Religião, Sensibilidades Religiosas e Pós-Modernidade
Da ciranda entre religião e secularização

Rodrigo Portella[1]

Resumo

O artigo visa compreender as relações paradoxais existentes entre o processo de secularização da sociedade e das consciências e o crescente vigor e aumento no número de manifestações e grupos religiosos. Quais os novos significados da religião em uma sociedade secularizada? Quais os influxos da secularização sobre as novas (e antigas) formas de religião? São perguntas que norteiam o texto.

Palavras-chave: Secularização, religião, novos movimentos religiosos, sociologia da religião.

Abstract

The article aims at to understand the existing paradoxical relations between the process of secularization of the society and the consciences and the increasing vigor and religious increase in the number of manifestations and groups. Which the new meanings of the religion in a secular society? Which the influxes of the secularization on new (and old) the forms of religion? They are questions that guide the text.

Key words: Secularization, religion, new religious movements, sociology of the religion.

Introdução

A partir da discussão sobre a secularização e seu aparente contraponto, isto é, uma revivescência religiosa, qual rumor de anjos - para usar a expressão de Berger - que se faz cada vez mais ouvir, não mais como rumor, mas como voz impostada - busco fazer um modesto balanço sobre as relações entre secularização e viço religioso no Ocidente contemporâneo (particularmente no Brasil). Diante do debate atual que pende entre “aqueles que acreditam em um reforço da secularização e, na direção oposta, aqueles que vêem esse fato [novos movimentos religiosos] como irrupção do sagrado e 'reencantamento do mundo'” (CAMURÇA: 2003, p. 56), procuro argumentar, a seguir, tomando partido daqueles primeiros. Faço essa opção não somente a partir das argumentações teóricas como, também, de minha percepção de campo sobre o assunto, embora, aqui, o texto se revista de um caráter mais teórico. Assim, inicio expondo a questão central - que se revelará paradoxal - sobre as relações entre sociedade contemporânea e religião.

1. Colocando a questão em foco

A secularização, rebento da Modernidade, convive, ora de forma paradoxal, ora de forma integrada, na lógica da Modernidade. Para maior clareza neste início é necessário e desejável esclarecer, brevemente, quem é o sujeito que surge a partir da Modernidade.

A Modernidade se caracteriza pela colocação do indivíduo como medida e como fim. O ser humano, em sua individualidade e racionalidade, de certa forma substitui o centro anterior, a saber, um cosmo sagrado, com suas derivações encompassadoras de sentido e norma, gerido por instituições religiosas que davam a coesão social e cultural e que alocavam o centro de sentido para além do ser humano. A Modernidade, no entanto, coloca o ser humano como medida de si, de suas relações e do universo, a partir de uma lógica cartesiana e de uma moral kantiana. Já não seria mais o cimento da coesão cultural-social ditado pela religião o que daria o sentido ordenador da realidade e do social, com suas mediações, mas doravante a própria racionalidade, a própria independência de escolha racional centrada no indivíduo autônomo.

Essa nova concepção ordenadora da realidade e do indivíduo afeta sociedade e religião. A religião, particularmente compreendida em suas instituições oficiais de representação, perde poder de dar sentido e dar "as cartas" no mundo moderno[2]. Particularmente no mundo ocidental, o Cristianismo, principalmente o de viés católico, mas não apenas ele. A religião/instituição (seja católica ou alguma protestante, especificamente) já não tem a hegemonia definidora no campo da cultura, do Estado, do Direito, do lazer e entretenimento, enfim, das instâncias reguladoras do cotidiano. Hoje, a religião (no singular ou no plural de instituições religiosas em geral) é coadjuvante no debate sobre temas candentes, como ecologia, bioética, etc. (MARTIN: 1996, p. 33-34). Ou, conforme o veio provocador de Pierucci, é “segundo violino”. A laicização do Estado, a separação das esferas civil e religiosa, a laicização do Direito, do lazer, da música, das artes e, particularmente, da ciência, fizeram com que a religião se deslocasse de seu centro irradiador de impacto de influência e poder de coesão totalizante sobre a vida social e cultural, e, portanto, sobre a vida e as escolhas do indivíduo (PIERUCCI: 1997). Mais que nunca o indivíduo torna-se livre, autônomo também na esfera simbólica, tornando a identidade social (inclusive religiosa) algo privado, embora tal liberdade pouco tenha a dizer e influenciar, em suas escolhas éticas ou cognitivas, o todo social e as instituições sociais (MARTELLI: 1995, p. 302). É o preço a pagar pela própria fragmentação, atomização e autonomia no cenário social.

