Espaços de Hibridações e de Diálogos Culturais: O Caso Bantú

Brígida Carla Malandrino [Doutoranda PUC-SP – UNIBAN] []

Resumo

A diáspora africana durou trezentos anos, trazendo ao Brasil indivíduos escravizados entre homens, mulheres e crianças. Grande parte deles era de tradição bantú. Várias religiões afro-brasileiras sofreram a influência bantú, dando a elas algumas especificidades, com destaque ao seu caráter híbrido e continente, no sentido de acolher e de transformar saberes e fazeres. Essa mistura e esse diálogo iniciaram-se bem antes da chegada dessas pessoas ao Brasil, seja durante a estada nos fortes e nos barracões, seja nos navios negreiros. Este trabalho tem como objetivo, baseado nos trabalhos de Jaime Rodrigues, de Luiz Felipe de Alencastro e de Manolo Florentino, aprofundar a compreensão dos processos de hibridismo ocorridos antes da chegada dos indivíduos de tradição bantú ao Brasil, bem como discutir, de maneira preliminar, a maneira como essa experiência tornou singular as religiões afro-brasileiras de tradição bantú.

Palavras-chaves: diáspora, tradição bantú, hibridismo, diálogos culturais

Abstract

The African Diaspora lasted three hundred years, bringing to Brazil slaveries individuals between men, women and children. The majority of them belonged to the bantú tradition. Some Afro-Brazilian religions have bantú influence; it gave them some specificity, stressing their hybrid and continent character, in the sense of receiving and transforming knowledge and deed. This mixing and this dialog began before the arrival of these people to Brazil during their stay in forts and in large barracks or in slave-ship. This main goal of this article, according the works of Jaime Rodrigues, Luiz Felipe de Alencastro and Manolo Florentino, is to deepen the understanding of the hybrid processes that’s occurred before the arrival of the individuals of bantú tradition, as well as discuss, in a preliminary way, how the bantú tradition Afro-Brazilian religions became peculiar with this experience.

Keywords: Diaspora, bantú tradition, hybridism, cultural dialogues

Introdução

A religiosidade de tradição bantú foi trazida ao Brasil, durante aproximadamente trezentos anos, através de homens, de mulheres e de crianças, já que a África Centro Ocidental foi a grande área fornecedora de escravizados, não só nas incursões junto aos povos do litoral, mas também em cidades localizadas a milhares de quilômetros da costa.

Segundo Wissenbach (2005), a complexidade do tráfico negreiro remete os africanos à condição de agentes históricos. Os barracões, os fortes e as embarcações, neste sentido, podem ser considerados mundos sincréticos, multiétnicos e transculturais, locais onde ocorriam hibridações religiosas e diálogos culturais. Tal fato nos leva a estabelecer a ideia de que as práticas religiosas chegadas ao Brasil não eram puras, mas já haviam passado por processos de ressignificação cultural. Várias expressões religiosas, práticas culturais e religiões formadas no Brasil sofreram a influência bantú, dando-lhes algumas especificidades, com destaque ao seu caráter híbrido e continente, no sentido de acolher e de transformar saberes e fazeres, bem como ao culto aos antepassados.

Portanto, neste trabalho temos como objetivo aprofundar a compreensão dos processos de hibridação religiosa e de diálogos culturais ocorridos antes da chegada dos escravizados de tradição bantú ao Brasil, bem como discutir, de maneira preliminar, a forma como tal experiência marcou e transformou a maneira como essa tradição desembarcou no Brasil, tendo clareza de que no processo de ressignificação alguns elementos podem ser operacionalizados, enquanto outros não, uma vez que determinada cultura não pode dar sentido para todas as experiências vividas.

A presença de Portugal em Angola e o tráfico de escravos

Mesmo send a Costa Atlântica a última região da África que teve contato com povos vindos de fora do continente - ela começou a ser explorada por navegadores portugueses a partir do início do século XV -, o contato com outros povos já existia, seja pelo oceano Índico, pelo mar Mediterrâneo e pelo mar Vermelho. Porém, a presença dos portugueses provocou mudanças nas sociedades africanas, pois, segundo Souza: “O fato novo que interferiu radicalmente nas sociedades locais depois da chegada dos portugueses foi a busca de escravos, que eram cada vez mais solicitados pelas colônias americanas” (MELLO E SOUZA 2006: 28). Portanto, entre os séculos XVI ao XIX foi em torno do tráfico de escravos que se deu a relação entre os africanos, com destaque para os angolanos, e os europeus, com destaque para os portugueses. Cabe notar que esse contato foi regido por relações desiguais de poder[1].

