Entre a Filosofia e a Mística: Suhrawardi e a Metafísica da Luz

Cecilia Cintra Cavaleiro de Macedo[*] []

Resumo

Shihab al-Din Yahia Suhrawardi (1154-1191), al-maqtul, filósofo persa, é considerado o pai da Filosofia Iluminacionista (al-Hikmat al-Ishraq). Seguindo, em certa medida, os passos que Avicena começara a trilhar na sua Filosofia Oriental (al-hikmat al-mashriqiyya), desenvolveu um modelo filosófico baseado numa hierarquia descendente de luzes que constituem tudo aquilo que existe. Junto a este modelo metafísico, critica a teoria do conhecimento de base aristotélica, comum entre os filósofos de seu tempo, propondo o conhecimento presencial (al-‘ilm al huduri). Sua filosofia intuicionista apresenta influências do platonismo e das antigas religiões persas, e foi relacionada ao Sufismo e ao Ismailismo. Neste artigo visamos apresentar brevemente as ideias principais desta corrente místico-filosófica.

Palavras-chave: Suhrawardi, Filosofia da Iluminação, conhecimento presencial, Ismailismo, Sufismo.

Abstract

Shihab al-Din Yahia Suhrawardi (1154-1191), al-maqtul, persian philosopher, is considered the father of Illuminationist Philosophy (al-Hikmat al-Ishraq). Following, in some extent, the steps of Avicenna in his Oriental Philosophy (al-hikmat al-mashriqiyya), he developed a philosophic model based on a descent hierarchy of lights which constitute all that exists. Related to this metaphysical model, he criticizes the theory of knowledge in Aristotelian basis, a commonplace among philosophers at his time, proposing the presential knowledge (al-‘ilm al huduri). His intuitionist philosophy shows influences from Platonism and ancient Persian religions and was related to Sufism and Ismailism. In this article we aim to present the main ideas of this mystical-philosophical stream.

Keywords: Suhrawardi, Illuminationist Philosophy, Presential Knowledge, Ismailism, Sufism.

Oriente de Luz: Não imagines que a filosofia existiu só nestes tempos mais recentes. O mundo jamais esteve sem filosofia ou sem uma pessoa que tivesse provas e claras evidências para defendê-la. Ele é o vice-regente de Deus (Khalifat Allah) na Sua Terra.O líder que possui a filosofia intuitiva pode reger abertamente ou pode estar oculto – aquele que o povo chama “o Pólo” (al-Qutb). Ele terá autoridade mesmo se estiver na mais profunda obscuridade. Quando o governo estiver em suas mãos, a Era será iluminada.
(Suhrawardi, Al Hikhmat al-Ishraq)

Pouco estudada no Ocidente em geral até muito recentemente e praticamente desconhecida em nosso país, a Filosofia medieval persa revela algumas particularidades bem definidas, tendo sido berço de uma proposta extremamente interessante, que combina intuição mística e rigor filosófico. O proponente da Filosofia Ishraq, como ficou conhecida esta escola filosófica, foi Shihab al-Din Yahia Suhrawardi, que se inspirou, em muitos pontos, na obra de Avicena. Assim como seu predecessor, Suhrawardi deixou, ao lado de obras redigidas em linguagem puramente racional e dentro dos cânones filosóficos, relatos fantásticos nos quais descreve suas experiências visionárias. O profundo desconhecimento deste autor no Ocidente, apesar dos esforços envidados especialmente por Henry Corbin, talvez seja devido, em grande parte, ao fato de o autor ter escolhido para a redação da maior parte de seus textos e, especialmente, para seus relatos visionários, o idioma persa. Não é nossa intenção, neste trabalho, fazer uma apresentação aprofundada de Suhrawardi ou de sua metafísica iluminacionista. Nosso objetivo é uma apresentação introdutória que visa indicar, em linhas gerais, a base do pensamento desta escola filosófica, que mantém suas influências até os dias de hoje.

Os termos ishraq e mashriq derivam da raiz comum sh-r-q, sendo sharq o Oriente geográfico. Ishraq significa, literalmente, Iluminação; e Mashriq, o Levante, ou os primeiros raios de luz do Sol nascente. O termo mashriq foi utilizado primeiramente como qualificativo da Filosofia por Ibn Sina (Avicena), o célebre filósofo e médico persa. Sua denominação al-hikmat al-mashriqiyya veio a ser traduzida como Filosofia Oriental. Os conteúdos dessa proposta filosófica foram ampliados e aprofundados, posteriormente, por Shihab al-Din Yahya Suhrawardi, assumindo o nome de Al-Hikhmat al-Ishraq, ou, por tradução, Filosofia da Iluminação. Suhrawardi ficou assim conhecido como Al-Sheikh Al-Ishraq, o Mestre da Iluminação. Tornada escola filosófica por seus discípulos, teve múltiplos desdobramentos; o mais célebre entre os desenvolvedores daquela proposta foi Sadr Al-Din Muhammad Al-Shirazi (1571/2-1640), conhecido como Mulla Sadra, que inovou ainda mais, sendo considerado, por sua vez, o fundador de uma nova escola filosófica islâmica, conhecida como Filosofia Transcendental, ou al-Hikmat al-Muta’aliyya. Esta última linha filosófica sobrevive até os dias de hoje no Irã.

Podemos dizer que as principais características da Filosofia da Iluminação que nos ocupam aqui são: entender toda a existência como uma sequência descendente de luzes, emanada da Luz das Luzes; sincretismo do modelo metafísico de emanações originário, na sua maior parte, do neoplatonismo tardio, com a hierarquia angélica proveniente do mazdeísmo e outras antigas religiões; utilização de linguagem simbólica/alegórica; presença de relatos visionários ao lado de textos filosóficos; e o questionamento da teoria do conhecimento nos moldes aristotélicos, com a sustentação do conhecimento pela presença.

Os antecedentes da Filosofia Ishraq

Não há como negar a associação entre a proposta filosófica de Suhrawardi e a chamada Filosofia Oriental de Avicena. Nascido em Afsana, próxima a Bukhara, cerca de 980, Abu Ali Al-Hussein Ibn Abdullah Ibn Sina, latinizado Avicena[1], foi médico e filósofo, ao qual são atribuídas cerca de 250 obras. Seu pai converteu-se ao Ismailismo fatímida, no que foi seguido por seu irmão. Avicena jamais aceitou oficialmente essas doutrinas, mantendo-se, por toda sua vida, tal como é considerado hoje: um xiita moderado. Ibn Sina foi um estudioso precoce e inteligente, tendo adquirido, ainda muito jovem, em Bukhara, sólida formação em Medicina, Filosofia e Direito Islâmico. Quando Ibn Sina contava com somente dezoito anos, o príncipe Nuh al-Mansur adoeceu e seus médicos não foram capazes de curá-lo. Avicena foi chamado, junto com outros médicos da corte, e o príncipe recobrou a saúde. “Em sinal de gratidão, foi colocada à sua disposição a biblioteca dos governadores Samânidas (os dominadores da Pérsia, antes da conquista árabe) que, na época, era o santuário do saber” (ISKANDAR, 1999:18). Lá, Avicena relata ter lido livros e tomado notas do conteúdo de obras orientais desconhecidas de seu tempo:

Em uma das salas estavam as obras sobre língua árabe e poesia, outra com as de direito islâmico; e assim em cada sala as de um único saber. Li o catálogo dos livros dos Antigos e pedi o quanto necessitei. Entre estes livros, vi alguns dos quais não se conhecia nem os nomes, nem eu mesmo os havia visto antes, e não tornei a vê-los depois (AVICENA in CRUZ HERNÁNDEZ, 1997: 32-33).

Avicena ali se estabelece até a tomada do poder pelos turcos, quando parte, por volta de 999, para Gorgan (Jurjan), capital de Khwarizm. Mas lá também não pára por muito tempo, partindo em 1009 para uma longa peregrinação por vários lugares, acompanhado por seu irmão e pelo médico cristão Abu Sahl b. Muhammad Suhilí. Após inúmeras viagens, se estabelece em Hamadan, a serviço do emir Shams al Dawla, como vizir. Com a morte deste, em 1023, é encarcerado. Foge então com seu irmão e seu amigo, discípulo e biógrafo ‘Abu ‘Ubaid Al-Juzjani, mais dois escravos, todos disfarçados de sufis, conseguindo chegar a Ispahan, onde o emir ‘Ala al-Dawla lhe conferiu proteção. Lá foi assessor, conselheiro e médico deste emir, tendo, com ele, empreendido diversas viagens. Nesse período compôs “a parte da lógica, geografia e astronomia de Al-Shifa’, tendo praticamente terminado esta obra, como também Al-Najat (A Salvação) e o Danesh Nama (O Livro das Ciências)” (ATTIE, 2000:17). Ibn Sina morreu em Hamadan com a idade de 58 anos.

Estudioso incansável e escritor produtivo, Avicena nos legou obras de fôlego impressionante, como o monumental Kitab al-Shifa’ (O Livro da Cura), em 18 volumes, e o Kitab al-Qanun fi-al-Tib (Cânon de Medicina), em cinco volumes. De especial importância na obra de Avicena é, também, sua teoria da Profecia, na qual busca formular uma teoria filosófica em conformidade com o Corão e ao mesmo tempo, consistente com sua própria visão de mundo (Cf. NASR, 1976: 42). Nela, identifica o Intelecto ativo com o anjo Gabriel – o Anjo da Revelação. Se antes, para os muçulmanos, encontramos a ideia de que um Profeta é um homem comum que não necessita aperfeiçoar sua condição para receber a Profecia, que é uma Graça, em Avicena “a profecia passa a ser resultante de certas condições físicas e psíquicas determinadas pelo fluxo necessário das emanações das inteligências supralunares” (PEREIRA, 2007:334). A consciência profética é o estado do ser humano que possui todas as faculdades em sua perfeição. O profeta se distingue dos sábios e santos, além de possuir a função de trazer a lei para a humanidade, porque a sua recepção do conhecimento do Intelecto Divino é completa, enquanto a daqueles é parcial. Distante de uma visão simples da questão, a teoria da profecia de Avicena é complexa e admite, também, tipos diversos de profecia, de acordo com as propriedades do estado profético (Cf. ELAMRANI-JAMAL, 1984:127).

Os chamados escritos esotéricos[2] de Avicena têm chamado a atenção de estudiosos ocidentais desde o século passado. Na tentativa de compreensão do significado dessas epístolas, diversos estudiosos discutiram e confrontaram suas posições na busca de classificar o autor enquanto místico ou como filósofo racional. Aqueles que defenderam a presença do misticismo na obra de Avicena, tentaram conectá-lo ora com o Sufismo, ora com o Ismailismo, ora com a antiga sabedoria e religião persas e também com a Filosofia mística neoplatônica; por outro lado, aqueles que se opuseram ao estabelecimento do caráter central de qualquer traço místico na obra do filósofo persa ressaltaram o aristotelismo do autor e defenderam a existência de uma correlação direta entre a mensagem desses textos alegóricos e o conteúdo de sua Filosofia[3], em que a Filosofia racional seria a matriz conceitual e os escritos visionários uma simples alegoria daqueles conteúdos.

Dentre as obras de Ibn Sina, alguns escritos são considerados textos místicos ou visionários. Além da Risalat fi-al-‘Ishq ou Tratado do Amor, no qual emprega terminologia sufi, alguns poemas e orações, temos os três relatos ou narrativas, nos quais o termo Oriente aparece em sentido simbólico, significando o mundo da Luz ou das Formas Puras, e, em contraposição, Ocidente simboliza o mundo das sombras ou da matéria. “A alma humana foi tomada como prisioneira na escuridão da matéria e deve libertar a si mesma a fim de retornar ao mundo das Luzes de onde a alma humana originariamente descendeu” (NASR, 1976: 44.). Acredita-se que a Risalat Hayy Ibn Yaqzan ou Vivente, filho do Vigilante, tenha sido o primeiro dentre esses seus relatos esotéricos. Acompanham-na a Risalat al-Tayr, ou Epístola do Pássaro, e há ainda as reminiscências de Salaman e Absal, uma vez que o texto completo foi perdido e dispomos somente de um resumo. A estes textos acrescenta-se a Qasida da Alma, poema curto, mas denso, e também uma série de textos constantes da obra do autor que consistiriam na fundamentação de sua intenção mística, como nos três últimos capítulos de sua última obra o Livro das Indicações e Admonições [Kitab] al-Isharat wa al-Tanbihat.

Controvérsias recobrem a obra, na sua maior parte perdida, Mantiq al-Mashriqiyya (A Lógica dos Orientais), na qual teria exposto sua Filosofia Oriental, e à qual se refere da seguinte maneira:

Escrevi ainda outro livro, além desse outros dois, no qual expus a filosofia segundo sua natureza e de acordo com as exigências de uma atitude despreocupada, que não leva em conta os pontos de vista dos colegas da disciplina, sem preocupação com as discrepâncias que surgirem, como se faz por aí: este é meu livro sobre a Hikhmat al-Mashriqiya. Quanto ao presente livro, está mais desenvolvido e de acordo com meus colegas peripatéticos. Aqueles que perseguem a verdade limpa de qualquer dissimulação deveriam buscar somente o livro anterior; mas aqueles que indagassem a verdade do modo que compraza aos colegas, atendo-se ao comum e referindo-se ao que pensam, do modo como o entendem, não necessitam de outra obra; basta-lhes o presente livro (apud. CRUZ HERNÁNDEZ, 2000: 225).

A Filosofia Oriental aviceniana foi interpretada de diversas maneiras. Mas, seja como for, não resta dúvida de que a proposta, aparentemente inaugurada por Avicena, é de uma filosofia mística que se apresenta em linguagem simbólica e descreve experiências visionárias. S.H. Nasr entende o termo como:

Forma de sabedoria ou teosofia que tem como propósito o transporte do homem desde este mundo de imperfeição até o mundo da luz (...). A ‘filosofia oriental’ remove o véu da dialética e busca apresentar a filosofia perennis não como algo para satisfazer a necessidade de pensar, mas como um guia, ou pelo menos como uma ajuda doutrinária, para a iluminação do homem, a partir da experiência interior do seu autor (NASR, 1978 apud. FERNANDES, 2007: 522).

Vale lembrar que também Ibn Tufail é considerado seguidor da Filosofia Oriental, na esteira de Avicena. Em sua obra O filósofo autodidata (Risalat Hayy Ibn Yaqzan), Ibn Tufail segue os nomes criados por Avicena e, em seu prólogo, indica que o motivo de sua obra seria explicar a Filosofia Oriental de Avicena:

Pediste-me, Irmão sincero, que te comunicasse os mistérios da sabedoria oriental, que me fosse possível divulgar, que o mestre e príncipe dos filósofos Abu Ali b. Sina menciona. Deves saber, pois, que aquele que quiser alcançar a verdade pura deve estudar estes segredos e conhecê-los (IBN TUFAIL, 1995: 31).

Suhrawardi e a Filosofia Iluminacionista

Shihab al-Din Yahia Suhrawardi, (ou Sohravardi), filósofo persa, nasceu por volta de 1154 em Sohraward, noroeste do Irã. Iniciou seus estudos de Filosofia na cidade de Meragheh, no Azerbaijão, prosseguindo depois para Ispahan, onde teve contato vívido com a tradição aviceniana. Passou alguns anos no sudeste de Anatólia e, finalmente, dirigiu-se à Síria. Em Alepo, gozou das graças do governante, o príncipe al-Malik al-Zahir Ghazi, filho de Salah al-Din (Saladino), tornando-se seu tutor. O filósofo mantinha o príncipe a par de sua nova Filosofia por meio de sessões e conversas privadas. Sua posição privilegiada na corte não tardou em fazer com que se tornasse vítima da inveja e de intrigas, e o filósofo assim acabou por encontrar o fim de seus dias. Alcunhado pelos seus biógrafos al-maqtul (o que foi morto ou executado) e al-shahid (o mártir) pelos seus discípulos, Al-Sheikh al-Ishraq, como passou Suhrawardi para a história, morreu de modo misterioso em Alepo, em 1191, vítima do fanatismo religioso e das intrigas que vigoravam entre os conselheiros do governo, após ser aprisionado a mando do sultão Salah al-Din.

Suhrawardi toma o mesmo radical que antes tinha sido utilizado por Avicena, sh-r-q, talhando a partir deste conceito, o perfil de uma escola filosófico-mística, Al-hikhmat al-Ishraq, considerada, por alguns como uma teosofia, e cujos adeptos ficaram conhecidos como Ishraqiyyun. “O termo foi adotado a seguir por comentadores e historiadores, para descrever os pensadores cuja posição filosófica e método eram distintos dos ‘peripatéticos’ (al-mashsha’un)” (ZIAI, 1996: 438.). Na obra desse filósofo, o termo, na sua formulação Ishraqi, assume mais claramente a sua característica de Filosofia Iluminacionista do que propriamente Oriental (em seu sentido geográfico). Suhrawardi amplia e aprofunda a Filosofia Oriental de Avicena, retomando antigas imagens das tradições persas pré-islâmicas. Sua Filosofia é baseada no antagonismo Luz/Trevas, no qual, tudo aquilo que existe é luz, em diversos graus, proveniente da Luz primordial, ou Luz das Luzes (Nur al-Anwar)[4]. A partir desta Luz das Luzes, emana uma cadeia de luzes, conforme sua perfeição, relacionadas entre si por subordinação ou equivalência, desde a primeira Luz, as luzes secundárias, os corpos celestes e o mundo dos elementos:

As diferenças existentes entre as coisas/os entes não se dão por essência, mas por grau de intensidade luminosa. A existência do vazio (khalâ’) é negada, a não ser que entendamos o vazio como um corpo imaterial. A luz pode ser imaterial [luz substancial (nûr jawhari) ou luz incorpórea (nûr mujarrad); luz de si e em si - luz de Deus, dos anjos/dos arquétipos, da alma humana] ou acidental (nûr ‘ardi; luz de si mas em outro - luz das estrelas, do fogo), podendo ainda esta ser do tipo corpóreo ou incorpóreo - sendo este último tipo chamado de luz propiciadora (nur sânih). As luzes acidentais (al-anwâr al-‘awarîd; a luz física e alguns acidentes na luz imaterial) diferem entre si em razão da maior ou menor perfeição da luz que as ilumina. (FERNANDES, 2007: 539).

Majid Fakhry acredita, assim como Corbin, que na Hikmat al-Ishraq o Neoplatonismo e o Sufismo são reconciliados. Mas, apesar de ser notório o conhecimento do autor acerca das práticas dos círculos sufis de sua época, nada indica que tivesse integrado alguma ordem específica, assim como também foi o caso de seu predecessor Avicena. Alguns ramos do Sufismo reivindicam essa conexão de Suhrawardi, comparando-o inclusive com (Abu Hamid) Al-Ghazali: “Como Al-Ghazali, Suhrawardi investigou todos os modos de conhecimento disponíveis em sua época, e finalmente colocou sua vasta experiência a serviço do sufismo, abrindo os significados internos do Islam” (BAYRAK, in SUHRAWARDI, 1998a:19). Mas, por outro lado, o modelo neoplatônico emanacionista aparece de forma clara através da sucessão das luzes, a partir de uma luz inicial, emanadas umas das outras e através da contemplação da ordem superior, conectando sua especulação diretamente à mais pura Filosofia platônica. E isto não pode ser desconsiderado, nem mesmo por aqueles que entendem esse autor no âmbito do Sufismo:

Na época de Suhrawardi, parecem ter existido quatro caminhos principais que se dirigiam ao conhecimento espiritual, à verdade divina e à salvação. Como o domínio da reflexão intelectual continha a filosofia visionária dos ishraqiyyah e os argumentos racionalistas dos mashshiyah, o domínio da interpretação das escrituras incluía a aplicação intuitiva dos Sufis e as inferências lógicas do escolasticismo islâmico, conhecido como kalam. De acordo com esta classificação, aqueles que seguem a exegese do kalam, têm a confiança no dogma em comum com os Sufis e compartilhavam o racionalismo com os filósofos aristotélicos do mashshiyah. Os sufis compartilhavam a dependência das escrituras com os escolásticos do Kalam, como mencionado, e tinham seu método do intuicionismo em comum com os filósofos do ishraqiyyah (BAYRAK, In SUHRAWARDI, 1998a: 17).

Considerando em maior ou menor grau sua relação com o Sufismo, não podemos esquecer o fato de que Suhrawardi não estudou a Filosofia a fundo somente para criticá-la – o que acaba por distanciá-lo em muito da proposta de Al Ghazali –, mas estudou para conhecê-la por si e dela extrair todo o conhecimento que encontrasse. Suhrawardi, como Avicena, foi definitivamente um filósofo, no sentido mais estrito do termo, mas foi um filósofo que não se contentou com o conhecimento racional-discursivo, uma vez que não entendia esse conhecimento como o ápice da sabedoria humana, conforme será exposto mais adiante. Defendia que há alguma coisa a mais a ser conhecida, algo que está além dos limites dos métodos filosóficos, e necessariamente além da linguagem, e que, portanto, tais métodos não seriam capazes de alcançar. Essa necessidade da intuição e da prática como meios para alcançar a sabedoria mais elevada, apesar de compartilhada com as mais variadas correntes do Sufismo em geral, pode ser derivada de outras fontes. Uma delas é o Ismailismo, que é caracterizado por uma espiritualidade mais filosófica e altamente especulativa. Pode também ser diretamente derivada do Platonismo e neoplatonismo, que, na obra de Suhrawardi aparece colorido e associado às imagens simbólicas advindas das religiões das quais o autor partiu – Islamismo e Mazdeísmo – sem qualquer necessidade de outras influências. Uma das particularidades das filosofias de orientação platônica e neoplatônica é a de entender que o caminho para a superação dos limites do conhecimento filosófico pode ser encontrado a partir da própria Filosofia.

A formulação mais comum da variante islâmica da Filosofia neoplatônica utiliza o modelo ptolomaico de esferas, herdado do Helenismo, associado a uma hierarquia de Intelectos. Desenhada sobre o mesmo modelo inicial, esta hierarquia de Intelectos é substituída, na obra de Suhrawardi, pela hierarquia das luzes e, associada a elas, é justaposta uma sequência de anjos, originária do antigo pensamento persa, fato que pode ser atestado pelos nomes que confere a esses anjos. Esta hierarquia de luzes é ordenada da seguinte forma. A partir da Luz das Luzes, há a primeira luz emanada. Da relação inicial desta última com a primeira[5], pela multiplicação das dimensões inteligíveis, ocorre o surgimento das luzes dominadoras primordiais que Suhrawardi denomina luzes soberanas supremas, e entende-as como universos de Arcanjos. Essas luzes, ao procederem umas das outras, formam uma hierarquia descendente denominada Ordem Longitudinal (tabaqat al-tul). Estas, mediante suas dimensões positivas (domínio, independência e contemplação ativa) dão origem a uma nova ordem de luzes/arcanjos que mantêm, entre si, uma relação de igualdade, por não procederem uns dos outros. Estas novas luzes compõem a Ordem latitudinal (tabaqat al-anwa) e são os arcanjos-arquétipos ou senhores das espécies (arbad al-anwa), identificados com as formas platônicas, entendidas como hipóstases de luz. A tal ordem latitudinal pertence o anjo da humanidade, Gabriel, equiparado ao que os falasifa denominam Inteligência (ou Intelecto) Agente. Gabriel, como anjo da humanidade, é tanto anjo da revelação, como anjo do conhecimento.

Vale ressaltar que a associação dos anjos à metafísica já existe nos textos avicenianos e deve ser rastreada desde tempos muito mais remotos:

A equivalência entre o pleroma das Inteligências (‘Oqul) e o pleroma arcangélico (árabe Mala’ika, persa Fereshtagân) faz parte do símbolo da fé de nossos filósofos. A convergência deveria ser rastreada desde o Neoplatonismo grego tardio; o avicenismo é, certamente, um momento capital desta convergência que é pressuposta pelo ‘Relato de Hayy Ibn Yaqzan’, tanto como pelas ampliações do comentador persa. (CORBIN, 1995:61).

As dimensões negativas da ordem longitudinal (dependência, iluminação passiva, amor que é dependência) originam o céu das estrelas fixas. Neste, as estrelas individuais são tantas outras emanações que se materializam, mas compostas de uma matéria celeste que ainda é sutil. Desta segunda ordem de arcanjos emana uma nova ordem de luzes, através dos quais os arcanjos arquétipos governam as espécies: são as luzes Espahbad, equivalentes aos anjos-almas do modelo aviceniano.

Seu modelo cosmológico é o modelo aristotélico-ptolomaico, comum na época, que, em sua versão, é composto de onze esferas: a Grande Esfera do movimento diurno; a esfera das estrelas fixas; as sete esferas dos planetas (Esferas de Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio, Lua), a esfera do Éter e Zamharir, domínio sublunar da materialidade grosseira e fronteira da Terra. A novidade que se nota aqui é que, normalmente, os filósofos da época costumavam considerar, na esteira do pensamento de Aristóteles, que a divisão fundamental seria entre o mundo sublunar, sujeito à geração e à corrupção e o mundo supralunar, incorruptível. Suhrawardi desloca esta fronteira para o limite entre as realidades materiais e as imateriais.

A Grande esfera é justamente esta fronteira entre a existência material, espacializada e temporal, e a existência imaterial; podemos dizer que é também o limite entre o ser e o não-ser. A ela corresponde o Mundo Imaginal (‘alam al-mithal) ou Terra do não-lugar (Na-Khoja Abad). Em seus tratados, apresenta o simbolismo das asas do anjo Gabriel, que pode ser assim relacionado com esta esfera:

A natureza dual desta esfera é expressa também nos termos do símbolo suhrawardiano das asas de Gabriel: a asa direita, sendo uma abstração da relação do intelecto primeiro (Gabriel) com o ser de Deus, é pura luz, isto é, sem nenhuma mancha de escuridão ou materialidade e é divina em atributo e representa o ser absoluto. A asa esquerda, por outro lado, é a realização essencial do não-ser, tal como disposto na alma. (THACKSTON, In SUHRAWARDI, 1982:8).

A ela corresponde também a representação simbólica do Monte Qaf, a mítica cadeia montanhosa que circunscreve a Terra, presente em grande parte da literatura mística e visionária do Islam. Advinda do mais alto, ao passar por esta Grande Esfera, a Luz do Criador dá origem a um sem-número de luzes materiais que formam os corpos luminosos celestes.

Podemos dizer que, para Suhrawardi, existem quatro mundos, correspondendo às diferentes ordens de luzes, ainda que no Partaw Nameh ele se refira a três. O primeiro é o mundo das inteligências puras (Jabarut), que corresponde às luzes arcangélicas das duas primeiras ordens, e que, em linguagem filosófica, podemos dizer que equivaleriam ao Mundo do Intelecto (‘aql) “o qual consiste em essências incorpóreas, livres de matéria e extensão em todos os sentidos – este mundo é também chamado de Reino de Poder, e Grande Reino” (SUHRAWARDI, 1998b: 67). O segundo é o mundo das luzes que regem um corpo, mundo das almas celestes e das almas humanas (Malakhut), que corresponde, em linguagem filosófica, ao domínio da Alma (nafs). O terceiro, o mundo de Mulk, é dividido em dois conjuntos, pois compreende as esferas celestes, entendido como mundo etéreo que consiste no mundo dos seres celestes (athiri) e o mundo dos elementos (‘unsuri). “Os seres celestiais estão sob o controle das almas, que são controladas pelos intelectos, que são controlados pelo primeiro ser causado, que, por sua vez, é controlado pela Luz da Glória de Deus, Exaltado seja Seu Poder” (SUHRAWARDI, 1998b: 68). A esses mundos acrescenta-se um domínio intermediário, o mundo Imaginal (alam al-mithal)[6], que também é referido como Confluência de dois Mares (Majma’ al-Bahrayn)[7], oitavo clima e Terra do Não-lugar (Nakoja-abad). Este é o mundo intermediário entre o mundo inteligível, composto pelos seres de luz pura e o mundo sensível. É o lugar das experiências visionárias místicas e proféticas, uma dimensão que corresponde a um modo de ser e de conhecimento que não pertencem a uma realidade concreta e palpável, mas é real, posto que é experienciável.

Suhrawardi divide o conhecimento metafísico em dois âmbitos distintos: uma parte refere-se ao conhecimento do ser, ou daquilo que existe, (al-‘ilm al-kulli) correspondente aos temas comuns aos filósofos de orientação aristotélica, tais como existência, essência, acidentes, unidade, tempo, movimento, e outra parte que se dedica ao conhecimento das coisas de Deus (al-‘ilm al-ilahi) sendo voltada a questões como a existência de Deus e à possibilidade do conhecimento de Deus. Nesse âmbito aborda, entre outros temas, questões como a experiência mística, a intuição direta, a revelação, a profecia, os milagres, os sonhos lúcidos, as bênçãos e os carismas (karamat) e a existência real do mundo arquetípico ou mundo imaginal (‘alam al-khayal; ‘alam al-mithal). Além disso, a Filosofia Ishraq rejeita veementemente as categorias aristotélicas, por serem estanques, e inicia a migração para a metafísica dos processos, com destaque para o tempo e para o movimento, a qual será posteriormente aprofundada por Mulla Sadra Shirazi. Sua teoria propõe que a intensidade é uma propriedade de todas as categorias, que, das dez originais propostas por Aristóteles, ficam reduzidas a cinco: substância (jawhar) qualidade (kayf), quantidade (kamm), relação (nisbah) e movimento (harakah). Alguns comentadores afirmam terem sido reduzidas a quatro, pois o movimento tampouco seria uma categoria.

Mas, o golpe mais profundo que Suhrawardi desfere na Filosofia aristotélica recai na questão do conhecimento. Partindo de um problema lógico – a questão da definição – extrai implicações epistemológicas que conduzirão à sustentação de sua proposta do Conhecimento Presencial (al-‘ilm al huduri). Enquanto para a tradição peripatética o conhecimento parte da abstração do gênero e da diferença, os quais darão origem à definição, para Suhrawardi a alma humana conhece tudo o que é capaz de conhecer através de uma luz regente (al-nur almudabbir ou al-nur al-isfahbud), mediante um encontro direto com o objeto conhecido. Para Suhrawardi, como toda a existência é luz, o conhecimento é iluminação, e, antes de tudo, é projeção de luz sobre luz[8]. Portanto, ao conhecimento representativo, entendido como conhecimento universal abstrato ou lógico (‘ilm suri) reconhecido pela tradição peripatética, contrapõe um conhecimento,

Presencial, unitivo, intuitivo, de uma essência absolutamente verdadeira em sua singularidade ontológica (‘ilm hodûri ittisâli, shohûdi), uma iluminação presencial (ishrâq hodûri) que a alma, como ser de luz, faz levantar-se sobre seu objeto; faz-se presente a eles fazendo-se presente a si mesma. Sua própria epifania a si mesma é a Presença desta presença e nisto consiste a presença epifânica ou Oriental (hodûr ishraqi) (CORBIN, 2000:194).

Suhrawardi parte da famosa passagem do livro II dos Analíticos Posteriores, na qual Aristóteles estipula que a definição deva ser o primeiro passo na ciência, e assim ser premissa para a demonstração, da qual se deduz que somente é possível obter um conhecimento científico ou válido se este partir de uma definição obtida ou construída. Em sua reflexão, Suhrawardi indaga como pode ser obtida uma definição sem qualquer conhecimento prévio; e, através de uma série de argumentos lógicos, demonstra que: se, para obter ou construir a definição de algo é necessário partir do gênero e da diferença – posição defendida pela teoria essencialista da definição assumida por Avicena – isso equivale a afirmar que é necessário antes conhecê-lo.

Assim, para Suhrawardi, definir um termo é equivalente a assumir conhecê-lo antes de ele ser conhecido, o que não pode estar certo. Conforme sua própria teoria, a definição só pode ser obtida “recorrendo-se às coisas sensíveis ou aparentes de outro modo [isto é, outro que não a fórmula peripatética da definição] e [somente] se [e quando] a coisa pertence especificamente à soma total do [sensível e das coisas aparentes] como um todo orgânico (SUHRAWARDI, apud ZIAI, 1996: 447)”. Desse modo, Suhrawardi ataca também a indução. A definição de uma coisa não pode partir de componentes separados, uma vez que possui uma multiplicidade de atributos ocultos ou não-aparentes. Completa seu raciocínio afirmando que os constituintes de uma coisa não são separados, nem em si mesmos (realmente) nem quanto ao conceito (intelecto). Como alternativa, Suhrawardi estabelece,

um conceito ishraqi de definição baseado na pura intuição ou consciência da coisa em questão, como resultado de seu contato com a pureza do próprio sujeito cognoscente. A diferença fundamental é que, para a maioria dos peripatéticos, o conhecimento é descrito como uma matéria do sujeito cognoscente conectado ao Intelecto ativo, enquanto o ishraqi substitui isso por uma conexão que o sujeito cognoscente tem consigo mesmo (LEAMAN, 2002:200).

Desse modo, a mais alta forma de conhecimento é a intuição imediata (iluminação) e o desenvolvimento desta intuição passa a ser um método para a Filosofia ishraqi. Com o desenvolvimento de uma filosofia baseada na intuição, a ideia de experiência, antes defendida prioritariamente pelas correntes místicas, invade a Filosofia e passa a ser o foco central do conhecimento. Assim, a distância entre as duas formas de sabedoria (mística e filosófica) é encurtada. O desenvolvimento deste método suhrawardiano conduz a uma espécie de ciência da experiência, semelhante aos modelos adotados pelos círculos místicos, mas, ao mesmo tempo, seu autor deposita mais confiança na investigação, na análise dos conceitos e na linguagem lógico-racional, como instrumentos necessários para a aquisição, a comunicação e a explanação da sabedoria.

Com isto, não pretendemos insinuar que Suhrawardi equipare o conhecimento filosófico à sabedoria mística, intuitiva e direta, nem que ele desqualifique totalmente os métodos tradicionais da Filosofia ou sua linguagem lógico-racional. Suhrawardi, assim como Avicena, acredita que o conhecimento filosófico (discursivo) é indispensável para a sabedoria, mas por si só não conduz à iluminação. Mas seu aprendizado é um degrau necessário, tal como um estágio, para aquele que deseja atingir a sabedoria real, ou a compreensão da Verdade. Para Suhrawardi, conforme nos informa na Hikmat al-Ishraq, existem diferentes graus de conhecimento que podem ser estruturados hierarquicamente: no primeiro nível ou primeiro estágio temos o estudante ou buscador, que ainda não atingiu qualquer tipo de conhecimento sólido, mas apresenta disposição interna para sua aquisição; Suhrawardi prescreve, para este caso, atividades ascéticas, como jejum de 40 dias e preparação para receber a inspiração. A seguir, temos um segundo estágio em que a Luz Divina penetra o ser; “esta luz toma a forma de uma série de luzes apocalípticas (al-anwar al-sanihah) e por elas é obtido o conhecimento que serve à fundação das ciências reais (al-‘ulum al-haqiqiyya)” (ZIAI, 1996: 450). O terceiro nível é o estágio de construção da ciência verdadeira, e o grau correspondente à Filosofia. É neste nível que o filósofo passa a adquirir o conhecimento ilimitado que é o próprio conhecimento pela iluminação (al-‘ilm al-ishraqi); neste estágio, portanto, faz-se uso da análise discursiva. Por último, temos o quarto nível de conhecimento possível ao Homem, que é onde se instala a sabedoria intuitiva e onde se situa a experiência visionária.

Podemos verificar que, apesar de situar a sabedoria intuitiva num grau acima do conhecimento discursivo, o autor considera, de certo modo, a disposição para a busca, o conhecimento racional e a intuição, como faces complementares da sabedoria e como suas fases sequenciais; a falha em adquirir uma delas inviabiliza a consecução da meta final. A meta é, portanto, o sábio/filósofo que domina ambas as formas de conhecimento, a racional e a experiencial. Vale ressaltar que, para além do conhecimento acessível aos homens comuns, está o conhecimento do Imam, ou Qutb (Pólo). Este é capaz de conhecimento direto proveniente de Allah. Tal defesa da sabedoria especial do Imam por parte de Suhrawardi colaborou com as acusações feitas a ele, que culminaram com o fim de sua vida - uma vez que sua posição foi entendida pelos seus adversários como uma espécie de Ismailismo velado.

O impacto da teoria do conhecimento especificamente iluminacionista, conhecido geralmente por conhecimento pela presença (al-‘ilm al-huduri) não ficou restrita aos círculos filosóficos ou outros círculos especializados, como se deu, por exemplo, o conjunto da lógica proposta pelo autor. O status epistemológico conferido ao conhecimento intuitivo influenciou fundamentalmente a mística especulativa (‘irfan-i nazari) persa, apresentando desdobramentos também na literatura e na poesia. Esse processo de conhecimento por iluminação ocorre, conforme o autor, com todos os seres de luz de todos os mundos. A alma humana, na medida em que se liberta do seu exílio ocidental[9], ou seja, de sua existência confinada ao mundo terreno e sublunar, ao qual não pertence completamente, encontra a verdadeira Fonte Oriental, que Suhrawardi denomina Luz de Glória. Esta é, para Corbin, equivalente ao conceito que o Avesta se refere como khvarnah, e que desempenha uma função fundamental na cosmologia do Mazdeísmo. Do mesmo modo, a antiga religião persa parece ter sido a origem de outros diversos elementos da cosmologia de Suhrawardi, que aparecem em suas obras como alegorias filosóficas. Conforme já indicamos ao expor a sequência de luzes, os yazatas – as entidades angélicas do Zoroastrismo – seriam assim, para Suhrawardi, equivalentes das formas platônicas, entendidas como modelos ou arquétipos das coisas existentes no mundo material.

Tanto para Suhrawardi quanto para Ibn Sina o conhecimento de si mesmo é a chave para todo e qualquer tipo de conhecimento. Aquele que não conhece a si mesmo não pode chegar a conhecer qualquer coisa que seja. O conhecimento intuitivo, direto e imediato de si mesmo deve ser o ponto de partida para todo o conhecimento presencial. O conhecimento pela presença é sempre preferível a qualquer outro modo, uma vez que não se resume à coleta de informação, mas à formação mesma do ser humano enquanto tal e sua transformação, proporcionando um real caminho de retorno através dos mundos e das hierarquias das luzes.

Considerações Finais

Muitos consideram a existência de um antagonismo radical entre as propostas de Avicena e de Suhrawardi. Essa avaliação está baseada nas críticas severas que o segundo faz ao primeiro em diversas passagens de suas obras e no fato de que sua Filosofia é frontalmente oposta aos seguidores “peripatéticos” do primeiro. Certo é que Suhrawardi questiona o fato de Avicena adjetivar sua Filosofia de Oriental, apontando que as diferenças entre a Filosofia daquele e a dos aristotélicos é muito menor do que, talvez ele próprio imaginasse. E também é certo que a distância que separa Suhrawardi da Filosofia aristotélica é bem maior do que aquela que Avicena estabeleceu. Mas, por outro lado, em vários pontos, a Filosofia Iluminacionista de Suhrawardi parece ser uma elaboração de ideias já sugeridas pelo seu predecessor.

Corbin nos diz que a “Sabedoria iluminativa (ishraqi) não contrasta de modo algum com a Sabedoria Oriental (mashriqi) nem se distingue dela: tal sabedoria divina ou teosofia é iluminativa porque é oriental e é oriental porque é iluminativa” (CORBIN, 1995: 50). O próprio Avicena esclarece, no seu prólogo ao Mantiq al-Mashriqiyya, sua relação pessoal com o conhecimento filosófico e com a linguagem com a qual estão acostumados os “filósofos peripatéticos”:

Propusemo-nos à composição de uma exposição sobre os pontos de discrepância entre os pesquisadores [...] sem temer uma discrepância aparente entre nosso [pensamento] e aquilo ao qual estão acostumados os estudiosos dos livros dos [filósofos] gregos; posto que sua atenção em uma única direção, a falta de senso crítico e a inércia por causa do que leram nos livros de vulgarização que redigimos para aqueles que filosofam em geral, entusiasmados com os peripatéticos, fazem com que pensem que ninguém antes foi guiado por Deus ou recebeu Sua Graça. (AVICENA, apud. CRUZ HERNÁNDEZ, 1998: XXIX).

Do mesmo modo, Suhrawardi, em sua obra A Filosofia da Iluminação, vê a necessidade de fornecer o mesmo tipo de explicações, quanto ao fato de antes ter escrito obras totalmente inseridas no modelo aristotélico, ou dos falasifa de seu tempo: “Antes de eu escrever este livro e durante o período em que as interrupções me impediram de trabalhar nele, escrevi outros livros nos quais resumi para vocês os princípios do peripatéticos, de acordo com o método deles” (SUHRAWARDI, 1999: 2).

A oposição mais direta que Suhrawardi faz a Avicena é o fato de que este não teria conhecido a verdadeira Fonte Oriental. A partir de uma das possíveis interpretações literais (geográficas) do termo Oriental, podemos entender que, uma vez que Suhrawardi é profundamente versado na terminologia mazdeísta, ele poderia estar se referindo ao fato de que Avicena jamais teve acesso a essas obras, ou aos textos orientais de sabedoria pré-islâmica, a não ser através daquelas obras desconhecidas que teria folheado na juventude. Entretanto, Cruz Hernandez nos relata que Suhrawardi “considera que Avicena encontrara o caminho que conduzia à autêntica sabedoria, que não é outra senão o Ishraq, mas ficou na porta, sem iniciar o percurso da mencionada via e sem alcançar a meta, tendo sido ele o encarregado de chegar até ela” (CRUZ HERNÁNDEZ, In AVICENA,1998: LXX). Esta passagem revela mais uma proposta de correção e continuidade do pensamento aviceniano por parte de Suhrawardi do que propriamente uma oposição radical.

Ao ler os relatos visionários de ambos os autores, verificamos que há fortes paralelos entre eles, ainda que Avicena não tenha conhecido profundamente as obras orientais e que o acesso ao conhecimento não tenha sido o mesmo para os dois filósofos, uma vez que, aparentemente, as fontes mazdeístas que estavam à disposição do segundo não estiveram ao alcance do primeiro. A Viagem ao Oriente é a mesma, os elementos simbólicos são muito semelhantes; ambos os autores dedicaram-se ao estudo da angeologia e mantêm um objetivo comum: transcender o conhecimento possível através da Filosofia racional e de suas regras e partir em busca de uma sabedoria experiencial intuitiva. “A experiência comum a estes relatos coloca-nos precisamente no caminho de compreender o processo psíquico como uma exemplificação do ta’wil, que faz deste não somente a exegese de um texto, mas também a exegese da alma” (CORBIN, 1995: 54).

Retomando uma questão apresentada no início deste texto, a das relações entre Sufismo e Filosofia Ishraq, acreditamos que, ainda que ambas vertentes compartilhem da predileção pelo método intuitivo para a aquisição de conhecimento, sobra-nos a questão de se podemos situar a pessoa de Suhrawardi no âmbito do Sufismo, em sentido estrito. Isto depende de nosso entendimento da palavra Sufismo. Cremos que não há problema em entendê-lo como um sufi, desde que aceitemos que o termo Sufismo é uma denominação genérica aplicável a qualquer via de conhecimento intuitivo e presencial de expressão islâmica, o que, teoricamente, parece bastante aceitável. Mas, sabemos que, na prática, esta visão talvez seja difícil de ser adotada.

Historicamente, podemos verificar que há outras expressões místicas no seio do Islam que os atuais sufis que se consideram “tradicionais” (aqueles que seguem estritamente uma silsilat determinada e consideram a referência a esta como condição para o reconhecimento de um mestre) dificilmente reconheceriam como irmãos. Além disso, a estrita adesão literal à sunnah, e aos preceitos éticos e dogmáticos do Islam (e que tenham sido desenvolvidos tão somente no seio do Islam), tão apregoada pelos atuais sufis “de escolas” não parece ter impressionado muito nosso autor, uma vez que, em sua cadeia de transmissão (isnad) de portadores da Luz, ao lado dos santos sufis clássicos (que considera como verdadeiros filósofos), aceita grandes nomes de outras religiões orientais, bem como filósofos sem qualquer conexão com o pensamento islâmico, ou mesmo, com o monoteísmo abrahâmico. Esses fatos aproximá-lo-iam mais de uma mística de expressão altamente filosófica, como o Ismailismo, do que propriamente de qualquer expressão sufi ascética. E assim também, em seu tempo, seus detratores entenderam:

Com efeito, ele criou uma nova escola de pensamento neoplatônico com um sabor claramente iraniano, a qual era, até certo ponto, análoga aos desenvolvimentos iniciais do pensamento Ismaili fatímida. Isto, associado às suas alusões ambíguas ao ‘tempo privado de administração’, quando os ‘poderes das trevas ganham controle’ e o correto ‘representante de Deus’ (Khalifat Allah) ou ‘líder divinamente inspirado’ (al-imam al-muta‘allih) está oculto, podem bem ter sido suficientes para provocar seus inimigos entre os ‘ulama’ e eventualmente ter conduzido à sua execução (LANDOLT, 2006: 410).

Não que as denominações sejam, por si, excludentes. Pela busca mística que compartilham, os ismailis costumam entender a si próprios como Tariqa, e no âmbito do Sufismo – concebido no sentido abrangente exposto acima – ainda que jamais se vejam dissolvidos num coletivo esotérico, pelas particularidades que sua vertente xiita apresenta (especialmente em relação ao imamato e pela característica fortemente intelectual ou especulativa que esta corrente mística professa). Para os ismailis, todo ismaili é um sufi, embora nem todo sufi seja um ismaili. Mas é notório que esse entendimento não é consensual por parte de outras correntes islâmicas, especialmente as sunitas, uma vez que muitas vertentes no seio do Islam os enxergam como hereges (desde a Idade Média até nossos dias) e algumas sequer os consideram como verdadeiros muçulmanos. O fato é que jamais saberemos ao certo as conexões de Suhrawardi, e suas simpatias em relação ao Sufismo e ao Ismailismo pertencem ao reino da pura especulação. Mas, tendo em mãos sua contribuição inestimável à Filosofia e ao Pensamento Islâmico, por que teríamos necessidade de rotulá-lo? Afinal, “Allah guia para Sua Luz quem Lhe apraz” (Corão, Nur, 35).

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Notas

[*] Doutora em Ciências da Religião (PUC-SP); pesquisadora do Grupo de Pesquisas em Filosofia Medieval Latina e Filosofia Medieval em Árabe (Falsafa), PUC-SP/CNPq.

[1] Para maiores informações sobre a biografia do filósofo, ver GOHLMAN, 1974.

[2] Foram chamados por alguns autores, como Mehren e Massignon, de escritos místicos; por outros, como Corbin, de visionários, por Cruz Hernández e Nasr de esotéricos e, outros ainda como Michot entenderam estes textos como “escritos sobre o destino do Homem”. As interpretações de Avicena enquanto místico surgem no século passado, sendo devidas principalmente às publicações de Auguste F. Mehren, o qual apresenta um conjunto de textos de Avicena sob a denominação de Tratados Místicos. Posteriormente esta interpretação foi revivificada por Henry Corbin, especialmente em Avicenne et le récit visionnaire. Sobre o tema ver PEREIRA, 2002: 43-54.

[3] Expoente principal desta interpretação racionalista, que entende os relatos visionários de Avicena como uma alegoria centrada em sua mensagem filosófica, o que permite a compreensão, por exemplo, da Narrativa de Hayy Ibn Yaqzán como um resumo de sua teoria do Conhecimento, é Amélie-Marie Goichon. Para maiores detalhes ver GOICHON, 1959.

[4] O conceito de Nur al-Anwar foi associado por muitos estudiosos àquilo que, na linguagem filosófica, ao Primeiro Princípio de Al-Farabi e ao Ser Necessário de Ibn Sina.

[5] Note-se aqui a influência do modelo Neoplatônico. Observe-se também que, apesar da semelhança inicial com o modelo Plotiniano, Suhrawardi se afasta deste modelo ao traçar a associação com os arcanjos e anjos e ao afirmar a existência de um número incontável destas luzes/anjos, assim como das estrelas. Aqui, sua proposta revela sua relação mais direta com o neoplatonismo mais tardio e considerado “pagão”. Suas referências aos “magos” (majûs) em suas obras também reforçam tal conclusão. Vale ressaltar que quando se refere a tais magos não se trata daqueles que recaem no dualismo, afirmando a equivalência dos princípios antagônicos Luz/Trevas, mas podemos associá-los àquelas figuras que SHAHRASTANI (1986) denominou magos originais (al-majûs al-asliyya), e que afirmavam a eternidade e superioridade da Luz.

[6] O tema do mundo imaginal foi exaustivamente abordado por Ibn Arabi. Para maiores detalhes sobre a imaginação em Ibn Arabi, ver CROMBERG, M. (2003). REVER, Nº 4 (2003) pp. 1-19.

[7] O termo é extraído do Corão, Suratu al-Kahf (Sura da Caverna) 18-60: “E lembra-lhes de quando Moisés disse a seu jovem servo: “Não deixarei de andar até atingir a Confluência de dois mares!”.

[8] Nur ‘ala Nur. Referência a Corão, 24,35: “É Luz sobre Luz. E Allah guia para Sua Luz quem Lhe apraz”.

[9] Título de um relato de Suhrawardi: “Relato do Exílio Ocidental”. Traduzido por W. M. Thackston e publicado em SUHRAWARDI, 1982:100-108.