Aliás, num mundo não secularizado, de aura religiosa, "escolhas" é um termo que não tem muito sentido, pois se insere, privilegiadamente, justamente no contexto moderno secularizante. Enfim, a religião, entendida aqui principalmente como instituição religiosa reguladora tradicional, já não tem o poder de regular o universo cultural, social e pessoal, perdendo sua marca de definidora da totalidade social e individual, do mundo, enfim. Os indivíduos, contudo, continuam a viver dimensões religiosas, agora bem particulares, a partir da própria lógica da Modernidade: a autonomia racional (e também emocional) em compor o seu mundo, a sua totalização e sentidos a partir - tantas vezes - dos fragmentos, uma vez que na sociedade secularizada a religião não mais consegue estabelecer esta totalização. Assim, a religião não termina com a secularização, mas ganha novas formas e contornos, novos sabores, numa dinâmica em que, ao mesmo tempo em que se esgota, se dilui, renasce, ressurge e se difunde (HERVIEU-LÉGER: 1993, p. 36). Há uma recomposição da religião sob novas formas, mas com a perda de controle dos grandes sistemas religiosos que abarcavam o todo social (CAMURÇA: 2003, p. 63).

2. Focalizando um possível conceito de religião na Modernidade secularizada

Para um sacerdote ortodoxo vinculado a uma instituição religiosa, falar que a religião se encontra viçosamente imbricada no seio de uma sociedade secularizada, de desregulação do religioso institucional e afeita a bricolagens pessoais, poderia soar como absurdo, pois tal quadro significaria justamente o oposto à religião, entendida antes como recurso ao dogma, à ortodoxia e à disciplina normativa institucional. Mas, aqui, religião tem sentido além. Entendo que religião, na contemporaneidade de sua vivência pelo indivíduo racionalizado da Modernidade, não é tanto uma substância que depende de formulação e fidelidade institucional, nem mesmo de uma apreensão do sagrado como algo extra nos, existente por si e apreensível pelo viés de certos ritos e mitos disseminados pelas religiões institucionais. Prefiro falar da religião como um “fundo mágico-religioso” (MENEZES: 2003, p. 111, nota), daquilo que fornece sentido e eficácia simbólica para as pessoas, para indivíduos em suas subjetividades. Aquilo que opera significativamente na vida das pessoas, dando-lhes sentido, nomos, seja pelo viés da ética ou obediência a um ser divino, de uma incorporação a mitos e ritos que ordenem o seu cosmos particular, seja através de manipulações que constranjam o sagrado à eficácia simbólica que a pessoa deseja[3]. Léa Perez prefere falar de “sensibilidade religiosa, ou mais apropriadamente ainda, sensibilidade mágico-religiosa” (PEREZ: 1996, p. 7). Entrementes, numa ação nomizadora ou de eficácia para a vida, aí se inscreve isto que chamo de religião, um “empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado” (BERGER: 2004, p. 38). Sendo que, na Modernidade, esse "cosmo sagrado" tende a ser cada vez mais pessoal - "micro-cosmos"(?) - ou mesmo não convencionalmente sacro. Sínteses pessoais.

Se tal estabelecimento de um "cosmos sagrado", de sentido ou eficácia para a vida estava, dantes, ancorado nas instituições religiosas, na Tradição, a Modernidade secularizadora, particularmente a contemporaneidade, reverte este quadro. Plausibilidades, legitimações do mundo e teodicéias me parecem cada vez menos elementos atrelados exclusivamente à regulação oficial de uma instituição na vida das pessoas. Os indivíduos até buscam nas tradições/instituições esses elementos[4], mas o fazem a partir da subjetividade de suas experiências, sem fidelidades a identidades fixas, ultrapassando fronteiras antes bem delimitadas e borrando-as. Cada vez mais estes (micro) cosmos - de sínteses ou fragmentos - nomizadores não dependem de regulações institucionais e adesões de fé e sentido unívocas e lineares, mesmo que construções independentes de sentido e fé, isto é, de religião, tomem por empréstimo elementos das tradições religiosas já existentes[5], numa seletiva escolha daquilo que funciona e faz sentido (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 44).

É necessário, também, esclarecer que religião, aqui, não precisa ser identificada com Cristianismo, e que, conseqüentemente, secularização precise ser entendida como descristianização. Perde-se, então, o foco até então muito cultivado no Ocidente de aliar religião a Cristianismo (ENGLER: 2004), interpretando secularização ou perda da religião na sociedade e entre os indivíduos como perda de elementos constitutivos da tradição cristã. É bem verdade que, riscando-se tal associação e suas conseqüências, o discurso de secularização tem seu sentido não enquanto processo de saída do Cristianismo - dado que religião não se confundiria com as balizas cristãs -, mas como processo em que nenhuma instituição religiosa (inclusive a cristã) se afigura como definidora do ethos social e da explicação do mundo, mas em que o Estado, assim como os indivíduos, independem de uma visão oficial e institucional religiosa para gerir a sociedade e a vida. O Estado sem deus, neutro, que se quer aí para todos, sem privilegiar grupos religiosos[6].

Dada a constatação de que cada vez mais a religião (entendida como construção de sentido) não depende da regulação das instituições dantes detentoras do poder de nomizar a vida da sociedade e do indivíduo, prefiro a tese de que a religião, por efeito desta secularização - mas, de certa forma, mesmo antes dela - atravessa os tecidos sociais e vivenciais vários (embora sobre ele não mais influa decisivamente). Religião - em sentido muito lato - pode ser encontrada em atitudes políticas, esportivas, eventos culturais, moda e tendências musicais. Assim, religião comporta sentidos e percepções de eficácia aplicados a uma série de elementos sociais. Para usar uma expressão de Lutero, “o teu deus é aquilo a que você apega o seu coração”. Parafraseando-o, diria que a religião é aquilo que confere sentido, ordem, plausibilidade, benefícios e eficácia ao sujeito ou ao grupo. Neste sentido, mesmo projetos ou atitudes “não sacras” - conforme a convenção de que sagrado/religioso estaria ligado a uma religião institucional e a seus elementos próprios -, inclusive atéias, podem se inscrever como religião, em sentido amplo. Este lastro de compreensão de religião se amoldaria, de certa forma, com o processo de secularização que diminui o veio das instituições religiosas como configuradoras da religião e do que é religião para os indivíduos e para o todo social. Assim, estando a estrutura do crer desregulada (não mais obediente às tradições/instituições) a dimensão religiosa do crer se encontraria disseminada em outras tradições ou expressões da sociedade (movimentos patrióticos, samba, punks, política, esportes, etc). Conforme Weber, pode-se falar de religiões substitutivas, sem referência a deuses, mas que conferem sentido ao cotidiano humano, porém sem estruturar o social (CAMURÇA: 2003, p. 57). Não há mais uma tradição exclusiva das velhas ortodoxias institucionais religiosas (modelo Igreja). A estrutura do crer, da religião, diria, não é mais exclusividade de tradições religiosas convencionais, mas é operacionalizada por indivíduos, estruturas e tradições várias que há (HERVIEU-LÉGER: 1993, p. 58-59). O crer está disseminado em pequenas estruturas do crer. A religião continua a existir também fora da “Igreja”, disseminada de forma subjetiva, fragmentada e fluída.

Portanto, onde antes a “Igreja” (modelos institucionais de religião, derivados e apontados para uma “transcendência” e “sagrado” nos modelos tradicionais) dominava, agora há profissionais que substituem a “Igreja” (MARTIN: 1996, p. 27). Isto não significa, necessariamente, menos religião, mas uma realocação do religioso, sua recolocação de forma diferente na contemporaneidade. Assim, por exemplo, um psiquiatra, em uma sessão de terapia, pode, em sua equivalência laica, fazer a função de sacerdote e rito de passagem ou purificação dantes relegada às instituições explicitamente religiosas.

Enfim, apenas quero chamar a atenção para o fato de que religião, na sociedade (Pós) Moderna, pode ser entendida de diferentes formas em relação ao modelo tradicional de outrora (colado à conformação do sujeito à uma tradição religiosa/institucional). Isto é importante para verificarmos, a seguir, que a religião está mais presente do que nunca na sociedade contemporânea, seja em agências múltiplas filiadas à tradição cristã, seja fora desse modelo, em representações “civis”, nas suas diferentes roupagens. O que vale, entretanto, na análise, é saber que todas essas formas religiosas reforçam a secularização enquanto indicativas de desregulação da religião/instituição antes monopolista ou em situação não concorrencial do religioso.

3.Secularização e vitalidade da religião: caminhando em meio a paradoxos

Uma vez arrazoado algo sobre uma possível compreensão de religião antes da Modernidade e em meio a ela, volto à questão da relação secularização/presença da religião no mundo.

As pessoas contemporâneas buscam, na seletividade de suas escolhas religiosas, de suas bricolagens e ressignificações, comporem para si um mundo com algum sentido e aura totalizante ou não. E este movimento autônomo e racional-emocional (nunca dois termos aparentemente - ou de fato - opostos andaram tão juntos) emerge justamente devido à secularização, como produto dela. É na ausência de marcos totalizantes que pessoas se sentem impelidas a bricolar o seu universo pessoal de significações. A Modernidade e Pós-Modernidade vêm a mostrar todo seu poder paradoxal e ambíguo. Secularização da sociedade e, ao mesmo tempo, revitalização do universo religioso. Duas faces de uma mesma moeda cuja lógica está na interação dialética do moderno que desabriga a religião e, neste desabrigar, lhe possibilita novas moradas, conquanto mais esparsas e menos institucionais e influenciáveis no todo social. Conforme Pierucci, secularização e efervescência religiosa não se obstam, mas se combinam e polinizam-se (PIERUCCI: 1997, p.112).

Hervieu-Léger mostra alguns caminhos desta dialética. A socióloga se refere, por exemplo, aos surtos emocionais. Há, conforme William James, uma religião de primeira mão, representada pelas emoções e contato primal com a experiência (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 34 e ss). Essa experiência primal, com o tempo, passa a uma rotinização, adequação institucional-doutrinária-litúrgica, a uma banalização da experiência na sua administração histórica (BOURDIEU: 1978, p. 35-37), frutos da racionalização da religião e do surgimento de um corpo de especialistas. A instituição se faz herdeira e reguladora, ordenadora das emoções dos primórdios, dos impulsos extáticos primais, amoldando-os nos ritos, doutrinas, em certa racionalidade que aclimata e põe na ordem do dia aquilo que era emocional e que, por sua própria natureza emotiva, é instável. Ora, pode-se compreender, neste sentido, os surtos emocionais relacionados aos novos movimentos religiosos (inclusive os de dentro das religiões-instituições tradicionais, como o carismatismo na Igreja Católica e os (neo) pentecostalismos que surgem a partir e/ou paralelamente às igrejas protestantes), como um "protesto" à religião estabelecida de segunda mão, que petrificaria a experiência. A religião tradicional sufocaria, com sua racionalidade ordenadora e enquadradora da experiência, aquilo que seria um dos fundamentos da religião: a emoção do encontro direto com o divino ou sagrado - seja lá este termo, sagrado, interpretado de forma fenomenológica ou de outra forma.

Neste sentido se poderia afirmar que a vitalidade da religião na sociedade moderna acompanharia um movimento que responderia à estruturação daquilo que corresponderia ao religioso básico, ou seja, as emoções da experiência numênica, numa “desconfiança, explícita ou implícita, em relação à formalização doutrinal e teológica das convicções” num “primado conferido à experiência dos participantes sobre qualquer conformidade comunitariamente controlada” (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 33). Isto, de certa forma, explicaria a desregulação do institucional religioso, dado que seria o indivíduo, nesse contato antes com as experiências emocionais que lhe dão sentido e eficácia para a vida, e não tanto com modelos formalizados doutrinais que expressam a experiência, que seria o alicerce da religião, da sua própria religião (mais que nunca esse termo, “da sua própria”, faria sentido). Neste sentido entendo que é possível falar de secularização, dado a perda de poder regulador da instituição, assim como de vitalização religiosa, não mais do mundo como um todo, de um "dossel" sagrado geral a uma coletividade, mas de um dossel fragmentado e volúvel, instável como as emoções e experiências particulares de cada um. Se religião for tomada como a herança doutrinária veiculada pelas instituições, ou como aquela que dava sentido a tudo e a todos numa unidade social, conferindo plausibilidade ao todo social, então entendo que os surtos emocionais religiosos podem ser interpretados como o fim da religião - ao menos deste tipo de religião - pois se descolam de assentimentos e fidelidades ortodoxas, gerando pequenas narrativas que se formam na seletividade do mercado religioso, onde a rational choice se impõe na escolha emocional e racional, a um tempo, daquilo que melhor benefício, sentido e eficácia terá para a vida do sujeito (FRIGERIO: 2000)[7], nas esteiras de sua subjetividade emocional.

Numa sociedade em que a racionalidade instrumental leva a desertos de nortes de coesão de mundo, ao esvaziamento simbólico do universo, se implanta o surgimento das emoções como forma de expressão religiosa, pois a necessidade de significação e identificação não desaparecem (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 41 e 42), já que o esfacelamento dos deuses - ou plausibilidades tradicionais ou unas - não significa que não se busque ou seja necessário, ao homem, sentidos e fundamentos transcendentes ou de sentido (HERVIEU-LÉGER: 1993, p. 40). E essas mesmas emoções religiosas, que respondem a um universo racionalizado e de "fuga de deuses" - para usar uma terminologia cara a Heidegger -, estão na lógica da Modernidade e de sua secularização. Primeiro porque escolhas (tantas vezes baseadas na emoção) têm relação com o direito do indivíduo à subjetividade, direito esse fruto de uma Modernidade avançada. Segundo porque busca espiritual e experiência religiosa emocional inscrevem-se mesmo numa Pós-Modernidade, que recusa a tradição por si, se despoja de linguagens lineares, tradicionais, e fazem que a experiência religiosa se inscreva numa “metalinguagem” (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 43)[8], pois resgatam uma "linguagem" que a religião estabelecida já não pode dar e que já não é ouvida. Religião, assim, se torna cada vez mais analógica, performática, simbólica, mais forma que conteúdo nas esteiras das subjetividades. E, na esteira das emoções, está a sua lógica da instabilidade, que é própria delas, ou seja, destes movimentos carismáticos e emocionais se entra e sai com facilidade, conforme os desejos vindos e geridos por estas emoções são satisfeitos ou não, ou quando o encanto do carisma de um líder ou movimento enfraquece. Portanto, laços de coesão comunitária também se enfraquecem nessa lógica, pois o individualismo em sua subjetividade religiosa mina a instituição no senso de solidariedade coletiva, de obrigação religiosa, com conseqüente possível afrouxamento de valores morais e de origem identitária estável/forte. Martin, neste ínterim, observa, com perspicácia, que a erosão das estruturas eclesiásticas tradicionais reguladoras não se fez e faz tanto por questões ideológicas ou conceitos revolucionários explícitos, mas pelos comportamentos (MARTIN: 1996, p. 29).

Enfim, pode-se apontar para dois caminhos: surtos emocionais - que dão o tom da religião na contemporaneidade - como religião de primeira mão, baseada na experiência, que questiona a religião regularizada, institucional, tradicionalizada e teologicamente racional/organizada, adaptada à Modernidade racional. Quem sabe pode-se dizer que uma reação à Modernidade secularizadora, burocrática, especializada. Por outro lado, pode-se apontar que esse mesmo fenômeno está na lógica da Modernidade, de escolhas subjetivas, racionais e emocionais dos sujeitos. Uma dialética, pois “este emocionalismo antimoderno constituía, assim, e paradoxalmente, um modo de adaptação das religiões ao mundo moderno” (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 44). Questiona-se a racionalização petrificante/institucional da religião, ao mesmo tempo em que se lança mão dos próprios elementos modernos e racionais (escolha, direito, subjetividade, livre expressão) para articular e compor a experiência religiosa.

Em princípio pode-se concluir que ocorre na sociedade (Pós) Moderna[9], nos vários campos de significação, a subjetivação e privatização do direito de dar sentido às coisas (HERVIEU-LÉGER: 1993, p. 46-47). Assim, crença, religião, não significa mais, necessariamente, um pertencimento a um grupo religioso ou a sensação de tal pertencimento. Cada vez mais a secularização do institucional religioso se reveste, para as pessoas, em desafeição, desfiliação, desagregação (MARTIN: 1996, p. 39).

4. Mercado religioso, pluralismo e sociedade

Até aqui defendemos que na Modernidade secularizante há o enfraquecimento da religião institucional em sua influência no ordenamento do mundo social e da consciência dos indivíduos e, conseqüentemente, na vida social dos indivíduos. Neste sentido, “certezas” e plausibilidades passam ao território privado, como descobertas pessoais existenciais e, portanto, num viés psicologizado (BERGER: 2004, p. 163). As amarras culturais religiosas, dantes firmes, que congregavam as pessoas e sociedades numa visão coesa da vida, numa plausibilidade consagrada e bem conversada, se desgastam, e as instituições perdem as lealdades a elas dirigidas em antanho. As pessoas se sentem livres para buscar, de forma autônoma, o seu próprio universo de significações diante de um mundo fragmentado. Mundo de mosaicos. Assim, a própria multiplicidade de movimentos religiosos atuais e adesões livres e trânsitos em meio deles mostra essa secularização. A fragmentariedade religiosa e seu "mercado aberto" e "herético" (BERGER), assim como sincrético, é espelho da falta de totalização de sentido que a decadência da hegemonia religiosa, a falta de caução religiosa institucional reguladora, leva à sociedade. Novamente citando Berger

Essa situação representa uma severa ruptura com a função tradicional da religião, que era precisamente estabelecer um conjunto integrado de definições de realidade que pudesse servir como um universo de significado comum aos membros de uma sociedade. Restringe-se assim o poder que a religião tinha de construir o mundo ao da construção de mundos parciais, universos fragmentários, cuja estrutura de plausibilidade, em alguns casos, pode não ir além do núcleo familiar (BERGER: 2004, p. 146).

O próprio trânsito religioso tolerado e admitido como natural, sem culpas e/ou maiores impedimentos, mostra a "libertação" do indivíduo em relação à religião, sua autonomia sem peias ou aios. Assim, o pluralismo religioso torna-se, simultaneamente, fator e resultado da secularização (PIERUCCI: 1997, p. 115). A secularização, assim, revela o pluralismo religioso e vice-versa, em que se rompem monopólios religiosos de um único cosmos sagrado e se implanta o regime de concorrência entre os diversos agentes religiosos (MARTELLI: 1995, p. 290s). Seguindo a trilha de Berger, descobre-se que no mundo contemporâneo não há mais o singular a definir mundo, sociedade e consciências individuais, mas uma perda de autoridade de qualquer religião/instituição que queira possibilitar uma visão e influência unívoca sobre o todo social. Assim, cada religião/instituição deve-se lançar no “mercado religioso” como uma entre outras, usando as operações da economia de mercado, adaptando-se às demandas e, assim, tendo mesmo que modificar, no limite, certos traços seus até então intocados (BERGER: 2004, p. 151-158). Sem querer exagerar, poderíamos dizer que, se antes a religião moldava o indivíduo e seu mundo, hoje a tendência se inverte.

Esse quadro impele o indivíduo a fazer sua própria “mestiçagem religiosa” diante de uma situação religiosa de ofertas várias, de plausibilidades concorrentes, que tendem, no geral, a levar o indivíduo à atitude moderna da escolha, não mais da pertença, ou ao menos da pertença ao seu modo, de vínculos frouxos, e a uma potencial antropofagia religiosa (no belo dizer de SANCHIS: 2001), onde coerências doutrinárias não dão o ponto do bolo cultural-sincrético que o sujeito moderno, bricoleur por natureza, faz em suas ressignificações da semântica das tradições, às quais usa a seu bel prazer, sem pudores ou culpas. Numa definição precisa, “no plano individual, a secularização é a perda de plausibilidade da religião institucional pela visão do mundo pessoal” (MARTELLI: 1995, p. 292). Embora, de forma subjetiva e independente, o pessoal possa recorrer, como desejar e a seu jeito, ao institucional. Assim, não é a religião institucional que desaparece, mas a possibilidade de uma delas (ou mais) ditarem um dossel sagrado para a sociedade e para os indivíduos. O que resta é a presença simultânea de várias agências religiosas, convivendo entre si, acotovelando-se no mercado dos sentidos e eficácias simbólicas, num oferecimento de seus produtos que, grosso modo, não serão mais adquiridos de forma permanente e, quando adquiridos, sofrerão as alterações do gosto do freguês. Essa religião, cujo dogma primeiro são as emoções, sentimentos, eficácias pessoais, e cujo sumo sacerdote é o indivíduo em suas sínteses pessoais, constituir-se-ia, para Luckmann, numa “religião invisível”, isto é, não mais reconhecível e visível nas instituições, mas alçada à privacidade invisível e autônoma de cada um (MARTELLI: 1995, p. 303s).