Como católicos, os portugueses tinham o desejo de propagar sua fé e o seu ideal comercial e migratório ia ao encontro da posição da Igreja Católica e, com isso, a fortalecia: “Ao penetrar em África, Portugal criou rapidamente as bases de uma autêntica política mercantil e missionária. Comércio e proselitismo cristão, tal parece ser sua divisa nessa altura” (VALAHU 1968: 23). Tal situação fez com que valores culturais portugueses fossem incorporados pelos angolanos, inclusive os aspectos religiosos.

Angola tornou-se o combustível da produção brasileira, estando sua vida econômica e comercial mobilizada e baseada na escravidão. Tal situação gerou um desequilíbrio econômico naquele país, uma vez que, dele, apenas tirou-se pessoas e produtos, sem que houvesse investimento efetivo no seu desenvolvimento. Primeiro, porque houve uma concentração muito forte no tráfico de escravos, o que exigia pouco gasto e muita violência; e, segundo, porque seu território foi utilizado como depósito de sentenciados (degredados). O tráfico de escravos interferiu negativamente no sistema social angolano, rompendo com o padrão de vida bantú e com seu sistema tradicional de entendimento do mundo: “Criada e desenvolvida como um complemento econômico do Brasil, a principal função do Ndongo, ou seja, o fornecimento de seres humanos à colônia brasileira, violentou a forma interna de sujeição e servidão, que fora caracterizada como escravidão pelos europeus” (GLASGOW 1985: 48).

Angola, já no século XVI, era um dos mais importantes mercados de escravos, que eram obtidos não só no litoral como também no interior, por meio de troca, quer como prisioneiros, quer como tributo, retirados normalmente de maneira violenta. Portugal e Angola tiveram um papel fundamental no tráfico de escravos, sendo impossível compreendermos esse processo sem pensarmos no triângulo – Portugal x Brasil x Angola. Segundo Forentino (1993), pode-se falar de uma organicidade ímpar entre a formação social brasileira e o continente africano. O consumo da mercadoria humana estava intrinsecamente ligado à sua produção na África. Se a reprodução física corresponde à reprodução da força de trabalho, o comércio negreiro internacional é um elemento central para o cálculo econômico escravista, dependendo dele a própria reprodução da empresa colonial. A África ofereceu escravizados ao Brasil durante um longo período a custos baixos, sendo tal fluxo contínuo e barato:

... o trato negreiro não se reduz ao comércio de negros. De conseqüências decisivas, na formação histórica brasileira, o tráfico extrapola o registro das operações de compra, transporte e venda de africanos para moldar o conjunto da economia, da demografia, da sociedade e da política da América portuguesa. (ALENCASTRO 2000: 29)

O comércio negreiro deixa de ser apenas mais uma atividade ultramarina para ser o principal esteio da economia do Império Português. Além disso, o tráfico negreiro também foi visto como um instrumento da conquista portuguesa de Angola, uma vez que na...

... região congo-angolana, as instalações físicas, além de demarcarem precariamente a posse do território português, introduziram as primeiras transformações na forma de capturar escravos: a violência cometida diretamente por europeus sobre os povos do litoral passou a ocorrer paralelamente aos acordos com os soberanos locais.(RODRIGUES 2005: 46)

Tal estratégia permitiu que fossem feitas aproximadamente, segundo Alencastro, duas mil viagens dos portos africanos para o Brasil para vender, ao longo de três séculos, cerca de quatro milhões de escravizados. Na medida em que reconhecia a liberdade dos índios, conforme o direito e o seu nascimento natural, a Coroa reiterava o primado negreiro em Angola. Portanto, pode-se dizer que a presença de Portugal em Angola caracteriza-se pelo ciclo guerra x comércio x guerra x comércio, sendo que o trato foi extremamente predatório, gerado a partir das guerras, das extorsões perpetradas contra os chefes africanos avassalados e das feiras. “Todos esses fatores consolidam a presença portuguesa em Angola, transformando-a na mais importante fornecedora de escravos do tráfico atlântico europeu” (ALENCASTRO 2000: 109). O que cabe ressaltar é que o comércio de escravos encadeou a oferta de uma série de outros produtos africanos. O cativo tinha um valor agregado, apresentando-se como mercadoria capaz de carregar outras. Se através do prisma econômico o comércio de escravizados tornou-se agregador, o mesmo não pode ser dito em relação à questão cultural, já que a forma como se estruturou a escravidão mercantil, diferentemente da escravidão doméstica, mostrava-se inconciliável com a vivência dos grupos de tradição bantú. O que observamos é a ruptura das bases culturais bantú e a transformação do ser humano em escravizado.

Captura

O principal instrumento através do qual o ser humano era transformado em cativo eram as guerras, já que elas eram constantes entre os pequenos reinos, que se relacionavam com as estruturas econômicas e sociais vigentes em cada região, cujos elementos de conflito eram suficientes para suprir a demanda por escravizados. Havia uma ligação entre a escravidão no interior da África e o tráfico atlântico: “O tráfico emergia como o mais eficiente mecanismo de acumulação de homens e recursos, acentuando e/ou cristalizando a diferenciação social” (FLORENTINO 1993: 103). O que se vai notando, com o desenvolvimento do tráfico, é que cada vez mais a produção de cativos era uma atividade que se justificava por si mesma, dada a sua natureza econômica, ou seja, lucrativa:

Em Angola, o Estado colonial português não foi capaz de levar adiante o projeto de colonização pragmática implementado com êxito do outro lado do Atlântico. Afirma-se que isto ocorreu, pois o Estado lusitano atendendo ao ”sentido” da colonização mercantilista, se esforçou para criar ali uma economia complementar à brasileira, desestimulando qualquer atividade que pudesse concorrer com a agroindústria exportadora do Brasil. Tal complementariedade só poderia traduzir-se em uma estrutura voltada em primeiro lugar para a exportação de escravos. E mais: dominando através do controle do tráfico, pólos que se interligavam organicamente – a esfera exportadora de escravos e a esfera consumidora dos mesmos -, o Estado português lograva transformar o comércio negreiro num utilíssimo instrumento de controle colonial. (FLORENTINO 1993: 98-99)

Portanto, o tráfico de escravos pode ser entendido como um mecanismo que se reproduz estruturalmente na África e no abastecimento da força de trabalho no Brasil. O papel dos traficantes era fundamental nesse processo. Os portugueses, diferentemente de outros europeus, se estabeleceram e viveram na África, mantendo relações regulares com os africanos que os abasteciam de escravos. Notamos, portanto, que além do componente econômico, o tráfico de escravos na África também serviu como forma de os portugueses ocuparem o território.

O tráfico atlântico pode ser entendido como um mecanismo que reproduz estruturalmente a força de trabalho na América, ao mesmo tempo em que também desempenhava um papel estrutural na África. Com isso, o tráfico pode ser entendido como afro-americano, não simplesmente porque houve uma migração forçada seres humanos da África para o Brasil, mas porque desempenhava funções estruturais nos dois continentes. Por isso, o contato entre africanos e europeus em diferentes lugares do continente africano criou uma nova dinâmica social que permitiu a consolidação do tráfico como negócio legítimo e socialmente aceito.

Havia um envolvimento das sociedades locais, sendo que o tráfico já havia interferido profundamente na organização social e política desses povos, especialmente no caso daqueles que viviam no litoral. Haviam declinado antigas formas políticas baseadas na manutenção de dependentes e ascendera um tipo de Estado que floresceu escravizando e exportando seus dependentes através do Atlântico (FLORENTINO 1993). Podemos inferir que, no processo de captura, algumas das principais estruturas político-sociais bantú foram esfaceladas. São elas: a separação da família e a perda do território.

A captura e a separação da família alargada e nuclear desestruturam visceralmente a pessoa de tradição bantú, que perde, nesse momento, a possibilidade de dar continuidade à participação vital, uma vez que foram rompidos os laços de solidariedade vertical e horizontal. Rompendo esses laços, a pessoa tem desfeita a ligação com a participação vital, havendo também a quebra da corrente vital. O ser humano tem, portanto, a sua força vital diminuída. Esgotam-se os motivos pelos quais se vive, uma vez que, dentro da cultura bantú, só se existe pela e na comunidade.

Já no que diz respeito ao território, para o bantú, ele demarca o espaço da estrutura social. A terra é um aspecto do grupo. Cada família alargada e cada clã possuem territórios bem delimitados. “O território, a terra permanecem inalienáveis porque são propriedade colectiva de vivos e antepassados e herdade para usufruto. (...) a terra adquire um carácter sagrado, aumenta a coesão social, e garante a consciência comunitária” (ALTUNA 1985: 140). O vínculo com a terra serve de elemento de união à comunidade de sangue ou parentesco. Existe uma participação análoga entre o grupo e a sua propriedade. Pode falar-se de participação coletiva entre o grupo e seu prolongamento. A inserção do grupo no espaço fortifica a coesão, a solidariedade e a consciência comunitária. Ao sair da terra rompe-se a participação coletiva. Caberia perguntar, portanto, como se reestrutura a relação com a terra antes do embarque, durante a estada nos barracões e após a travessia, quando se chega às propriedades dos senhores.

A estada nos barracões e nos fortes[2]

Podemos notar que a economia colonial africana baseava-se fortemente no tráfico de escravos, cada vez mais pelo aumento da demanda e pela dizimação dos povos do litoral, sendo que a captura passou a ser feita cada vez mais longe dos portos de embarque. Portanto, tornara-se necessário reunir condições favoráveis anteriores à travessia de milhões de homens, mulheres e crianças. Porém, de toda a operação, “... o ponto mais delicado era a etapa dos portos africanos (...) esperas para completar a lotação, falhas nos estoques de alimentos e água, sobrecarga nos navios, aumentavam exponencialmente as taxas de mortalidade durante a travessia” (ALENCASTRO 2000: 98-99). Por isso, as fortalezas, os fortes, os barracões e os presídios, além de suas funções usuais, cumpriam o papel de depósito de escravos em trânsito, seja para o litoral, seja para o navio negreiro.

Grandes ou pequenos, próximos ou distantes da costa, os barracões destinados ao confinamento de escravos eram campos férteis para a disseminação de doenças e epidemias. Se os barracões cumpriam o papel de armazéns de escravos e muitos se perdiam devido às moléstias provocadas pela superlotação e pelos maus-tratos, não se deve desconsiderar que a existência deles reduzia o tempo de volta dos navios negreiros, na medida em que os capitães já encontravam os escravos reunidos – o que teve um peso incalculável em números relativos ou absolutos na diminuição da mortalidade durante a viagem transatlântica. (RODRIGUES 2005: 70)

Os grandes barracões da África Ocidental podiam abrigar de quatro a seis mil escravos, porém o número era variável, sendo mais comum a manutenção de quinhentos ou seiscentos. O abastecimento das embarcações que zarpariam à América era feito nos próprios barracões, o que indica que eles armazenavam mantimentos e água, além do necessário para o sustento dos cativos à espera de embarque. Apesar disso, a vivência dos escravizados pautava-se em outro modo de ver esta experiência:

Meses havia, portanto, em que 1500 indivíduos deixavam para sempre sua gente, sua aldeia, sua terra, empurrados para dentro dos tumbeiros. Outros tantos indivíduos aguardavam encurralados nas cercanias da cidade, sendo escolhidos, alimentados e, muitas vezes, sepultados ali mesmo. Cansaço físico, mau tratamento no percurso terrestre, subnutrição e as doenças do porto luandense ceifavam boa parte dos escravos forasteiros, arrancados do platô Ovimbundo e de mais longe. Durante quase três séculos, multidões de gente em pânico eram levadas acorrentadas do interior para ser enfiadas nos navios que partiam de Luanda, maior porto negreiro de toda a história, sem que os europeus ali presentes tenham deixado testemunhos desses fatos. (ALENCASTRO 2000: 83-85)

Essas pessoas que ficavam meses convivendo dentro do mesmo barracão tinha origens étnicas diferentes, podendo ser até mesmo rivais. Independentemente disso, a convivência fazia-se necessária e imprescindível para a sobrevivência dentro de uma situação-limite. Na África Central atlântica, as línguas bantú mantinham diferenças entre si, mas não impossibilitavam a comunicação entre os povos. A comunicação entre os escravos da África Central teria começado ainda no trajeto entre o ponto de apresamento e o litoral, pois mesmo a diversidade de línguas entre os cativos não teria impedido a troca de ideias, uma vez que os povos de tradição bantú são provenientes de um mesmo tronco linguístico.

Além do parentesco linguístico, os bantú conservam um fundo de crenças, ritos e costumes similares. É possível se falar em um povo bantú, mesmo que subdividido em outros grupos de características culturais variadas, histórias diversas e, até, antagônicas. O único critério que marca a unidade cultural das zonas é o sistema de línguas com classes e a comunidade evidente do vocabulário básico. A unidade cultural tradicional africana intensificou-se com o tráfico de escravos e com o colonialismo, consolidando a chamada comunidade de sofrimento. Há um fundo cultural comum, que fecunda as instituições negras. