma religiosa de falar o mundo.

Nos depoimentos dos seguidores da Igreja Internacional da Graça de Deus é possível vislumbrar traços desse primeiro ato de conversão. O qual é sempre renovado, pois, para o adepto, cada novo evento vem confirmar a presença divina em suas vidas. Examinemos o seguinte depoimento, divulgado no sítio da Igreja Internacional da Graça de Deus:

Se soubesse antes o quanto Deus estava próximo, não teria procurado outras religiões para encontrá-lo. Há tempos meu coração estava angustiado, cheguei mesmo a brigar com Deus e pensar que minha fé havia desaparecido. Apesar da constante busca. Busquei "conforto" até mesmo na umbanda. E foi aí que tudo na minha vida começou a andar para trás, até mesmo briga familiar enfrentamos, meus irmãos chegaram ao ponto de se agredirem fisicamente. Sempre fui muito de oração e não entendia o que estava acontecendo, as coisas só estavam dando erradas. Um dia deslizando com o controle da televisão deparei-me com o canal do Show da Fé e me senti tentada a ver até o final o programa. Há cinco meses, passei a frequentar a Igreja da Graça. E em nome de Jesus minha vida só tem sido vitórias. Já consegui tirar meu nome do SERASA, minhas dívidas aos poucos estão sendo quitadas. Já fiz até projetos para comprar um carro e uma casa e sei que Deus já abençoou. A partir do momento que passei a frequentar a Igreja, meu interior se iluminou de uma forma inexplicável. Sempre sentia uma tristeza, uma angustia. Faço das minhas noites um encontro com Deus, pois não perco o Show da Fé, mesmo quando tenho que sair, procuro assistir no período da tarde. Deus têm me abençoado de uma forma tremenda. Já sou patrocinadora e ainda não consegui pagar o dizimo. Estou em falta, sei disso! Primeiro à parte Dele. Vou passar a fazê-lo. É Deus falando por mim. Agradeço ao missionário as suas palavras que através da televisão nos tem confortado e muito tenho aprendido com a Palavra de Deus. (M. V., depoimento, disponível em http://www.ongrace.com/testemunhos/ler.php?id=777&cat=bencao_financeira)

O depoimento acima serve como ilustração para a análise aqui proposta. No texto, fica visível a necessidade que tal pessoa tinha de um conhecimento que pudesse dar conta do nomear de suas experiências. A interpretação cristã de R.R. Soares veiculada pela televisão ofereceu a ela um conhecimento religioso propício à nomeação dos fatos ocorridos em sua vida. Ao optar pela linguagem religiosa proferida por R.R. Soares, essa pessoa passou a explicar sua vida e fazer planos para o futuro por meio dela.

Em síntese, a origem da espacialização da IIGD é atinente a uma transposição do sensível à representação e da última novamente ao sensível. Pela escolha missionária, R.R. Soares colocou em movimento a espacialização de sua interpretação do Cristianismo. Da mesma forma, seus enunciatários, através da escolha, passam a nomear suas experiências e objetivar seu sentir mítico por meio do conhecimento religioso organizado pelo pastor. A partir disso, o fiel passa a espacializar as ideias religiosas pelo seu sentir mítico-religioso.

Dessa forma, a unção do Espírito Santo ou as ações efetuadas pelas potências malignas antes não sentidas como tais se fazem presentes em todo o lugar, há um retorno a experiência mítica com mundo, a relação do fiel com o entorno é profundamente marcado pelas crenças contidas na sua forma religiosa de sentir o mundo. Deus se torna presente pelo sentir mítico.

O sentir mítico-religioso não é inerte, é ação do espírito humano. O nominar do sensível é efetuado pela ação humana do dizer. R.R. Soares, embalado pelo modo religioso de sentir o mundo, opta pela vida religiosa tornando sua vida extensão de sua explicação de mundo. O narrar de suas experiências com a religião se torna uma narrativa pessoal, que é extensão da narrativa cristã. Vale ressaltar que ele não constrói uma nova escritura, ele reinterpreta as tradicionais. Ele busca difundir as palavras da Bíblia, as quais são pertencentes a Deus.

