Relatório: Conferência Internacional: Herança Espiritual Japonesa no Brasil - Modalidades de Transplantação Religiosa e Adaptação Cultural desde 1908

Andréa G. S. Tomita (UMESP) []

No ano do Centenário da Imigração Japonesa ao Brasil, entre os dias 24 e 27 de agosto, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a Fundação Mokiti Okada (FMO) realizaram a Conferência Internacional “Herança Espiritual Japonesa no Brasil - Modalidades de Transplantação Religiosa e Adaptação Cultural desde 1908”.

O evento teve o auxílio financeiro da Fundação Japão, FAPESP e Banco Real. Outras instituições, como a Air Canada, Hotel Confort e Center Graph apoiaram o evento, além da ABEJ (Associação Brasileira de Estudos Japoneses) e do CERAL (Centro de Estudos de Religiões Alternativas no Brasil).

A idéia da conferência surgiu por ocasião da visita do professor Michiaki Okuyama, pesquisador japonês que visitou o Brasil em março de 2007, recebido pelos professores Frank Usarski e Steven Engler.

A co-realização de uma conferência internacional cujo tema central era a religião japonesa no Brasil marcou o início das comemorações dos 30 anos de instituição do Programa de Ciências da Religião da PUC-SP, bem como o credenciamento e autorização da Faculdade Messiânica (curso de Teologia) pelo MEC em agosto de 2008. O formato da conferência, dividida em quatro painéis temáticos, foi definido visando o intercâmbio entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros de diversos campos das Ciências Humanas dedicados às religiões japonesas, bem como a efetivação de uma publicação especializada a ser editada em breve.

Paralelamente ao evento aconteceu uma pequena exposição de banners e materiais de divulgação de instituições religiosas de origem japonesa. Responderam positivamente ao convite as seguintes instituições: Omoto, Seicho-no-Ie e Igreja Messiânica. A Fundação Mokiti Okada realizou a exposição “FUSÃO - A sensibilidade japonesa no Brasil”, reunindo pinturas, sumi-ê, gravuras e cerâmicas de diversos artistas nipo-brasileiros como Kazuo Wakabayashi, Manabu Mabe e Tomo Handa, entre outros.

Numa época festiva de comemorações pelo centenário da imigração japonesa ao Brasil, a Conferência Internacional preencheria a lacuna da discussão sobre contribuição dos japoneses no concernente à religião. Para ser mais precisa, diria que o debate iniciou-se em 6 de agosto de 2008, por ocasião do Seminário Internacional “Migrações e Identidades: Conflitos e Novos Horizontes”, que integrou a programação da comemorativa da Universidade de São Paulo. Três dos conferencistas da Herança Espiritual Japonesa no Brasil – os professores Frank Usarski, Rafael Shoji e Ronan Alves Pereira – participaram da mesa redonda “Religião, Cultura e Migração” presidida pelo professor Geraldo Paiva, um dos grandes estudiosos brasileiros sobre a religião japonesa transplantada ao Brasil. Um outro fato recente e digno de atenção foi a publicação de uma edição especial do “Japanese Journal of Religious Studies” sobre “Japanese Religions in Brazil”, para o qual o Nanzan Institute for Religion and Culture (Nagoya) convidou o coordenador da conferência como editor visitante.

No domingo, 24 de agosto, realizou-se a abertura solene com composição de mesa com representantes da PUC-SP, FMO, Fundação Japão, ABEJ e Bunkyo (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa), seguida de conferências dos professores Dr. Alexandre Uehara e Dra. Celia Sakurai, que discorreram respectivamente sobre “Convivência e mudanças: uma reflexão sobre os nipo-brasileiros” e “Estudos das religiões japonesas no Brasil: quase 100 estudos acadêmicos”. Ambas as apresentações possibilitaram uma contextualização da imigração japonesa ao Brasil e seus reflexos tanto em âmbito sócio-cultural quanto em âmbito acadêmico. O professor Uehara enfatizou que embora haja interessantes estudos sobre as religiões japonesas no Brasil, eles ainda são poucos. Contudo, demonstrou otimismo dando o exemplo do copo com água pela metade que, conforme o ponto de vista do observador, pode ser tido como um “copo meio cheio” ao invés de um “copo meio vazio”. Na manhã seguinte, durante o debate subseqüente ao primeiro painel, Uehara lembrou-se de que na época em que iniciou suas pesquisas na área de relações internacionais, sobretudo entre Brasil e Japão, enfrentou várias dificuldades, inclusive a de conseguir orientador.

O primeiro painel versou sobre os problemas e desafios da pesquisa acadêmica sobre religiões japonesas no Brasil, sobretudo, da Ciência da Religião Brasileira. Segundo Usarski, uma das questões mais problemáticas é a falta de uma base epistemológica sólida que garanta a fecundidade das pesquisas neste campo do saber. O despreparo dos alunos, em sua grande maioria egressos de outras áreas de estudo que não as Ciências da Religião, é um grande desafio a ser superado. O reduzido número de cursos de graduação em Ciências da Religião também é um dos fatores que agravam a situação. O professor Ronan Pereira, que retornou ao Brasil recentemente, fez alusão ao fato de que a Conferência era uma oportunidade ímpar de reencontrar antigos colegas que estudam religiões japonesas no Brasil, muitos deles, inclusive, que receberam apoio da Fundação Japão através do seu programa de bolsas a pesquisadores de estudos japoneses.

No painel da tarde, intitulado “Religião e imigração na perspectiva japonesa”, os conferencistas Rafael Shoji e Regina Matsue apresentaram resultados de suas pesquisas sobre a religião entre brasileiros no Japão. Shoji falou-nos sobre as características do Catolicismo brasileiro naquele país além do crescimento pentecostal que, através de redes de assistência, tem suprido um papel social entre os decasségui brasileiros. Matsue fez uma análise comparativa entre messiânicos, católicos e membros da Soka Gakkai. Os debates do dia foram muito profícuos e sinalizaram o interesse crescente dos participantes.

As conferências em inglês foram concentradas na terça-feira. Pela manhã, contamos com a brilhante apresentação do professor Michael Pye, renomado estudioso sobre religiões japonesas e autor de vários livros publicados em inglês, alemão e japonês. Certamente, sua erudição, experiência e simpatia fizeram com que sua fala encantasse a platéia do início ao fim. Sem se prender ao resumo inicial, apresentou diversos exemplos sobre termos japoneses utilizados por novas religiões japonesas no Brasil, numa espécie de exegese aplicada ao tema da transplantação religiosa e suas conseqüências na compreensão do fiel convertido. Na seqüência, Kenneth Tanaka apresentou resultados de pesquisas sobre o Budismo nos EUA como referência para o estudo comparativo sobre religiões japonesas em países ocidentais.

O painel da tarde foi inaugurado por Cristina Rocha, atualmente Australian Research Council Postdoctoral Fellow da Universidade de Western Sydney (Austrália). A antropóloga afirmou que o Sôtô Zenshû foi a primeira escola budista japonesa no Brasil que atraiu membros sem ascendência japonesa. No processo da sua aculturação o Budismo Zen foi idealizado como a religião japonesa quintessencial refletindo a cultura japonesa na sua totalidade. Essa imagem estereotipada foi também importada para o Brasil. Mais recentemente, o Budismo em geral e o Zen, em particular, desfrutou de um ressurgimento devido a popularização da espiritualidade no ambiente da Nova Era. Conforme Rocha, esse campo religioso pluralista tem promovido práticas de “creolização”. Isso significa que imigrantes japoneses e seus descendentes têm aplicado o “vocabulário” religioso brasileiro à sua “gramática” budista enquanto o vocabulário budista de convertidos sem ascendência japonesa alimenta-se de outras sintaxes, inclusive a católica e a oriunda da espiritualidade da Nova Era. Além de Cristina Rocha contamos com a presença de dois conferencistas vindos da Grã-Bretanha. Suzana Bornholdt discorreu sobre as ambigüidades da BSGI, que se apresenta como uma ONG e não como um grupo religioso. Em sua fala, por diversas vezes citou autores presentes à Conferência, como Ronan Pereira e Peter Clarke com quem dividiu espaço do referido painel. Clarke encerraria a conferência discorrendo sobre o fato de que o Brasil funciona como a “porta de entrada” para a expansão das novas religiões japonesas na África e no Ocidente. Falou de um sincretismo reflexivo, não doutrinário, pelo qual essas religiões se adaptaram às mudanças culturais e econômicas exigidas pelo contexto hospedeiro. Uma espécie de adaptação racional em que a instituição religiosa está ciente de que o segredo do sucesso consiste em “adaptar-se sem a perda da própria identidade”.

No quarto dia do evento, reservado para o roteiro cultural, cerca de quinze pessoas, incluindo conferencistas e participantes, além de membros da comissão organizadora visitaram o Solo Sagrado de Guarapiranga. Após visita ao Templo e passeio pelos jardins, além de fotografias tiradas num belo dia ensolarado, o grupo ouviu relato parcial das pesquisas do mestrando Carlos Sendas em fase de preparação para Exame de Qualificação.

É desnecessário reafirmar o quanto a Conferência Internacional representa um marco para o estudo da religiosidade japonesa no Brasil. Embora seu título apontasse para a herança espiritual japonesa no Brasil, foi possível ter uma visão muito mais ampla das imbricações do processo de transplantação de uma religião para um outro país e, em alguns momentos, de uma nova transplantação como é o caso de religiões japonesas levadas à Africa por meio de brasileiros ou até mesmo ao Japão através dos decasséguis.