Frank USARSKI. O Budismo e as outras. Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais. Aparecida: Ideias & Letras, 2009, 304 p. ISBN 978-85-7698-053-7

por Wagner Lopes Sanchez[*] []

O livro Budismo e as outras. Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais, de Frank Usarski, é o resultado da pesquisa que o autor realizou para a obtenção do título de livre docente em Ciências da Religião, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2010.

O Budismo e a os outras faz uma consistente discussão a respeito do papel do Budismo no âmbito do diálogo inter-religioso. O objetivo é “abordar de maneira sinótica as relações entre o Budismo, por um lado, o Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo e Islã” (pp. 17-18). O autor se propõe a responder a três perguntas principais:

A primeira questão diz respeito aos contextos históricos dos respectivos encontros inter-religiosos. Um segundo problema reside na análise do ferramental discursivo do qual o Budismo se apropriou em momentos do intercâmbio com o Hinduísmo, Judaísmo, Cristianismo e Islã. Em terceiro lugar, interessam os conteúdos abordados pelo Budismo por ocasião de encontros ou desencontros com as outras religiões mundiais (p. 18).

O resultado da pesquisa realizada para responder às perguntas acima é apresentado em quatro capítulos.

No primeiro capítulo - Constituintes históricas e doutrinárias do olhar do Budismo para outras religiões - o autor apresenta, de um lado, o pluralismo interno do próprio campo do Budismo, destacando as diferenças e as diversas perspectivas doutrinárias presentes nessa religião, e, de outro, as convergências e divergências existentes entre as duas grandes tradições budistas: o Theravãda e o Mahãyãna. Em linhas gerais, no primeiro capítulo encontramos um mapeamento das diversas tradições que se desenvolveram no Budismo. O autor apresenta ao leitor uma religião que se constituiu, ao longo da História, de forma plural, apresentando-se como um grande mosaico de budismos, um conjunto complexo de aproximações e convergências, de diferenciações e contradições a partir dos ensinamentos de Sidarta Gautama, o fundador da religião.

O segundo capítulo - Cenários históricos da relação entre o Budismo e outras religiões mundiais - é destinado a apresentar o percurso histórico do diálogo entre o Budismo e as outras religiões mundiais. O autor reúne elementos históricos necessários para a compreensão da relação, nem sempre tranquila, mas cheia de sinuosidades, do Budismo com o Hinduísmo, com o Judaísmo, com o Cristianismo e com o Islã. Trata-se aqui de apresentar, sem cair numa cronologia, como insiste o próprio autor, os principais cenários históricos da convivência entre o Budismo e as outras religiões mundiais. Nessa trajetória histórica, a ênfase é dada às relações com o Hinduísmo, sendo este o primeiro interlocutor do Budismo. É com o Hinduísmo que o diálogo budista far-se-á, durante muito tempo, de forma tensa. Essa relação tensa ocorrerá em virtude do desafio ideológico e político que o Budismo representará para o Hinduísmo, sobretudo entre os séculos VI a.C. e XIII d.C. Como assinala Usarski, nesse período, “o Budismo passou da condição de movimento ‘sectário’ à condição de ‘religião civilizacional’, associada a uma cultura sofisticada não mais limitada a regiões e ao patrocínio de governos locais” (p. 66). Na fase de movimento, no processo de seu desenvolvimento na Índia, ele se apresenta como desafio e como ameaça ao Bramanismo, como um sistema religioso que faz críticas ao núcleo central desta religião que era o sistema de castas. Sob a crítica religiosa subjazem as tentativas de emancipação de uma região decadente.

No caso das relações com o Judaísmo, o autor apresenta, inicialmente, uma dificuldade que diz respeito à terminologia presente nas antigas fontes. As relações do Judaísmo com o Budismo foram muito tênues na Antiguidade e na Idade Média. O autor indica que na literatura judaica antiga aparecem elementos “associados ao Budismo” decorrentes da presença judia na Índia os primeiros séculos da era comum. Cabe ressaltar que na Idade Média, no início do século XI, sábios judeus chegaram a traduzir a literatura budista. Na tradição da Cabala pode-se também detectar a influência budista. É na época moderna, no entanto, que se pode constatar uma maior aproximação do Budismo com o Judaísmo através de publicações e de diálogos entre autoridades budistas e judias.

No caso das relações com o Cristianismo, na índia, China e Japão, elas oscilaram do conflito ao diálogo. As relações de conflito foram aquelas decorrentes da ação proselitista desenvolvida pelo Cristianismo nessas três regiões na época moderna. As relações de diálogo se originaram na ação de grupos cristãos e budistas que, em anos recentes, procuraram aproximar suas religiões tanto no âmbito dos estudos filosóficos como no âmbito da espiritualidade.

No Ocidente, nos últimos anos pode ser observado o diálogo entre o Cristianismo e o Budismo. Como destaca o próprio autor, a relação harmoniosa entre essas duas religiões é algo recente. E isso pode ser exemplificado pela presença de lideranças budistas em muitos ambientes do Ocidente, pelas iniciativas de diálogo entre essas duas religiões e por atividades que envolvem intelectuais budistas e cristãos.

Com relação ao Islã, Usarski assinala o caráter expansionista desta religião, que condicionou o “ambíguo cenário de contato entre budistas e muçulmanos” (p. 155). Diversos foram os momentos de convivência pacífica entre muçulmanos e budistas na Antiguidade e na Idade Média. Houve, porém, momentos de conflito entre o Budismo e o Islamismo, com atitudes violentas praticadas pelo Islã. O diálogo entre o Budismo e o Islamismo em tempos recentes tem sido bastante restrito. As poucas iniciativas desenvolvidas até agora não permitem, ainda, estabelecer perspectivas para um efetivo diálogo.

Depois da apresentação dos cenários da relação do Budismo “com as outras”, no terceiro capítulo - O espectro de posturas do Budismo diante de desafios inter-religiosos -, o autor examina as várias posições adotadas por esta religião diante das outras religiões mundiais, levando em conta três categorias: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Antes de examinar a relação do Budismo com as outras religiões mundiais a partir dessas categorias, adotando uma posição de prudência necessária, Usarski alerta o leitor sobre os limites dessas categorias e sugere uma “aplicação mais cuidadosa” e, para tanto, coloca três observações: as diferenças entre as posturas do pluralismo e do inclusivismo são tênues; algumas figuras retóricas do Budismo nem sempre podem ser facilmente classificadas de acordo com as três posições; antes da aplicação das três posturas é preciso definir a qual dimensão religiosa está se referindo.

Antes de examinar as relações do Budismo com outras religiões à luz das categorias já apontadas, o autor apresenta aquilo que ele chama de “estratégias budistas tendentes à abertura substancial” (p. 172), já que, como ele mesmo afirma, há uma estratégia retórica nas atitudes de Buda e em seus ensinamentos para deixar certos problemas em aberto. Isso apontaria para uma tendência de fundo do Budismo de não assumir posições dogmáticas e fechadas sobre determinados problemas filosóficos e religiosos, o que embasaria uma atitude de abertura diante das religiões e filosofias.

O texto apresenta duas estratégias presentes nos ensinamentos de Buda. A primeira é a avyakata, as “perguntas não respondidas” que visam provocar no ouvinte um insight. Avyakata é uma atitude de indiferença diante de determinadas questões, o que libera o adepto de preocupações que são próprias da ignorância. Avyakata é um método pedagógico que visa “transformar o interlocutor, a fim de que ele considere essas perguntas e respostas como algo sem importância, ajudando-o a se desapegar da curiosidade do gênero” (p. 174). A segunda estratégia presente no Budismo é aquela que visa apelar à razão do interlocutor, fazendo com que ele chegue à sua convicção a partir de sua própria reflexão. A convicção, em tal perspectiva, não é construída a partir de doutrinas consideradas verdadeiras ou discursos autoritativos, mas a partir de conclusões racionais. Dessa forma, toda doutrina e toda formulação filosófica deve ser submetida à razão antes de ser aceita e, se aceita, não deve ser objeto de fé cega e irracional. Usarski assinala que essa segunda estratégia era, na origem do Budismo, uma crítica à posição existente no Hinduísmo de submissão às autoridades religiosas.

Depois de apresentar as duas estratégias intrínsecas ao Budismo, no terceiro capítulo Usarski examina as posições da religião diante das outras a partir das três categorias já assinaladas anteriormente. No caso da primeira categoria, apresenta atitudes presentes no Budismo que expressam as tendências inclusivistas: incorporação de aspectos de outras tradições, valorização de aspectos presentes em outras tradições e reinterpretação de aspectos de outras tradições.

No caso da atitude pluralista, o autor identifica três subtipos do Budismo: sua abertura ao diálogo inter-religioso, a busca por aspectos que o aproximem de outras religiões – pontos de intersecção – e a postura inter-religiosa chamada de upãya, que, antes de tudo, é um conceito metaprático, “resultado de uma reflexão sobre questões pragmáticas em prol da transmissão da sabedoria budista” (p. 194). Essa postura, pensada, num primeiro momento, para as relações no interior do próprio Budismo, procura estabelecer as relações deste com as outras religiões. E aqui são apresentadas duas perspectivas presentes nessa postura. Uma primeira, bastante aberta às outras religiões, e uma segunda relacionada com uma atitude proselitista presentes em determinadas correntes budistas.

No caso da atitude exclusivista, o autor a define como sendo

caracterizada por uma diferenciação teórica entre o ‘próprio’ e o ‘outro’, por esforços de demarcar as fronteiras entre as duas entidades ou, pelo menos, de seus constituintes em questão, e a negação da pertinência dos conteúdos e práticas do outro sistema para a própria religião (p. 201).

Para ilustrar essa posição exclusivista presente no Budismo, são examinadas três posições que podem ser identificadas: “rejeição explícita da posição do interlocutor”, “estratégias de disputa religiosa competitiva” e “esforços retóricos com o objetivo de menosprezar o ‘outro’”.

O quarto capítulo - Divergências substanciais entre o Budismo e as outras religiões mundiais - aponta as divergências entre o Budismo e as outras religiões. O autor destaca que a análise dessas divergências “prende-se à situação das fontes até então produzidas pelo diálogo bi ou multilateral entre o Budismo e as outras religiões mundiais” (p.218). O leitor que fez a leitura desde o início do livro perceberá que o último capítulo retoma diversos elementos que foram indicados nos diversos cenários construídos pelo autor. As divergências com o Hinduísmo, religião da qual o Budismo se desenvolveu, são em maior número. Essas divergências estão relacionadas, obviamente, à própria História da constituição do Budismo como religião, que, ao estabelecer a sua identidade, foi definindo suas diferenças em relação à religião majoritária da Índia. Por se tratar de uma religião não-teísta, pelo menos nos moldes das outras religiões mundiais, é de se esperar que as grandes divergências entre o Budismo e as “outras” estejam relacionadas com essa temática e outras decorrentes, tais como a concepção de salvação, do bem e do mal, da verdade e da ética.

Nas considerações finais, o autor apresenta o subtexto que permeia todo o trabalho:

é um preconceito fortemente enraizado no senso comum que ‘bem lá no fundo’, no âmago, todas as religiões partem dos mesmos princípios, têm objetivos semelhantes e se unem no desejo de harmonia e de paz no mundo (p. 277).

A tarefa realizada pelo autor é no sentido de demonstrar que esse preconceito deixa de lado as diferenças, muitas vezes profundas, e os limites que todas as religiões formulam ao longo de sua história e na convivência com as outras.

A enorme quantidade de fontes utilizadas pelo autor - a maioria delas estrangeiras, em decorrência dos poucos estudos críticos sobre o Budismo existentes no Brasil - permite ao leitor, de um lado, construir um quadro bastante rico dessa religião, desde a sua origem até os dias atuais, com relação às outras religiões mundiais; de outro lado, desconstruir em seu imaginário a ideia muito corrente no ocidente de que essa religião tem mantido uma relação muito harmoniosa com o campo religioso.