Trabalhar pela difusão dos conceitos cristãos é uma possibilidade missionária explícita nos escritos cristãos, porém basta uma ação primordial para ser posta em prática a aceitação. A partir disso e rumo à nomeação que se segue, os planos e objetivos são gerados no conjunto de símbolos religiosos organizados discursivamente. Os modelos de conduta e de interpretação presentes nas ideias religiosas passam a moldar o agir humano. O fiel busca se comportar de acordo com o modo religioso de agir descrito nas narrativas.

O fenômeno religioso é espacializado pelo agir. Ação que, descrita, toma forma de palavra, depoimento e pregação.

Na graça de Deus irmãos amados. A [sic] mais ou menos 1 mês, a minha noiva (Eliete) que trabalha como professora adjunta de uma escola de Araçariguama me contou sobre um certo aluno (8 anos) que era "um terror", nas palavras dela, ele não parava quieto, só bagunçava na aula, atrapalhava os outros, brigava, xingava todo mundo, batia em todos os colegas da classe, e que segundo as outras professoras da escola já queriam expulsá-lo da escola e também, segundo a fé natural delas, o menino só queria atenção. Eu fiquei horrorizado, por que o maligno estava aproveitando-se da situação e ninguém via isso, nem minha noiva enxergou isso, pois ela também é da igreja (e quem disse que nós cristãos não somos alvo do maligno também), e isso fez que o maligno cegasse a minha noiva e não percebesse o fato. No mesmo dia que ela me contou eu bradei e disse em voz alta olhando no olho do maligno que estava nela e disse: Esse menino é a maior benção que Deus colocou naquela escola em nome de Jesus. Eu não aceito a manifestação demoníaca sobre vida nenhuma que Deus criou em nome de Jesus. Nessa hora minha noiva ficou em choque e percebeu o que acontecera. Dois dias depois, aquele menino transformou-se da água para o melhor vinho de Deus, está sendo um dos melhores alunos da classe e todos estão abismados de como ele mudou tanto. Essa é a obra do nosso Deus vivo e pulsante amados, façamos a sua vontade, entreguemos a Ele nossas vidas e Ele restabelecera todos os perdidos em nome de Jesus. Amém! ( S.S., testemunho, disponível em http://www.ongrace.com/NP/testemunhos/ler.testemunho.php?id=1703)

Para o fiel, não há coincidência no fato acima. Nem todas as pessoas buscariam forneceruma explicação religiosa, poder-se-ia pensar o caso por vários meios, no entanto o Homem religioso sente no seu dia-a-dia os enunciados religiosos que professa. Da mesma forma como ele explica os fatos do mundo pelo viés religioso, ele tentará exercer seus atos sobre o mundo animado por explicações religiosas.

O que era tradição textual se espacializa no cotidiano, o que fortalece o discurso. No caso da IIGD, o fiel animado pelo vivenciar dos conceitos contidos nos seus enunciados religiosos passa a agir como seu dispersor. Isso pode ser observado através do ímpeto missionário presente em alguns adeptos. Muitos fiéis se empenham bastante na conversão dos familiares que ainda não aceitaram a palavra. Pois, ao acreditarem nas bênçãos alcançadas e no habitar eterno do paraíso, buscam através de seus atos levar ao mesmo destino as pessoas para as quais dirigem seu amor. O mandamento maior do Cristianismo: “amai-vos uns aos outros como eu vos amo” (João, 15,12), também pode ser interpretado como “levai o Evangelho a toda criatura”.

Esse ímpeto missionário provocado pela narrativa é o propulsor da fundação da instituição. A crença nas graças de Deus e o apelo ao amor ao próximo incitam o fiel à ação. Nos casos em que a pessoa impelida à ação encontra uma estrutura institucional com uma linguagem religiosa satisfatória, ela passará, com seu trabalho, a fortalecê-la. No entanto, se suas concepções mítico-religiosas não puderem ser ancoradas em alguma organização institucional preexistente, a pessoa poderá erigir alguma.

A instituição religiosa possui caráter organizativo. O agrupar das pessoas no entorno de uma verdade religiosa, de uma linguagem coletiva de se falar o mundo, auxilia na construção de centros de convívio comum, no qual se podem vivenciar as experiências alheias, aprender e realizar os rituais religiosos. A instituição surge da necessidade de o grupo religioso manter a verdade pela qual organiza sua vida. Os espaços nos quais os serviços religiosos ocorrem são gerenciados ou estabelecidos pela instituição. A qual é organizada inspirada nas narrativas religiosas.

Como anteriormente mencionado, a instituição religiosa denominada IIGD é extensão das experiências mítico-religiosas de seu fundador. O qual não encontrou uma linguagem institucional que satisfizesse seu modo de compreender a narrativa cristã. O pastor não encontrou uma linguagem religiosa para suas experiências religiosas.

Ou seja, no caso da IIGD não havia um grupo religioso organizado no entorno de uma verdade religiosa. Havia o ímpeto missionário de R.R. Soares naquilo que, para ele, era uma inspiração divina, tal forma de interpretar o Cristianismo não era encontrada em outras denominações cristãs. Em entrevista, R.R. Soares observou que deixou a Igreja Universal do Reino de Deus por não concordar com a forma pela qual eram pregados os ensinamentos cristãos (COHEN & CARDOSO 2003). A IIGD surgiu como instituição religiosa mais por uma escolha pessoal do pastor, o qual, seguindo sua crença, buscou criar uma organização no intuito de levar às pessoas sua forma de interpretar as narrativas.

Inspirando-nos nas considerações de Cassirer (2001 p. 365), de que a vida cultural do Homem gira em torno de uma incessante luta entre tradição e inovação, entre forças reprodutoras e forças criadoras, podemos afirmar que a instituição criada por R.R. Soares se coloca como extensão dessas lutas. Ela se organiza internamente e busca se posicionar frente às outras verdades religiosas, no intuito de proteger a verdade por ela professada.

A reprodução do discurso religioso de R.R. Soares só foi possível pela fundação da IIGD. A partir dessa ação de institucionalização, Soares busca colocar em movimento a dispersão de sua verdade religiosa. Ao mesmo tempo em que a instituição é uma espacialização da interpretação de R.R. Soares, ela organiza o processo de espacialização dessa interpretação.

O fundador da instituição foi o missionário R.R. Soares, porém todo o corpo de fiéis e pastores que a ele se seguem são os contínuos reprodutores da espacialização institucional. Cada um, através da escolha, institui o discurso da IIGD como verdade e passa agir em favor de sua reprodução, não como finalidade em si mesmo, mas como prova de amor e de obediência a Deus.

A organização institucional da Igreja Internacional da Graça de Deus se apoia nos mediadores. Para atingir as pessoas que buscam uma linguagem para falar de seu modo religioso de ser, a IIGD desenvolveu uma estrutura de dispersão ancorada na mídia. O que não se caracteriza por algo novo. O Cristianismo sempre esteve dominado por mediadores, a Bíblia, os pregadores os livros sempre foram os mediadores - seguindo por esse caminho, o uso da TV, rádio e internet é apenas um desdobramento dessa característica da difusão do Cristianismo, instigada por um versículo bíblico já citado “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Marcos 16, 15-16).

Para levar o Evangelho a toda criatura, a IIGD recorreu ao uso da TV, do rádio e da internet. A mídia passou a funcionar como uma espécie de espelho no qual o reflexo da espacialização da igreja se torna também propulsor de sua espacialização.

A IIGD foi a primeira instituição religiosa a veicular um programa de TV em horário nobre no Brasil. O programa “Show da Fé”, apresentado por Romildo Ribeiro Soares, vai ao ar desde 2003 na Rede Bandeirantes de Televisão. Além dos horários que compra de outras TVs, como Rede Bandeirantes, CNT e Rede TV, a instituição utiliza a Rede Internacional de Televisão (RIT), que possui uma programação voltada ao público evangélico. Para a evangelização ainda são controlados um portal na internet, uma rede de rádios, uma editora e uma gravadora, além da operação de um sistema de TV por assinatura via satélite chamado de Nossa TV, com canais nacionais e internacionais.

A Rede Internacional de Televisão está presente em todo o Brasil através de transmissão via satélite e, em 2008, estava presente em 95 cidades do país. No mapa, fica visível a estratégia de atingir com sinal de TV aberta as regiões de maior adensamento populacional. A RIT está presente principalmente na Região Sudeste, sobretudo no Estado de São Paulo e em cidades com adensamento populacional acima de 100 hab./km².

As estruturas da Igreja são o resultado, no espaço concreto, de todo o processo de espacialização. Outra marca deixada pelo esforço de espacialização da Igreja são os templos, localizados especialmente nas grandes cidades. É interessante destacar que, ao usar a mídia para a difusão de seu discurso, em muitos lugares a igreja chega apenas pela TV. (Figura 01)

Figura 01 - Presença das Estruturas da IIGD no Brasil

Fonte: SILVA, A. S. da (2009)

O templo, para os fiéis da IIGD é um lugar sagrado, porém o espaço concreto cuja função é servir de abrigo, não. Aqui, a sacralização do espaço é mais fluida que a das tradicionais instituições cristãs. Mesmo que se fale de lugares sagrados, tal sacralização não se exerce de forma fixa, não se prende ao espaço concreto. O espaço sagrado da IIGD reside no espaço circunscrito ao estar junto, nas aglomerações em nome de Deus.

As práticas religiosas da Igreja não são representadas na expressão da materialidade dos templos. Há práticas realizadas a céu aberto, em ginásios e em estádios de futebol. Apenas estar na frente da tevê pode representar um ato religioso. A espacialização a partir do discurso religioso se dá muito mais pela ação e pelo sentir da presença divina, há uma reconstrução da imagem do mundo no qual pode a Divindade se manifestar a qualquer tempo e em todo o lugar, apenas pela sensibilidade de sua presença.

Considerações finais

Como visto, uma Geografia do Fenômeno Religioso vem sendo desenvolvida há longo tempo. Porém, a forma como os trabalhos sobre o assunto foram realizados sofreu variações: com o surgimento da Geografia acadêmica, o fenômeno foi concebido em vieses distintos, de acordo com os paradigmas segundo os quais a ciência se desenvolvia. Nas últimas décadas, no Brasil, os estudos em Geografia da Religião vêm se desenvolvendo junto com a os da nova Geografia Cultural.

Na busca por uma teorização da espacialização do fenômeno religioso, observou-se que, a partir da Filosofia das Formas Simbólicas, pode-se considerar que a manifestação espacial da religião possui duas esferas, uma relacionada ao sentir mítico e outra ancorada na função representativa da linguagem, caracterizada pelo discurso religioso. O sentir mítico torna-se dizível através de uma linguagem religiosa. Tal ação se espacializa para além de sua origem. O espírito humano, inspirado por uma linguagem religiosa, espacializa, através de seu sentir, os enunciados religiosos por meio do qual se realiza enquanto ser. A ação humana, incitada pelo simbolismo religioso, se retroalimenta no espaço material, nas representações dos templos e nos matizes presentes nas manifestações religiosas da paisagem. Para exemplificar o processo de espacialização, foi demonstrado o caso da Igreja Internacional da Graça de Deus.

Pode-se dizer que o processo de espacialização do fenômeno religioso é colocado em movimento pela ação do fiel. O espaço no qual o fiel realiza suas atividades é marcado pela forma como ele busca explicar sua vida. As narrativas religiosas e suas interpretações dão respaldo à objetivação do modo religioso de ver o mundo. Dessa forma, o espaço concreto é ao mesmo tempo propulsor e extensão do simbolismo religioso; propulsor, pois se apresenta como estímulo sensorial; e extensão, que se apresenta nas paisagens religiosas como símbolo espacializado.

Por fim, vale ressaltar que sendo a espacialização do fenômeno religioso ação humana, considera-se que o espaço concreto da religião substanciado pelos templos e pelos monumentos religiosos é extensão daquilo que anima a forma religiosa de falar e de agir sobre o mundo. O discurso religioso são estruturadores das manifestações sócio-espaciais da religião, contudo não se pode esquecer que quem propicia a espacialização do simbolismo religioso impregnado nas narrativas é o próprio Homem. por seu modo religioso de sentir e conceber o mundo.

Bibliografia

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Notas

[*] Mestrando do programa de pós-graduação em Geografia - na linha de pesquisa “Território, Cultura e Representações”, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

[**] Professor Doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná, bolsista pós-doutorado CNPq - pesquisador NUPPER e NEER.