Mas, mais uma vez quero frisar, é religião. E assim novamente esclarecemos que o processo de secularização não é um processo de menos religião, mas de menos instituição, de menos regulação institucional, de menos influência das tradições no seio da sociedade, do Estado, dos indivíduos. Religião é o que não falta na sociedade atual. E, contudo, justamente sua fartura é o indício da fraqueza daquela religião de priscas eras, una (no Brasil, o Catolicismo[10], na Europa, o Cristianismo católico ou protestante)[11] que cimentava a sociedade e era perfeitamente assimilada, interiorizada sem problemas e reconhecida como legitimadora do todo social e simbólico[12].

Evidência que relaciona secularização a sincretismo ou bricolagem é que as escolhas e montagens religiosas subjetivas dos sujeitos já não influenciam o todo social, como já denotei mais acima, já não definem uma ordem cultural e ética pela qual a sociedade poder-se-ia orientar[13]. A religião é cada vez mais um setor do domínio do privado, aí tendo seus limites (PIERUCCI: 1997, p. 117). É a coroação dos mundos de sentidos atomizados, fragmentados, sem impactos decisivos e relevantes sobre o todo social. Assim, entendo que secularização não se vincula tanto à ausência de religião (pois religião está a pulular, bem entendida, aqui, como vivência subjetiva e particular do sujeito), ou diminuição dela, mas como perda de poder temporal da Igreja (das instituições/tradições), confinamento do religioso a grupos voluntários e impotência da instituição em controlar a vida dos indivíduos (HERVIEU-LÉGER: 1993, p. 38). Portanto, seria preciso redefinir religião como descolada do institucional, da tradição de uma “religião” (Cristianismo, Budismo, Judaísmo, etc), já que na medida em que tais definidores institucionais de transcendência se achatam e perdem influência na sociedade, o campo do “religioso”, como o quer Perez, paradoxalmente (ou não) se alarga (PEREZ: 1996, p. 8). Enfim, a diferenciação na sociedade moderna, onde a agência religiosa passa a ser uma entre outras agências autônomas dentro de espectro social geral, leva ao fim da religião enquanto única (ou mais influente) definidora e mantenedora da realidade social.

Conclusão

A saída da religião, conforme a secularização vai procedendo, não é o fim da religião. A religião permanece através do mistério, ritos, de suas circulações simbólicas mesmo em atividades, grupos e projetos não explicitamente tidos como religiosos. A questão é que, no mundo contemporâneo, (pós) moderno, racional e, às vezes, supra-racional, a religião como dantes conhecida, colada mimeticamente à instituição que representa uma tradição de mundo, de doutrina, de cosmos sagrado, embebendo a sociedade de sua visão e legitimando a sociedade e a si mesma, já não tem lugar, ou, ao menos, não tem o mesmo lugar que tinha. E, assim, na Modernidade, não tendo ela fundamento geral, os indivíduos são impelidos a fazer escolhas, e os fundamentos tendem a ser plurais e tornarem-se subjetivos. Tais escolhas individuais não mais fundamentam ou justificam a sociedade, as instâncias jurídicas, políticas, etc. As tradições permanecem existindo, mas agora sob os auspícios e nos jogos das disputas subjetivas. Mesmo dentro das tradições, para quem adere de forma singular a uma tradição e a ele se vincula em fidelidade, a pluralidade se faz presente, também na lógica do subjetivo, da eficácia simbólica pessoal ou grupal, segmentaria, numa autonomia da experiência e referencialidade religiosa onde o indivíduo ou grupo busca re-conduzir a tradição a uma visão particular e fragmentada de mundo (exemplos são, no seio do Cristianismo, as teologias domésticas de grupos específicos, como teologia feminista, gay, negra, etc.).

O indivíduo contemporâneo não se identifica mais com discursos universais[14]. Mas colhe o que quer do universal e introduz crítica ao discurso universal. As “contradições” e “incoerências” passam à invisibilidade[15], pois o sujeito, singular e autônomo, pode se constituir, a um só tempo, como bispo evangélico, presidente-fundador da igreja evangélica do “Senhor Jesus em amor e graça”, cantor gospel, divulgador da reencarnação e dos mestres ascensionais, discípulo de Saint-Germain e membro da Sociedade Teosófica. Não, não falo de muitas pessoas, mas de uma só que reúne em si todos esses predicados[16]. Portanto, hoje a palavra de ordem no mundo plural e secularizado é “seja você mesmo” e não mais “siga isso e seja coerente com isso”. A religião passa a ser de foro íntimo, fruto da construção identitária subjetiva e autônoma, que não precisa mais prestar contas a uma tradição/instituição.

