As Origens do Neo-Druidismo: Entre Tradição Céltica e Pós-Modernidade

Ana Donnard[*]

Resumo

O fenômeno das seitas e pseudo-religiões não é novo. A pós-modernidade apresenta, no entanto, uma nova e ampla diversificação de formas e conteúdos, emergentes de uma re-configuração de fundo antigo através de heranças medievais. O neo-druidismo se insere nos fenômenos sociais pós-modernos, mas é também parte importante do Celtismo que ambientou a historiografia e a literatura no final do séc. XVIII dezoito até o final do séc. XIX. Neste artigo apresentamos brevemente o neo-druidismo britônico e sua marca distintiva em relação a outras vertentes modernas e pós-modernas. Para tanto, discutimos: 1) Os druidas na Antigüidade e os druidas na modernidade 2) Como reconstruir um Druidismo extinto com a cristianização 3) Como legitimar uma herança druídica para as culturas célticas através de uma tradição bárdica. 4) o Druidismo na Bretanha armoricana e no País de Gales.

The Origins of Neo-druidism: between Celtic Tradition and Post-modernity

Abstract

The appearance of sects and pseudo-religions is not an entirely new phenomenon. However, post-modernity presents new and widely diversified forms and contents, which emerge from a re-configuration of the ancient basis through medieval legacies. Not only is neo-druidism included in post-modern social phenomena, but it is also an important part of the Celticism, that oriented historiography and literature from the late eighteenth to the end of the nineteenth centuries. In this paper, I offer a summary of Brythonic neo-druidism and its distinctive character in relation to other modern and post-modern neo-paganisms. Therefore, I discuss: 1) The druids in antiquity and modernity 2) The reconstruction of some druidic practices and beliefs that were extinguished by Christianity 3) The use of the Bardic tradition to legitimise the druidic heritage in Celtic cultures 4) Neo-druidism in Brittany and Wales.

Introdução

A diversidade de fenômenos religiosos, ou pseudo-religiosos, com a qual nos deparamos hoje na atual pós-modernidade, não só nos coloca diante de várias dificuldades de orientação metodológica para a análise destes fenômenos, como nos exige uma cuidadosa elaboração de argumentos, pois o terreno é extremamente fértil para as mais engenhosas imaginações como é também freqüentemente povoado de ideologias que estão longe de promover uma serena análise histórica, sociológica e concreta dos fatos. E ainda, como se não bastasse a dificuldade da tarefa, não raro uma critica ou estudo de caso é objeto de aguerridas reações daqueles que se vêem tocados na sua mais alta e magnânima credulidade, agredidos que se sentem pelas vias do racionalismo 'impuro' que os condena à simples condição de falsários ou neuróticos candidatos da mais alta psicopatia.[1]

A condenação de seitas tem se feito organicamente hoje em alguns países europeus que se viram, diante da proliferação de grupos das mais variadas orientações, obrigados a criar mecanismos legais que pudessem legitimar ações jurídicas contra grupos sectários, possibilitando assim um controle maior do Estado em relação a estes grupos que são dificilmente classificáveis, tamanha a variação e os constantes desdobramentos em que se inserem. Esses grupos oriundos de sociedades secretas ou sectárias ou ainda de associações mais ou menos visíveis na sociedade sofrem dissidências sistemáticas, desdobrando-se em várias outras ramificações, fruto mesmo de suas características intrínsecas de afiliação e alianças decorrentes de estruturas muito pouco sólidas e de tradições inventadas ao sabor das necessidades mais imediatas.

A lei da liberdade de culto oferece livre constituição de grupos que se coordenam em diferentes territórios. A proliferação é de tamanha ordem que se lançou na França a lei de proteção contra o sectarismo, e diversas organizações não-governamentais se encarregam de oferecer suporte psicológico e jurídico a pessoas que se encontram em situação de risco - psíquico ou físico - decorrentes de experiências no seio desses grupos ou seitas.[2] Sem dizer que uma das maiores preocupações do governo francês se refere à camada jovem da sociedade que é facilmente assimilada por estes discursos que descrevem um mundo fantástico e surpreendente, oriundos, em sua maioria, do americanismo que impregnou toda uma geração desde os anos oitenta e que segue até hoje de forma universal.[3]

Esses fenômenos sectários, não sendo uma exclusividade da pós-modernidade, já foram objeto de inúmeros trabalhos de historiadores e antropólogos no sentido de identificar a influência das sociedades secretas ou seitas que se constituíram desde a Idade Média até os dias de hoje como elemento orgânico de nossas sociedades, estejam elas mais ou menos ocultas diante de nossos olhos. A proliferação de seitas e pseudo-religiões de toda espécie não é simplesmente uma continuação de uma herança antiga e medieval, mas inscreve-se em uma nova fenomenologia, ainda que estas novas vestimentas se constituam com o mesmo tecido de conjecturas e propostas para seus membros potenciais: aquisição da felicidade terrena por novas vias da revelação através de tradições que só podem ser conhecidas por pessoas com características especiais e singulares. Mas a gama de critérios é tão assustadoramente variada que nos impedem qualquer síntese. Uma breve visita à Internet poderá dar uma idéia a qualquer neófito no assunto sobre a complexidade de fenômenos a serem analisados. No Brasil, a própria Igreja Católica se vê diante de novas formas de cultos, particularmente nas emotivas missas dos carismáticos ou dos novos sacerdotes brasileiros como Padre Marcelo e outros. Neste sentido, podemos avaliar o impacto da modernidade e suas conseqüências até mesmo em tradições e religiões milenares. O fenômeno das seitas e pseudo-religiões não é novo, o que é novo é a sua amplitude e a diversificação de suas formas e apresentações.

Por todos os países se espalham diferentes vias de auto-conhecimento, curas alternativas, contatos extraterrestres, cultos xamânicos, enfim, seria inoportuno aqui enumerarmos todas as vertentes que se espalham hoje no mundo, seja através do neo-paganismo, seja através de esoterismos cabalísticos ou influências orientais diversificadas, recuperação de forças telúricas da natureza, incluindo movimentos de defesa da natureza ligada a partidos políticos de orientação ecológica.[4] Nosso interesse será o neo-druidismo que se insere nestes fenômenos sociais modernos e que detém uma configuração específica porque é parte do Celtismo: gênero de discurso identitário e nacionalista que ambientou a historiografia e a literatura durante o final do séc. XVIII, se consolidou no séc. XIX e se estende até os dias de hoje, sobretudo nos discursos dos neo-druidas bretões, que são o objeto de nosso interesse.

Druidas na antiguidade, Druidas românticos e Druidas na pós-modernidade

Druidas e druidismo - o segundo termo é um neologismo e implica uma relação temporal e causal. Estamos muito longe dos druidas antigos, embora o “druidismo” seja a evocação de uma filiação antiga.[5] O termo druida é de etimologia celta, não tendo nenhum correlato em língua grega senão o termo com o qual os antigos os identificaram em primeira instância - filósofos - pelo qual podemos avaliar a importância desta classe na antiguidade.[6] O termo grego δρνιδης é um empréstimo ao celta, empregado por Aristóteles. Os gregos, na tentativa de explicar o nome indígena do sacerdote-druida celta, relacionaram o nome com o culto ao carvalho, mas, etimologicamente, druida quer dizer aquele que tem o conhecimento. César, que testemunhou o emprego do nome na Gália, usa o etnômio Celta, Celtae (em sua língua nacional eles se chamam Celtas) e faz menção aos druidas (De Bello Gallico VI, 14, 21), sendo a forma por ele atestada correspondente às formas irlandesas do antigo irlandês druí/druíd.[7] As fontes clássicas são lacunares e muito pouco se sabe dos druidas através delas. Temos conhecimento apenas de um druida histórico: Diviciacus - o Eduano, personagem bem conhecido por meio de César. Todos os outros citados ficaram anônimos.[8] Uma outra referência aparecerá em Ausonio, poeta latino: Phoebicius, guardião do templo de Belenus, um homem da raça dos druidas da Armórica.[9]

A menção da Armórica como origem deste personagem citado por Ausonio merece atenção. Os romanos fizeram várias referencias à Insula Sena e Pomponius Mela faz a descrição da famosa ilha de Sena, diante do território dos Osímios, na Armórica. Nela, virgens chamadas de Gallizenae, se dedicavam a um oráculo de uma divindade gaulesa. Os Osímios fazem parte dos quatro povos celtas que habitaram o território que é hoje a Bretanha francesa, na península armoricana, nome de origem antiga que significa país do mar - Armor. Ainda hoje a denominação é usada para diferenciá-la da antiga Bretanha insular, atual Inglaterra, que para os gregos e romanos se chamava Britania. César assinalava o fato de que os druidas mantinham um centro de educação na Bretanha insular, para onde todos os postulantes eram conduzidos a fim de se instruírem na ciência druídica. Não se pode negar as evidências de que, juntamente com a Gália continental, a Bretanha peninsular armoricana e a Bretanha insular foram, durante a antiguidade, território de druidas. Mas as evidências são muito mais literárias do que arqueológicas. E, mesmo na Irlanda, de onde nos chegaram relatos de druidas legendários, nada pode se saber de concreto a seu respeito no campo da arqueologia.[10] No continente, na península armoricana, como na ilha britânica e na Irlanda, todos os dados são interpretativos: nenhuma inscrição, nenhuma materialidade pode ser diretamente e concretamente identificada com o sacerdócio do druida sem que se construa várias conjecturas. Os sítios arqueológicos dos santuários célticos apresentam obviamente vestígios de rituais, mas a cosmogonia ou o universo mitológico ao qual se dirigiam estes rituais não pode ser verificado, a não ser de forma fragmentária, e a figura do druida não aparece.[11]

Não se poderia imaginar um sacerdócio de tão grande importância sem um panteão mitológico capaz de legitimar as relações divinas dos druidas com o mundo dos homens. A arqueologia Hallstatiana revela vestígios de uma mitologia anônima, deuses locais eleitos por tribos de acordo com as situações vividas pelos grupos sociais que os elegem. Após o período Hallstatiano verifica-se uma grande evolução artística e, através da iconografia céltica, poder-se-ia então reconstituir um sistema de fundo mitológico comum e, no caso que nos interessa, reconhecer e identificar o sacerdote ou o druida. No entanto, a ausência de registros escritos reduz toda essa gama de representações da Arte Lateniana ao mecanismo de interpretações hipotéticas.

Os celtas não identificaram suas divindades através da escritura, como fizeram os gregos e os romanos. Algumas raras inscrições do período pré-romano são provenientes do contato com o Mediterrâneo e todas a figurações acompanhadas de inscrições são do período romano. Os registros escritos de ordem mágico-religiosa atestam práticas marginais, não revelando nada ou quase nada das divindades celtas.[12]

Esta é a razão de sermos tão devedores de César para a identificação, ainda que parcial, de uma teogonia celta. Ao descrever os atributos dos deuses dos gauleses - que não são mencionados em seu nome indígena, mas identificados com a denominação romana - César nos fornece o mais precioso: a descrição dos atributos relacionados a esses deuses. As questões de ordem sócio-política, relativas a uma situação de dominação e submissão, estariam mais próximas de uma negociação de poderes e deveres do que propriamente de um sincretismo religioso capaz de identificar par a par os deuses de um e outro panteão - além de estarmos, nesse âmbito, sujeitos a interpretatio romana.[13] Mesmo que o paralelismo com o panteão greco-romano seja capaz de identificar uma mitologia celta, muito ainda não sabemos sobre a sua cosmogonia e os aspectos religiosos que envolviam o culto a aos deuses.

Devemos, além disso, levar em consideração o fato de que os sistemas religiosos em contraposição - greco-romano e celta - são divergentes, fazem parte de um outro sistema de pensamento e de representação e, ainda, de uma outra esfera de civilização que nem sempre possibilita a superposição para estudos comparativos, ainda que alguns elementos sejam de ordem similar.[14]

Entretanto, as fontes documentais da literatura antiga não deixam duvidas quanto à existência desta classe sacerdotal e sabe-se que foram até mesmo uma ameaça ao poder de Roma, que trata de proibir o druidismo (Tibério e Cláudio) para salvaguardar sua autoridade. Verificando, portanto, as dificuldades da arqueologia diante das possibilidades de interpretação dos dados materiais religiosos celtas, pelas razões que assinalamos, poderíamos ser obrigados a relegar os druidas históricos a um silêncio ainda mais cruel do que aquele que lhes foi imposto por Roma, pois a figura do druida histórico, que poderia ser atestado pela arqueologia, resulta em mistério.

Em contrapartida, a literatura antiga não cessa de repertoriar comentários a um sistema religioso de alta complexidade, bem como a importância desta classe para a coesão de uma civilização que se estende, segundo as fontes greco-romanas, do centro do continente europeu até as ilhas do norte. Os druidas exerceram, segundo as fontes clássicas, o papel de detentores de um poder sacerdotal, aliando, através de um sistema religioso, as tribos do espaço céltico insular e continental que nunca formaram, no entanto, um Estado centralizado. O desaparecimento dos druidas entre o final da antiguidade e o inicio da antiguidade tardia repousa também em mistério. As fontes clássicas cessam de repertoriar comentários a respeito desses sacerdotes, antes freqüentemente referenciados, para silenciar totalmente. O silêncio druídico da antiguidade será desfeito séculos mais tarde, cerca de oitocentos anos depois, pela escrita dos filid irlandeses e pelos bardos bretões, que fornecerão aos arqueólogos e aos historiadores a possibilidade de interpretar os fragmentos materiais de uma religião celta. O silêncio dos druidas é quebrado na era medieval e ele ressurge como um fantasma nas brumas do espaço céltico atlântico, não sendo um retorno insípido, mas, infelizmente, para tantos românticos em busca do druida histórico, muito se deixou a desejar.

O druida ressurge no período medieval, porém dentro do contexto da transmissão de um fundo de natureza épica e mitológica. Os arcanos da religião não são revelados. O druidismo, como religião, não aparece. Não há uma doutrina, não há descrição sistemática dos ritos, não há textos sagrados. E a conclusão é a de que os druidas não teriam empregado a escritura para a transmissão de seus ensinamentos teológicos e metafísicos, sendo a oralidade o principal dogma desta religião céltica.[15]

Portanto, o que se sabe concretamente dos druidas e de seu mundo, fora das fontes greco-romanas, nos chega através dos textos vernaculares irlandeses e britônicos, mas nesse caso é preciso que se leve em consideração os séculos que separam os druidas da antiguidade dos monges irlandeses e bretões do século VI e o contexto cristão em que estas narrativas mitológicas de tradição oral foram transcritas.[16]

Christian Guyonvarc'h e Françoise Le Roux são os precursores de uma teoria interpretativa da religião druídica através dos textos mitológicos irlandeses, tendo como suporte a teoria dumeziliana, como não poderia deixar de ser para qualquer investigador da época entre as duas guerras.[17] Segundo estes autores, a tradição céltica foi oral enquanto sobreviveu. Após a cristianização, não há mais como se dar a sobrevivência dos ensinamentos druídicos. Estes apenas se revelam em formas escritas, através de uma oralidade funcional que nos chega incompleta, mas que não impediu a configuração, sobretudo a partir dos trabalhos do casal bretão, de uma religiosidade de alta estirpe, aproximativa dos gurus da Índia ou dos sufis do Islã. E chegam até mesmo a agradecer o fato de que e os druidas não tenham confiado à escritura o teor de suas doutrinas teológicas, visto a inépcia dos modernos em analisar os fatos mitológicos celtas. Com o tom extremamente crítico e autoritativo que lhes é peculiar, Guyonvarc´h e Le Roux fundamentam uma imagem nítida de religiosidade e, sobretudo, uma imagem bastante valorizada do druida celta:

Sinceramente nos sentimos penalizados (pelo fato de os Druidas não terem registrado seus ensinamentos por escrito), sobretudo pelo gaulês que jamais poderemos conhecer completamente. Mas a triste sorte reservada à mitologia céltica por tantos autores e publicações modernas modera o nosso pesar ao constatarmos sua ocultação na antiguidade. Além do mais, o método de ensino dos druidas devia ser bem mais próximo dos métodos dos Gurus da Índia ou dos Sufis do Islam do que dos métodos empregados nas nossas universidades européias atuais. Não é a ausência de escritura que exterminou um tal ensinamento (druídico), e sim o aparecimento no Ocidente de uma nova forma de Tradição, neste caso o Cristianismo, que fez do Livro a Revelação, a Vida e o Exemplo. Os Filid convertidos, sucessores de São Patrício, souberam tirar a conclusão necessária.[18]

Mas, como já mencionamos anteriormente, os dogmas, os rituais, os textos sagrados (que, se existiram, foram perdidos), em suma, a religião druídica propriamente dita, não nos chegou através dos textos vernaculares célticos. O que nos chega através da Irlanda e da Bretanha insular revela apenas a existência de uma classe sacerdotal que certamente existiu. O Glossário de Cormac, compilado por volta de 900, é, sem dúvida, uma fonte importante para a elucidação deste mundo de conhecimento e tradição oral da espiritualidade céltica, mas, como o nome indica, temos apenas fragmentos de fórmulas religiosas, sentenças concisas e preciosismos de uma língua erudita destinados à versificação dos poemas em homenagem aos reis e heróis.[19]

Encontramos alguns diálogos de sabedoria druídica intercalados com os textos mitológicos e as epopéias, mas estes também não revelam mais do que apenas fragmentos de uma tradição. O esoterismo desses diálogos confere uma grande riqueza de imagens, mas, como material fragmentário, não possibilita uma compreensão mais abrangente de uma mística ou de um ritual de iniciação. Neste sentido, nossas perguntas - para começarmos a analisar o fenômeno do neo-druidismo ou do “druida” na modernidade - se colocam:

1 - Como, através dos tempos, teria chegado até os druidas atuais uma cosmogonia e uma mística que desde os tempos mais remotos nunca foi transmitida textualmente, mas oralmente de mestre a discípulo, e que estaria dependente de uma filiação a uma classe sacerdotal tradicional que deixou de existir na antiguidade tardia?

2 - Como fabricar rituais sem os arcanos de uma religião, sem textos sagrados e sem iniciação pelos seus sacerdotes?

O início da reconstrução de um anonimato antigo

Antes de tentarmos responder com os argumentos próprios do neo-druidismo britônico a estas perguntas, cabe uma retrospectiva histórica deste fenômeno pseudo-religioso ou desta mística druídica reconfigurada na modernidade. Devemos notar de antemão que, para os neo-druidas britônicos, o druidismo, tal como praticado hoje, não é uma religião, mas a expressão de uma espiritualidade singular, ligada ao culto da natureza e à tradição oral bárdica. Retornaremos à questão mais adiante.

Outro problema que devemos confrontar e que também já salientamos na nossa introdução é o fato de que este tipo de fenômeno religioso, ou pseudo-religioso, ou místico, não é de fácil descrição, tendo em vista sua ampla disseminação em várias vertentes, cada qual com suas próprias formulações espirituais, esotéricas ou metafísicas, e traçar uma visão de conjunto é quase impossível.[20] Além do fato de que sociedades fechadas, que se baseiam em ritos iniciáticos ou de transmissão, não os revelam ao público geral - é preciso ser um iniciado para se conhecer a dinâmica dos dogmas. Devemos também ter em conta o fato de que os vários neo-druidismos variam de cultura para cultura - anglo-americana, anglo-saxônica, francesa, irlandesa e até mesmo japonesa! E ainda mais: devemos levar também em consideração o fato de que existe uma vertente que pertence, de uma forma direta ou indireta, às culturas célticas e outras que são fruto dos fenômenos próprios da pós-modernidade e sua internacionalização freqüente, repassando de continente a outro modismos, discursos esotéricos e associações de todos os mais variados estilos e concepções.

Mencionamos a ramificação anglo-americana e anglo-saxã pela parte que lhes cabe de parceiros históricos destas culturas: a americana pela imigração irlandesa e bretã e a inglesa pela própria história comum que une célticos e germanos num mesmo território. Mesmo havendo uma possibilidade de categorização e compartimentação dos grupos que se afiliam ao neo-druidismo, tais ramificações não são nada homogêneas em relação a uma concepção do que seria o druidismo e de como ele pode ser vivido na modernidade. Elementos comuns sempre existem, mas as incoerências são mais freqüentes do que os paralelismos.[21] E nem sequer abordamos ou nos interessamos em examinar os neo-druidismo no Brasil e na América Latina, por exemplo, ou na Alemanha ou em Portugal, porque simplesmente esta não seria uma abordagem apropriada para um pequeno artigo. Neste trabalho tentamos focalizar o neo-druidismo britônico.

Os primórdios de um fenômeno que chamamos hoje de neo-druidismo se deu no Castelo de Cardigan em 1176, quando se reuniram os bardos galeses para a primeira National Eisteddfod of Wales, sob os auspícios de Rhys ap Gruffydd, que havia recuperado o castelo das mãos dos Normandos. Esse encontro foi descrito no Brut y Tywysogion (Crônica dos Príncipes), uma das mais importantes fontes para a História do País de Gales. Nesta crônica pode-se ler:

No Natal daquele ano (1176) Lorde Rhys ap Gruffydd presidiu a corte em esplendor no castelo de Cardigan. Estipulou dois tipos de desafios naquele dia: um entre bardos e poetas, outro entre harpistas e gaiteiros e outros músicos. E então estabeleceu duas cátedras para os vencedores e os honrou com ricos prêmios.[22]

Esse é o evento considerado como inicial da tradição galesa de reunir bardos e poetas que seriam - tal como se deseja - os remanescentes de uma tradição druídica. Em primeiro lugar, é necessário que se compreenda que as funções do druida, descritas a partir dos textos vernaculares irlandeses e britônicos, possibilitam uma recuperação medieval. Uma das funções dos druidas era a preservação da literatura oral e das crônicas históricas e genealogias. Havia druidas de três classes: sacerdotes dos ofícios, legisladores e bardos. Esse último é o druida que teria chegado até nós, porque o sacerdote pleno de poderes ao lado do rei já havia caído em desgraça muito antes do surgimento dos textos vernaculares que descrevem seus poderes seculares e sacerdotais.

O que restou de um druidismo na Alta Idade Média cristianizada foram os bardos, considerados poetas da corte e detentores de uma memória arcaica. Em alguns casos também realizavam profecias políticas, que não deixam de nos fazer pensar numa herança druídica de vaticinação - não seria por menos a denominação de Vates em alguns textos latinos gregos e latinos com referencias aos druidas.[23] O exemplo mais típico deste druida remanescente de uma classe sacerdotal da antiguidade celta é Myrddim, o bardo-druida que cai em loucura após a batalha de Catraetth.[24]

Após o evento no castelo de Cardigan patrocinado por Lord Rhys ap Gruffydd, fez-se um longo silêncio até que John Toland, um irlandês visionário, viesse a lançar, em 22 de setembro de 1717, as bases de uma Ancient Druid Order, com o intuito de reunir todos os bardos clandestinos que erravam entre as ilhas e o continente. Seu nome de batismo é Seán Eoghain Ui Thuathalláin, e nasceu em Ardagh no Ulster, região de forte tradição gaélica. Toland não poupará críticas à Igreja Católica de sua Irlanda natal. Foi um anticlerical e “libre-penseur”. Sua obra é uma apologia do panteísmo naturalístico que concebe o universo e a natureza como a expressão viva de Deus em sua forma impessoal, através da qual a humanidade pode aceder à espiritualidade. O termo panteísmo é cunhado por ele e reflete a idéia da imanência de Deus em tudo e em todos. Sua obra é extensa e particularmente “History of the Celtic Religion and Learning Containing an Account of the Druids” (1726) tratará das questões específicas ligadas ao neo-druidismo que inicia, neste momento, sua jornada em direção a novos tempos e novas “ordens”.

Em 1792, um humilde galês, originário do Glamorgan, região também de forte tradição britônica, faz reviver a Eisteddefod - antiga tradição da qual falamos anteriormente, mas sob novas bases e com uma orientação que difere da concepção anticlerical e pagã de Toland. A principal atividade é o Concurso de Poemas e Canções, em que são premiadas as melhores performances, com improvisações orais que dão um caráter tradicionalmente bárdico ao evento. Não foi propriamente uma dissidência da Ancient Druid Order de Toland, que só veio a se desmembrar em 1964, dando origem à Druid Order e à Order of Bards, Ovates and Druids, esta última fundada por Ross Nichols, poeta, artista e historiador.[25] A Eisteddefod foi antes de tudo um movimento literário, uma retomada das antigas tradições britônicas que estavam relegadas a um lugar de cultura subalterna diante da dominação anglo-saxônica. Este movimento de reabilitação da velha tradição, liderado por Edward Williams - Iolo Morganawg no seu nome de bardo - será a pedra inaugural da Gorsedd, agremiação que reunirá importantes representantes das literaturas célticas, numa época conturbada de uma Europa plena de efervescências nacionalistas.

Em 1760 James MacPherson havia publicado sua famosa e controvertida obra Fragments of Ancient Poetry collected in the Highlands of Scotland, baseada em um personagem lendário da literatura gaélica chamado Ossian (Osín), guerreiro e poeta filho de Fion Mac Cumhail e que os irlandeses denominaram de Fenian Cycle. O autor clamava ter recolhido os poemas ossiânicos na cultura oral gaélica da Escócia e em manuscritos antigos. Essa publicação dá origem a uma das maiores querelas literárias da Europa romântica, não sem danos à sua imagem pessoal. A reputação de James MacPherson sofrerá as conseqüências da marginalização por toda uma sociedade letrada que o condena como impostor.[26]

Cem anos depois, em 1870, uma outra compilação de textos antigos entra em cena, mas desta vez em língua galesa - The Myvyriam Archaeology of Wales - Collected out of Ancient Manuscripts. Esta imensa obra de coleta de material folclórico e literatura oral, de genealogias e crônicas históricas, é organizada pelo mesmo Edward Williams (Iolo Morganwg) juntamente com Owen Jones (Myvyr) e William Owen Pughe (Idrison), que irão dar impulso à Ordem dos Bardos, a Gorsedd galesa, a mesma de que falamos anteriormente e que se originou nos encontros da Eisteddefod. A apresentação da obra alertava para sua importância diante do cenário literário internacional:

These books are venerable monuments of enlightened periods of literature amongst the Britons, while scenes of barbarity were acted over Europe, and darkened the light of our island: a literature whose origin was not borrowed, but matured at home, under that extraordinary system, the Bardic institution; concerning which, under the name of Druidism, much has been written, much misunderstood, and of which the world yet knows but very little.[27]

Entramos, então, em uma outra esfera de acontecimentos, em uma outra dimensão do neo-druidismo: um movimento literário que possibilitou a entrada em circulação de tradições orais britônicas e que teve como ponto de partida uma prática antiga que reunia os bardos-druidas em torno do rei e de suas assembléias, quando se dava, então, a recitação e a elaboração da memória literária. Mas, quando entramos no âmbito das histórias célticas e suas literaturas falando de dentro destes estudos para um público que é estrangeiro aos seus fenômenos internos, nunca estamos isentos de explicações preliminares que possam nos salvar de sermos taxados, quer de loucos românticos, quer de reacionários anacrônicos. É o caso do neo-druidismo e de suas intrincadas gêneses... O fato é que a Gorsedd, que foi fundada pelos galeses no final do período romântico, deu origem a um movimento literário importante, mas que só é estudado pelos célticos, sendo assimilado de maneira geral pelo público universitário como mais um delírio romântico à moda de MacPherson:

The extensive neo-druidic literature published by Welshmen in the romantic period in Welsh and English has never been properly studied, but has been dismissed with a patronizing smile in the way historians used to treat early modern beliefs in magic and witchcraft. [...] The revival of Druidism was a movement of considerable significance, all in all, because it involved myths which showed the cultural tradition of Wales to be older than other in western Europe, and it make the scholar or poet or teacher central to that culture. To some extent it restored the bard to his primary place in Welsh life.[28]

Este comentário pode nos fazer perceber o caráter periférico em que se encontravam e ainda hoje se encontram as literaturas célticas, que são estudadas apenas em seus filões nacionais, ficando à margem dos estudos literários pós-modernos ou pós-coloniais, que são, no entanto, tão atentos às literaturas de minorias. Assim, o desconhecimento em relação a essas culturas faz com que freqüentemente o druidismo seja assimilado muito mais no âmbito do celtismo do que de sua configuração histórica como herança legítima de uma literatura perdida pelos acidentes de percurso da história, mas que sobreviveu porque seu princípio, desde os primórdios, a preservou do esquecimento - a tradição oral e o culto à eloqüência.

Delírios existiram e seria ingênuo querer fazer aqui a defesa dos princípios literários do neo-druidismo, mas queremos apenas ressaltar a diferença que existiu - e que ainda existe - entre um neo-druidismo pseudo-religioso e um neo-druidismo literário. Um e outro nem sempre distanciados por linhas plenamente definidas no tempo e no espaço geográfico em que surgem, mas que possuem características que os diferenciam, seja nas origens, seja na forma que tomaram em sua evolução e permanência. Já ressaltamos neste trabalho a natureza fluída do que poderíamos identificar como neo-druidismo na pós-modernidade e suas diferentes formas e gêneses. Tomamos então como referência o neo-druidismo britônico, que nasce no País de Gales e na Bretanha armoricana e que representa uma tradição literária céltica em busca de suas representações modernas. O que existe atualmente deste filão romântico se estendendo, portanto, à nossa atual pós-modernidade, não é fruto direto dos fenômenos que inauguram nosso tempo, mas algo concebido numa outra esfera e, se estas associações tradicionais permanecem ativas até hoje, não devem ser confundidas com as associações e seitas do neo-druidismo pós-moderno que, no nosso entender, são fruto de uma outra dinâmica, de um outro momento e de uma outra dimensão.

Os druidas sempre existiram

Pode-se alinhar o druidismo céltico segundo três vertentes principais: a de John Toland (1717), fundador da Druid Order, de tendência paganisante e anticlerical, e a de Henry Hurle (1781), fundador da Ancient Orders of Druids. Esta “ordem” foi a que menos configurou uma filiação com as tradições orais célticas, sendo desde o início muito mais um grupo da franco-maçonaria inglesa do que propriamente um reflexo de um druidismo revolucionário, evoluindo no seu percurso final para uma associação financeira de ajuda mútua - uma espécie de consórcio previdenciário. A terceira vertente, fundada por Edward Williams (Iolo Morganwg - 1792), é a que se origina da tradição bárdica e a que revelou ser a mais fundamentada nos aspectos históricos do druidismo, tendo como ponto de partida a coleta das tradições folclóricas britônicas.

A Gorsedd galesa torna-se uma instituição de renome e, como não poderia deixar de ser, associa-se aos bretões do continente, pois suas tradições nada mais eram do que a mesma história compartilhada desde a antiguidade e, sobretudo, desde a Alta Idade Média, quando a migração de representantes do Cristianismo céltico insular instaura, na península, uma rede de dioceses com suas abadias e scriptoria. Essa migração preservou, dos dois lados do Canal da Mancha, a memória de uma história britônica. Entre 447 e 632 uma elite aristocrática britônica se instalou no continente em busca de novos domínios, deixando para trás os saxões pagãos.[29] A península armoricana ou a Armórica antiga se transforma então na Bretanha dos Sete Santos.[30] Exatamente nesse período dois personagens - Artur e Merlim - fizeram seus feitos lendários, o primeiro rei dos bretões, o outro, um bardo-druida. Eles representam dois símbolos imanentes à memória cultural dos bretões. O neo-druidismo britônico está ligado de forma consistente aos dois personagens, que fizeram sonhar não apenas os bretões místicos, mas toda uma Europa medieval, gerando o que mais tarde será a matéria do Graal, que se vê relançada na pós-modernidade com os fenômenos editoriais de exploração fácil do gosto mundano pelos mistérios de toda sorte, como o Código da Vinci.[31]

Em 1899 uma delegação bretã é convidada para participar de uma reunião da Gorsedd de Gales. O trabalho de coleta da tradição oral da Bretanha armoricana já havia se iniciado com Hersart de la Villemarqué, Anatole Le Braz e François-Marie Luzel. As relações entre o País de Gales e a Bretanha ficaram definitivamente consolidadas e a Gorsedd da Bretanha foi fundada a partir de então, tendo como primeiro druida Jean Le Fustec, em seguida Erwan Berthou, Taldir Jaffrenou, Pierre Loisel e, desde 1978, Gwenc'hlan Le Scouëzec, que segue até hoje os passos dos primeiros, trazendo para os tempos atuais uma grande riqueza de material folclórico e pesquisa histórica com suas obras, que não estão de forma alguma longe de serem consideradas obras-primas de um neo-druidismo de vertente autenticamente céltica.[32]

Os primórdios do neo-druidismo britônico podem ser definidos como um movimento literário para a recuperação de uma literatura perdida e a reconstrução de um druidismo anônimo. Uma vontade de celebração de um passado glorioso deu origem a todo um ciclo historiográfico e literário chamado de Bretonismo, do qual o neo-druidismo é uma vertente.[33] Hersart de La Villemarqué observa na poesia popular bretã, assim como nos costumes e nos contos coletados por ele e por outros folcloristas, “uma mistura bizarra de idéias cristãs e de crenças druídicas amalgamadas.”[34] Outros escritores também viram nas heranças druídicas a explicação para vários elementos do folclore bretão e colocaram seus espíritos criativos em busca de uma tradição bárdica, reconstruindo uma história anônima e uma mística de origem druídica. Obviamente, a imaginação se aliou à pesquisa histórica, mas também a uma irrefutável tradição literária medieval que trazia no seu corpus elementos pré-cristãos.[35]

Contudo, o neo-druidismo, assim como o Bretonismo e todos os outros componentes do Celtismo, fazem parte de uma matéria em que o número de controvérsias excede a soma das concordâncias. Sem dizer que o conteúdo ideológico do período em que foram lançadas as principais bases da Celtologia moderna não é de fácil assimilação, nem tampouco pode ser analisado brevemente. Podemos, no entanto, depois de uma brevíssima apresentação, responder as perguntas iniciais:

1) Como, através dos tempos, teriam chegado até os druidas atuais uma cosmogonia e uma mística que desde os tempos mais remotos nunca foi transmitida textualmente, mas oralmente de mestre a discípulo, e que estaria dependente de uma filiação a uma classe sacerdotal tradicional que deixou de existir na antiguidade tardia?

Para esta resposta somos obrigados a nos reportar à opinião do Professor Christian Guyonvarc´h. Segundo ele, não há como se fabricar rituais e nem preces. Uma religião ou uma tradição mística só pode ser vivenciada através de uma filiação que supõe uma iniciação por sacerdotes e sua transmissão através das eras. Os druidas desapareceram com a cristianização, com eles, seus ritos: “Se existe uma interrupção da filiação não há iniciação possível”.[36] Assim, o antigo neo-druida dos tempos da juventude se desliga do neo-druidismo britônico para se lançar nas fileiras da cientificidade universitária. Mas é preciso se reconhecer na obra deste bretão catedrático da Universidade de Rennes sua imensa contribuição e a incansável busca de uma solução do enigma do druidismo e do que pôde se salvar de informação sobre uma religião céltica da antiguidade. O principal mistério do druidismo reside no seu desaparecimento silencioso diante de uma nova religião que se instaura nos territórios antes ocupados pelos druidas:

L´étude de la transition du “druidisme” au christianisme ne sera possible que lorsque le christianisme primitif des Celtes sera parfaitement connu. Or, les donnés en sont infiniment complexes, d´une part en Gaule où les druides s´effacent devant la religion officielle romaine sans laisser aucune trace tangible, et d´autre part en Irlande où, quelques siècles plus tard, à l´appel de Saint Patrick et de ses successeurs les filid se convertissent et sauvent le fonds mythologique national.[37]

2) Como fabricar rituais sem os arcanos de uma religião, sem textos sagrados e sem iniciação pelos seus sacerdotes?

Esta é uma questão que deve ser respondida pelos neo-druidas, pelos folcloristas e medievalistas “celtisantes”.[38] Para Gwenc´hlan Le Scouezec - Grande Druida da Fraternidade dos druidas, bardos e profetas da Bretanha - a Gorsedd da Bretanha (Bredeuriezh drouized, barzhed hag ovizion Breizh), ligada por filiação à Gorsedd de Gales, os elementos de uma religião druídica não desapareceram com o silêncio dos druidas e tampouco com o silêncio dos cronistas greco-romanos:

Tout en réalité se passe comme si le druidisme avait persisté, mais que le nom du druide avait été effacé par des raisons évidentes! Nous sommes d´ailleurs environnés de pratiques totalement païennes, sans pour autant faire la liaison avec le druidisme. Je pense en particulier au cultes des fontaines. C´est quelque chose qui n´a jamais cessé, malgré des multiples interdits![39]

As práticas milenares de um Cristianismo céltico nas Bretanhas insular e continental, como também na Irlanda, na Galícia e até mesmo em Portugal, fornecem inúmeros elementos que podem ser estudados à luz de uma religião pré-cristã de tipo druídico. Na Bretanha, a presença quase obrigatória de fontes ao lado das capelas mais simples, como das igrejas mais importantes, são testemunhos deste mundo cristianizado que sobrevive até hoje em peregrinações e costumes populares. As fontes também são encontradas em meio à natureza, sobretudo nos centros de florestas que nunca deixaram de produzir não só fenômenos sobrenaturais, como também lendas das mais maravilhosas.

Quanto a Hersart de la Villemarqué, o folclorista e filólogo bretão não deixará de citar a lenda de Santo Ronan, que fez parte de suas coletas para o Barzah Breizh (Bardos da Bretanha) com o seguinte comentário:

Le druidisme existait encore en Armorique au VIe siècle, et avait laissé des traces si profondes que ses cérémonies se sont mêlées à celles de la fête des saints personnages qui ont les plus contribué à l´abolir; ainsi on fait tout les sept ans processionnellement le tour des monuments druidiques qui se trouvent sur la montagne au flanc de laquelle s´élevait dans la forêt de Névet l´ermitage de Saint Ronan.[40]

O patrimônio cultural e religioso bretão oferece um universo de enorme riqueza para o pesquisador. Arqueólogos, historiadores, folcloristas, medievalistas e, obviamente, celtólogos e lingüistas, poderão talvez um dia ultrapassar os preconceitos e as etapas difíceis da matéria para encontrar, no fundo de uma memória pré-cristã, as respostas que desejamos encontrar sobre os druidas e seus mistérios. E talvez seja esta a legítima contribuição da pós-modernidade em relação ao Druidismo antigo.

Belo Horizonte, 08 de junho de 2006.

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Notas

[*] Bolsista Pós-Doutorado Junior da FAPEMIG atuando na Faculdade de Letras da UFMG e membro do NEAM - Núcleo de Estudos Antigos e Medievais.

[1] Nem sempre estamos livres de ataques clandestinos quando ousamos expor ao ridículo os argumentos, por exemplo, de neopagãos e outras derivações, sem falarmos nas seitas satânicas, que estão longe de ser simples agremiações para se reverter em verdadeiras associações criminosas.

[2] Actu Sectarisme - Cercle Laïque pour la prévention du sectarisme, associação que se propõe a ser na França um observatório destes fenômenos sociais reunindo psiquiatras, psicólogos e sociólogos em torno da questão. Existem várias outras, inclusive as comissões ligadas à UNESCO. http://www.actu-sectarisme.com/]

[3] A grande maioria de seitas observada no cenário francesa é proveniente dos Estados Unidos. De uma certa forma, poderíamos dizer que as “tradições pagãs” comuns a uma herança européia foram substituídas por novas “tradições”, porque seria ingênuo ignorar toda a história européia de sociedades secretas e ocultismo. Na verdade, o neo-paganismo americano tem suas raízes na herança anglo-saxônica, de fundo europeu, mas é fruto de uma outra conformação histórica e por isso se insere como fenômeno pós-moderno. Suas influências na Europa são, portanto, um retorno reconfigurado de elementos europeus medievais.

[4] Carassou-Lassallette, Anne-Marie Magie et néopaganisme aux Etats-Unis à l'aube du troisième millénaire: essai d'interprétation (Thèse de doctorat) Université de Michel de Montaigne-Bordeaux III, France, 2 vol, 619 p. 2002.

[5] O termo irlandês druidecht, que corresponderia a “druidismo”, é tomado na acepção moderna de magia, feitiçaria, arte diabólica, que identifica, portanto, a discrepância entre o druida antigo e o druida decadente da era cristã. In: Guyonvarc´h J-C, Les Druides, Paris: Payot, 1986, p. 383.

[6] O termo é empregado por Luciano de Samóstata ao relatar um diálogo entre um historiador grego e um indígena, portanto, um celta, a propósito da divindade adorada por este chamada Ogmios, que os gregos tratam de identificar a Hércules. Discours 1-7 “Hercule”.

[7] Um excelente estudo e apresentação das diferentes formas para o nome druida em grego e latim pode ser encontrado em Christian Guyonvarc´h, Les Druides (Annexes etymologiques, p. 425 a 444), obra que é referencia inicial e fundamental para qualquer estudo sobre os druidas na antiguidade, aqui citada na nota 5.

[8] Ver o excelente estudo disponível on-line: Lupi, João, Os Druidas BRATHAIR, 4(1), 2004:58-63. www.brathair.com

[9] AUSONE, Commemoratio professorum burdigalensium IV ; 7-10 et X ; 22-30. Poeta latino nascido em Bordeaux, (287-377) preceptor de Graciano, imperador de Roma em 367. Autor das Idílias.

[10]The complexity of Celtic religious beliefs and practices often defies easy reconstruction from material remains. For archaeology tends to uncover only the end-products of what probably elaborate and long-drawn out ritual activities. Here, therefore, we enter the fascinating realm of speculation” In: Raftery, Barry Pagan Celtic Ireland - The enigma of the Irish Iron Age, London: Thames & Hudson. 1997, p. 179.

[11] Sobre os druidas na arqueologia, devo assinalar a contribuição de Adriene Baron Tacla, doutoranda em Arqueologia Européia, St CrossCollege, Universidade de Oxford, bolsista do CNPq.

[12] Kruta, Vemceslas, Les Celtes - Histoire et Dictionnaire Des origines à la Romanisation et au Christianisme, Paris: Robert Laffont, 2000, p. 582.

[13] Webster, Jane, Roman Word Power and the Celtic Gods, Britannia, Vol. 26, 1995, p. 153-161.

[14] Neste sentido estaríamos devedores da teoria de Dumézil sobre a tripartição das funções na sociedade indo-européia e da mitologia comparada dumeziliana, que identifica sem problemas um fundo comum indo-europeu para as mitologias grega e celta. Mas até aqui estamos falando da arqueologia e da ausência de textos antigos celtas relativos aos cultos religiosos, e de um sistema de expressão figurada que não é sempre passível de paralelismo constante. Esta é a razão de se apontar, do ponto de vista arqueológico, a fragmentação relativa e a problemática análise de uma religião celta. As teorias de Dumézil foram possíveis porque trabalharam com o imenso patrimônio textual indo-europeu em seu conjunto, estabelecendo uma gênese a partir da qual se identificam processos civilizatórios análogos - a teoria da tripartição das sociedades primitivas e suas funções - real, sacerdotal e guerreira, paralelamente aos estudos de filologia e lingüística comparada.

[15] Na verdade, o único dogma que realmente podemos assegurar além, talvez, da transmigração das almas, mas este assunto não seria pertinente aqui.

[16] O termo britônico identifica a língua céltica falada pelos celto-bretões na Bretanha insular antiga - Britannia -, como também a cultura e a história dos bretões em contraposição ao termo britânico, que é moderno e surge como uma apropriação com o Tratado de União entre Escócia e Inglaterra, em 1710, dando início ao imperialismo inglês dentro e fora da “Grande Bretanha”.

[17] Até hoje nos vemos em dificuldades ao tentarmos nos desvencilhar da famosa teoria das sociedades tripartidas que deram origem à civilização indo-européia. Somos obrigados a admitir que nada apareceu ainda que possa redimensionar, através de bases sólidas, a teoria dumeziliana.

[18] Guyoncarc´h, C-J & Le Roux, F. Les Druides, Rennes: Editions Ouest-France, 1998, p. 269 (trad. nossa).

[19] Paul Russell, The Sounds of a Silence: The Growth of Cormac's Glossary, Cambrian Medieval Celtic Studies 15, Summer 1988.

[20] Existem diferentes tipos de sociedades druídicas, que possibilitam uma tentativa de classificação como a que segue: sociedades druídicas por definição, grupos paganisantes, grupos esotéricos e os neo-cristãos célticos, que demandaria não apenas uma nota, mas um outro estudo. Esta nova vertente do Cristianismo não reivindica um neo-druidismo, mas sim as especificidades do Cristianismo céltico e a recuperação de seus ritos. Ver a respeito: http://www.orthodoxie-celtique.net/, (acesso em 04.06.2006).

[21] Alguns autores consideram uma datação que se segue: Paleodruidismo de 1000 AC até 600 DC, Mesodruidismo de 1717 até hoje e Neodruidismo de 1963 até hoje. O Mesodruidismo com filiação no País de Gales e o Neodruidismo nascido nos Estados Unidos - uma espécie de dissidência da tradição que remonta aos velhos senhores do druidismo romântico, uma espécie de protestantismo druídico que se auto proclama Refomed Druids of North América (1963) combinando preces à Mãe Terra, Zen-Budismo, culto às divindades célticas e misticismo cristão. Adler, Margot. Drawing Down the Moon: Witches, Druids, Goddess-Worshippers, and Other Pagans in America Today. Third edition. NY: Penguin, 1997.

[22] Brut y tywysogyon, The chronicle of the princes: Peniarth Ms. 20 version/translated with introduction and notes by Thomas Jones Series: History and law series, Board of Celtic Studies, University of Wales; no. 11, Publisher: Cardiff: University of Wales Press, 1985 (tradução nossa).

[23] Strabon IV, 4, 4, Pline Nat. Hist. XXX, 13, dente outros.

[24] Catraeth: local da batalha em que os bretões do norte, comandados por Mynyddawg Mawr, foram derrotados, dando origem à elegia cantada pelo bardo Aneurim. Primeira menção a Arthur como personagem heróico. Aneurim faz menção por sua vez a Myrdhim como bardo-profeta dos bretões.

[25] Que, por sua vez, esteve em contato freqüente com Gerald Gardner, que primeiro introduziu a Wicca: pseudo-religião que se pretende antiga, pré-cristã sendo uma das principais vertentes do neo-paganismo moderno, que reivindica uma “sabedoria oculta” das bruxas.

[26] Gaskill Howard, (ed.) The Reception of Ossian in Europe, London: Thoemmes Continuum, 2004.

[27] JONES, Owen; WILLIANS, Edward ; OWEN, William (Eds.) The Myvyrian Archeology of Wales, The general Advertisement, Denbigh: printed and published by Thomas Gee, 1870.

[28] Morgan, Prys, 'From a Death to a View: the Hunt for the Welsh Past in the Romantic Period' In: Hobsbawm, E. & Ranger, T. The Invention of Tradition Cambridge University Press, 1983. p. 66.

[29] As migrações bretãs (ou britônicas) para o continente tiveram várias razões, mas a partir da obra de Gildas - De Excidio et Conquestu Britanniae - tornou-se quase obrigatório mencionar os saxões como principais responsáveis pelo êxodo da aristocracia em direção ao continente, pela insistência do cronista em ressaltar este fato.

[30] Apenas dois santos não vieram da ilha, segundo a tradição: Corentinus e Paternus, nativos da Armórica, o que significa que antigos laços culturais já reuniam os bretões insulares e armoricanos desde tempos remotos. Os outros santos são Aurelianus, Briocus, Tugdualus, Sampsonis, Malon, (que deu origem ao nome da cidadela de Saint-Malo, famosa pela sua história de navegação). Sobre a migração bretã para a Armórica, ver: fléuriot, Leon Les Origines de la Bretagne, Paris: Payot, 1999.

[31] Que não é nada mais nada menos do que uma reconfiguração, em tons sensacionalistas, da tese de Michael Baigent, Henry Lincoln, Richard Leigh, publicada em 1983 pela Dell Publishing Company e intitulada Holy Blood, Holy Grail, 496 p. Estamos aqui diante do que poderíamos considerar um plágio simples.

[32] Cf. nossas referências bibliográficas das obras de Gwench´lan Le Scouezec.

[33] Guiomar Jean-Yves Le Bretonisme - les historiens bretons au XIXe siècle, publié par la Société d´Histoire et d´Archéologie de Bretagne, Mayenne, 1987, 445 p.

[34] La Villemarqué, H. De La Myrdhim ou l´Enchanteur Merlin - son histoire, ses oeuvres, son influence, Paris: Terre de Brume, 1989. (1862)

[35] «...après tout, le druide et le druidisme ne subsistent que dans le domaine du littéraire et du folklorique. En Irlande, les exemplaires de l´écriture oghamique ne représentant pas un ensemble d´informations substantielles sur le druidisme et ses prêtres.» In: donnard, Ana Arthur en Bretagne, Arthur pour les Bretons, (thèse de Doctorat) Université de Rennes, 2004.

[36] Jigourel Thierry Les Druides - modernité d´une tradition millénaire, Spézet: Coop Breizh, 2000, p. 145.

[37] Guyonvarc´h, Les Druides, p. 10.

[38] O termo celtisants em francês foi primeiro empregado na historiografia literária do mito arturiano para distinguir os autores que privilegiavam a teoria da transmissão dos elementos célticos como fundadores de uma tradição literária ocidental, diferenciando-os dos romanistas, que viam nas tradições literárias francesas a fontes primordiais da matéria da Bretanha.

[39] Jigourel Thierry Les Druides - modernité d´une tradition millénaire, Spézet: Coop Breizh, 2000 (entrevista, p. 96).

[40] Citado por Guiomar, J-Y IN: Le Bretonisme, pag. 191.