Os Universitários e a Transcendência - Visão geral, visão local

Jorge Claudio Ribeiro[*] []

Resumo

Este artigo baseia-se na pesquisa “Perfil da Religiosidade do Jovem Universitário”, conduzida desde 1997 por professores do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP. Entendemos “religiosidade” como uma dimensão humana, determinada pela história (social e pessoal) e pela cultura, que se articula à existência em sua totalidade dentro da construção de sentidos. Compartilhamos da intuição de teólogos como Torres Queiruga, Karl Rahner, João B. Libânio, Schillebeeckx e das abordagens de Weber, Georg Simmel e Danièlle Hervieu-Léger. A pesquisa mostra que a religiosidade do universitário é intensa e fluida, e encontra dificuldades em se traduzir em linguagens e ações. Essa energia pode permanecer oculta, estéril, desperdiçada; se dispuser de um universo de linguagem para expressá-la, porém, a juventude conseguirá reelaborar os materiais da tradição à luz de suas vivências geracionais e pessoais. Este artigo parte da construção histórica da juventude contemporânea; analisa sua relação com as religiões, tanto na juventude “em geral”, como nos sujeitos de nossa pesquisa; conclui com as imagens sobre Deus como expressão da religiosidade mais profunda.

Abstract

The article is based on a research on religious profiles of students at the Pontifícia Universidade Católica of Sao Paulo, Brazil, conducted since 1997 by teachers of the Department of Theology and Comparative Religion. In terms of theory the project is influenced by the approaches of Torres Queiruga, Karl Rahner, João Batista Libânio, Schillebeeckx, Max Weber, Georg Simmel and Danièlle Hervieu-Léger. One of the core category is “religiousness” defined as a historically and culturally determined human feature to construct meaning by referring to the totality of existence. In its first part the article elaborates a concept of contemporary youth. The second part analyzes its relation to religion. The final part summarizes some of the projects main results. Maybe the most important finding is an often indicated intense “floating” religiousness which can hardly be expressed through a common religious symbolic but which is frequently associated with an diffusely qualified “energy” and one can assume that those who had made spiritual experiences of that kind are in an albeit “open” process of reformulation of their former more traditional religiousness.

Apresentação

A experiência generacional e singular do jovem contemporâneo é o ponto de partida para seus trajetos de transcendência. Tais itinerários ora dispensam mediações, ora fabricam imagens de Deus, uma modelagem que incorpora materiais de diversas procedências: uma religiosidade típica, fatos históricos e políticos, condições sociais e produção artística amalgamados pela circunstância própria de cada indivíduo. Os traços mais marcantes da imagem do transcendente e as relações que ela intermedeia provavelmente permitirão identificar importantes aspectos da religiosidade juvenil. A análise que se segue representa uma tentativa de interpretação dos dados levantados pela pesquisa “Perfil da religiosidade do universitário – estudo de caso na PUC-SP”.[1] O primeiro momento desse trabalho foi qualitativo, com 19 entrevistas baseadas num roteiro aberto e que forneceram o material básico para elaboração de um questionário composto por 68 afirmações (com gradações de 1 a 8 cada). Na etapa quantitativa, no ano 2000 esse instrumento de investigação foi aplicado a 1.032 sujeitos, resultando uma massa considerável de informações.

A etapa atual é de interpretação dos dados, em que foram retomadas as entrevistas iniciais e incorporadas novas entrevistas qualitativas, experimentos pedagógicos, pesquisas e análises produzidas por outros grupos de pesquisadores, inclusive estrangeiros. Nessa direção, já foram publicados alguns artigos.[2] No momento, estamos construindo uma série histórica mediante nova aplicação do questionário, já aperfeiçoado.

Nosso conceito de partida é o termo “religiosidade”, que caracterizamos como “uma dimensão própria do ser humano, histórica e culturalmente determinada, e que se manifesta como construção de sentido articulado à totalidade da existência”. Com Libânio, assumimos que a religiosidade é uma dimensão antropológica, vivida em maior ou menor intensidade por todo ser humano, conforme a cultura e o gênero. Essa formulação se aproxima da proposta pelo teólogo José Severino Croatto, para quem “mesmo que a finalidade da vivência religiosa seja transcendente (por enquanto ‘o sagrado’), trata-se de uma experiência humana, própria do ser humano e condicionada por sua forma de ser e pelo seu contexto histórico e cultural.”[3]

Nossa intenção é recuar até um “grau zero” da crença, ou da não-crença, um lugar existencial onde se elaboram valores e sentidos. Assim, nos ativemos à conotação etimológica de “religiosidade” (religar, reler, reeleger), que é adequada à definição que propúnhamos. Percebíamos que a secularização no Ocidente e a desregulação das instituições religiosas são uma oportunidade riquíssima para a contemporaneidade abrir espaço para uma religiosidade “humana”, que antecederia as religiões. A partir dessa conceituação básica, pode-se postular uma “religiosidade crente” ou “secular”.

Vários pesquisadores admitem com naturalidade uma abordagem que postule a existência de uma dimensão humana capaz de gerar formas cognitivas e emocionais de construção de sentidos e que assume formatos diversos. Alguns autores utilizam expressões como “fé” (Pascal/ Lucien Goldmann) relacionada a valores, “religiosidade laica” (Eco), “emoção das profundezas” (Durkheim), “energia crente” (Michel de Certeau), “existencial sobrenatural” (Karl Rahner), “sagrado” (Otto). Por se encontrar em fase de elaboração conceitual, esse campo ainda não tem uma terminologia consolidada e, dentro do repertório disponível, qualquer expressão adotada suscitará a mesma objeção.

Parte 1- A constituição da juventude contemporânea

Entre os pesquisadores atuais sobre a juventude há consenso de que essa não é uma condição apenas biológica, mas que resulta de dinâmicas de várias origens. Tal diversidade se deve à teia em torno do jovem, de relações que conferem significados e definem suas formas de inserção na vida das sociedades. Assim, a história da juventude é a história dos modos como ela foi pensada e socialmente “fabricada”. Farta bibliografia descreve vias de construção histórica da juventude no Ocidente.[4]

Construção

O recente processo ocorrido em países centrais do capitalismo apresenta interesse porque, embora cada sociedade tenha sua originalidade irredutível, o segmento universitário se assenta num ambiente comum, globalizado e secularizado. A partir do fim da Primeira Guerra, ocorreu nas sociedades modernas uma acelerada perda de importância dos ritos tradicionais de passagem. O alongamento progressivo da escolaridade, a indeterminação das fronteiras de idade e a desconexão dos portais de acesso à maturidade suprimiram aos ritos de passagem uma eficácia antes indiscutida como forma de sancionar o acesso à idade adulta. Os traços da juventude moderna foram sobretudo construídos nos EUA, que implantou a escolarização precoce e ampliada. Uma instituição central na cultura jovem nos anos 60 é “marcar encontro” (dating), ritual que obedecia a um sistema de avaliação de prestígio, veiculado através dos jornais escolares. Esse sistema declinou nos anos 70 com a ampliação dos valores hedonistas e individualistas que avaliam as relações interpessoais segundo o prazer intrínseco que trazem. Surgiam novos ritos. Por exemplo, os concertos de rock, onde as posturas corporais, o cenário, o transe emocional produzido pela música e a crescente simbiose do público com os músicos realizam uma cerimônia iniciática de integração grupal.

O itinerário apresentado ilustra a forma como a juventude atual resultou da ação de forças sociais. Destaco duas dimensões mais freqüentes nesse “segundo nascimento”: a imaturidade e a passagem para a vida adulta. Enquanto que, no nascimento inaugural, o indivíduo “é nascido”, neste segundo o jovem em parte “se nasce” para a autonomia e a sociedade adulta, sendo-lhe exigida participação num processo pelo qual é o principal responsável, mas sobre o qual nem sempre tem controle. Algumas vivências são próprias dessa fase: a descoberta da alteridade, a experimentação e construção de significados, a capacidade de optar e romper com os cordões umbilicais e a busca de condições para exercitar essas capacidades. Nesse quadro, a religiosidade se coloca no centro do “ser jovem”, visto conferir-lhe transcendência e sentido para a totalidade da existência. Uma dentre outras energias, a religiosidade é fundamental para o jovem levar a bom termo sua maturação.

Novo ator social

A entrada do jovem atual na vida adulta é cada vez mais tardia. Essa passagem se baliza por três eventos principais: o começo da vida profissional, a saída da casa da família de origem e a fundação de uma nova família.[5] Nas gerações recentes, o avanço para o status de adulto apresenta uma de-sincronização das etapas acima. Verifica-se profunda alteração no modelo de socialização e aprendizagem dos papéis adultos. De preferência a um modelo tradicional de identificação, o jovem atual se depara com a possibilidade de experimentação e sua autodefinição é construída ao longo de uma série de acertos e erros. Poderosíssimos fatores sociais tornam essa fase experimental cada vez mais longa e geram novas definições da juventude. Cortejada pela mídia, disputada pelo comércio, cultivada em estufa pela escolarização estendida e afastada do contato com modelos tradicionais, a juventude se vê urgida a assimilar estilos de vida moldados por essas agências de socialização. Assim, nos anos 60 explodiu uma cultura juvenil aparentemente autóctone, com uma visão própria do mundo e práticas exclusivas de lazer e consumo. Nesse processo, a juventude viu-se engolfada numa dinâmica contraditória. Ao mesmo tempo em que era proclamada como novo ator social e cultural (não importando o que tenha realizado), ela não representava para ninguém, a não ser para si mesma. Era a indução ao individualismo, na verdade um confinamento transfigurado como filosofia de vida.

Segundo Eric Hobsbawm “a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.”[6] Dessa forma, desintegraram-se os velhos padrões de relacionamento social humano e os elos entre as gerações se quebraram: “Isso ficou muito evidente nos países mais desenvolvidos da versão ocidental de capitalismo, onde predominaram os valores de um individualismo associal absoluto [...] reforçados pela erosão das sociedades e religiões tradicionais.”[7] As sociedades modernas, mesmo as que parecem cultivar os traços de seu passado, são cada vez menos regidas pela memória. Segundo Hervieu-Léger, “a memória coletiva perde seu caráter ativo e se constitui como um patrimônio de lembranças que não mobiliza mais uma crença comum: trata-se mais de uma tradição sem crença.”[8] Esvaziadas de suas tradições, as sociedades seguem o imperativo do imediato, o que as leva a erigir a inovação como regra de conduta.[9] A urbanização universalizou a exigência de educação secundária e superior como uma necessidade para se obter emprego. Na década de 60, os estudantes já eram uma força social e política muito importante, fato que até então passara despercebido pelas estatísticas. Na década de 70, o número de universidades quase dobrou no mundo.[10] Estava em curso uma revolução mais ampla, de valores e costumes. Essas transformações forneceram o cenário ideal para a cultura jovem, de tipo “modernizante”. De modo geral, essa nova cultura representa uma tripla novidade. Primeira, a juventude deixou de ser vista, nem assim se encara, como um estágio preparatório para a vida adulta e sim como realização do pleno desenvolvimento humano: a partir do fim da década de 60, tendeu-se a baixar a idade eleitoral e o consentimento para o início da vida sexual. Indício dessa dinâmica é a disseminação irresistível, nos anos 1968-9, de slogans como “tutto e subito” ou “tout, tout de suite”. Segunda novidade foi a aclamação, pelos fabricantes de bens de consumo, do adolescente como ator consciente de si mesmo, fato que dominou as economias de mercado, pois formou-se uma massa demográfica homogênea dotada de poder de compra. A descoberta desse mercado jovem ocorreu em meados da década de 50. Assim, os jovens passaram a ser socializados como geração autoconsciente e autônoma. Perdendo influência, e perplexos, os pais (também educadores, religiosos etc) cederam a iniciativa: “O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se menos óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos, sim. Inverteram-se os papéis das gerações.”[11] Terceira novidade é o espantoso internacionalismo na nova cultura jovem urbana.[12] Em tempos de globalização, essa condição é extremamente favorável à produção em escalas gigantescas de mercadorias voltadas para o “segmento jovem” (que inclui consumidores de outras idades).

A hegemonia da juventude no centro do palco social se consolidou no nível ideológico. Em primeiro lugar, através da indústria cinematográfica norte-americana, a única com distribuição global maciça.[13] Outro construtor de hegemonia era a indústria fonográfica, cujas vedetes (artistas e compositores) e shows - verdadeiros rituais - difundiam e consolidavam filosofias e palavras de ordem adequados ao público juvenil.[14] Cada vez mais afastada da experiência das gerações anteriores, e rotulada como um voraz mercado consumidor, a juventude via à sua frente um caminho fácil para elaborar símbolos de uma identidade nova, baseada no consumo de produtos oferecidos por uma mídia onipresente, cada vez mais insinuante. Essas mudanças se articularam no interior de um modo de vida que alcança toda a sociedade e que foi preparado por práticas fordistas - presentes na produção em massa, de habitações, refeições e nas viagens - e por invenções implementadas nas guerras mundiais. Disseminou-se o uso do automóvel, telefone, geladeira, lavadora de roupas, plástico, transistor, televisão e computadores pessoais. Tudo era adquirido em prestações e depois através de cartão de crédito. Os antibióticos e a pílula abriram o caminho para a revolução sexual. A tecnologia invadiu o cotidiano na miniaturização de produtos, técnicas e processos e levou à substituição de mão-de-obra.[15] Essa vida experimentada “na massa” sucumbiu perante o consumo individualizado “de massa”, de produtos e de lazer.[16] A pobreza de articulações sociais abriu o caminho para a ascensão do consumidor isolado.

Individualização

Na base do conceito de secularização está a afirmação da autonomia de um indivíduo capaz de construir o mundo e as significações para sua existência em oposição às sociedades tradicionais, governadas por crenças irracionais que se impõem a partir do exterior. Esse conceito foi elaborado por Weber e serviu de referência a gerações de sociólogos das religiões.[17] O movimento atual de individualização tem raízes religiosas. No cristianismo, o calvinismo foi quem levou mais longe essa lógica, a partir da concepção de que o crente se confronta de modo radicalmente individual com a questão de sua salvação. Em todos os aspectos de seu cotidiano e especialmente em sua vida profissional, cada um deve encontrar a confirmação de que está pessoalmente salvo, sem mediação entre ele e Deus. À semelhança do livre exame da Bíblia e à medida que se alfabetizava, a partir do fim do século XVIII, a população nos países desenvolvidos abandonou a leitura e comentário coletivos de livros e jornais em prol da leitura individual. O romantismo e, no seu rastro, o modernismo e o existencialismo incorporaram esse estado de espírito secularizado. Nas artes, já em 1914 estava a postos tudo o que se podia chamar de “modernismo”: cubismo, abstracionismo, funcionalismo arquitetônico, atonalismo musical e rompimento com a tradição literária.[18] Amplamente divulgado por diversos tipos de obras, um difuso “estado de espírito existencialista” articulava temas como a liberdade, a autoconstrução, a responsabilidade ética do sujeito e a rejeição de tutelas exteriores e que foram ocupando uma posição central na sensibilidade contemporânea. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, a individualização se impôs como afirmação da capacidade de o indivíduo construir um sistema próprio de referências e abrir seu lugar numa sociedade sem regulação central, devendo safar-se com o que está a seu alcance.[19] A liberação social em todos os âmbitos passou a ser elaborada dentro de uma lógica individual.

Um novo individualismo moral contemplou sem luto o desabamento fulminante da influência da família e das igrejas organizadas tradicionais nos últimos 30 anos do século XX. Afrouxou-se também o papel de agências de cooperação social e de formulação moral, como sindicatos, parlamentos e sistemas públicos de mídia. Essas transformações são a manifestação, no âmbito da sociedade civil, da redução de poderes do antigo Estado-nação territorial em prol da economia transnacional. Dessa forma, passou-se a viver “num mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos.”[20] A eternização de uma juventude que ocupa um lugar central na cultura enfraquece a dialética da preparação-positividade. Se todo mundo é jovem, ninguém mais é jovem, pois não há contrastes. Esvai-se a dramaticidade da existência, desprovida de preparações, opções, esperas e riscos. Não é mais necessário crescer; autonomizar-se deixou de ser um horizonte. Em nossas sociedades se inverteu simbolicamente o valor social associado a um nível de idade: perdeu importância a aquisição da sabedoria e autoridade associadas à idade madura.[21] Para exercer um papel hegemônico que não conquistou, o jovem utiliza o poder de compra. Mantido em estado púbere e desprovido de modelos tradicionais, quando se completa sua formação escolar, enfim o jovem precisa dar seu passo. Enquanto fazia seus ensaios, apegava-se a relacionamentos pouco conflitivos e desenvolvia uma tolerância fácil que não necessitava de regras.[22] Nesse quadro de uma sociabilidade entre iguais, cresce a convivência entre os amigos e a familiar diminui.[23] As formas de socialização juvenil merecem toda atenção, pois servem de ensaio e apoio para que se avance em direção à vida adulta. A sociabilidade é um elemento central na religiosidade do jovem porque representa um ambiente de elaboração de sentido e de valores, de permuta e de expansão do ego em direção à alteridade.

Parte 2- Relação com as Religiões

Visão Geral

Embora nosso foco de interesse seja a religiosidade, as religiões ainda são importantes na cultura contemporânea na medida em que continuam a produzir sentido, mesmo que tenham perdido a hegemonia tradicional. Além disso, como veremos na seção Visão Local, as religiões ainda são referência importante para o universitário: como ambiente de sociabilidade, como estoque simbólico, como tecido sobre o qual ele tece seu patchwork[24] de crenças e experiências, ou ainda como referência daquilo que ele não quer para si.

Secularização

Sendo um dos pilares da modernidade, a secularização pretendeu introduzir, em todos os domínios, a racionalidade. Esta é entendida como um imperativo de adaptação coerente dos meios aos fins que se pretende. Weber aponta outra característica das sociedades secularizadas: em oposição às sociedades tradicionais regidas por “crenças irracionais” e pela manipulação mágica, nelas o indivíduo-sujeito afirma sua autonomia à medida que constrói racionalmente o mundo e as significações desse processo. Em terceiro lugar, a secularização induz a especialização dos diferentes domínios da atividade social, que passam a funcionar segundo regras próprias. Em último lugar, ao se atribuírem valores e leis próprias, essas esferas tendem a se autonomizar e a concorrer entre si: dessa concorrência resultam novas formas conflitivas de interação.[25] Do lado das religiões, ocorre um fenômeno paradoxal. As grandes explicações religiosas perderam impacto e público, mas, quanto mais acelerada a mudança, mais proliferam novas crenças. Ao contrário do que se poderia esperar, a modernidade não destrói a religião, antes impulsiona novas formas de religiosidade e gera ressignificações do crer num ambiente de insegurança. Por isso, as crenças religiosas contemporâneas são cada vez mais voltadas para este mundo, em detrimento de uma dimensão extramundana.

Desregulação- “Crer sem pertencer”, “símbolos sem referência”, “laicidade”, “catolicismo sem cristianismo”, “religião civil”, “diluição confessional”, “sacralização do Estado”, “desencantamento do mundo” são expressões freqüentes nas análises dos sociólogos das religiões. Elas apontam matizes de desregulação religiosa, revelada pelas versões da gigantesca pesquisa “Valores dos europeus”, de 1981, 1990 e 1999. Uma constatação comum às situações analisadas é a mudança de referenciais. Tradicionalmente, os elos sociais ocorriam em ambientes territorializados (país, família, paróquia) em geral estáveis, e os quadros unificadores de sentido baseavam-se sobre o contínuo e o invariável, referindo-se a verdades intemporais. Na contemporaneidade, relaxam-se os elos dos indivíduos com as instituições e, embora estas permaneçam importantes pólos de referência simbólica na construção de identidades coletivas, passam a multiplicar-se redes de interesses especializadas que são objeto de escolhas sucessivas.[26]

As pesquisas analisam um generalizado esvaziamento na prática ritual, na crença e na pertença religiosas. A “sangria ritual” é espetacular entre os jovens, e cada nova geração começa sua vida religiosa num nível de prática inferior à da precedente. Uma das razões desse fenômeno está no distanciamento atual entre o ensinamento moral das igrejas e a cultura dos jovens (sobre questões familiares e da vida privada, como a sexual). Na modernidade, a pertença herdada é substituída pela adesão personalizada e modulada: “Tolerante e consumidora, a nova geração mostra-se pouco inclinada a retomar uma tradição religiosa específica. Um hábito religioso, sim; uma tradição confessional, não.”[27] Surgem, assim, novas formas de pertença fundadas sobretudo em comunidades emocionais.

Bricolage- Num ambiente de secularização e de enfraquecimento das instituições guardiãs das regras da fé, a iniciativa cabe cada vez mais ao indivíduo, sobretudo o jovem, devidamente “civilizado” pela modernidade. O aspecto mais incisivo é a proclamação do direito individual à escolha religiosa, acima do dever de fidelidade a uma tradição herdada - 71% dos jovens europeus com mais de 18 anos afirmam que cada um deve definir para si sua religião, independentemente das igrejas; 83% declaram sua consciência como autoridade maior nas decisões de sua vida; apenas 16% concordam que só há uma religião verdadeira. Essa nova liberdade religiosa incorpora duas tendências centrais na cultura secular: a individualização (cada indivíduo elabora um sistema próprio de crenças) e a subjetivação (o campo privilegiado das crenças é a experiência pessoal). A lógica “elaboro-minhas-crenças-a-partir-da-minha-vida” está presente numa série de fenômenos, não só religiosos. Essa lógica privilegia a moral da realização pessoal, deixando a ética do sacrifício em segundo plano. Associado a esses fenômenos, o bricolage designa um fenômeno importante: cada pessoa hoje tende a elaborar uma religião à la carte e fazer suas experiências, mantendo autonomia e disponibilidade. O termo “bricolage” foi proposto por Lévi-Strauss para descrever a maneira como os mitos são pouco a pouco construídos, a partir de materiais de origens diversas. Cada qual tece seu pequeno relato crente servindo-se de palavras “desorbitadas”, oriundas de diferentes sistemas. Os pesquisadores apontam uma positividade no bricolage, que seria indício de interesse pelo transcendente: 18% dos jovens franceses com mais de 18 anos admitem ter rompido com a fé. Esse interesse se concretiza num espiritual desligado da religião de origem e na valorização de crenças que fazem sentido para cada sujeito. Liliane Voyé afirma que o bricolage não é diletantismo e sim uma construção pessoal a partir dos recursos simbólicos elaborados pelos sistemas de crenças. O bricolage está na origem de redes de busca partilhada de um sentido que nasce da vivência concreta de cada pessoa e nas quais a dimensão afetiva é essencial. Mais que apoiar-se em ensinamentos dogmáticos, seu objetivo é perceber Deus em circunstâncias em que assume um rosto. Jean-Paul Willaime define o bricolage como “um religioso selvagem, informal, disseminado que, desconectado dos grandes aparelhos do crer, pode reportar-se a eles de modo esporádico utilizando algumas de suas ofertas.”[28] Obviamente, nem todos os indivíduos têm a mesma competência bricolante, que depende de condições sociais e se apóia em características individuais. A lógica dos bricolages passa pelas condições sociais de acesso a fontes simbólicas desigualmente disponíveis e às condições culturais de manejo dessas fontes.

Recomposição e validação

Se, à desregulação institucional das religiões em vastos ambientes racionalizados do Ocidente somou-se a liberdade de tecer crenças a partir da própria experiência, o que se sucedeu, então? Um deserto espiritual? Um vale-tudo individual? Paradoxalmente, a ampliação da liberdade individual no nível da crença desembocou em novos tipos de vida comunitária. Na perspectiva de nossa pesquisa, o que possibilita o trânsito entre a situação anterior “regulada” para uma configuração mais ou menos individualizada é justamente a existência de uma religiosidade de fundo, uma necessidade humana anterior à religião e/ou à não-crença e que está na raiz de toda construção de um sentido transcendente para a existência. Do ponto de vista sócio-psicológico, o que motivou a explosão de novas formas de comunalização? Elas se devem à urgência de validação da experiência subjetiva. Tradicionalmente, as grandes religiões impuseram seu regime de validação mediante autoridades reconhecidas (padres, rabinos, imãs) que definem regras que representam, para os indivíduos, os marcos estáveis da crença e da prática. Embora a assimilação pessoal da mensagem oficial sempre tenha sido reconhecida por instituições religiosas, a novidade é que, coerente com o cenário contemporâneo de explosão de limites, a fé subjetiva reivindica crescente autonomia e hegemonia. Esse novo status não significa solipsismo nem tampouco fundação de novas religiões. As afinidades espirituais, mais ou menos reconhecidas entre os envolvidos, os associam numa fluidez típica da sociabilidade moderna, mas não são propriamente religiosas, pois lhes falta a referência comum a uma verdade partilhada, constitutiva de uma tradição. O fato é que, “quanto mais os indivíduos bricolam o sistema de crenças que corresponde a suas necessidades, mais aspiram a permutar essa experiência com outros que têm o mesmo tipo de aspirações espirituais... Para estabilizar as significações que produzem a fim de dar um sentido a sua experiência cotidiana, os indivíduos raramente se contentam com sua convicção própria. Necessitam encontrar fora deles a garantia de que suas crenças são pertinentes.”[29]

Visão Local

As falas dos universitários da PUC-SP apresentadas nesta seção têm um caráter polissêmico e, portanto, devem ser decodificadas pelo pesquisador. Esse risco é necessário, pois permite avançar no caminho em que as interpretações se entrecruzam e complementam. A presente seção reinterpreta alguns temas suscitados na parte anterior. Cada item da Visão Local está dividido em duas subseções: resultado quantitativo e resultado qualitativo. O quantitativo apresenta totalizações do questionário aplicado naquela universidade e seu caráter é indicativo, pois as frases são genéricas e por isso não explicitam toda a vivência singular dos respondentes. Partindo das indicações do material quantitativo, o qualitativo exige maior intervenção heurística, que se entretece com as citações das entrevistas qualitativas iniciais e dos comentários livres dos sujeitos (feitos ao final dos questionários). As citações possuem teor ilustrativo e não devem ser entendidas como prova da interpretação desenvolvida, a qual se baseou num corpus mais amplo, não transcrito neste texto em sua integralidade (ver ao final do relatório da pesquisa).

Religiões: respeitáveis e secundárias

Resultado quantitativo

A média das frases computadas no questionário indica uma forte relativização das religiões, por parte dos universitários, no interior de uma visão típica de seu grau de escolaridade. É atribuída a essas instituições uma relevância secundária frente a outras vivências. Isso se confirma na baixa média atribuída a frases que conferem um valor de exclusividade à religião e à igreja a que se pertence.

Relativização
A fé é mais importante que as crenças e religiões (3ª posição- média 6,44)
A verdade está acima das religiões (9ª posição- média 5,80)
Na minha família há momentos de energia espiritual (36ª posição- média 4,71)
Minha família tem intensa experiência religiosa (45ª posição- média 4,42)
A religião é a única solução para este mundo (60ª posição- média 2,59)
Relaciono-me com Deus exclusivamente através da minha religião (61ª posição- média 2,44)
Exerço minha espiritualidade exclusivamente com o grupo da minha igreja (67ª posição- média 1,92)

A posição das primeiras frases dá indícios de que o jovem não considera serem as religiões nem as únicas nem, talvez, as mais importantes formadoras de sentido. Isso fica claro na inequívoca afirmação de que crenças e religiões detêm importância menor do que a fé e a verdade (3ª e 9ª posições- essas frases serão retomadas no item 2b.3, abaixo). Tal atitude se reforça mediante a comparação com as frases no final da lista, onde se situam aquelas com palavras como “única” e “exclusivamente” e que apresentam médias muito baixas. O alto grau de resistência sugerido pela fraca posição mostra uma visão e experiência pluralista do fenômeno religioso. Um fator a ser considerado nesse conjunto é a influência da família. A posição das duas frases a respeito dela (36ª e 45ª) parecem confirmar pesquisas que apontam uma influência decrescente da família, especificamente na transmissão religiosa. No entanto, esse papel é mais significativo que as religiões e não desapareceu, pois é no âmbito familiar que nossos sujeitos de alguma forma experimentam energia espiritual, ainda ligada à tradição religiosa. Possivelmente, tal experiência seja contrastada pela influência de outras agências, como a própria universidade (muitos sujeitos são os primeiros do grupo familiar a nela ingressar).

Criticidade
Minha fé me permite criticar minha religião (32ª posição- média 4,93)
As religiões usam nossos sentimentos para nos manipular (44a posição- média 4,47)
Eu me afasto quando minha religião começa com cobranças (51a posição- média 3,81)
Deus é uma criação exclusivamente humana (52a posição- média 3,59)

À primeira vista, as posições médias das frases acima apontariam para uma baixa intensidade na crítica dos universitários. No entanto, se for levado em consideração que provavelmente as religiões sejam um tema secundário para eles, tal condição explicaria uma certa moderação na abordagem. Há outras pistas a considerar. Como foi apontado, a frase de maior média neste segmento mostra que, sendo a fé mais importante que a religião, a crítica à igreja a que se pertence se faz em nome dessa mesma fé. Trata-se, pois, de uma análise comprometida e não diletante, genérica. Outra questão é que a manipulação dos “nossos sentimentos”, por parte das religiões, é possivelmente avaliada como uma forma mais grave de mentira do que uma falsa argumentação. A emoção é a via mais valorizada na modernidade de contato com o sagrado e, portanto, a manipulação emocional, na qual a pessoa está particularmente vulnerável, é considerada uma agressão. A 51ª posição da frase que se refere a afastamento da própria religião quando ela “começa com cobranças” indica o baixo nível de efetividade na pressão que a instituição costuma ou pretende fazer, pois uma fraca autoridade moral não motivaria alguma ruptura. A baixa média dessa frase confirma a reduzida importância, para o jovem, da instituição religiosa como produtora de sentido. Finalmente, a última posição da frase desse item sinaliza uma crença de base em Deus aliada a uma rejeição, já observada, ao termo “exclusivamente”, o que confirma uma abordagem moderada do fenômeno: baseados em análises científicas, nossos sujeitos sabem que as religiões são, de fato, criação humana. Mas deixam espaço para “algo mais”. Esses dados quantitativos serão qualificados a seguir.

Resultado qualitativo

Nesta subseção, a interpretação se apóia em citações retiradas das entrevistas qualitativas iniciais e dos comentários dos sujeitos ao final do questionário. O material permitiu distinguir eixos dialéticos sobre as religiões: avaliações favoráveis; críticas; aceitação da contradição. Antes da análise de cada eixo, é preciso considerar que se trata de sujeitos universitários, que entendem as religiões como uma entre outras instituições formadoras de sentido: “A religião tem importância social significativa, porém não é a única esfera significativa no mundo moderno”. O estudo da religião é importante “para se ampliar o conhecimento científico”, mas deve manter um distanciamento crítico. Em nível pessoal, muitos estudantes questionam sua religião de origem, cuja influência admitem, mas sentem uma incômoda falta de respostas, traduzida como um descompasso entre a crença original e o crescimento pessoal e a cultura moderna. O primeiro eixo reúne variada gama de atitudes favoráveis à instituição religiosa. No entanto, uma ausência chama a atenção: a atitude de glorificação da “minha religião”, enquanto verdade única. Por isso, se valoriza a liberdade de convicção: “Cada um acha a sua religião a certa e vai buscar aquilo em que acredita, o que vai depender da vida dele e da tradição. É natural, muitas vezes a pessoa foi criada desse jeito e acaba acreditando que é correto tudo que ela crê”. De modo geral, os depoimentos manifestam respeito às religiões. O que as torna respeitáveis para nossos sujeitos? Seriam características comuns, anteriores aos dogmas e que remetem a uma religião da humanidade de sabor iluminista: a vivência grupal de bem-estar, a sintonia, a capacidade de religar, a condução “pelo caminho da luz”, valores morais, o amor incondicional a Deus e ao próximo, a interação com um ser superior, a crença na imortalidade, a oração para superar obstáculos, a base em alguma crença não importando qual seja (muitos admitem bricolar várias origens). Assim, “estando a pessoa de boa fé e agindo com reta intenção, todas as religiões levam o homem a Deus”. Um segundo eixo reúne as críticas. Uma vertente adota um discurso de teor marxista, que aplica às religiões os conceitos de “ópio do povo” e “alienação”. Essas críticas apresentam um tom genérico que pouco avança na compreensão do fenômeno. Outra vertente nasce de uma experiência concreta e se volta contra o modo como as igrejas são conduzidas. Um primeiro alvo é a pedagogia da culpa, do medo. Outras críticas versam sobre a forma “moderna” – oportunismo, espetacularização – como muitas igrejas atuam: “Basta ver esses cultos evangélicos: expulsar o demônio, uma coisa fantástica... extremamente pop, aquilo dá show, lotam estádios, um grande comércio. Tem de ser um bom ator, e acreditar naquilo que tá falando, para convencer as pessoas”. O resultado de procedimentos manipuladores (objeto de pesadas restrições) é o fanatismo, a submissão e a exclusão de outros credos: “Muitas pessoas são levadas ao fanatismo e saem completamente do mundo verdadeiro. Na origem das críticas está a luta por poder, por dinheiro: “Usam da inocência alheia para extorquir dinheiro e fazer com que as pessoas fiquem cada vez mais dependentes da igreja, do pastor ou do culto religioso” (s570). O terceiro eixo se refere à contradição entre o respeito às religiões e a crítica às igrejas. Tal dialética parece ser aceita com certa flexibilidade, pois vários depoimentos manifestam nítida consciência de que se trata de instituições humanas, diversas e passíveis de transformação: “A religião é feita pelos homens, portanto, nela pode haver erros; posso criticá-los, mas acho que se deve ajudar a mudá-los; a minha fé não é individual, mas se constrói na comunidade”.

Rituais

Resultado quantitativo

Se for verdadeiro que as religiões tradicionais ocupam uma posição secundária na cultura do jovem contemporâneo e dos sujeitos de nossa pesquisa, o mesmo ocorre com respeito aos rituais convencionais cuja prática decaiu drasticamente nas sociedades secularizadas. Inversamente, como aponta Durkheim, sendo o ser humano um “animal ritual”, essa dimensão se mantém no âmbito da cultura moderna, a qual promove re-arranjos.

Rituais
Lutar pelo que acredito é um de meus rituais (1ª posição- média 6,79)
O cotidiano está impregnado de rituais com valor religioso (28ª posição- média 5,01)
Em dias difíceis fico sozinho para meditar (30ª posição- média 4,98)
Vivenciei forte sentimento espiritual quando morreu uma pessoa querida (31ª posição- média 4,96)
Dormir é um momento em que estou entregue ao mistério (33ª posição- média 4,82)
No ritual religioso sinto fé dentro de mim (35ª posição- média 4,73)
Minha experiência espiritual dispensa os rituais convencionais (40ª posição- média 4,57)

Na primeira frase, a mais “forte” em toda a pesquisa, as ações determinantes são “lutar” e “acreditar” e têm como foco o próprio indivíduo, mais do que o ritual. A afirmação sintetiza a iniciativa da pessoa e as convicções que ela amadurece. Bem menos marcadas (a partir da 28ª posição), as frases seguintes complementam o tom da vivência do sujeito moderno, capaz de perceber que “o cotidiano está impregnado de rituais com valor religioso”. Em algumas entrevistas qualitativas, a meditação é encarada como uma técnica um tanto obscura, própria de iniciados; outros depoimentos mostram que a interiorização mais ou menos consciente, em clima de oração, é uma prática freqüente. A frase sobre a morte “de uma pessoa querida” chama a atenção por dois aspectos: na cultura secularizada, essa circunstância ainda é uma das que mais ritualizadas; provavelmente, se os sujeitos pertencessem a uma classe social mais baixa, a posição dessa frase se elevaria devido a maior proximidade da morte nesse grupo. As duas últimas frases, sobre formas convencionais, sugerem um contraponto à hegemonia de rituais no cotidiano. A baixa média atribuída ao sentimento de fé “no ritual religioso” parece indicar que são poucos os têm tal experiência e a última frase indica que, para alguns respondentes, os rituais convencionais são secundários frente à experiência espiritual de cada um.

Bricolage
Minha religião pessoal é uma mistura de várias crenças (39ª posição- média 4,58)
A filosofia oriental me atrai (47ª posição- média 4,24)
Estou cada vez mais perdido com respeito à religião (53ª posição- média 3,37)
Acendo uma vela como forma de oração (54ª posição- média 3,33)
Já passei por várias religiões (65ª posição- média 2,06)

Os resultados acima recomendam cautela frente a uma apressada atribuição universal da prática do bricolage no meio juvenil. Essa ressalva, aliás, é feita por Hervieu-Léger, quando afirma que a competência bricolante varia de acordo com as condições sociais e individuais. Tal habilidade é uma forma de cultura que, por ser religiosa, depende de um certo envolvimento pessoal mediado por grupos socialmente prestigiados. Ainda imersa numa geral mono-cultura, a sociedade brasileira guarda marcas da hegemonia católica, e a família permanece um importante agente de transmissão de valores religiosos. Segundo sugestão da antropóloga Eliane Gouvêa, o patchwork, ou suporte religioso original, ainda se mantém resistente.

Resultado qualitativo

O material qualitativo sugere uma variada vivência ritual. Alguns sujeitos explicitam uma compreensão colada à doutrina de sua igreja ou que articula dimensões individual e comunitária. A música é tocada, cantada, dançada e rezada, dando suporte a uma comunalização contínua. Na mesma direção apontada pelos resultados quantitativos, há um sentido ritual na ação transformadora, a qual não depende apenas da iniciativa individual mas se insere num espaço relacional complexo e estruturado. Ela se realiza em nível interpessoal: “O meu ritual predileto é fazer pelos outros aquilo que gostaria que fizessem por mim”. A ação transformadora é também estrutural e política: “A luta por um mundo, uma vida melhor é meu ritual diário. Não acredito em rezas, ou fanatismos”. A forma enfática como os sujeitos vivem a sociabilidade dos rituais confirma sua preponderância frente à crença e à doutrina: “A minha fé não é individual, mas se constrói na comunidade; os rituais religiosos são importantes porque reúnem as pessoas nas suas crenças”. Há uma complementaridade entre a dinâmica comunitária e a interiorização individual, o que aproxima as ocasiões profanas (amigos, faculdade) dos momentos formalmente religiosos: “Às vezes é sentar na mesa de um bar com amigos, tomar uma cerveja, bater papo, isso me satisfaz plenamente, mas às vezes preciso chegar em casa, deitar na minha cama, bater um papo com Deus e ver como estão as coisas”. Alguns depoimentos ecoariam práticas ancestrais referentes a limiares da jornada diária, como a oração antes de dormir e ao acordar: “Minha religiosidade se manifesta principalmente pela manhã, pois gosto de deitar fechar os olhos e refletir... sinto uma energia se movimentar pelo meu corpo”. Note-se que a energia se experimenta de forma física, psíquica e espiritual. Generalizado nas sociedades secularizadas, o bricolage ganha matizes nos testemunhos dos universitários-PUC que aprofundam a compreensão dos dados quantitativos. Uma discrepância parece indicar que, embora a maioria dos pesquisados bricole pouco, alguns o fazem intensamente. O primeiro matiz dessa prática é a associação entre dois elementos: o pano de fundo de prioridade à crença em Deus; a dúvida e discordância, às vezes dolorosas, acerca das religiões enquanto indicadoras de caminhos – “acredito em Deus, acima de todas as coisas, porém não sei qual religião devo seguir; já experimentei freqüentar várias religiões, mas todas me apareciam com alguma dúvida!”. Num processo de intensa experimentação, o critério de validade é simples – dar certo, fazer sentido: “Quando algo me aflige muito, antes de dormir ponho minha santinha, troco uma idéia com ela. A minha mãe fala que ‘se tiver alguma coisa dando errado pede para sua santinha’. Tem velas ótimas, para os meus amigos, para mim e minha família para dar alguma coisa certa”. Relatos como esses apresentam um outro matiz: a sociabilidade, sinônimo de certificação, referência e solidariedade. Os sujeitos são apresentados a novas práticas por alguém confiável, um amigo ou parente, em procedimentos semelhantes à propaganda boca-a-boca.

Fé como fundamento

Resultado quantitativo

Uma vez que o sujeito contemporâneo deve estar no comando da própria vida e, mais que isso, estando o jovem em destaque no palco da cultura da modernidade, essa dinâmica conduz a uma valorização das atitudes, processos e aprendizados que se sobrepõem a conteúdos, crenças e tradições. Nesse âmbito, a palavra “fé” adquire significados articulados aos apontados para a religião e para os rituais. Abaixo são retomadas frases do item anterior, observando-se o pólo principal, ocupado pela fé.

A fé é mais importante que as crenças e religiões (3ª posição- média 6,44)
Amor é uma forma de fé (6ª posição- média 5,97)
A verdade está acima das religiões (9ª posição- média 5,80)
Experimentei uma dimensão maior quando comecei a amar alguém (19ª posição- média 5,32)
A evolução científica contemporânea pode interagir com o mistério (23ª posição- média 5,19)
Minha fé me motiva para uma ação transformadora (26ª posição- média 5,13)
Através da espiritualidade procuro respostas que às vezes não estão visíveis (29ª posição- média 4,98)
Minha fé me permite criticar minha religião (32ª posição- média 4,93)

A primeira afirmação, numa expressiva 3ª posição, atribui uma preponderância à fé sobre os conteúdos; aproximando-a da frase em 9ª posição, surge um silogismo simples, que identifica fé e verdade, já que ambas estão acima das religiões. Bem mais abaixo, abre-se a possibilidade de a fé “criticar minha religião”. A fé é definida como uma atitude que pode transbordar para o nível secular. Como? As frases apontam o amor, uma ponte para a alteridade, como “uma forma de fé” (6ª posição) capaz de fazer o sujeito experimentar “uma dimensão maior” (19ª posição). Na 26ª posição retorna uma referência à alteridade sob forma política: a “ação transformadora” que apresenta uma média alta, porém mais baixa que a atribuída à relação amorosa. Sinal dos tempos.

Num bloco intermediário, as frases em 23ª e 29ª posições confirmam uma interação “com o mistério” e com realidades “que às vezes não são visíveis”. Essa misteriosidade, uma novidade histórica percebida no ambiente universitário, é vivida de modo peculiar por nossos sujeitos.

Resultado qualitativo

Coerente com o contexto espiritual da modernidade, o termo “fé” – para o qual nossa pesquisa aponta uma posição central – apresenta um conteúdo teológico complexo que inclui: relação pessoal ao mistério, expansão das relações em direção da alteridade, construção de sentidos, instâncias de sociabilidade, repertórios de significação. Os depoimentos contribuem para melhor compreensão da experiência de fé no universitário e sua articulação com a religiosidade. De início, chama a atenção a freqüente oposição entre uma intensa relação com Deus (a fé) e as formas institucionalizadas do crer: “Religião é diferente de fé”; “religião não salva ninguém; não há mediador entre Ele e os homens”; “a fé não tem nada a ver com instituições religiosas”. Quais seriam, então, as características da fé? Inicialmente, é “acreditar em”, dar crédito a “algo superior”, “energia”, “ser superior” ou “Deus”. Essa relação atua intensamente na vida dos envolvidos – “dá força e coragem”, “nos dá alicerce” e faz “parte das ações do meu cotidiano”. A fé se reflete na confiança: “É aquele sentimento esperançoso que nos faz acreditar que com um passo de cada vez atingiremos o objetivo de sermos realmente felizes e completos”. O “acreditar em” está envolto com “aquilo que os olhos não vêm” e muitas vezes confere sentido ao dar “respostas que não encontramos em provas concretas”. O jovem é muito sensível a essa misteriosidade e a percebe em situações-limite ou inusitadas, envolvendo perigo, doença, morte ou mesmo um sentimento do mundo. Próxima da subjetivação (“o sagrado se manifesta na minha vida”), a fé traz um componente de expansão do ego em direção à alteridade, enquanto percepção e enquanto ação: “Me arrepia ver quando o povo se mobiliza; essas procissões, com milhões de pessoas indo para igreja pagar promessa: acho isso muito interessante”; “minha fé é o outro. Não faço oração, mas não sei o que é ser ateu. O sentido é a luta”. O parentesco entre fé e religiosidade é apontado pelo teólogo João Batista Libânio[30]: “Faço distinção entre religiosidade, religião e fé. Não se trata de três coisas diferentes, mas de três aspectos diferentes. A religiosidade é uma dimensão humana, antropológica. A fé surge depois da religiosidade. A religiosidade já existe, depois dela vem a fé. A religião organiza as práticas religiosas, formata e estrutura. A fé é diferente. Fé supõe que exista um Transcendente, enquanto a religião não. Esse Transcendente se manifesta e nos diz quem é e convida a nos comprometermos com Ele. A fé pede compromisso e conversão e pode ser organizada pela religião e práticas religiosas”.

Parte 3- Imagens sobre Deus

Visão Geral

As imagens sobre Deus operam uma simbiose da vida de uma comunidade com a biografia de um sujeito. Elas resultam do crer, mas também o explicitam e dinamizam. Segundo o teólogo Clodovis Boff, a analogia é a linguagem tipicamente religiosa, bíblica. A linguagem não é a coisa, mas é infinitamente inferior a ela. Só se pode ver o mistério “com o rabo do olho.”[31] Boff destaca que a riqueza concreta das metáforas vale mais que a pureza abstrata dos conceitos, e a abundância da vida, embora sem rigor, move à entrega. Elas se enraízam no fundo arcaico do inconsciente coletivo e, por isso, têm alcance universal. A imagem de Deus e a relação com o mistério caminham juntas. Para José Severino Croatto, a experiência religiosa é a matriz da linguagem simbólica, a qual “tem existência e sentido por sua radicação na experiência do transcendente, no interior da própria experiência humana.”[32] Por ser resultado de uma relação, essa imagem é reveladora de quem a elabora – no nosso caso, o universitário-PUC. A humanidade atual vive no interior de um religioso-em-movimento que continuamente re-significa templos, crenças e práticas seculares. Nesse contexto, a matéria-prima da imagem contemporânea de Deus seriam tendências ancoradas na mutável vivência espiritual, social e singular do indivíduo. Sua argila é a trajetória, o percurso, um espaço a ser percorrido e às vezes desbravado, e não um itinerário traçado de antemão por outrem. Pode parecer óbvio que imagens de Deus dizem respeito apenas aos indivíduos crentes, contemplados com o dom da fé. No entanto, sendo a busca de sentido um terreno comum entre fé e religiosidade, algumas imagens são partilhadas por crentes, pelo crescente contingente dos “sem religião” ou ainda, na feliz expressão de Regina Reyes Novaes, por “ateus à procura de Deus”. Por isso, as reflexões que se seguem dizem respeito à religiosidade, em suas faces não-crente e crente.

Peregrinos e convertidos

O percurso atual do crer se expressa em metáforas como a do peregrino e do convertido, propostas por Hervieu-Léger a partir de numerosas pesquisas[33]. Peregrino e convertido mostram que o indivíduo é que está no centro. O primeiro corporifica as buscas individuais e uma sociabilidade fluida, fundamentada em companheiros de viagem, que vão e vêm, de acordo com o trecho a ser percorrido. Se o cidadão da modernidade reivindica produzir um sentido para sua existência, as identificações que aí brotam são resultado do entrecruzamento da biografia individual com crenças tradicionais, embora bricoladas. Na prática peregrina de crer algumas manifestações mais freqüentes desse estilo são a música e os cantos. Mais complexo, o convertido encarna profundamente os processos atuais de formação de identidades religiosas. Ao valorizar a autonomia individual, a secularização desgasta as formas conformistas de participação religiosa; desse modo, a conversão se associa mais que nunca à idéia de um engajamento religioso intenso, o que confirma a autenticidade da escolha do indivíduo. O convertido é sobretudo um “buscador” espiritual: seu percurso, freqüentemente longo e sinuoso, se estabiliza às vezes por algum tempo numa afiliação comunitária que ele elegeu e lhe confere uma identificação pessoal, social e religiosa. Por mais que pareça uma experiência íntima, a conversão necessita da contribuição de outras pessoas, como alguém da família que conheça as determinações alimentares, ou amigos próximos, como ocorre no campo literário.

Proximidade, distância

O eixo “proximidade-distância”, utilizado com freqüência por Simmel, ajuda a compreender as relações entre sociedades, e indivíduos, e as imagens de Deus. De acordo com a época, esse eixo produz formas variáveis no interior de uma mesma sociedade e até religião. A modernidade religiosa sintetiza as contribuições díspares do pietismo e do deísmo. A interiorização afetiva do divino em cada indivíduo, própria do pietismo, dá confiança para enfrentar um mundo secular onde Deus não é mais visível. No caso da juventude atual, em sua visão de mundo há um traço romântico, presente na centralidade atribuída ao indivíduo e a seus afetos e no lugar dado à introspecção. No pietismo estão as raízes da individualização religiosa, que é seqüestrada pela modernidade gerando o individualismo. Ao mesmo tempo, típica do deísmo, a coexistência indiferente entre o homem e Deus permite à pessoa afirmar sua autonomia e ocupar o lugar central que lhe é preparado pela civilização contemporânea. Nas sociedades secularizadas, a convivência entre o declínio da prática religiosa e a re-significação do senso do sagrado gera uma imagem de Deus típica, de traços sutis e que se aproxima do pólo da distância. As pesquisas européias apontam o declínio da crença num Deus pessoal, cultivada na tradição judaico-cristã; ao mesmo tempo aumenta em todas as gerações uma crença numa entidade mais vaga. No contexto da religiosidade contemporânea, “Deus é uma energia superior” é uma formulação adequada à experiência do jovem. Ela sintetiza uma concepção fluida e não-pessoal da divindade, ao mesmo íntima e distante, que se refere a uma realidade que não é visível, mas a tudo faz vibrar e está presente em toda parte.

Visão Local

As entrevistas e os comentários de nossos sujeitos, alunos da PUC-SP, aos questionários revelam a intensidade da trajetória vivida por eles. Esse é o ambiente que “secreta” uma imagem de Deus, a qual é a manifestação “ideológica” de uma vivência misteriosa que busca palavras bem como uma referência para a consolidação de determinado tipo de busca. Alguns elementos surgidos nos depoimentos são mais expressivos. Primeiro, há uma tateante sensação de mistério na existência. A percepção de não saber lidar sozinho com o mistério gera certo desconforto: “Diante de muitas questões me sinto impotente. Não consigo encontrar no transcendente uma resposta para vida; no entanto, me recuso a crer numa vida só material. Seria muito vazio e isso me dá medo”. Algo do mistério pode ser balbuciado, em ocasiões especiais como uma partilha aberta, marcada pela gratuidade: “Esses assuntos levam horas de conversa e são complicados, porque eu às vezes me sinto contradizer”. Às vezes, esse processo não se materializa, embora continue pulsando, em busca de palavras. Os sujeitos parecem ter a impressão de que algo lhes foi sonegado, pelo ambiente secularizado e pelas instituições religiosas, que “tornaram-se ultrapassadas... o mundo mudou, a Igreja não”. Também a universidade, racionalista, se exime de colocar essas questões: “Acho interessante vocês fazerem essa pesquisa. A PUC é católica, mas não discute muito esses temas”. Sinal da pertinência de nossa pesquisa é que o ato de responder ao questionário foi apontado como ocasião de diálogo sobre uma dimensão até então encerrada na individualidade.

Elaboração do sentido

Resultado quantitativo

A metáfora da trajetória – caminho trilhável e aberto a possibilidades – se completa com a imagem do sentido. Afinal, só se dispõe a andar quem tem alguma idéia da direção a tomar. Trajetória e sentido remetem aos companheiros, pois, dificilmente um peregrino inicia sua caminhada e nela se mantém sem ter alguém que lhe dê a mão, ainda que eventualmente:

Trajetória
Lutar pelo que acredito é um de meus rituais (1ª posição- média 6,79)
Minha espiritualidade faz parte do meu amadurecimento pessoal (10ª posição- média 5,62)

Já vimos que as crenças passam por opções e convicções nascidas da experiência, por uma busca pessoal da verdade e por encontros ao longo da trajetória. Uma dessas condições é oferecida pelo ambiente escolar: a escolaridade mais alta permite à pessoa, no caso o universitário-puc, enfatizar a escolha individual. A frase em primeira posição indica que aquilo em “que acredito” é objeto de luta, sendo apropriado na medida mesma desse empenho. Nesse processo, o jovem percebe uma dimensão simbólica, “um de meus rituais”, que o remete a dimensões transcendentes da existência e o insere numa corrente mais vasta que sua biografia individual. A segunda frase, também com média alta, revela uma percepção subjetivizante de que essas dimensões são indissociáveis de “meu amadurecimento pessoal”.

Sentido
Sinto que um ser superior dá sentido à minha vida (13ª posição- média 5,49)
Sinto uma força que dá sentido à minha vida (16ª posição- média 5,40)
Vivenciei forte sentimento espiritual quando morreu uma pessoa querida (31ª posição- média 4,96)
Quando corri perigo a dimensão espiritual se manifestou (34ª posição- média 4,82)
Deus fala comigo através dos obstáculos (37ª posição- média 4,67)
O mal me faz questionar a existência de um ser superior (55ª posição- média 3,33)
Para mim, a vida é sem sentido (68ª posição- média 1,89)

De início, as frases mais destacadas nesse bloco usam as palavras “sinto” e “vivenciei”, situações marcantes na sensibilidade espiritual contemporânea e que sugerem que, para nossos sujeitos, o significado da vida é algo “sentido”, mais do que racionalizado. Nas duas primeiras afirmações, o sentido tem como origem algo além da individual – ora um “ser superior”, ora uma “força”. Cada uma dessas instâncias “dá” um sentido vindo do exterior que, no entanto, é íntimo, pois ocorre no encontro emocional. A última posição (68ª) ocupada pela frase “Para mim, a vida é sem sentido” surpreendeu os pesquisadores. A média mais baixa produz uma afirmativa, de que “a vida tem sentido”. É uma declaração de uma esperança em estado bruto, mais do que uma conclusão derivada da própria experiência. No entanto, essa positividade representa um potencial de tal modo raro e eloqüente que acolhemos reverentes.

Companheiros
Às vezes converso em profundidade com outra pessoa e isso me traz energia (5ª posição- média 6,11)
Sinto muita alegria em reuniões em que todos estão alerta para a realidade (7ª posição- média 5,92)
Deus é a minha melhor companhia (22ª posição- média 5,26)
Tive forte sentimento espiritual quando alguém me ajudou (29ª posição- média 4,56)
Na minha família há momentos de energia espiritual (36ª posição- média 4,71)
Vivenciei forte espiritualidade quando ingressei numa comunidade (57ª posição- média 2,98)
Relaciono-me com Deus exclusivamente através da minha religião (61ª posição- média 2,44)

Quem tem sido a companhia do universitário-puc em sua iniciante trajetória? Pela alta média, essa companhia é alguém com rosto definido, mas não predeterminado, que é uma presença qualificada justamente porque “às vezes” se conversa “em profundidade” com ela. Trata-se de um encontro pleno de humanidade, bem distinto da fluida sociabilidade-padrão da modernidade, pois supõe envolvimento e um compromisso das partes. Provavelmente aqui se confirme a ocorrência generalizada de um guia espiritual. Essa experiência se desdobra quando se trata de intervir coletivamente na realidade. Na 22ª posição e abaixo, apontam-se outros companheiros eventuais – Deus, “alguém que me ajudou”, a própria família. Com posição muito baixa, aparecem “uma comunidade” e “exclusivamente” a própria religião. Essas médias sugerem que, nessa fase da vida, a imagem de Deus esteja passando por uma re-elaboração; muito protegido, o jovem ainda não precisou de ajuda decisiva; sendo uma realidade conhecida, a família tenha pouco influxo na passagem para o desconhecido; poucos ingressaram em alguma comunidade (religiosa, ou de outro tipo); confirma-se o papel secundário atribuído às religiões e à própria igreja.

Resultado qualitativo

Os depoimentos analisados no item sobre a Fé apontam para uma decisiva contribuição desta e da religiosidade na elaboração de sentido. Para os jovens, provavelmente a tarefa mais urgente seja reunir condições para conquistar a autonomia: “A busca de sentido é tudo o que a gente faz para organizar melhor a vida”; “surgiam inúmeros obstáculos, mas com fé e persistência pude conseguir o que queria”. A alteridade se apresenta em relações familiares (“minha família sempre organiza almoços aos domingos para confraternizar; essa é uma maneira de expressar um tipo de religiosidade coletiva que, mesmo não estando explícita, é compartilhada pela energia e força que passamos uns aos outros”) e situações políticas (“sinto uma extrema alegria quando estou em reuniões partidárias, em que todos estão alerta para o mundo, para a realidade; a religiosidade existe nos comícios, nas eleições, em manifestações públicas em que as pessoas estão juntas”). O curso universitário propicia o ingresso numa comunidade de conhecimento e de instância crítica: “No decorrer do curso tive outra perspectiva, uma vez que fui criado na Congregação Cristã do Brasil, minha mãe é freqüentadora há 40 anos. Acredito que essa religião tem uma concepção fundamentalista e, no decorrer do curso, o fator histórico mudou minha concepção. Notei a relação da religião com o poder”.

Compromisso

Resultado quantitativo

Atualmente a questão do compromisso – seja na reciprocidade, seja no altruísmo – parece ter sido excluída do horizonte pelas dinâmicas de globalização, individualismo, refluxo dos movimentos sociais, conservadorismo das igrejas e instrumentalização do voluntariado. Pedra de toque de religiões históricas, o engajamento em favor dos empobrecidos agora passa pela abordagem moralizante ou emocional e fica restrito ao plano individual. Nos resultados a seguir são apresentadas duas formas de compromisso de alcance distinto, mas que se completam: o encontro amoroso, mais atrativo para a juventude contemporânea; o engajamento político-social, que demanda um processo mais complexo.

Amor
Amor é uma forma de fé (6ª posição- média 5,97)
Experimentei uma dimensão maior quando comecei a amar alguém (19ª posição- média 5,32)
Minha fé é uma forma de entrega (42ª posição- média 4,51)

A primeira frase nesse item mostra uma percepção da sacralidade presente no encontro face-a-face, evidentemente emocional, e que se refere a um compromisso que rompe com o padrão de eventualidade. A sacralidade do amor (“uma forma de fé”) deriva de um poderoso movimento de saída de si e reciprocidade com relação ao outro, de superação e transcendência do ego. Esse movimento é crucial para o amadurecimento do jovem. Essa primeira afirmação carrega um traço genérico, relativo à relação amorosa em si, sem envolver pessoas reais. Várias posições abaixo, e portanto menos importante, a “dimensão maior” (expressão genérica) se manifesta quando se começa a “amar alguém” concreto. Ao se compararem a primeira e a terceira frases – que aproximam amor e fé, e fé e entrega – se tem a indicação de que o amor é uma forma de entrega, exercidos num ambiente da fé. É interessante notar que essa constatação confirma os depoimentos em que a fé se apresenta sobretudo como uma atitude, mais do que um conteúdo de crença. No entanto, a entrega é uma fase mais exigente e amadurecida, o que talvez explique a posição baixa da terceira afirmação.

Social
Sinto muita alegria em reuniões em que todos estão alerta para a realidade (7ª posição- média 5,92)
Minha espiritualidade me motiva a dar esperança às pessoas (20ª posição- média 5,28)
Vivenciei forte espiritualidade quando ajudei a alguém (24ª posição- média 5,18)
Minha fé me motiva para uma ação transformadora (26ª posição- média 5,13)
Quando conquistei alguma coisa tive uma vivência espiritual (46ª posição- média 4,30)
A experiência espiritual interfere em minhas escolhas profissionais (58ª posição- média 2,94)

Este bloco indica um desdobramento nas relações. A primeira frase se refere a uma dupla abertura, extremamente significativa, do sujeito: para com outros indivíduos articulados em grupo; para uma possível intervenção sobre uma realidade. Essa formulação genérica necessita de informações qualitativas para precisar melhor a característica desse grupo ou a qualidade desse “estar alerta”. Mesmo assim, percebe-se uma sociabilidade, um voltar-se para o exterior que provoca “muita alegria”. Nas três afirmações seguintes é atribuída uma média cada vez mais baixa a um crescendo de engajamento – “dar esperança”, “ajudar a alguém”, “ação transformadora”. As duas últimas afirmações deste bloco revelam a juventude dos respondentes, que têm um currículo de poucas conquistas e vivem uma fase profissional tateante. Além disso, apresentam reflexos de um renitente dualismo, em que as conquistas pessoais e a profissão se situam num patamar secular e intramundano, pouco relacionados à vivência espiritual do indivíduo. Se é assim, vê-se a preponderância de uma imagem de tipo deísta de um Deus platônico, situado num universo distante das preocupações humanas.

Resultado qualitativo

O material qualitativo confere densidade a algumas hipóteses levantadas acima. Uma questão apresentada na entrevista qualitativa aberta foi: “Se pudesse transformar radicalmente a realidade atual, o que você faria?”. A análise das respostas aponta quatro ênfases: romantismo, ancorado na temática do amor; utopia, no sentido irrealista do termo; conscientização, envolvendo a religião; engajamento na transformação de situações concretas. Vários jovens fazem sua aposta no amor, a que conferem um poder quase mágico: “Tudo o que a gente faz deve ter amor, ser fruto do amor ao próximo, porque ele leva à comunhão com os outros... quando tem amor você não tem briga, busca paz”. A ênfase na utopia segue o mesmo diapasão. As propostas traduzem um vago anseio de prazer partilhado e de igualdade: “Primeiro, eu explodiria o mundo, para começar tudo de novo. Colocaria um salão no meio das cidades que acomodaria a todos e sempre haveria festas. Seria um mundo legal mas sem marasmo. Algo meio socialista... viver seria um prazer constante... todo mundo andando junto, sem pisar em ninguém, se respeitando e respeitando o ritmo do outro”. Essa visão se radicaliza em depoimentos de teor dualista que traduzem um descompromisso com o “lado de cá” e suspiram pelo “lado de lá”: “Acho que o mundo ideal para mim seria ir lá para o céu porque aqui se sofre com as desigualdades, miséria e fome. Não cabe a mim estar transformando”; “não acho que eu gostaria de transformar a realidade atual. E se pudesse, não saberia o que fazer. Ter fé é também isso: aceitação incondicional, acreditar que o que está acontecendo é sempre revelador de uma verdade maior”. De que forma, então, nossos sujeitos entendem uma ação transformadora relacionada à religiosidade? Haveria três maneiras. A primeira sugere uma intervenção nas estruturas políticas e sociais mediante a retomada da influência moral da religião (sob liderança da própria igreja) sobre a sociedade: “Se os ideais da religião que eu sigo fossem absorvidos pelas pessoas... a sociedade mudaria no rumo de uma maior equidade”. A renovação moral resultaria na transformação das estruturas: “A realidade se torna nova quando somos mais humanos e nos despojamos do egoísmo, violência, drogas, injustiças, desemprego e miséria, e o amor se torna o centro de tudo”. A segunda abordagem identifica a especificidade das desigualdades sociais, mas enfatiza as dinâmicas subjetivas: “O que realmente me deixa até culpada é que as oportunidades não são as mesmas: a gente estudou nos melhores locais e tem obrigação de ajudar a quem não teve as mesmas oportunidades”. Uma terceira abordagem inverte a direção. Seu ponto de partida é a questão social, onde insere as religiões, sobre as quais lança um olhar crítico, porque induzem ao conformismo e à discriminação (“mais desagregam do que unem, porque ‘você tem os seus e não os meus’ e excluem monstruosamente”). Quando se propõe fazer uma ação concreta, surge o conflito: “Através da minha religiosidade alertaria as pessoas sobre o mal do século, a Aids. É muito complicado, pois o uso da camisinha é proibido pela Igreja Católica. Nesse caso penso o contrário da minha religião” (eq16). Pela raridade, destaca-se uma menção libertadora, à “moda antiga”: “Vejo Deus na natureza sim, mas principalmente no irmão pobre”.

Próximo, mas também distante

Resultado quantitativo

As respostas ao questionário apontam para uma relação com Deus que mescla confiança e distanciamento. A distância entre o homem e Deus, típica do deísmo, permite à pessoa afirmar sua autonomia e ocupar o lugar central que lhe é atribuído pela civilização contemporânea. Essa posição deriva também da crítica feita às instituições religiosas. Assim, o jovem não apela tanto para rituais ou crenças consolidadas, mas faz uso de referências mais recentes. Nesse quadro misturam-se sensibilidades espirituais próprias do pietismo, do deísmo, das tradições religiosas e dos NMR. Os dados quantitativos são agregados em três blocos: relação com o transcendente; proximidade; distância.

Relação
A música me conduz a uma dimensão superior (8ª posição- média 5,88)
Minha relação com Deus é sobretudo de agradecimento (14ª posição- média 5,47)
Rezo quando estou com medo (15ª posição- média 5,42)
A experiência espiritual me traz paz e felicidade (17ª posição- média 5,34)
A arte é uma expressão de espiritualidade (18ª posição- média 5,32)
Sinto que minhas orações são atendidas (25ª posição- média 5,14)
Ao rezar, faço um balanço da minha vida (27ª posição- média 5,10)
Em dias difíceis fico sozinho para meditar (30ª posição- média 4,98)
Minha relação com Deus inclui a dúvida (38ª posição- média 4,64)
A oração é uma das minhas principais vivências pessoais (50ª posição- média 3,88)
Tenho medo de Deus (66ª posição- média 2,01)

A dimensão estética da religiosidade, já mencionada, está patente do bloco acima em duas frases que se referem à música (em 8ª posição) e à arte (em 18ª posição). Sobretudo, a expressão musical é um dos elementos-chave na sociabilidade da juventude contemporânea, um imenso mercado consumidor, e se articula a um sem-número de eventos e produtos. A música (sobretudo cantada em inglês) é uma linguagem universal e elemento de identificação de gerações através do mundo. A música é incorporada à intimidade do sujeito, podendo ser convocada a qualquer momento como emoção ou reflexão, enquanto canto, dança coletiva ou memória. Talvez por superar os limites do eu e inseri-lo em comunidades mais amplas, a música coloca o indivíduo em contato com uma “dimensão superior”. A frase referente à arte é mais específica e se manifesta como “expressão da espiritualidade”, o que explicaria sua média inferior. De toda forma, as duas afirmações apontam para a centralidade da dimensão estética na religiosidade do jovem. As demais frases denotam uma relação com Deus pautada na confiança. O agradecimento – sinal de amadurecimento espiritual, pois traz grau maior de gratuidade – tem melhor posição do que o medo e o atendimento a necessidades. No entanto, a menor média atribuída a frases em que vida e oração se integram (“faço um balanço da minha vida”, “uma de minhas principais vivências pessoais” e meditar em “dias difíceis”) sugere que a espiritualidade dos sujeitos ainda está em formação. As baixas posições ocupadas por duas frases sugerem uma positividade que chama a atenção. A pouca relevância conferida à dúvida (em 38º lugar), aliás própria da dinâmica da vida, e sobretudo ao medo (em 66º lugar) reforça a hipótese da base de confiança na relação com Deus e abre espaço para o amadurecimento de uma atitude que exclui o temor – a fé.

Proximidade
Existe uma energia que envolve toda a nossa vida (2ª posição- média 6,51)
Às vezes converso em profundidade com outra pessoa e isso me traz energia (5ª posição- média 6,11)
Acontecem certas coisas na vida que só podem ser obra de Deus (11ª posição- média 5,57)
Há uma essência divina em mim e posso alcançá-la através de meus atos (21ª posição- média 5,27)
Deus é a minha melhor companhia (22ª posição- média 5,26)
A evolução científica contemporânea pode interagir com o mistério (23ª posição- média 5,19)
Através da espiritualidade procuro respostas que às vezes não estão visíveis (29ª posição- média 4,98)
Dormir é um momento em que estou entregue ao mistério (33ª posição- média 4,82)
Às vezes experimento uma iluminação (48ª posição- média 3,20)
A Bíblia é uma referência importante para mim (49ª posição- média 3,96)

As duas frases iniciais deste bloco indicam expressivos aspectos. Em 2ª e 5ª posições, elas enfatizam a proximidade frente ao transcendente. Ambas se referem à energia que: “envolve toda a nossa vida”, e não apenas aspectos particulares; é vivenciada “com outra pessoa”. As duas frases conotam afeto e proteção, presentes no verbo “envolver” e na “conversa em profundidade”. A relação cálida com “Deus [que ] é minha melhor companhia”, se reforça na frase situada na 22ª posição. Proximidade porque a energia, enquanto metáfora do ser divino, provavelmente começa a ser elaborada a partir de experiências “energéticas” na subjetividade de cada sujeito, em seu íntimo e também no contato com o outro. Esse contato é, provavelmente, uma modernização da relação discípulo-mestre, com teor individualizante e marcada por uma confiança resultante da escolha pessoal. “Energia” é ainda uma palavra-chave no repertório de pessoas “civilizadas” por duas formas de cultura: a escolar que remete à ciência como instância legitimadora; a juvenil, que a emprega constantemente em academias de ginástica, rádios, shows de rock e na espiritualidade new age. A metáfora da energia conota intimidade mas também distanciamento, entre um poder cósmico e impessoal e a imagem judaico-cristã de um Emanuel encarnado, com rosto humano. A ação e presença divinas são misteriosas, explicam “certas coisas na vida” e fornecem respostas a questões que “não estão visíveis”. No entanto, há limites para a misteriosidade, na medida em que, para os universitários, a forma científica de conhecimento “pode interagir com o mistério”. Essa concepção integradora ciência/mistério é recente em ambientes acadêmicos e indício de perda de influência do positivismo militante presente em fases anteriores. Mesmo ocupando baixa posição, a ação é considerada o itinerário mais adequado para se alcançar a “essência divina”, presente no interior de cada pessoa. “Meus atos” remete às tendências da individuação, subjetivação e iniciativa, características da contemporaneidade. Em segundo plano no acesso a Deus estão o sonho e a iluminação, pertencentes a uma longa tradição de misticismo. Embora a emoção mística seja fundamental na face pietista da religiosidade contemporânea, é provável que o fato de nossos sujeitos serem universitários e dotados de um maior capital escolar e social lhes possibilite distanciamento frente ao terreno espiritual. Quanto à Bíblia, referida em último lugar nesse bloco, provavelmente nossos sujeitos tenham dela uma visão racional e desencantada, o que não a torna uma “referência importante” o suficiente.

Distância
Vejo Deus na natureza (4ª posição- média 6,30)
Há um ser superior que interfere na esfera humana (12ª posição- média 5,52)
Sinto que um ser superior dá sentido à minha vida (13ª posição- média 5,49)
Deus é uma criação exclusivamente humana (52ª posição- média 3,59)
Rezar é uma atividade mecânica (56ª posição- média 3,18)
Sou ateu (63ª posição- média 2,31)

A alta posição da primeira frase recomenda atenção: não se trata de uma constatação neutra, de que “Deus está na natureza”, o que a encerraria no pólo da distância. Ao concordar com a versão “vejo”, o sujeito traduz uma experiência pessoal. Situar Deus na natureza faz parte de ampla experiência religiosa, tanto arcaica quanto greco-romana, afro-brasileira, new age e referente a cientistas contemporâneos, passando por Francisco de Assis, pelos místicos e até Einstein. As duas frases seguintes, com média destacada (embora menor que as referentes a “energia”), apontam para um “ser superior”. Sua lógica é racional, deduzida do geral para o singular. Caso se acate um ser superior, daí resultam procedimentos, crenças, visões de mundo. O ser superior parte da transcendência e desce para a contingência: primeiro “interfere na esfera humana” e, em seguida, “dá sentido à minha vida”. As três frases finais deste bloco, com médias muito baixas, apontam um teor crítico. Observo que a partir da 52ª posição na lista geral de frases, aquelas que trazem palavras como “exclusivamente” e semelhantes são remetidas para as últimas posições. Isso aponta uma tendência dos sujeitos em rejeitar concepções rígidas na experiência religiosa. O mesmo vale quando se considera a oração “uma atividade mecânica”: pode sê-lo às vezes, mas não necessariamente. A rejeição a essa frase se articula com afirmações reunidas acima e que mostram intensa oração pessoal. Já a frase “sou ateu” aparece quase no final da lista e, na gradação mais significativa, reúne 90 pessoas, ou 8,7% dos respondentes. Esse alto índice é compreensível, visto tratar-se de jovens e universitários, motivados a fazer seus acertos de contas quanto à religião herdada, fator que provavelmente pesa na negação de Deus. A análise do grupo “sou ateu”, de crescente importância nos sensos demográficos, abre um novo território a ser desbravado no desdobramento desta pesquisa.

Resultado qualitativo

Os depoimentos e comentários destacam uma variedade de relações com o transcendente. A primeira é a resistência às tradições religiosas: “Acredito que exista não esse Deus da Igreja Católica, porque é o mais caracterizado que tem. Falou em Deus, pensa em Igreja Católica”; “nas vezes em que converso com Deus, tento me expor de maneira clara com a minha linguagem usual abandonando alguns dogmas da Igreja. Assim tenho uma relação informal e confiante”. Vários sujeitos denunciam a indução ao medo e à submissão: “Abomino esse temor a Deus que dizem que a gente deve ter. Deus para mim me parece um cara tão bacana, ele não é meu amigo?”. Por outro lado, alguns sujeitos acatam as grandes tradições: “Acreditar em Deus é preciso desde o começo da vida, pois se Ele está em nós, quem será contra nós? E preciso ter fé, cantar a Deus, ler a Bíblia, vivenciar a comunhão com Deus”. A percepção do mistério é um componente fundamental na construção das imagens: “De certa forma eu vivo questionando essa coisa. Isso não deve ter surgido do nada...”. O fato de admitir que se questiona continuamente “essa coisa” é sinal de uma busca cotidiana de explicações que superam a razão e se voltam para o sentido. A proximidade marca o contato com Deus, que ocorre na história singular do sujeito: “Minha relação com Deus é basicamente minha reflexão, minha meditação comigo mesmo e na hora de agradecimento”. Esse lugar pode expandir-se para outras o mundo, a natureza em si. No interior de uma relação próxima, a metáfora da energia alcança prevalência sobre a de um “ser superior”. A energia é experimentada na subjetividade, na qual a transcendência se manifesta, é íntima mas não tem um rosto definido: “Minha maneira de me relacionar com Deus vai além de um simples nome, é uma energia, a maior que houver, que acredito ser constituída por todos nós”. Em alguns comentários, a imanência é mais explícita: “Tenho momentos espirituais, mas não acredito que seja em relação a Deus ou a alguma religião. Estes momentos ocorrem quando dou sentido para minha vida e isso me deixa em paz. Minha espiritualidade está dentro de mim, só eu tenho poder sobre ela”. Percepção do mistério, construção de sentido, desencanto com as religiões, alteridade e socialização, individualização e subjetivização das tradições, ênfase numa imagem de Deus sobretudo próxima mas que carrega uma distância propícia a experimentos e iniciativas. Todos esses elementos se articulam com o momento vivido pelo jovem e contribuem para a construção original da própria existência, aspectos decisivos na religiosidade (secular ou crente) do universitário: “Vejo Deus na natureza, nas relações humanas, no sentido de construção, não acredito que Deus é essa coisa personificada que tem vontade própria, que deseja destruir as pessoas. Deus é essa energia, impulsa as pessoas. Estou aqui para escrever minha história, dentro das relações humanas”.Os traços até aqui apresentados desvelam a elaboração, pelo jovem, de uma imagem de Deus que tende mais para a proximidade ou para a distância, segundo as circunstâncias e o amadurecimento do sujeito. Surgida com intensidade nos depoimentos, a metáfora da energia remete a uma experiência vivida na subjetividade num ambiente de mistério. A epifania de um rosto dependerá das relações que o sujeito conseguir desenvolver em direção à alteridade.

Parte 4- Concluindo

O percurso feito desvela traços marcantes no perfil da religiosidade do universitário. Grosso modo, as convicções dos universitários mobilizam sua capacidade de luta e se baseiam numa confiança fundamental de que há sentido na vida, a qual é movida por uma energia. Seus valores principais são a fé-atitude, a natureza, a música e a verdade, vivenciados num ambiente de encontro interpessoal, no amor, numa comunidade alerta e com o transcendente. Este, cuja existência 8,7% negam, é denominado “Deus”, “energia” e “ser superior” e com ele se tem uma relação isenta de medo e de interesse, marcada pela percepção do mistério, pela contemplação e sobretudo pelo agradecimento. A relação com o transcendente é pouco mediada por um aparato religioso encarado criticamente, mas com tolerância e sem exclusivismos. Essas características levantam a hipótese de que a religiosidade, crente e/ou secular, faz parte da estrutura humana do jovem, sendo fundamental para que ele amadureça, saia de si pela descoberta do outro, encontre seu lugar no mundo e elabore um sentido para sua existência.As frases com maior média dentre as respostas ao questionário delineiam uma religiosidade complexa, com duas faces: uma crente e outra secular. Ambas são inseparáveis na existência e distintas apenas para efeito didático. A manifestação crente da religiosidade se refere a um ambiente histórica e socialmente demarcado pelas religiões, que fornecem um referencial de tradição, memória e identidade. No caso de nossos jovens, essa referência é reinterpretada de maneira “moderna” por suas necessidades e aspirações, desde as individuais até as generacionais. As religiões compõem um estoque simbólico e ético que faz parte do ambiente em que nossos sujeitos foram socializados. Por serem universitários, é freqüente uma abordagem ambivalente das religiões que sintetiza respeito e crítica. Em contrapartida, quando se trata de situações que envolvem um sentido para a existência, as frases abrem um espaço privilegiado para a religiosidade secular. A vertente secular da religiosidade dialoga com a manifestação crente, pois as religiões ainda são referência importante em sociedades secularizadas. Além disso, indivíduos e sociedades, mesmo os mais identificados com um ambiente sagrado, não conseguem fugir à tragicidade humana. Tanto crentes como não-crentes ou “sem-religião” estão diante da tarefa incontornável de construir significados para seu itinerário. No limite, nossa proposta vislumbrará um “grau zero” da crença, prévia a sua formatação hegemonicamente religiosa. A existência da dimensão religadora – uma dentre outras formas de energia “naturalmente humanas” –, não importando qual nome receba, é admitida por pesquisadores contemporâneos e reconhecida como fonte de generosos movimentos do espírito, embora seja também seqüestrada por poderosas agências geradoras de capital. Também filha do ambiente secularizado moderno, nossa pesquisa pretende participar, através do conhecimento, da gestação de novos sentidos mediante uma religiosidade autonomizada.

Pedagógicas

Assim como “uma porta abrindo-se em mais saídas”, o presente texto sussurrou desdobramentos para a pesquisa. Uma primeira possibilidade é desenvolver projetos de educação baseada na religiosidade Adotando uma lógica indutiva, essa metodologia representa uma variação frente ao “ensino religioso” convencional e serve de base conceitual para a inclusão desse tipo de temática em ambientes laicos, como escolas públicas.[34] Essa pedagogia entende que é um avanço na humanização da pessoa a decisão de assumir o risco de envolver-se na trajetória singular de sentido e de seguir a própria consciência.[35] Dessa forma, ela se associa à dinâmica contemporânea de individualização + subjetivação, no interior da religião-em-movimento e da desregulação das grandes tradições. Segundo Hervieu-Léger, o fato de as sociedades modernas terem “saído da religião” e as esferas da existência terem conquistado autonomia “não significa que os indivíduos tenham liquidado sua necessidade de dar-se sistemas de significações.”[36] Assim, ao invés de partir do ensinamento de determinado sistema de crenças, rituais e morais, ou mesmo um passeio aparentemente ecumênico pelas religiões, os estudantes seriam convidados a refinar seu itinerário espiritual e a partilhá-lo com outras instâncias de validação: colegas, adultos e instituições sociais – inclusive religiões, a de sua origem ou outras. Alguns dos principais momentos didáticos nesse processo seriam: instrumentos de mapeamento coletivo da religiosidade; dinâmicas de partilha; identificação de valores, impasses, referências pessoais e companheiros; manifestação de kairoi, símbolos, rituais e mitos nascidos da existência de cada indivíduo. Na reflexão sobre a relação com o “ser superior”, por exemplo, se operaria uma inversão semântica, em que o substantivo “ser” se transforma no verbo “ser” e se proporia, então, a seguinte pergunta: “O que é superior na minha vida?”. As respostas permitiriam identificar preciosas situações e relações interpessoais, verdadeiras epifanias pessoais, lugares de manifestação do sagrado no humano. O objetivo central nesse processo é desenvolver uma ética pluralista baseada no reconhecimento de um universal trans-religioso e trans-filosófico e fundamentada na alteridade. Para o jovem, ela propõe a expansão do ego em direção ao Outro, sob forma de interação, compromisso, engajamento e libertação das alienações. A título de espelhamento e descentração nessa peregrinação pessoal, seriam propostas atividades de contato com bibliografia e sobretudo com experiências de campo, individuais e sociais, em que se vivencia concretamente a religiosidade, sobretudo no campo estético, social e religioso. Aspecto importante nessa pedagogia é a denúncia de formas atuais e históricas de manipulação da religiosidade, empreendida por poderosas forças sociais, na direção do individualismo, do narcisismo, do consumismo, da passividade e do medo. A esse respeito, as análises críticas de nossos sujeitos sobre as igrejas suscitam indagações acerca da pedagogia desenvolvida por muitas instituições religiosas: “Até que ponto, na luta pela conquista de novos territórios sociais e simbólicos, as igrejas sufocariam a religiosidade de seus crentes? Em que aspectos não seriam elas as responsáveis pela desregulação do campo religioso?” Está em jogo o poder exercido sobre os corações dos crentes e que, com freqüência, os coloca num fogo cruzado entre as urgências de uma religiosidade enraizada na contemporaneidade (como não poderia deixar de ser) e a magnífica herança simbólica e ética de algumas religiões e que serviria de base para uma relevante prestação de serviço, a começar pela acolhida ao atual desconforto espiritual. Os primeiros passos aqui apresentados revelam que o território mapeado é vasto e o pequeno terreno plantado é fecundo o suficiente para anunciar colheitas mais abundantes. A colheita até aqui mostra que a semeadura valeu a pena, e valerá.

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Notas

[*] Professor no Departamento de Teologia e de Ciências da Religião, PUC-SP.

[1] Pesquisa iniciada em 1997 por um grupo integrado pelos professores Drª Regina Pereira Lopes, Maria Celina Queirós Cabrera Nasser, Antônio Martini, com assessoria estatística da professora Yara Gustavo de Castro.

[2] RIBEIRO, Jorge Claudio. A religiosidade do universitário. Religião & Cultura, v. 1, n.1, p. 159-175, jan-jun. 2002; idem. Objetos sagrados. Diálogo, n.29, p. 36-8, fev. 2003.

[3] LIBÂNIO, J. B. A religião no início do milênio, passim: CROATTO, J. S. As linguagens da experiência religiosa, p. 41

[4] Ver LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean Claude. História dos Jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 2 vols.; GALLAND, O. Sociologie da la jeunesse. Paris: Armand Colin, 2001; VEYNE, Paul, DUBI, Georges et al. História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990-92

[5] GALLAND, O. op. cit., p. 54

[6] Ibid., p. 13

[7] Ibid., p. 24

[8] HERVIEU-LÉGER, D., Le pèlerin et le converti, p.78

[9] Ver GAUCHET, Marcel. Le desenchantement du monde. Une histoire politique de la religion. Paris: Gallimard, 1985.

[10] HOBSBAWM, op. cit. p. 292

[11] Ibid., p. 319

[12] Ver ORTIZ, R. Um outro território

[13] HOBSBAWM, op. cit. p. 320

[14] Ibid., p. 320. Para se ter uma idéia, as vendas de discos subiram de US$ 255 milhões em 1955, quando o rock apareceu, para US$ 2,3 bilhões em 1973.

[15] Ibid., p. 260

[16] Ibid., p. 300

[17] DAVIE, Grace e HERVIEU-LÉGER, Danièle, Identités religieuses en Europe p. 12

[18] HOBSBAWM, E. op. cit. p. 178

[19] CAMPICHE, Roland in Identités Religieuses en Europe, p. 90.

[20] Ibid., p. 562

[21] Ibid., p. 81.

[22] Ibid., p. 204. Galland menciona avaliação da World Values Survey, que revela serem os valores ligados a um tipo liberalismo que permite a cada um, na esfera privada, escolher livremente sua maneira de viver de forma independente das convenções sociais, morais ou religiosas.

[23] Ibid., p. 224-7

[24] A esse respeito, agradeço as preciosas indicações da antropóloga Eliane Gouvêa e do teólogo João Batista Libânio

[25] WEBER, Parenthèse théorique, passim

[26] VOYÉ Liliane, in Identités Religieuses en Europe, p.208

[27] CAMPICHE, R. in Identités Religieuses en Europe, p. 109

[28] ibidem p. 169

[29] Ibid., p. 180

[30] Em entrevista com nosso grupo de pesquisa, dia 30 de agosto de 2001

[31] BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico, p. 309 e ss.

[32] CROATTO, J. S. op. cit., p. 39

[33] In: HERVIEU-LÉGER, D. Le pèlerin... p. 119-155

[34] DAVIE, Grace e HERVIEU-LÉGER, D., op. cit. p. 308. O Conselho da Europa emitiu recomendações em educação intercultural: na comunicação, a descoberta da alteridade enquanto relação e não como barreira; relativização das identidades particulares em referência ao universal (enfatizando o enfoque do ser humano, a dignidade, os direitos universais) e a habilidade de leitura da imagem e do discurso sobre as culturas veiculados na mídia.

[35] Ibid. p. 169: pesquisa sobre a juventude francesa revela que, dos jovens acima de 18 anos, 71% afirmam que “cada um deve definir para si sua religião, independentemente das igrejas” e 83% declaram: “minha consciência é a autoridade maior nas decisões de minha vida”.

[36] HERVIEU-LÉGER, D., La religion en... p.10