Igreja, Missão, Antropologia: um balanço do Instituto Anthropos (Alemanha)[*]

Joachim G. Piepke, SVD[**]

1. A Antropologia: Pesquisa de base para missionários

Uma congregação religiosa como a dos Missionários do Verbo Divino (SVD), que há mais de cem anos se dedica cientificamente à Antropologia e às Ciências da Religião, parece, à primeira vista, algo estranho. Essa preocupação com a pesquisa de base – vista como fundamental para a tarefa evangelizadora - custou e custa à SVD pesados investimentos em dinheiro e pessoal. Padre Arnaldo Janssen, o fundador da Congregação, defendeu desde seus primórdios esse tipo de atividade, da qual nasceram posteriormente a Revista Internacional Anthropos e o Anthropos Institut. Mal havia falecido o fundador, em 1909, já começaram a surgir vozes críticas com alguma veemência. Padre Wilhelm Schmidt, o fundador da revista e do Instituto, se viu coagido a responder, em 1911, às queixas do sucessor de Janssen, o padre Nicolau Blum, sobre a falta de ingressos em dinheiro por parte dos cientistas do Anthropos para financiar seu próprio projeto. Ele escrevia assim, em 1911:

Avaliando a importância de nossas atividades, não posso admitir que devamos ser obrigados a ter um tão alto rendimento financeiro. Acho que isso tampouco deveria acontecer porque a nossa Congregação se comprometeu explicitamente em suas Constituições com a ciência, vista como tarefa sua. Se o Reverendíssimo Senhor Padre Superior Geral informar-se em instituições, revistas etc. realmente científicas, constatará seguramente que por toda a parte se pressupõe que obras verdadeiramente científicas não têm condições de produzir benefício financeiro algum. Se, portanto, nossa Congregação quiser realmente cumprir a sua Regra, não deve, então, exigir que este seu tipo de atividade produza um proveito material. Ela tem que se contentar com o benefício ideal que, como penso ter mostrado, é suficientemente grande para que ela possa ficar tranqüilamente sossegada. (SCHMIDT apud RIVINIUS, 2006: 259).

Nicolau Blum, naquela ocasião, anotou o seguinte em seu diário: “Pe. W. Schmidt está aborrecido por causa destas dificuldades de Anthropos. A Anthropos é uma cruz e permanecerá uma cruz para a Congregação do Verbo Divino. A palavra ‘ciência’ soa muito bem, mas decepciona por toda a parte” (Idem: 259-260). Na mesma ocasião, o reitor da principal casa de estudos da SVD naquela época (São Gabriel) em Viena, Padre Hubert Hansen, assim escreveu, em 3 de janeiro de 1911, em seu relatório a respeito de Anthropos: “Padre Schmidt possui um idealismo científico exagerado. Ele espera demais da atividade científica dos missionários. Estes geralmente deveriam ser, em primeiro lugar, apóstolos salvando diretamente as almas” (HANSEN apud Rivinius, 2006: 260, N. 4). Vê-se que essa crítica dirigida à ciência antropológica de ser sem proveito financeiro e de não trazer benefício imediato e visível a uma Congregação missionária e aos próprios missionários vem de longe e permanece como uma constante até hoje.

Não obstante, Anthropos continua até hoje se dedicando à pesquisa de base antropológica. A Enciclopédia Brockhaus define a palavra pesquisa de base como sendo “o estudo ordinário dos fundamentos sistemáticos e metodológicos de uma disciplina científica” (BROCKHAUS, 1989: 224), e ainda: “...pesquisa que trata da revisão e do aperfeiçoamento dos fundamentos cognitivos e das teorias de uma ciência” (Idem, 1988: 468). A Antropologia ocupa-se com a pesquisa das culturas, línguas e religiões dos povos. Dentro do contexto de uma congregação missionária, como é o caso da SVD, ela não tenta, em primeiro lugar, desenvolver novas teorias antropológicas, mas ocupa-se especialmente com as culturas e religiões sob o aspecto da evangelização dos povos que é e será uma das tarefas principais da Igreja Universal.

A ciência a ser revisada e aperfeiçoada é a chamada Missiologia, ou Ciência da Missão, um ramo da Teologia que se ocupa diretamente com as teorias da missão cristã e dos métodos de proclamação do Evangelho entre os povos. Para poder realizar cientificamente esse seu objetivo, a Missiologia deve fundar-se nas ciências empíricas de cultura e da religião, uma vez que são essas que lhe fornecem os fundamentos necessários no que toca às línguas, estruturas sociais, estratégias de vida, concepções do mundo e de Deus dos respectivos povos, grupos ou comunidades. O Instituto Anthropos situa-se nesse contexto das ciências da cultura e da religião e tem por finalidade:

apresentar os traços comuns e diferenças culturais e sócio-psicológicas da humanidade, especialmente no que refere ao campo religioso; entrar em diálogo com missionários e missiólogos, acompanhá-los e ajudá-los em seus esforços de comunicação transcultural e de inculturação missionária. (ANTHROPOS INSTITUT, 1982: 1)

Deve-se hoje evitar o que se praticava sem maiores críticas durante séculos da história missionária do Cristianismo. Ou seja, deve-se evitar a proclamação do Evangelho na forma cultural e língua vernácula de tradições como a greco-romana, a ítalo-germânica e, já mais tarde, a luso-européia. A Bíblia, o catecismo, a liturgia, o ano litúrgico, as estruturas eclesiais e as formas de piedade, tudo se tornou artigo de exportação da cristandade européia. Hoje somos mais sensíveis a essas questões. Demonstra isso o fato de a Bíblia ser o livro mais traduzido do mundo; existem catecismos e liturgias indígenas os mais diversos; as formas de piedade e estruturas eclesiais começam a dar passos concretos na direção de uma diversificação cultural. Porém, como e o quê deveria ser inculturado, se não existirem os conhecimentos científicos relativos aos fundamentos das culturas não-cristãs? O Instituto Anthropos vê aqui a sua finalidade e as de seu múltiplo campo de trabalho.

2. A Revista Anthropos

Omnes Gentes”, “Orbis Terrarum”, e “Gentes et Linguae”: esses eram os títulos que o padre Wilhelm Schmidt, SVD, considerava mais adequados para a revista por ele fundada em 1905. Mais tarde, decidiu-se pelo nome de Anthropos (ou seja: “Homem”). Foi esse o título que apareceu na capa do 1° número de 1906 e que permanece até hoje (Cf. RIVINIUS, 2005: 157-158). Schmidt tinha a intenção e a esperança de que esse periódico se tornasse um fórum de encontros multiculturais e, simultaneamente, um fundamental ponto de apoio para a missão da Congregação do Verbo Divino nos vários continentes onde esta atuava. Os missionários, nessa empreitada, deveriam contribuir com os seus profundos conhecimentos a respeito de povos e línguas ainda desconhecidos ou mal conhecidos. Por outro lado, deveriam receber por essa via um aprofundamento dos princípios teóricos da Antropologia e ampliar seus conhecimentos empíricos sobre os dados desta ciência em todo o mundo. Schmidt queria evitar os erros crassos e os mal-entendidos de tempos passados, quando os missionários aplicavam os seus próprios parâmetros culturais e religiosos a populações que lhes eram estranhas e mal-conhecidas.

Um exemplo clássico de entendimento e interpretação errôneos sobre as religiões indígenas pode ser encontrado nos tempos da conquista latino-americana, nos séculos XVI e XVII. Relatos dos próprios conquistadores revelam sua dificuldade em compreender a realidade cultural e religiosa das populações indígenas que encontravam, descrevendo-as através de termos cristãos e muçulmanos. Assim, a palavra bispo era usada para denominar os sacerdotes indígenas e o termo mesquita para os lugares sagrados dos indígenas. Hernando Pizarro escreve em 1533: “Toda esta tierra de los llanos es mucha más adelante no tributa al Cuzco, sino a la mezquita. El obispo della estaba con el gobernador”. (PIZARRO APUD DEDENBACH, 2007: 124). Embora o bispo católico de Lima, Jerónimo de Loayza, já em 1545 tenha ordenado a seus clérigos que aprendessem a língua dos indígenas e nela pregassem, demorou-se até ao Terceiro Concílio Provincial de Lima, em 1584, até que se traduzisse a doutrina cristã para as línguas quéchua e aymara. A compreensão da religião e da religiosidade indígenas era quase nula. Os fenômenos religiosos alheios eram interpretados a partir de preconceitos da escolástica européia.

O sermão XIX do “Terceiro Catecismo de Lima”, uma coleção de 31 sermões concebidos do padre José de Acosta SJ, mostra claramente a ignorância antropológica dos missionários espanhóis. O sermão traz o título: “Sermon XIX. En que se reprehenden los hechizeros, y sus supersticiones, y ritos vanos. Y se trata la differencia que ay en adorar los Christianos las ymagenes des los Sanctos, y adorar los infieles sus Ydolos, o Guacas”. Guacas eram, para aqueles povos, seres sobrenaturais que determinavam a vida e o bem-estar dos homens. Eles se manifestavam em singularidades naturais como montanhas altas e em miniaturas delas feitas por homens. Representavam o sagrado para os povos andinos porque eram diferentes das realidades comuns.

Lê-se aí: “Assi el diabo embia sus ministros que son estos viejos hechizeros, paraque engañen a los hombres. ¿Vosotros no veys que estos hechiceros, son unos necios y tontos, y miserables, que no saben nada mas de mentir y engañar?” (ACOSTA APUD DEDENBACH, 2007: 132). Essa maneira de chamar os sacerdotes indígenas de ministros do diabo e de demonizar os cultos, templos e artefatos indígenas era muito comum e pode até hoje ser encontrada, principalmente entre missionários evangélicos.

O sermão citado declara que os sacerdotes indígenas foram mandados pelo diabo. Eles se aproveitam economicamente do povo e o enganam. Não se deve subsidiá-los, caso contrário não a pessoa se torna um filho do diabo. As várias formas andinas de expressar a fé no sobrenatural são condenadas: as crenças em rios, as oferendas para apacheta (amontoados de pedras feitos por homens), o arrancar e oferecer as sobrancelhas, a adoração de montanhas ou de pedras no campo para a fertilidade, os vaticínios através de animais sacrificados e as festas andinas. Os espanhóis que não praticam tudo isso e crêem em Deus têm uma vida melhor do que os povos andinos. Os cristãos não adoram uma imagem, e sim Deus; veneram Maria nas imagens, sabendo que não está nas imagens, mas no Céu. Se a imagem for quebrada, Deus e a Virgem permanecerão os mesmos, sem sofrer aniquilação ou sofrimento. Os indígenas, porém, choram quando tal acontece por acreditarem que Maria ou Deus estão dentro das imagens. Os guacas, para o missionário, são uma invenção do demônio que faz troça de Deus. Nesse exemplo pode-se ver claramente como o indígena é mal-interpretado. Ignora-se que também o indígena andino sabia que o espírito sobrenatural não morre quando sua imagem é quebrada. Também para aqueles povos nativos da América, Deus estava no Céu; não vivia nas imagens.

Menos ainda eles tinham como compreender os conceitos de “diabo” e “feiticeiro”, palavras empregadas pelos missionários. Essas palavras e, respectivamente, conceitos, simplesmente não existiam em suas línguas. Os missionários espanhóis empregavam termos quéchuas para expressar realidades que não eram conhecidas pelos indígenas e foi esse equívoco que levou a população indígena a entendê-los mal. De fato, o “diabo” (em quéchua, supay) é um ser sobrenatural ambíguo, um trickster, semelhante ao Exu do Candomblé, e feiticeiro em quéchua é umu = sacerdote. (Cf. DEDENBACH, 2007: 127).

O primeiro artigo do jornal Anthropos tinha por título “Le rôle scientifique des Missionnaires” (“O papel científico dos missionários”). Foi redigido pelo missionário e antropólogo Alexandre Le Roy, Superior Geral dos Padres Espiritanos e Vigário Apostólico de Libreville (Gabão). Ele faz, entre outras, a seguinte observação:

O missionário católico pode ser também o missionário da ciência. Ele o pode ser e dentro de uma certa medida ele o deve ser. Essa afirmação só pode surpreender àqueles que não têm uma idéia exata do papel do missionário na missão (....). O missionário – especialmente o superior da missão – tem que elaborar estratégias que incluem em primeiro lugar o estudo e o conhecimento do país e dos seus habitantes, dos costumes indígenas, das leis, das religiões, das línguas etc. Tal estudo não é alheio à realização da sua missão, pelo contrário, ele é necessário, e quanto melhor o missionário conhecer o ambiente em que trabalha, tanto menos ele errará, tendo, assim, mais chances humanas de obter sucesso. (LE ROY, 1906: 4)

Le Roy, em seu artigo, continua sublinhando a importância para o missionário de conhecer o lugar onde trabalha, incluídas a geografia, a língua, a estrutura social, o sistema de parentesco, a história, as tradições, os mitos e lendas, as poesias, as músicas, as leis, os costumes, a mentalidade, a religião e a religiosidade. A respeito da religião, ele escreve:

Às vezes se diz – e isto é um dos preconceitos que se tem contra nós – que o missionário não sabe conhecer bem e apreciar as religiões pagãs, pois, partindo para combatê-las e convencido de antemão da sua falsidade, como ele pode dar um testemunho imparcial delas? Somos, então, uns fanáticos... Os fanáticos, se eles existem, não deveriam estar no nosso lado. Nós queremos, antes de tudo, ser mais qualificados como aqueles que se dedicam ao estudo das coisas religiosas, da mesma forma que um médico europeu é mais indicado que qualquer viajante para julgar os métodos terapêuticos indígenas: nós somos mais instruídos nessas questões e compreendemo-nos melhor. É nosso campo. Um dia encontrei em Ogoué, Gabão, um jovem viajante letrado e sábio. ”Uma coisa que me faz estranhar entre estes indígenas”, ele me disse um dia, ”é a ausência total de religião entre eles”. Tratava-se dos Adouma que conduziram nossos barcos. ”Você acha?” disse eu. ”Sim. Eu os observo atentamente e nunca os vi fazer um ato religioso.” ”Pois bem”, lhe respondi, ”eu não os observo com a mesma atenção, mas vejo realizarem atos religiosos todos os dias e várias vezes por dia.” Meu jovem sábio começou a rir, pelo fato que ele estava com outro preconceito muito comum contra os missionários que supostamente enxerguem religião em todo lugar... ”Você não percebeu”, juntei, ”que os nossos barqueiros, cada vez que bebem um líquido fermentado, vinho de palmeira ou pinga, começam por verter algumas gotas para o chão? É uma libação”. ”É verdade! Não pensei nisso”. ”Você nunca viu que cada vez que eles pegam um peixe, eles tiram-lhe o coração e o fígado para jogá-los diretamente nas águas do rio? É uma oblação”. ”Talvez tenha razão”. “E finalmente, você nunca percebeu que toda a vez que o nosso barco retoma a viagem, na manhã, o barqueiro pega uma galinha e um pouco diante corta-lhe a cabeça cuidando que um pouco do sangue seja derramado sobre a borda da embarcação? É um verdadeiro sacrifício”. ”É também verdade”, diz o meu jovem viajante, ”eu não havia pensado em tudo isto!”. (LE ROY, 1906: 7-8).

Le Roy conclui observandoi que o missionário deveria levar seus conhecimentos e descobertas ao mundo europeu, quer dizer, ao mundo acadêmico. Assim sua missão ganharia mais estima, mais atenção e mais interesse:

Mas ao missionário falta muitas vezes a formação científica, o espírito crítico, o hábito de pesquisar e de trabalhar intelectualmente o tempo, o dinheiro, a organização, as motivações necessárias... e o órgão indispensável! Eis aqui o órgão! Bom sucesso e uma longa vida a Anthropos. Pouco a pouco virá o resto. E, entretanto, agradecemos ao iniciador corajoso que coloca este instrumento de informação, de instrução e de progresso à disposição dos missionários! (Idem: 10).

Para poder compreender outras culturas e religiões e para poder entender experiências humanas diferentes da nossa é necessário ultrapassar o próprio horizonte. Não é fácil criar raízes numa cultura que não é a nossa. Leva muito tempo antes que possamos nos sentir em casa em terra alheia. Desde nossa infância somos imbuídos do modo de viver e de pensar de nossa cultura de origem. Adquirimos nossos hábitos culturais através do leite materno. Esses hábitos funcionam como um filtro que segrega as impressões que são alheias à nossa sensibilidade, provocando uma rejeição espontânea. Para superar esse mecanismo é primeiramente necessário colocar-se fisicamente no lugar do outro para aprender a reconhecer os seus modos de viver e pensar. Por isso, Wilhelm Schmidt e com ele o Instituto Anthropos foram conscientes do fato de que o encontro com outras culturas e religiões significa sempre uma caminhada longa e penosa.

Schmidt entendeu como nenhum outro esse fato. Em 1905, ele esboçou um “Guia para observações etnográficas” para os futuros missionários (Cf. RIVINIUS, 2005: 289-307). Mandou que o mesmo fosse distribuído entre eles. Ele entendia o termo cultura em uma maneira holística, quer dizer, em um sentido amplo e abrangente. O seu Guia continha 37 páginas e abarcava 25 diversos tópicos culturais. Consistia de uma larga lista de questões concretas e práticas relacionadas à geografia e estatística, à antropologia física, às doenças e métodos de cura, à residência e aos móveis, à alimentação, estimulantes, vestuários, adornos e penteados. Ele recomendava que se pesquisasse com rigor as formas de economia, os meios de transporte, as línguas, os escritos, os modos de contar, os modos de determinar o tempo e a astronomia. Recomendava especialmente campos como as lendas, histórias, provérbios, poesia, música, dança, sistemas de parentesco, casamento, nascimento, situação da mulher e das crianças, divisões sociais e regras sociais. A lista fecha com indicações de como pesquisar questões políticas e relacionamentos sociais, guerra e paz, leis e a administração da justiça, costumes e moral, religião, morte e vida do Além. E ele concluía com a pergunta retórica: “Quem não vê que todas estas questões são de uma importância imensa, cujas respostas são profundamente determinantes para o desenvolvimento da inteira visão do mundo e da vida?” (SCHMIDT apud RIVINIUS, 2005: 270).

Desde o início, a Revista Anthropos exigiu duas coisas dos autores: deveriam fornecer informações locais sólidas, feitas com saber e competência científicos. Fica muito claro, nos escritos de Schmidt, que não era sua intenção publicar um jornal missionário ou uma revista teológica ou missiológica ou, muito menos ainda, uma revista popular para o divertimento do grande público, mas sim uma publicação especializada em Antropologia Cultural e Lingüística. Schmidt percebeu que a revista Anthropos só seria levada a sério pelo mundo acadêmico se o nível das publicações fosse realmente empírico e científico. Ele inaugurou o Jornal como um fórum de discussão, aberto à apresentação dos diferentes campos e orientações na Antropologia e Etnografia. Ele próprio publicou um longo artigo programático no número inaugural, sob o título “A Etnologia moderna”. Nele, convidava etnólogos e antropólogos a colaborarem com o novo órgão. Ele escreve, ao concluir:

Aguardaremos para ver como os representantes das duas escolas [Antropologia Física e Antropologia Cultural] e outros profissionais qualificados reagirão aos pontos e propostas levantados. Repetimos o convite para discutir vivamente estes assuntos e mais uma vez colocamos o nosso jornal à disposição na maneira mais ampla possível (SCHMIDT, 1906: 996).

O eco no mundo acadêmico e missionário foi muito favorável. Arnold van Gennep, um dos grandes etnólogos franceses e conhecidamente um anticlerical, escreveu:

Não creio que alguém vá me acusar de estar do lado de congregações religiosas ou de missionários; mas Anthropos é verdadeiramente um enriquecimento. Em todo caso, é certo que os quatro fascículos até agora editados colocam essa revista entre as publicações etnográficas de primeira grandeza. (VAN GENNEP 1907: 187)

E Hugo Obermaier, paleontólogo de Viena, assim se expressou:

O primeiro volume de ”Anthropos” é na sua totalidade um grande sucesso, de modo que a revista ganhou e já se assegurou um dos primeiros lugares entre as mais importantes revistas científicas do presente (...). De especial valor são as numerosas ilustrações bem-feitas que merecem o máximo de reconhecimento, pois serão apreciadas por antropólogos, etnólogos e geógrafos. (OBERMAIER 1907: 52)

A revista Anthropos foi desde seu início uma revista internacional, aberta a todas as maiores línguas do mundo. O primeiro volume apresentava artigos em cinco línguas modernas (francês, inglês, alemão, espanhol e italiano). Tratava da Indonésia, do Brasil, da África Central e Ocidental, Índia, China e Camboja. Mais tarde foram publicados artigos também em português, holandês e polonês. Schmidt anotou em 1940: “Era a primeira revista que publicou artigos na língua dos autores e tinha a coragem de ser realmente internacional”. (SCHMIDT, 1940: 26) A revista publica até hoje os artigos na língua original dos autores, embora a maioria seja atualmente em Inglês. Nesse sentido, é a única revista verdadeiramente internacional, se comparada com outras do mesmo gênero.

Anthropos está hoje em seu centésimo segundo ano de edição. Continua considerando ainda muito importante a colaboração de missionários. Sente-se obrigada a publicar artigos antropológicos e etnográficos de missionários, mesmo quando isto exige mais trabalho editorial. Durante muitos anos lia-se no frontispício da revista: “Com a colaboração de numerosos missionários”. Depois da fundação do Instituto propriamente dito, em 1931, a frase foi retirada, mas o convite aos missionários e a vontade de publicar suas contribuições permaneceram. Publicaram artigos, nos últimos anos, os missionários Hans van den Berg (Bolívia), Albert T. Dalfovo (Uganda), Adrian Campion Edwards (Nigéria), Hermann Gufler (Camarões), Johannes Hämmerle (Indonésia), Jean Hébert (Burkina Faso), Robert J. O’Neil (Camarões), Paul Schönenberger (Tanzânia), Honoré Vinck (Congo) e José Luiz Izidoro (Brasil). A revista é um arquivo que abraça todas as regiões do mundo e todas as disciplinas da Antropologia. Há espaço reservado tanto para discussões de teoria e métodos como também para extensos relatos etnográficos e documentações. Preserva-se o seu caráter de repositório de material etnológico para bibliotecas e institutos. Tornou-se, depois de cem anos de existência, uma enciclopédia de Antropologia extraordinária e rica. O mundo mudou durante esses dez decênios. Mudou também a Antropologia. Não obstante, a Antropologia continua sendo a ciência da cultura, de uma cultura que se torna cada vez mais plural quanto a seus métodos, conteúdos e fins. A revista Anthropos participa desse desenvolvimento mais geral. Tendo conquistado um lugar reconhecido desde seus primórdios, ela é contada até hoje entre as maiores e mais importantes revistas de Antropologia do mundo.

Mapeando as demais publicações do Instituto Anthropos, vindas à luz nesses cem anos, pode-se dizer que o resultado é impressionante. A revista publicou 3.850 artigos, 11 mil resenhas de livros e outras secções menores, perfazendo um total de 83.400 páginas. Grandes missionários e antropólogos conhecidos nela publicaram seus materiais. A revista conta hoje com setecentas páginas ao ano. Cada volume – dois por ano – conta com cerca de 140 autores, 40 artigos e 120 resenhas. A série monográfica Studia Instituti Anthropos já publicou até hoje 51 volumes e a Série Collectanea Instituti Anthropos, 44 volumes. O boletim semestral Anthropology and Mission conta com 34 cadernos. Em 2006 saiu o índice dos cem anos de Anthropos em CD-ROM (GÄCHTER, 2005: 200).

3. O Instituto Anthropos

Em 1932, escrevia Wilhelm Schmidt:

Todos os que acompanharam o desenvolvimento do Anthropos podem facilmente verificar que a sua fundação surgiu de necessidades. Tampouco seu posterior desenvolvimento foi artificialmente forçado, porque também foi o produto de um crescimento natural - tanto que lhe faltaram por muito tempo uma sistematização efetiva e uma organização clara. Pouco a pouco, colaboradores foram se juntando ao Padre Schmidt, o fundador, tornando-se um grupo editorial tanto da revista quanto das duas séries monográficas [as monografias etnológicas e a biblioteca lingüística]. Quando o fundador se retirou da redação para se dedicar mais às suas próprias pesquisas científicas, a direção foi transferida sem maiores complicações para as mãos do Padre W. Koppers. É compreensível que essa maneira informal de trabalho tenha gerado o risco de cada um trabalhar por si, sem que houvesse uma coordenação efetiva, o que podia deixar em segundo plano certas partes da publicação. E tanto mais isso é verdade que entre as tarefas do corpo de redatores passaram a ser incluídas expedições de pesquisa em diversas partes do mundo. Por essas razões, a idéia de uma coordenação mais sistemática dos trabalhos vem sendo aventada há muito tempo. Essas considerações redundaram no ano passado na conclusão de se fundar o Instituto Anthropos. Tampouco essa instituição é algo incoerente, algo surpreendentemente novo, de modo que ela possa ser considerada realmente uma inovação. É nada mais, nada menos que a estrutura sólida e definitiva daquilo que Anthropos já vinha sendo nos últimos anos, em virtude do curso de seu desenvolvimento natural. A chegada a um quarto século de Anthropos parece ser a data apropriada para se fundar um instituto. (SCHMIDT,1932: 275-276).

O Instituto foi, então, fundado no dia 1° de novembro de 1931, 25 anos depois da fundação da revista. A estrutura modificou-se em 2003, quando se viu que o número dos membros do Instituto havia crescido para 43, dos quais a grande maioria vive e trabalha em lugares muito distantes da atual sede do Instituto (St. Augustin, Alemanha). A coordenação dos 43 membros foi então confiada a um coordenador especial (PIEPKE, 2005: 181-185).

Desde seus primeiros tempos, o Instituto Anthropos possui um caráter próprio. Não é comparável com institutos universitários que possuem grandes recursos financeiros e de pessoal. Surgiu da necessidade de dar uma estrutura mais durável ao grupo da redação constituído ao redor do Schmidt e para poder continuar a tarefa depois de sua aposentadoria. Os missionários foram no início os pesquisadores e fornecedores de material etnográfico. Aos poucos surgiu, mais e mais, a necessidade de formar pessoas dos próprios quadros da Congregação, especializadas nas tarefas da pesquisa antropológica e da produção de Anthropos. A idéia de Schmidt, de pesquisar especialmente os povos mais originais do mundo (em alemão, die Urvölker), supondo que se encontrava entre eles a cultura mais original e, dentro dela, também a religião mais original, acabou por levá-lo a enviar os seus discípulos para os povos tidos àquela época como sendo os mais primitivos. Schmidt escrevia em 1925:

Tinha a intenção de começar a pesquisar primeiramente as tribos da Terra de Fogo, as tribos mais antigas da América do Sul... A (a Primeira) Guerra Mundial, porém, impediu a realização desses planos. Imediatamente depois da mesma (1919 e 1920), meu aluno Padre M. Gusinde, S.V.D., então Diretor do Departamento Etnológico do Museu de Antropologia y Etnologia de Santiago do Chile, conseguiu realizar duas expedições a tribos da Terra do Fogo financiadas com a ajuda de mecenas chilenos, especialmente do arcebispo de Santiago, Dom Crescente Errazuriz. Uma terceira expedição, junto com o padre W. Koppers, seguiu em 1921/22 e uma quarta em 1923/24. Resultado dessas expedições foram os profundos estudos etnográficos das tribos da Terra de Fogo, dos Ona, Yagan e Alakaluf (SCHMIDT, 1925: 718).

Na primavera de 1923, Schmidt estava em Roma ocupado com os preparativos de uma exposição missionária no Vaticano. Numa audiência com o papa Pio XI, ele expôs a urgência e a importância de estudos antropológicos entre aqueles povos. O papa respondeu então espontaneamente: “São documentos da humanidade que não devem se perder. Quando o senhor tiver concluído os preparativos para as expedições, retorne aqui. E se até lá a Divina Providência tiver fornecido meios suficientes, ajudar-lhe-ei” (Idem: 719). De fato, o papa ajudou de tal modo que Schmidt pôde realizar quatro expedições: o padre Morice Vanoverbergh, CICM, um missionário de Scheutveld, conduziu uma expedição de estudos entre os negritos do nordeste de Luzon, nas Filipinas; o padre P. Schumacher, da Congregação dos Padres Brancos, investigou os pigmeus em Ruanda e países vizinhos; o padre. P. Schebesta, SVD, conduziu uma expedição para os Semang e os Senoi das ilhas Molucas e uma segunda para os Kubu, da Sumatra (Ibid.: 719-722). Paul Schebesta pesquisou nos anos seguintes os pigmeus de Ituri e Efe, no Congo Belga, bem como os bosquímanos do Calahari e os negritos da Ásia. Koppers e Jungblut estudaram, nos anos de 1938/39, os Bhil e outras tribos da Índia; Georg Höltker fez uma expedição de estudos para a Nova Guiné nos anos de 1936-1939; Arndt, Bader, Verhoeven e Verheijen exploraram as culturas da ilha de Flores, na Indonésia; Vroklage e Wortelboer as da ilha de Timor, na Indonésia; Hermanns estudou povos do Nordeste de Tibete e Índia; Cwick, Eichinger, Frick e Schröder pesquisaram as culturas dos habitantes do Nordeste da China; Eder, Maringer e Groot realizaram estudos no Japão; Huber fez pesquisas na África Ocidental e no Congo Belga; Saake e César elaboraram pesquisas no Brasil; Sieber realizou estudos entre os índios Saulteaux da América do Norte; e, finalmente, Rahmann, que fez estudos nas Filipinas (RAHMANN, 1956: 7-10).

Esse modo de agir não mudou até hoje. Os membros do Instituto Anthropos procedem de diversas nações e pesquisam, publicam e ensinam em todo o mundo. O ponto principal não é mais a pesquisa entre os povos chamados originais, mas sim o estudo das mudanças culturais e religiosas em um mundo globalizado. Somente quatro dos atuais 45 membros do Instituto residem na sede do Instituto (St. Augustin, Alemanha). Os restantes 41 têm suas tarefas nos diversos países em que atua a Congregação. Muitos são docentes em Universidades. Outros fundaram institutos próprios como o Indian Institute of Cultures, de Mumbai, o Centre for Applied Cultural Research Sanskriti de Indore, o Centre for the Study of Religion and Culture Candraditya de Flores, o Melanesian Institute de Goroka, Nova Guiné, o Tamale Institute of Cross-Cultural Studies de Gana/África, o Centre d’Études Ethnologiques de Bandundu, no Congo/África. No momento, estuda-se a reativação do Instituto Anthropos do Brasil. A temática das pesquisas varia de país a país e de região a região. Os membros contribuem para as publicações do Instituto em St. Augustin.

Projetos comuns como nos tempos de W. Schmidt não são mais viáveis. Porém, prevalece até hoje a tarefa comum, já esboçada por ele, de buscar conhecer com maior profundidade as culturas e religiões do mundo para poder descobrir nelas as sementes da fé em Deus e de um mundo mais justo e fraterno. Os membros atuais do Instituto trabalham e fazem as suas pesquisas em diferentes continentes. Alguns exemplos atuais podem bem demonstrá-lo. O padre Pedro Nawrot vive e trabalha na Bolívia. Ele é professor de Música Sacra e Teologia Pastoral e se dedica à reedição das músicas antigas das reduções jesuíticas da Bolívia. Como diretor do Festival Internacional de Música Barroca “Misiones de Chiquitos” editou até hoje 25 volumes de música das antigas reduções entre os Chiquitos e Moxos da selva boliviana. Várias gravações dessas músicas em La Paz, Chicago e Londres tiraram do esquecimento este tesouro cultural e religioso dos indígenas e manifestaram a habilidade artística dos mesmos (NAWROT, 2004). O padre Peter Knecht vive e ensina no Japão. Ele edita a revista “Asian Folklore Studies”, do Instituto Antropológico da Universidade Nanzan, em Nagoya. Pesquisa o xamanismo entre os mongóis da Mongólia, tendo assistido recentemente aos ritos de iniciação de um novo xamã. O padre. Antoon Postma vive há décadas entre os mangyano nas montanhas da ilha de Mindoro, Filipinas. Fundou o “Mangyan Research Center” e o “Mangyan Heritage Center” para garantir a sobrevivência da língua e cultura desse povo. Editou um dicionário da língua mangyana e dois volumes de um “Handbook of Mangyan Culture”. Seus esforços de manter viva a cultura desse povo não se restringem somente às obras científicas, mas também à promoção de projetos concretos de formar mangyanos talentosos no ensino, agricultura, enfermagem etc. Ajudou à juventude mangyana a apresentar a sua rica cultura em colégios fora da região em feiras exibindo a tecnologia tradicional do povo. O padre Alexander Rödlach pesquisa a AIDS entre a população do Zimbábue, relatando e interrogando as superstições do povo relacionando a doença com os maus espíritos e feiticeiros. Publicou os seus estudos num primeiro volume intitulado “Witches, Westerners, and HIV: AIDS and Cultures of Blame in Africa”. Está trabalhando numa publicação em que apresentará peças de arte moderna pelas quais os africanos expressam a dor, a impotência e o desespero frente a esta epidemia (RÖDLACH, 2006).

O ceticismo dos antropólogos e cientistas de religião frente aos missionários e à suposta destruição de culturas pelos mesmos é um dos preconceitos latentes que não se deixam erradicar até aos nossos dias. Margaret Mead escreve na sua autobiografia (1978):

…primeiramente, o material do qual a nova ciência dependia desapareceu muito rápido e para sempre. Encontravam os últimos povos primitivos, missionaram-os e cumularam-os com utensílios novos e idéias novas. As suas culturas primitivas teriam logo mudado irreconhecivelmente (MEAD, 1978: 102).

Os cientistas de religião temiam que os sistemas religiosos dos povos numericamente menos expressivos fossem condenados a desaparecer pelo contato com as religiões universais. Hoje se percebe que a flexibilidade dos povos era maior e “mais inteligente” do que se supunha, e que eles conseguiram conservar por grande parte as suas tradições religiosas e integrá-las nos novos sistemas universais.

Um exemplo desta flexibilidade é descrita pela antropóloga Susanne Schröter no seu artigo “Adat e a missão católica em Flores, Indonésia”. Esse processo de hibridização existe entre sistemas religiosos. Onde religiões universais com pretensão missionária se estabeleceram nos séculos passados, elas se adaptaram às condições locais e se modificaram a si mesmas. Cultos sincréticos apareceram, paralelismos que permitiram aos agentes de usar a religião tradicional ou a nova conforme o esperado maior proveito. Sistemas cristãos de pensar e agir, semelhante a sistemas muçulmanos, foram indigenizados no decorrer das atividades missionárias e tornaram-se compatíveis com as condições locais e visões do mundo dos indígenas. Os missionários do Verbo Divino assumiram a missão de Flores em 1913. O Catolicismo tornou-se então a religião dominante pelas atividades dos padres, irmãos e irmãs que desenvolveram o sistema de educação, da agricultura, das enfermarias e farmácias. Schröter escreve literalmente:

Empreendimentos missionários exigem, tanto por parte dos membros da congregação missionária quanto pela população local, reinterpretações e modificações da doutrina e das atividades religiosas para fazê-las compatíveis com a religião do outro. O resultado é na maioria dos casos uma rede de complexos cerimoniais na qual os ritos importados do Ocidente e os indígenas tradicionais se combinam para ser formas totalmente novas. Esse fato pode ser observado também em Flores. Já antes do Concílio Vaticano II a atividade missionária dos padres, irmãos e irmãs do Verbo Divino não podia ser considerada uma simples sobreposição ou até uma erradicação da religião e cultura autóctones. Os missionários eram muitas vezes impressionados pelos costumes locais e atuaram como lingüistas e etnólogos. Seus artigos e monografias são estimados como obras básicas até hoje e usados de leitura obrigatória nas escolas florineses. O saber indígena não devia ser conservado simplesmente num museu ou numa etnografia. Correspondia à política da Congregação conservar, promover ou interpretar num sentido cristão as características culturais julgadas positivas. Assim se definiu, por exemplo, o espírito Déva entre os Ngada como uma manifestação prematura de um Deus Maior no sentido da Doutrina dos Círculos Culturais [Kulturkreislehre] de Wilhelm Schmidt. Deva foi identificado com o Deus cristão. Semelhantes tentativas de descobrir um monoteísmo original em Flores podem ser comprovadas também entre outras etnias. … Permitiu-se que se desenvolvesse um sistema paralelo em que uma parte explicitamente cristã com um complexo ritual próprio (Páscoa, Natal, Pentecostes, as missas dominicais etc.) estava lado ao lado de uma parte tradicional. A população se aproveitou profundamente dessa opção. Partes do adat [os costumes tradicionais] foram realizadas separadamente, toleradas pela Igreja, outras ficaram em segredo e não foram praticadas diante dos olhos dos missionários. Estes mostraram pouco interesse em desvendar os últimos segredos ocultos das comunidades locais e se contentaram com aquilo que lhes foi mostrado. … À separação em dois mundos contida implicitamente nesse modelo corresponde uma distinção terminológica entre agama (a Religião, neste caso o Catolicismo) e adat (a cultura tradicional incluindo a religião tradicional) (SCHRÖTER, 2007: 186-188).

E ela continua:

Os Ngada são bons cristãos que cumprem os seus deveres como membros da Igreja Católica com um certo entusiasmo. Ao mesmo tempo, eles são bons tradicionalistas que não temem mais que o castigo dos antepassados que siga infalivelmente pela violação das leis antigas. Como a Igreja prescreve obrigatoriamente a realização de certas cerimônias, assim também os antepassados exigem a execução de ritos determinados. Para satisfazer ambos poderes, os Ngada desenvolveram um sistema religioso paralelo pelo qual eles tentam a combinar as vantagens da religião cristã com as do seu sistema religioso tradicional (Idem: 191).

Esse processo de adaptação mútua não era e não é sempre isento de conflitos, mas, por um lado, modernizou de um lado a religião tradicional e, por outro, levou a uma indigenização do catolicismo. Os florineses não são vítimas passivas de um imperialismo histórico, mas agentes autônomos que sabem participar da vida moderna sem perder suas próprias raízes étnicas e culturais.

Não possuímos mais uma personalidade como a do padre Wilhelm Schmidt, que possa defender com peso e convicção a finalidade da Antropologia em uma congregação missionária. Surgem mais e mais vozes que querem ver um instituto que lhes forneça receitas prontas para a tarefa missionária, considerando supérfluas as atividades científicas da Antropologia. Arnold Burgmann se queixava de tais tendências já em 1966 com as palavras:

Vozes críticas exigem, pois, uma nova orientação em vista das necessidades do tempo e das tarefas que se apresentam a uma comunidade missionária como essa à qual pertence o Instituto Anthropos com a sua revista. A Etnologia deveria ser então uma forma de Missiologia, uma Etnologia ‘aplicada’ ao serviço de interesses missionários, sendo a tarefa principal do Anthropos as Ciências da Religião e a Sociologia... A idéia original e também a história do Anthropos mostram com clareza que a correspondência (teológica) entre Verbum (Societas Verbi Divini) e Homo (Anthropos) foi originalmente decisiva na [motivação da] fundação do Anthropos (BURGMANN, 1966: 1).

O padre W. Schmidt nunca pensou numa Etnologia aplicada ou numa Ciência da Religião missionária. Ele nunca pensou em fundar um Instituto para elaborar receitas missionárias eficazes. Para ele, a Antropologia e a Lingüística eram disciplinas indispensáveis à pesquisa de base, sem as quais o anúncio genuíno do Evangelho a outras culturas não lhe parecia possível.

O Instituto Anthropos resistiu até hoje a todas as tentativas superficiais de uma reorientação missiológica e continuará, no futuro, no caminho de sua herança antropológica. A estruturação atual da Igreja Católica, como também a das Igrejas Protestantes tradicionais, está muito longe de estar preparada e poder ser chamada de inserida nos povos do mundo. O hoje forçado processo de globalização, presente em todas as esferas da vida humana, exige, por outro lado e urgentemente, um reforço da identidade cultural dos povos e das pessoas de outras culturas. O tão desejado diálogo com as religiões e culturas só pode acontecer se as outras culturas forem conhecidas e reconhecidas nas suas particularidades (PIEPKE, 2005: 189-190). Eis aqui a tarefa futura dos antropólogos da Congregação do Verbo Divino: resistir às tendências mundiais de uniformidade cultural e hegemonias inaceitáveis; resistir às tendências centralizadoras das igrejas ou de outras comunidades religiosas; abrir os olhos para os valores das tradições culturais; e acompanhar as mudanças inevitáveis. Essas serão, a meu ver, as quatro pedras angulares da Antropologia verbita.

Bibliografia

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Recebido: 24/05/2007
Aceite Final: 28/06/2007

Notas

[*] Palestra pronunciada no Simpósio Docente do Programa Pós-Graduado de Ciências da Religião - PUC de São Paulo – 24 de Maio de 2007

[**] Prof. Dr. Joachim Piepke é Diretor do Anthropos Institut, Sankt Augustin, Alemanha.