Facetas da relação entre Budismo e Judaísmo

Entrevista de Frank Usarski com Nathan Katz[*]
Tradução: Carlos Sendas[**]

REVER: O senhor poderia nos dar uma visão acerca dos princípios “dogmáticos” e dos recursos tradicionais relevantes (sutras etc.) que têm servido como referências para o encontro judaico-budista?

KATZ: O princípio budista ensinado por Buda estabelece que, onde quer que o Nobre Caminho Óctuplo seja encontrado, há seu Dharma. Isso significa que qualquer religião, até o ponto em que ensine aqueles princípios, estará de acordo com o Budismo. Do lado judaico nós temos a leitura rabínica da Torá, que ensina que há sete mitzvoth[1] básicos dados a Noé, que são obrigações para todas as pessoas e, até o ponto em que um professor adere a estes princípios, o sistema é “correto” e não idólatra, e é compatível com o Judaísmo.

REVER: A partir de que momento ou período histórico o encontro judaico-budista se tornou manifesto e quais as circunstâncias geográficas e sócio-culturais sob as quais encontros recentes ocorreram?

KATZ: Existem vagos indícios dos tempos antigos e clássicos. Por exemplo, o Mahoshadha Jataka e o bíblico Livro de Reis possuem a idêntica história do julgamento de um sábio rei acerca de duas mulheres que alegavam ser delas a mesma criança. A lenda budista Jataka é sobre o Rei de Varanasi (Benares), uma encarnação anterior de Buda, e a história bíblica é atribuída ao Rei Salomão, o mais sábio de todos os seres humanos. A história é a mesma.

Mas quaisquer contatos judaico-budistas até o período moderno são obscurecidos por problemas terminológicos. A partir do Talmude, qualquer coisa da Índia é chamada “hindu’a” – então, nunca é claro se algo é budista ou hindu. Realmente, isso reflete não só uma estranha percepção incorreta da Índia, mas também que, dentro da Índia, as divisões religiosas são, em muitos sentidos, um fenômeno recente. Por outro lado, os textos indianos se referem a todos os estrangeiros como “yavanas” – literalmente, “gregos” (é a mesma palavra em hebraico!) – de fato, todos os estrangeiros. Assim, quando vemos os textos, nunca podemos estar certos acerca de quem está sendo discutido. Tudo que temos é “hindu’a” e “yavana”.

REVER: A relação entre o Budismo e o Judaísmo sofreu modificações no curso da história, por exemplo, em termos de uma maior intimidade mútua e/ou rejeição (talvez unilateral)? Em caso afirmativo, quais desenvolvimentos intra-religiosos (dentro do Budismo/Judaísmo) contribuíram para as mudanças das relações entre as duas religiões?

KATZ: Nós temos indícios intrigantes em relatos de viagem durante o período medieval. Al Beruni, viajante muçulmano do século IX, escreveu acerca de uma grande presença judaica em Kashmir (Caxemira). Marco Pólo escreveu que o imperador chinês tinha conselheiros judeus. Sir Thomas Row, embaixador britânico na corte Mughal, descreveu influências judaicas naquela corte. E Benjamin de Tudelah, viajante judeu do século XII, descreveu uma grande comunidade bem próxima ao rei de Kandy, no Sri Lanka – mas este relato está quase certamente errado.

Os judeus europeus estavam interessados no Budismo mais como europeus do que como judeus. Isto é, o Budismo era um interesse cultural na Europa secularizada, e a maioria dos judeus europeus era secularizada. Nós temos uma tradução yiddish do Dhammapada, por exemplo, e Martin Buber e outros pensadores seculares judeus discutiram o pensamento budista exaustivamente. Naqueles dias, o encontro era basicamente textual. Sabemos de antigas comunidades judaicas na Índia, e comunidades da era colonial em Burma, Japão, China etc. Mas não temos evidência de quaisquer interesses inter-religiosos da parte delas – com uma exceção. Um cabalista yemenita que viveu em Darjeeling, nos Himalaias, escreveu um texto tentador e muito difícil em que esboçou paralelos entre a kabbalah e o tantra tibetano, especialmente práticas mágicas. Eu estive trabalhando nesse material por algum tempo, mas francamente está além de minhas habilidades.

O verdadeiro encontro entre judeus e budistas começa, paradoxalmente, durante a era do Holocausto. Um número de judeus alemães rumou para a Índia, alguns em busca de refúgio e outros de Iluminação. Entre eles estavam alguns que se tornaram monges e monjas budistas muito influentes. Eles influenciaram o Budismo, especialmente na articulação de um Budismo socialmente ativista e no movimento internacional das mulheres budistas. Posteriormente, este fenômeno dos “JuBu” (um judeu que pratica o Budismo) produziu alguns dos mais significativos mestres budistas do século XX. Entre eles estão Nyanaponika Mahathera, Bhikku Bodhi, Ayya Khema, Lama Anagarika Govinda, Philip Kaplau Roshi, Bernie Glassman Sensai, Jack Kornfeld, Joseph Goldstein, Sylvia Boorstein, Lama Surya Das, Harvey Aronson, Daniel Goleman, Thubten Chodrn, etc. Ao mesmo tempo, acadêmicos ocidentais do Budismo incluem um número desproporcional de judeus. Essa grande quantidade de professores e acadêmicos judeus de Dharma conduziu ao primeiro encontro semi-oficial entre budistas e judeus, o diálogo judaico-tibetano de 1990 recepcionado por S.S. Dalai Lama e gravado em o “O Judeu no Lótus”, de Rodger Kamenetz.

REVER: Há diferenças entre as escolas budistas em termos da percepção budista acerca de uma reação contrária ou de colaboração com o Judaísmo?

KATZ: Não, apesar de o encontro tomar diferentes formas em contextos culturais diferentes. Por exemplo, os tibetanos são muito interessados na sobrevivência judaica como uma comunidade religiosa e cultural apesar da perda de sua terra natal. Assim, para eles, a diasporização está no topo da agenda. Os budistas no Japão têm outros tópicos, alguns bem insípidos, como os descritos em “O Plano Fugu” pelo antigo rabino-chefe do Japão, Marvin Tokayer, acerca de como os líderes japoneses quiseram a colaboração judaica em seu esforço de guerra. David Ben Gurion e U Nu, de Burma, tiveram um relacionamento muito significativo, que versou sobre o desenvolvimento de seus novos países e sobre uma reforma não-clerical para secularizar suas religiões. Aqui em Miami, quando a comunidade tailandesa local quis construir um templo, houve forte oposição. O líder da associação rabínica local liderou um esforço para obter a aceitação do templo pelo conselho de zoneamento local e logrou sucesso. Nos Estados Unidos, falando de modo geral, freqüentemente o material básico para o encontro judaico-budista está em como desenvolver-se na sociedade americana ao mesmo tempo em que se preservam valores e tradições nativos.

REVER: Está o diálogo judaico-budista parcialmente institucionalizado em termos de reuniões especiais ou regulares ou, ao menos, contextualizado em reuniões inter-religiosas de um objetivo mais amplo? Se há reuniões especiais, quem é responsável pela organização destes eventos? Quem está engajado nessa espécie de diálogo (representantes individuais como o Dalai Lama, associações ou comunidades religiosas específicas)?

KATZ: Essas reuniões tornaram-se quase rotina ultimamente. O Dalai Lama reuniu-se com o rabino-chefe de Israel em Jerusalém e há muitas sinagogas recebendo diálogos judaico-budistas. Entretanto, é muito mais freqüente o parceiro do diálogo budista ser um JuBu do que um budista de uma cultura budista. O mundo institucional judaico ainda tem muito que aprender acerca dos budistas e do Budismo, com toda sua diversidade cultural e étnica. Em sua maior parte, os judeus – como a maioria dos ocidentais – são familiares somente ao que tem sido chamado de “Budismo de casca de noz” (“Buddhism in a nutshell[2]), “Budismo de exportação” ou “Budismo Light”, pelos quais quero dizer uma simplista visão da vida, da prática da meditação e sensibilidades New Age. Muitos mestres budistas, à procura de seguidores, tornam-se cúmplices dessas expectativas. O Budismo é, na verdade, um rigoroso sistema intelectual, com um código de vida muito exigente, com uma grande diversidade de enfoques.

REVER: É possível identificar os principais temas do diálogo atual (por exemplo: crise ambiental, o papel da mulher, pena de morte, eutanásia)? Em caso afirmativo, em quais aspectos os parceiros do diálogo concordam/discordam?

KATZ: Todos são tópicos viáveis para discussão, mas não existe acordo dentro do Judaísmo ou dentro do Budismo; deixemos isso só entre eles. Não há nenhum enfoque budista sobre o papel da mulher, por exemplo, assim como não há nenhum enfoque judaico. Eu mencionei um número de tópicos de interesse para os budistas: diasporização, modernização, como combater o terrorismo, desenvolvimento econômico, manutenção de valores etc. Os judeus freqüentemente são mais interessados em meditação, espiritualidade e afins. Apesar de agendas tão diferentes, diálogos frutíferos são possíveis enquanto um não entra no diálogo com tantos preconceitos com o que o outro tem a oferecer. Abertura, em outras palavras, é a chave para um encontro genuíno.

REVER: O senhor teria comentários adicionais, por exemplo, no que se refere ao possível futuro do encontro judaico-budista?

KATZ: O encontro judaico-budista é uma via de mão-dupla. Os judeus têm coisas que desejam aprender com os budistas, é claro, mas é igualmente verdade que os budistas têm coisas que querem aprender com os judeus!

Recebido: 10/05/2007

Notas

[*] Dr. Nathan Katz é professor em Ciência da Religião na Universidade Internacional de Florida, Miami, EUA. Mais detalhes veja http://www.indojudaic.com/.

[**] Mestrando em Ciências da Religião da PUC-SP.

[1] Coleção de 613 mandamentos (preceitos) da Lei Judaica (N.T.).

[2] N.T.: Nutshell, em sentido figurado refere-se a “grande condensação”, em alusão a uma cópia da Ilíada, mencionada por Plínio, que era tão pequena que cabia na casca de uma noz. Online Etymology Dictionary.