Enfim, não se perde religião na sociedade atual. A religião sofre um processo de metamorfose, onde o fim da religião é o fim daquela dita cuja totalizante da sociedade. Ou seja, a perda de um mundo com princípios fundantes e simbólicos fora dele (STEIL: 1994, p. 28). Assim, é somente a partir da “referência à ordem da infra-estrutura, daquilo que é instituinte e organizador do social que se pode falar do 'fim' da religião” (STEIL: 1994, p. 37). Pois na ordem da cultura (pulverizada e privatizada) a religião permanece. Mas restrita a experiências singulares e sistemas de convicção. Mais ainda que se perguntar pela perda de influência das Igrejas sobre seus fiéis, importa é saber que, seja lá como for o quadro atual, sincrético ou ortodoxo em termos de filiação identitária religiosa, as crenças já não mais exercem influência sobre a sociedade, sobre sua organização, já não a fundamenta ou dá direção. A religião termina como instrumento que influi sobre os fundamentos do social, mas não como cultura (STEIL: 1994, p. 37). Por mais que possa pulular religião na sociedade, na sua pluralidade, bricolagens ou mesmo no reaparecimento de fundamentalismos, as pessoas já não vêem mais no político, no social, o divino. A sociedade foi dessacralizada. Religião é coisa pessoal. O universo social é laico. Só o privado é religioso. E mesmo as tradições religiosas, de alguma forma, são dessacralizadas, a partir do momento em que o indivíduo racional e seletivo da Modernidade tem uma percepção crítica da própria comunidade de crença, original sua ou de livre aderência, pois “quando a opção religiosa se livra das amarras de identidade estruturada, todas as religiões são passíveis de ser julgadas como falsas” (CARVALHO: 1998, p. 154).

Por fim, não posso deixar de me reportar a Bryan Wilson, cuja argumentação - que aqui também foi um pouco a minha - é resumida de forma precisa por Camurça. Assim

“a secularização como processo de restrição contínua à religião no mundo moderno. Para ele, os dados empíricos, longe de negar, reforçam o processo de secularização como causa e explicação da emergência dessa fermentação religiosa não-tradicional. O aumento do número e a variedade com que se configuram os novos movimentos religiosos implicam um declínio geral do compromisso religioso dos indivíduos para com qualquer sorte de definição ou credo, o que leva a ligações cada vez mais passageiras, reduzindo a religião a um item de consumo. Além disso, essas novas práticas religiosas - tal qual as mais antigas - continuam a não ter nenhuma conseqüência nas estruturas e instituições sociais e de poder na Modernidade” (CAMURÇA: 2003, p. 58-59).

Vive-se numa sociedade de fragmentos[17], onde a religião não deixou de existir mas se metabolizou, ou migrou, do dossel sagrado encompassador da realidade e sociedade para a pluralidade polissêmica, nas livres escolhas pessoais, formando mosaicos isolados uns dos outros, em alquimias mesmo surpreendentes, mas sem maiores efeitos sobre a sociedade. E, nesse compasso, as instituições/tradições religiosas passam a ser meramente “caixas de ferramentas simbólicas” (HERVIEU-LÉGER: 1997) para o mundo a la carte do indivíduo moderno. O fim de um modelo de religião (e de sociedade). Mas não o fim da religião, ou se preferir, das “sensibilidades religiosas”.

Bibliografia

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STEIL, Carlos Alberto. Para ler Gauchet. In: Religião e Sociedade. 16/3, 1994. p. 26-49.

Notas

[1] Mestre em Ciências da Religião (UMESP). Doutorando em Ciências Sociais da Religião (UFJF).

[2] É preciso que fique claro que, aqui, quando me refiro à “religião”, falo de religião enquanto identificada com uma instituição que dá o sentido, a plausibilidade do todo social e o legitima. A religião enquanto definidora dos fundamentos da sociedade e das vidas, no coletivo. Neste sentido me reporto a Durkheim e Berger no entendimento de religião. Esta é uma opção e um pressuposto básico para a argumentação do presente texto. Especificamente - mas não necessariamente exclusivamente - o campo de análise deste pequeno opúsculo tem como pano de fundo o Cristianismo.

[3] Neste sentido compreendo religião e magia de forma bastante próximas, já que “magia, mais do que uma forma deturpada adquirida por uma religião, é muitas vezes a maneira pejorativa de enquadrar a religião do outro (...) associada a disputas de legitimidade” (MENEZES: 2003, p. 110s).

[4] Conforme Hervieu-Léger, pequenas narrativas subjetivas se articulam à(s) grande(s) narrativa(s) que constitui(em) a(s) Tradição(ções), cujas depositárias são as instituições (HERVIEU-LÉGER: 1997, p. 45). Mas, conforme compreendo, é articulação não fiel, criativa, “desobediente”, independente.

[5] Pela própria lógica de que não se bricola a partir do nada, mas a partir das redes de sentido existentes e conhecidas.

[6] Contudo estou ciente de quão ideológica possa ser tal assertiva, dado que o Estado sempre joga com interesses de grupos/religiões, numa dinâmica de trocas e concessões. Ou quem poderia duvidar que o Estado, assim como a maior parte da mídia, tenha um discurso de fundo oficioso que privilegia a histórica aliança entre Igreja Católica e Estado no Brasil. Mas, justamente o fato de ter sido banida a oficialidade desse encontro de poder e ter sido relegada a um discurso contido e eufemístico, escamoteado, mostra a perda - às vezes forçada quando no âmbito do poder - de um discurso unitário que a pluralidade que se impõe implode.

[7] Aqui quero defender que tais elementos emocionais se aliam ao indivíduo racional como aquele que escolhe, na metáfora do mercado religioso, seus produtos conforme a percepção custo/benefício dos mesmos. Ou seja, se a concorrência religiosa no universo religioso plural atual tende a incorporar a lógica econômica da sociedade capitalista de consumo, os consumidores religiosos também assim viveriam sua dinâmica religiosa de construção pessoal da religião para si.

[8] O falar em “línguas incompreensíveis”, a glossolalia, seria um exemplo eloqüente (com tracadilho, por favor).

[9] A discussão sobre o uso do conceito pós-moderno, ou Modernidade avançada, ou sociedade pós-tradicional é complexo. Pessoalmente prefiro o uso do termo pós-moderno para definir as operações de uso religioso do indivíduo e grupos atuais, ainda que esteja consciente que, em sua relação com a religião, o sujeito não seja apenas pós-moderno.

[10] Embora esteja ciente de que o Catolicismo, no Brasil, sempre foi plural em sua prática e sincretismos.

[11] Penso aqui apenas na sociedade ocidental. A questão da secularização no Oriente, conforme entendo, também existe. Mas sua dinâmica originária talvez se diferencie. É o Ocidente, com a tradição judaico-cristã monoteísta, que possibilita, conforme já asseverou Weber, a secularização da sociedade, através de três princípios fundamentais: transcendentalização, historicização e racionalização da ética (BERGER: 2004, p. 128).

[12] Aqui está um quadro ideal. Concebo que a realidade não era como se pinta num quadro tipo-ideal. Mas, mesmo assim, o outro, o diferente, o herege, o contestador explícito, neste quadro, sempre era eliminado, segregado ou punido. Neste sentido pode-se dizer que “era perfeitamente assimilada, interiorizada sem problemas”.

[13] A despeito de estudos recentes como o de Giumbelli, que mostra o influxo de igrejas, como a IURD, no cenário político-social. De qualquer forma, não deixa de ser um fragmento de voz rouca sobre o todo da sociedade. (Ver GIUMBELLI: 2003).

[14] Ou até pode identificar-se. Mas isso agora passa a ser algo pessoal e ele forçosamente terá que conviver com sistemas de plausibilidade opostos e concorrentes. Como ter (sustentar) uma visão universal em meio ao pluralismo relativizante? Uma das respostas pode ser o fundamentalismo, que vê no diferente um inimigo ou um erro que precisa ser vencido ou, no mínimo, controlado. Aliás, os fundamentalismos modernos nada mais fariam que confirmar o processo de secularização, em que por parte de certos indivíduos/grupos, a oferta religiosa e a livre escolha racional não seriam suportados diante de um sistema de plausibilidade que, com isso, vê a perda de seu poder e de sua oferta única para o todo social.

[15] Neste sentido, concordo com a observação de Negrão, de que o campo religioso no Brasil nunca foi conformado, de forma estanque, pela tradicional separação de agentes do sagrado (sacerdote, profeta e mago) entre si e nas relações com os leigos. Diz o autor que, ao contrário dos EUA, por exemplo, os papéis e relações religiosas no Brasil nunca foram estanques, mas intercambiáveis, porosos. Portanto, não há necessariamente contradição, no Brasil, em um sujeito ser isto e aquilo a um tempo, se constituir de uma pluralidade religiosa (NEGRÃO: 1997) . A lógica cartesiana, neste contexto, não valeria.

[16] Pastor-Bispo Renato Sohet, ex-pastor da IURD. Revista “Eclésia”, novembro de 2005. p. 20.

[17] É necessário que se diga que essa realidade religiosa fragmentada não exclui que, em meio aos fragmentos, haja redes de sentido comuns à pluralidade de opções religiosas ofertadas. Assim que, no Brasil, pentecostais e neopentecostais - em suas mais variadas denominações - e carismáticos católicos partilham de crenças, de sistemas de plausibilidade que têm referências muito próximas (MARIZ ; MACHADO: 1994). De qualquer forma, ainda assim é um universo religioso recortado e que não configura o Estado e a sociedade.