Psiquê nos Domínios do Demônio – um olhar sobre a relação entre exorcismo e cura em um grupo de mulheres fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus[1]

Fernanda da Silva Pimentel[*] []

Resumo

Este artigo trata do estudo da relação entre o exorcismo praticado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a cura psíquica. Apesar de vários autores e pesquisadores já terem se dedicado a estudos sobre essa denominação religiosa a partir do tripé cura, exorcismo e prosperidade, bem como sobre papel feminino na IURD, até o momento não foram encontrados estudos relacionando especificamente a chamada "Sessão de Descarrego" com a cura de problemas psíquicos. Realizamos uma pesquisa de campo com freqüentadoras, de diferentes idades, da Igreja Universal; mulheres que apresentaram queixas relacionadas a questões de ordem psíquica e que passaram por um ou mais rituais de exorcismo dentro da IURD. O enfoque utilizado para a discussão dos dados obtidos foi o psicológico, trabalhando conceitos da Psicologia Analítica.

Palavras-chave: exorcismo, demônio, cura, feminino.

Abstract

This article analyzes the relation between exorcism as practiced by the Igreja Universal do Reino de Deus (Universal Church of the Kingdom of God) and psychological treatments. Previous studies of the IURD have examined the tripod cure, relations between exorcism and prosperity, and women's roles. The current study is unique in comparing the "Sessão do Descarrego" (discharge session) with the treatment of psychological problems. Fieldwork was conducted with women of different ages with the following characteristics: frequent IURD attendance; explicit complaints of psychological problems; and previous participation in one or more exorcism rituals. Analytic Psychology provided the concepts used for data analysis.

Keywords: exorcism, demon, healing, women, devil.

Basta entrar em um templo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) ou assistir a um de seus programas de TV para perceber que a presença feminina nos cultos é bastante significativa, chegando mesmo a representar dois terços[2] do total de fiéis.

Como entender esse fenômeno dentro de uma expressão religiosa em que as mulheres não têm poder e nem referências, uma vez que não são cultuadas imagens e a Virgem Maria é apenas considerada em seu papel de mãe de Jesus? Em um ambiente onde a submissão à vontade masculina é a regra geral? E mais, como entender essa adesão numa igreja onde a mulher é vista como "porta de entrada" do Mal?

Na realidade, a figura da mulher dentro da IURD é cheia de nuances e particularidades. O Bispo Edir Macedo faz constantes adaptações em sua doutrina e tem adotado uma postura menos radical em muitas de suas premissas. Mesmo assim, no tocante à mulher, a ênfase ainda recai sobre a importância de manter a obediência ao marido e no vínculo do feminino com o Mal.

Se quisermos então pensar em respostas para as perguntas acima formuladas, é necessário, antes, conhecer um pouco a participação da mulher dentro do Neopentecostalismo, em especial sua relação com a Igreja Universal e seus rituais – principalmente as "Sessões de Descarrego" (exorcismo), em que a presença feminina é marcante.

A) A "Mulher Universal"

A IURD reconhece a importância da mulher na vida da comunidade e coloca à sua disposição uma série de publicações – de matérias no jornal "Folha Universal" até um link específico no website "Arca Universal",[3] incluindo a revista feminina "Esther". Esses artigos e reportagens trazem diversas dicas de cuidados com a casa, com os filhos e trazem também matérias sobre profissão, saúde e beleza. Independente do tema apresentado, as publicações sempre valorizam a atitude da "mulher de Deus",[4] mas em nenhum momento destacam a importância da mulher nas questões de maior abrangência, como nas determinações e pregações da igreja, por exemplo.

A única forma de poder da mulher dentro da IURD é o trabalho de "obreira", uma espécie de auxiliar nos cultos.[5] Esse trabalho é restrito a algumas fiéis, não podendo participar, por exemplo, mulheres de pastores e bispos – a quem, muitas vezes, são delegadas funções sociais, como a coordenação de grupos de apoio. Segundo Leonildo Campos:

O crivo para uma mulher se tornar obreira está afinado com as exigências da Igreja para o exercício do pastorado. Não basta que ela seja convertida, curada, liberada dos demônios ou portadora de profundos conhecimentos intelectuais. É preciso ser "batizada com o Espírito Santo", ter um excelente testemunho dos observadores e, apresentar os "frutos do Espírito", isto é, um bom comportamento.[6]

Mesmo desempenhando a função de obreira, ao final cabe à mulher cuidar da casa, assegurando o bem-estar da família. Essa seria a vontade de Deus.

Há um livro em especial, intitulado "O Perfil da Mulher de Deus"[7] - escrito pelo próprio Bispo Macedo -, que traça o perfil que a fiel da Universal deve adotar. Entre a "prostituta endemoniada" e a "virgem submissa", Macedo coloca que a mulher tem que ser forte e passiva ao mesmo tempo, que é responsável pelo bem-estar da família, mas que, em última instância, obedece ao marido.

A mulher que não segue o caminho de Deus tem como maior problema não o temperamento difícil, mas a facilidade de se posicionar a serviço de Satanás. Edir Macedo coloca como principal exemplo desses casos a história de Semírames, rainha amante do próprio filho, que, na concepção do autor,[8] foi a responsável por introduzir um "sistema religioso oculto" desenvolvido por Satanás – possivelmente ligado às tradições religiosas anteriores ao Cristianismo, pois esse sistema tinha ligações com a magia e com o simbolismo da Lua.

Segundo a doutrina Universal, Semírames é assimilada à figura que os povos antigos denominavam "Virgem-Mãe", e foi ela que deu origem a todas as mitologias nesse sentido, enganando, inclusive, aqueles que professam o Catolicismo, pois sua representação se assemelha à imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus. Sobre o culto a Semírames, diz Macedo que "no Brasil, ela é Nossa Senhora Aparecida, a padroeira; em Portugal, a imagem tem o nome de Fátima e, no México, a Santa é a mesma, com o nome de Guadalupe".[9]

A mulher que "não é de Deus" vai então, assim como Semírames, disseminar o Mal por livre e espontânea vontade – o que nos remete às imagens de Eva e da mulher-bruxa criada pela Inquisição. Da mesma forma, mulheres que se dedicam a outras manifestações religiosas também estão associadas ao diabo.

Mulheres que vivenciam plenamente sua sexualidade e que deixam extravasar sua sensualidade por seus atos ou postura "o fazem porque têm um espírito demoníaco, chamado pomba-gira".[10]

Já a mulher que segue fielmente os passos da mulher de Deus trilha o caminho das pessoas virtuosas, como Noemi, Rute e, principalmente, a Virgem Maria.

Assim, a mulher virtuosa sabe que não pode dar vazão aos seus instintos. Investe na família, respeita o marido e tenta preservar ao máximo sua relação com ele. Edir Macedo traça em seu livro os dez mandamentos a serem seguidos pela "mulher de Deus":

Primeiro: Ela teme ao Senhor, e esse temor faz com que veja o marido como se fosse o Senhor Jesus, mesmo que ele seja incrédulo;
Segundo: Ela é sábia; por isso fala pouco ou só mesmo quando necessário. Quando a pessoa fala muito é porque é egoísta, e sempre quer impor aos outros as suas idéias e pensamentos;
Terceiro: Ela é discreta. Nunca procura chamar a atenção dos outros para si. O seu comportamento é contrário ao das mulheres do mundo. A sua fala é suave, os seus vestidos são discretos. O seu rosto pode ser maquiado, mas não mascarado; o seu cabelo é penteado, mas não de forma exótica;
Quarto: Ela é virtuosa. A mulher virtuosa é aquela que procura cuidar muito mais do seu coração do que do seu corpo. Tem, como fragrância no seu corpo, a plenitude da presença do Espírito Santo;
Quinto: Ela é forte. Não se abate diante das dificuldades. Pelo contrário, quando os momentos difíceis acontecem, surge com a determinação de Deus;
Sexto: Ela é de fé. A mulher de fé é aquela que vê nas dificuldades apenas novas oportunidades. Como a dona-de-casa, sabe fazer do limão uma boa limonada! Estimula a fé do seu marido com palavras de ânimo e coragem;
Sétimo: Ela é trabalhadeira. A mulher de Deus nunca é preguiçosa, porque tem prazer em cuidar dos afazeres de casa de tal forma que, quando seu marido chega à casa, tudo está em ordem. Ela não espera que os outros façam aquilo que é de sua competência.
Oitavo: Ela é fiel. A mulher de Deus não é fiel apenas ao seu marido, mas também à sua igreja. Sua fidelidade se faz transparecer no serviço da obra de Deus;
Nono: Ela é sensata. A mulher de Deus sabe ser cuidadosa com suas palavras, especialmente quando seu marido é incrédulo. Os lamentos e as reclamações nunca surtem bom efeito nos ouvidos de quem os ouve. Se é sensata, sabe como contornar uma situação desagradável, em vez de ficar reclamando todo o tempo;
Décimo: Ela tem bons olhos. A mulher de Deus procura ver as demais pessoas como Deus as vê. É verdade que há pessoas más e que é difícil vê-las com bons olhos, mas porque ela é de Deus os seus olhos sempre procuram ver o lado bom daquelas pessoas. É melhor ser prejudicado com bons olhos do que alcançar vantagens com maus olhos.[11]

Nesses dez mandamentos fica nítida a imagem feminina que estimula os líderes da IURD. É a mulher submissa ao marido, que fala pouco (pois suas palavras são perigosas, tanto que levaram o primeiro homem à Queda), que deve ter firmeza para manter a família na fé, mas que, ao mesmo tempo, funciona como porta de entrada do Mal.

Edir Macedo explica que a palavra "submissão" não deve ser entendida em seu sentido usual, em que um ser mais forte que exerce poder sobre outro mais fraco. Para a IURD, submeter-se significa ter prazer em servir pelo amor. Em outras palavras, a mulher de Deus se submete ao marido "(...) movida pelo Espírito do amor que há dentro dela, pois esse amor não é seu, mas vem de Deus para ser transferido aos demais, especialmente ao seu marido, que é parte do seu corpo".[12]

As fiéis iurdianas parecem assumir com alegria esse papel, não considerando sequer questioná-lo. Qualquer idéia que possa ter um cunho feminista é rejeitada, sendo considerada como uma proposta antinatural, que vai contra a vontade de Deus.

Obedecer ao marido é, na opinião de uma fiel,

Você ser uma mulher que, quando seu marido chega, você trata ele bem, você sempre faz uma comida que agrada ele... se ele tá nervoso, você procura manter a calma... nunca quando a pessoa tá nervosa, seu marido tá nervoso, você vai retrucar com ele, como ele ta fazendo, e aí sai contenda, você tem que aprender sempre isso, você manter sempre a calma, você ser uma pessoa... você mostrar Jesus pra ele, porque Jesus é... Jesus é mansidão, Jesus é domínio próprio. Agora se você, se... o seu marido, se você (...) é uma pessoa que tá sempre nervosa, você é uma pessoa que nunca sabe conversar direito com seu marido, você não leva nunca.[13]

Se a obediência ao marido está contida na palavra de Deus, a fiel da IURD a considera como um ato de tolerância e não como submissão. O homem é, sim, o "cabeça" das relações (familiares e sociais), mas, em última instância, todos estão submetidos a uma lei maior – a lei de Deus.

A mulher deve, então, servir ao marido, seja ele cristão ou não, perdoando seus erros, pois sabe que ele pode estar errando por ainda não ter tido um verdadeiro encontro com o Senhor.

O cuidado com a família é essencial, pois a mulher é considerada o esteio do lar, apesar de ter pouquíssimo poder fora dele. A esfera da mulher é a esfera doméstica e, mesmo quando há realização profissional, os assuntos familiares continuam sendo prioridade.

Nesse sentido, alguns autores como Cecília Mariz e Maria das Dores Machado colocam que a mulher vai ter a possibilidade de redescobrir e conquistar seu lugar justamente cuidando dos assuntos domésticos.

O fato de o pentecostalismo fortalecer a auto-estima das mulheres e estimular o processo de individuação feminina, não o leva a questionar os papéis tradicionais a serem desempenhados por essas. A função do homem é ser cabeça da família, no entanto tanto homem como mulher são subordinados a uma ordem divina mais forte. Ao se desviar desta ordem, o homem está sendo tomado pelo demônio (...).[14]

O que parece ocorrer dentro da IURD é que as mulheres simplesmente não querem contestar o poder masculino, mas sim reconhecer seu direito de receber as graças do Espírito Santo e praticar os rituais e correntes existentes na igreja.

Segundo Patrícia Birman,[15] uma forma de se compreender a participação da mulher dentro da igreja seria considerar que a IURD (assim como outras denominações neopentecostais) trata basicamente das aflições humanas e que esses assuntos, normalmente, pertencem à esfera doméstica.

Cabe então à mulher lidar com essas aflições, e é justamente na questão da possessão/exorcismo que a fiel vai encontrar o seu lugar de atuação: a mediação.

Para entendermos esse papel, é preciso fazer uma pausa para observar como o Mal se propaga e se manifesta de acordo com a teologia da Igreja Universal. Pra a IURD, o Mal é personificado na figura do Diabo e de seus demônios, seguindo um esquema circular e transitório, podendo passar de um indivíduo a outro, geralmente através dos vínculos familiares. Esse Mal pode aparecer de diversas maneiras, mas no geral, como constata Patrícia Birman "a fonte do mal é, pois, com freqüência, feminina".[16]

A mulher é considerada um ser mais passível de cair em tentação, sendo freqüentemente identificada como fonte do Mal. Ele, por sua vez, está vinculado às relações de parentesco direto ou, em casos específicos, parentesco distante, vizinhança e amizade - os entes malignos que mais "rondam" são, normalmente, aqueles que se encontram no corpo de quem é emocionalmente responsável pela família.

B) A possessão demoníaca e o "poder" feminino

Antes de tratarmos da possessão demoníaca iurdiana, é importante olhar para o fenômeno da possessão de um modo mais amplo.

A possessão engloba um grande número de fenômenos e atinge pessoas que não estão necessariamente dissociadas mentalmente – apesar de poderem, posteriormente, chegar a isso.[17] De um modo geral, ela indica o "tipo de relação instaurada entre aquele que entra em transe (...) e os espíritos que o possuem".[18] Para identificar os estados de possessão, utilizarei a definição do antropólogo Ioan Lewis:

É uma avaliação cultural da condição da pessoa e significa precisamente o que diz: uma invasão do indivíduo por um espírito (...) Se alguém é, em seu próprio meio cultural, considerado em termos gerais como possuído por um espírito, então essa pessoa está possuída.[19]

Estudando as sociedades onde a doença é vista como fruto da possessão maligna, Lewis nos dá algumas pistas que podem ser úteis para entendermos esse fenômeno hoje, dentro da IURD.

Ao investigar a possessão por espíritos malignos na Somália, o antropólogo identificou uma forte tendência à possessão espiritual entre mulheres. Dentre suas conclusões, encontramos a seguinte premissa:

(...) é evidente que essa aflição caracteristicamente feminina funciona, entre os somalis, como um limitado inibidor dos abusos de negligência e danos numa relação conjugal que é pesadamente desequilibrada em favor dos homens. Quando recebem pouca segurança doméstica ou são, de alguma outra forma, mal protegidas das pressões e extorsões masculinas, as mulheres podem assim recorrer à possessão por espírito como meio de arejar obliquamente seus agravos e ganhar alguma satisfação.[20]

Assim como na Somália, esse fenômeno ocorre também no Sudão, onde as mulheres possuídas por espíritos malignos podem "(...) censurar abertamente seus maridos em termos que não seriam tolerados se fossem expressos diretamente pelas mulheres".[21]

Não estou aqui tentando concluir que a possessão seja uma exclusividade feminina, nem que a mulher possuída pelos demônios na Universal esteja necessariamente manifestando problemas conjugais; o que a vivência de campo e um olhar mais apurado indicam é que há, sim, uma necessidade de lidar com um cotidiano emocionalmente oprimido, seja pelo marido, pelo dinheiro, pelos filhos, pela saúde, etc. De acordo com Leonildo Campos,

(...) sociologicamente a mulher, mantida em espaços de inferioridade, sobre os quais os homens mantêm controle, assumem virtudes associadas às classes desprivilegiadas e encontram em rituais religiosos mais ligados às "virtudes femininas", emoção, magia e sedução, espaços simbólicos para a reversão do quadro desvantajoso para elas.[22]

Em uma Igreja isenta de manifestações e poder femininos, é possível que essa seja uma forma de tomar as rédeas da própria vida, ou, nas palavras de uma das entrevistadas: "a Universal ensina a gente a ser cabeça, e não cauda".[23] Não acredito, também, que esse seja um estratagema proposital, mas sim uma busca por uma sobrevivência íntegra.

Na medida em que existe a crença no demônio e no exorcismo, os conflitos interpessoais deixam de ser considerados como conflitos de interesses, para serem vistos como fruto da possessão demoníaca de alguma das partes envolvidas. Assim, o marido que batia na mulher o fazia porque estava possuído pelo demônio; o filho só usava drogas por influência demoníaca; a depressão vivenciada nada mais era do que um impedimento da felicidade, obra do demônio, e assim por diante.

Parece então que:

Invertendo simbolicamente a relação de poder e de opressão, as mulheres não consideram que muitas vezes os interesses de seus parceiros são opostos aos seus e, conseqüentemente, não interpretam os conflitos conjugais como conflitos de interesses, mas sim como fruto da possessão pelo mal de uma das partes.[24]

Sendo constantemente possuída por espíritos malignos que assolam sua família e impedem sua felicidade, a fiel iurdiana assume, quase que automaticamente, a responsabilidade por estar liberta e libertar toda a família (seja essa família convertida ou não), mesmo que para isso seja necessário enfrentar sucessivas manifestações demoníacas. Nas pregações, "(...) o próprio Bispo Macedo da IURD ilustra casos de homens que se libertam de seus problemas com o exorcismo de suas mães que os acompanham em suas enfermidades".[25]

De acordo com uma das entrevistadas:

Eu vou porque sempre tem... sempre tem alguma coisa na vida da gente, não, não em mim (diz, enfática), mas na família, então eu vou buscar pela família, a libertação da família.[26]

Em um primeiro momento, então, é necessário que a mulher seja exorcizada e liberta dos demônios que a possuem e a afligem, para que posteriormente os "demônios familiares" circulantes possam se manifestar. Essas manifestações demoníacas se dão tanto no vínculo com suas crenças religiosas anteriores, na forma de transes, quanto no plano psicossomático, onde aparecem sintomas como depressão, irritabilidade e doenças em geral.

Com a tarefa de cuidar da família, o cuidado pessoal adquire também um novo significado. Assumindo a posição de mediadora entre o mundo do bem, do Espírito Santo e da prosperidade, e o mundo do mal, dos demônios e dos infortúnios, a mulher alcança um novo status. Antes de tudo, é preciso estar "curada" para se responsabilizar pela cura dos outros.

Além da busca pela remissão de seus sintomas através da cura espiritual, a fiel iurdiana começa a se valorizar e a cuidar de sua aparência, buscando apresentar-se de modo elegante, desde que discreto. Mas essa mulher "(...) preocupa-se com a aparência interior, porque naturalmente irá se refletir no seu exterior. Ela cuida acima de tudo do seu coração e guarda sua língua de ‘jogar conversa fora’, manifestando assim discrição".[27]

C) "Queima, em nome de Jesus!" - A Possessão como Libertação

Ao mesmo tempo em que acreditar na ação do demônio pode despertar a idéia de alienação, pois projeta a culpa pelos problemas em um agente externo, é impossível não notar que muitas fiéis da IURD conseguem dar um novo significado à sua vida e à de sua família.

Observando as fiéis iurdianas, fica claro o fato de que o demônio, por mais que retire da pessoa a culpa sobre seus atos, não tira a responsabilidade que o indivíduo tem de enfrentá-lo e libertar-se. Responsabilidade, essa, que é duplamente assumida pela mulher.

Acreditando que é seu dever libertar a família, algumas mulheres parecem encontrar uma re-significação de seu espaço dentro da IURD, e passam a ajudar a família através de suas novas práticas religiosas. Existe uma certa "valorização às avessas" do papel feminino, visto que a mulher encontra sua manifestação de poder, mas continua não questionando valores de obediência e submissão – que são encarados como respeito e tolerância, essenciais dentro da obra divina.

A família, tendo ou não membros convertidos, normalmente delega seu bem-estar espiritual à mulher. A possessão parece dar a essas mulheres a possibilidade de libertar seus "demônios", chance essa que não possuem em um cotidiano de opressão. O exorcismo traz a chance de reorganização interna, e a responsabilidade em manter-se bem acaba por levar a uma mudança de atitude.[28]

Como mediadora, a mulher assume a responsabilidade de estar bem para proporcionar o bem-estar alheio e restaurar o equilíbrio e a paz em suas vidas. É possível considerar, então, que a conversão à IURD pode ser um caminho que ajuda algumas mulheres a se afirmarem, tornando-se mais assertivas.

D) Considerações Finais

Com um perfil marcado por várias nuances, as fiéis iurdianas tentam se equilibrar e reorganizar seu cotidiano – o que, em muitos casos, conseguem com sucesso. As mulheres que redirecionaram sua vida – ou que obtiveram a "cura" através do ritual iurdiano – encontraram, de certa forma, alívio para os conteúdos opressores através da projeção da sombra (umbra) na figura do "demônio" e da catarse proporcionada pelo exorcismo ritual. Ao se reorganizarem internamente, essas mulheres conseguem adotar uma postura mais confiante, que interfere na vida familiar e social. Mediadoras entre a família e a religião, assumem uma responsabilidade que é fator coadjuvante em seu processo de cura.

Existe também, conforme visto, a possibilidade de ocuparem um lugar social que, de outra forma, não poderia ser alcançado. A visão polarizada do feminino adotada pela IURD – com figuras representantes do Bem, como Maria, e do Mal, como a Pomba-Gira – não parece ser impedimento nesse processo. Elas recuperam sua importância na estrutura familiar e, através da "submissão", conseguem aproximar a família da igreja, mantendo a união.

Assim, o papel de mediadora parece se configurar como peça fundamental do processo, pois é desse modo que elas conseguem buscar a cura de seus males para posteriormente ajudar a família a se reconstruir através da valorização pessoal (mesmo que essa valorização pareça alienante ela faz sentido dentro do grupo), mas sem esquecer o olhar atento que as resguardará do Mal.

De acordo com o perfil feminino que foi estipulado por Edir Macedo e seguido pelos líderes da igreja, a submissão ao homem permanece, mas deve ser entendida como um servir através do amor, longe de se configurar em uma aceitação irrestrita – o que seria contraditório com a doutrina da igreja, que prega a não-aceitação do sofrimento e a busca por uma vida com abundância.

Para a fiel iurdiana, é melhor ter uma família de orientação patriarcal do que não ter família. Apesar de não reivindicar direitos e de não comungar com uma visão feminista, o discurso da Universal ainda assim acena com uma possibilidade menos desvantajosa para suas fiéis.

Bibliografia

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BONFATTI, P. A Expressão Popular do Sagrado – Uma Análise Psico-antropológica da Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo, Paulinas, 2000.

CAMPOS, L.S. Teatro, Templo e Mercado: Organização e Marketing de um Empreendimento Neopentecostal. Petrópolis, Editora Vozes, 1997.

GOUVEIA, E.H. Imagens Femininas – A Reengenharia do Feminino Pentecostal na TV. (Tese de Doutorado em Ciências Sociais), PUC-SP, 1998.

LEWIS, I. O Êxtase Religioso – Um Estudo Antropológico da Possessão por Espírito e do Xamanismo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1977.

MACEDO, E. O Perfil da Mulher de Deus. Rio de Janeiro, Editora Gráfica Universal, 2002.

____________ Orixás, Caboclos e Guias – Deuses ou Demônios? Rio de Janeiro, Editora Gráfica Universal, 2000.

MARIANO, R. Neopentecostais – Sociologia do novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Edições Loyola.

MARIZ, C.L., MACHADO, M.D.C. Pentecostalismo e a Redefinição do Feminino. In Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, ISER, v. 17, nº 1-2, 1996.

TERRIN, A.N. O Sagrado Off Limits: A experiência religiosa e suas expressões. São Paulo, Loyola, 1998.

Notas

[*] Fernanda da Silva Pimentel: Formada em Psicologia pela Universidade Mackenzie, pós-graduada em Abordagem Junguiana (COGEAE-PUC/SP) e Mestre em Ciências da Religião pela PUC/SP. Atua desde 1997 como psicóloga clínica.

[1] Artigo baseado na Dissertação de Mestrado: Quando Psique se liberta do demônio – um estudo sobre a relação entre exorcismo e cura psíquica em mulheres na Igreja Universal do Reino de Deus. Mestrado em Ciências da Religião, PUC-SP.

[2] Cf. Leonildo S. CAMPOS. Teatro, Templo e Mercado: Organização e Marketing de um Empreendimento Neopentecostal. Petrópolis, Editora Vozes, 1997, p.439.

[3] Endereço disponível para acesso na internet: http://www.arcauniversal.com.br

[4] Expressão utilizada pelos pastores para denominar as fiéis da igreja.

[5] Ricardo Mariano e Leonildo Campos colocam que no início da IURD algumas poucas mulheres chegaram a ter o cargo de pastoras, mas saíram para fundar uma nova denominação, por discordar de alguns conceitos da Igreja. Para maiores informações ver Ricardo MARIANO. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São Paulo, Edições Loyola, 1999 e Leonildo S. CAMPOS, op.cit.

[6] Leonildo S. CAMPOS, op.cit, p.445.

[7] Este livro faz parte de uma série composta também pelo Perfil do Homem de Deus e pelo Perfil da Família de Deus, ambos escritos por Edir Macedo e publicados pela editora da Universal.

[8] Cf. Edir MACEDO. O Perfil da Mulher de Deus. Rio de Janeiro, Editora Gráfica Universal, 2002.

[9] Ibid, p.27.

[10]Ibid, p.38.

[11] Edir MACEDO,op.cit, p. 67-71.

[12] Edir MACEDO, op.cit, p. 40.

[13] Em depoimento colhido durante a nossa pesquisa de campo.

[14] Cecília MARIZ e Maria das Dores C. MACHADO. Pentecostalismo e a Redefinição do Feminino. In Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, ISER, v. 17, nº 1-2, 1996, p 149.

[15] Cf. Patrícia BIRMAN. Mediação Feminina e Identidades Pentecostais. In Cadernos Pagú, Campinas, UNICAMP nº 6-7, 1996.

[16] Idem, p.214.

[17] Cf. Ioan LEWIS. O Êxtase Religioso – Um Estudo Antropológico da Possessão por Espírito e do Xamanismo. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977, p.52.

[18] Aldo N. TERRIN. O Sagrado Off Limits: A experiência religiosa e suas expressões. São Paulo, Loyola, 1998, p.122.

[19] Ioan LEWIS, op.cit, p.52.

[20] Idem, p. 92. O autor trata também de uma série de casos ocorridos na África e em outros continentes, todos com o mesmo perfil.

[21] Idem, p.98.

[22] Leonildo S. CAMPOS, op.cit, p.448.

[23] Em depoimento recolhido durante a pesquisa de campo.

[24] Cf. Maria das Dores MACHADO e Cecília MARIZ, op.cit, p.150.

[25] Maria das Dores MACHADO e Cecília MARIZ, op.cit, p 151.

[26] Em depoimento colhido durante a pesquisa de campo.

[27] Edir MACEDO, op.cit, p.38.

[28] É importante lembrar que este artigo trata dos casos onde essa reorganização efetivamente aconteceu – o que não representa todos os casos existentes na IURD. Parece haver uma predisposição psíquica nas mulheres que concretizam essas mudanças, hipótese que não foi levantada no presente artigo, mas que é trabalhada na Dissertação Quando Psique se Liberta do Demônio – um estudo sobre a relação entre exorcismo e cura psíquica em mulheres na Igreja Universal do Reino de Deus.