O Budismo, como qualquer religião, contém em seu interior contradições que vão do diálogo ao conflito, da aproximação ao distanciamento, da abertura ao fechamento, da tolerância à intolerância. O mito do Budismo como religião tolerante é questionado pela reflexão desenvolvida no livro. Embora o Budismo tenha em seu interior aspectos doutrinários que podem favorecer uma abordagem mais aberta das outras religiões, a reflexão desenvolvida pelo autor demonstra que esses aspectos, quando se vêem confrontados com situações religiosas adversas, não são suficientes para garantir o diálogo com os diversos universos religiosos. Os capítulos 2 e 3 demonstram com muitos dados os limites da tolerância para o Budismo.

No Ocidente tem sido veiculado com bastante destaque o diálogo entre Budismo e Cristianismo. Usarski nos mostra que esse diálogo é recente e que tem por trás de si uma história de conflitos em que, com muita frequência, o Cristianismo se apresentou como a “religião superior".

No capítulo 3, o autor examina “o espectro de posturas do Budismo diante de desafios inter-religiosos” e apresenta uma contribuição muito importante ao aplicar ao Budismo categorias de análise que se mostram bastantes úteis para compreender essa religião: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo.

Essas categorias têm sido utilizadas por teólogos cristãos para estudar as posições históricas do Cristianismo diante das outras religiões. Aqui encontramos duas grandes contribuições do livro. De um lado, essas categorias são reconstruídas teoricamente para dar conta do objeto, o Budismo. E isso é feito recorrendo tanto a aspectos históricos como doutrinários. De outro, essas categorias são extraídas do seu locus teológico para explicar objetos no âmbito das Ciências da Religião.

Ao examinar o Budismo à luz de cada uma dessas categorias, o autor “ensaia” uma teoria científica sobre o diálogo inter-religioso que apresenta aspectos importantes para a análise das diversas configurações que as religiões assumem no mundo atual. Se um dos grandes desafios que as religiões têm nos dias de hoje é o diálogo inter-religioso, é de fundamental importância oferecer referenciais teóricos para a compreensão dos limites e possibilidades desse diálogo. E o autor mostra que as categorias exclusivismo, inclusivismo e pluralismo são válidas para análise do campo religioso - desde que se leve em conta o objeto a ser estudado, o contexto onde está localizado e o momento histórico onde se desenvolve - e dos próprios cenários do diálogo inter-religioso.

Assim, a aplicação dessas categorias ao Budismo é uma importante contribuição não só para os estudos desta religião, mas para os estudos científicos das religiões.

É a aplicação dessas categorias que permite ao autor apontar, no capítulo 4, as “divergências substanciais entre o Budismo e as outras religiões mundiais”. Num cenário onde os sujeitos se dispõem a sentar à mesa para dialogar é necessário que deixem claro sua identidade, para que os interlocutores tenham consciência das divergências, limites e possibilidades de convergência. Aceitar o diálogo não é negar a própria identidade. Em qualquer cenário, reconhecer as diferenças e as divergências é pressuposto para construir eventuais convergências e aproximações.

O capítulo 4 apresenta ao leitor um conjunto de informações e de análises que permite compreender as diversas divergências que o Budismo apresenta em relação às demais religiões mundiais.

Essa obra apresenta, como já assinalei anteriormente, uma contribuição significativa para as Ciências da Religião. A reelaboração que o autor faz das categorias exclusivismo, inclusivismo e pluralismo, a partir do objeto estudado, oferece aos cientistas da religião um instrumental importante para a compreensão do campo religioso.

Para o diálogo inter-religioso, o livro fornece elementos teóricos que trazem aos diversos interlocutores do campo religioso uma visão mais crítica da tarefa de aproximação, de entendimento e de cooperação entre as diversas religiões.

Por isso, o livro é um importante instrumento para cientistas da religião, cientistas sociais, teólogos, adeptos das religiões e pessoas que estão comprometidas com o diálogo inter-religioso.


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Notas

[*] Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. É professor assistente-doutor no Departamento de Ciências da Religião. Mestrando em Teologia pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores.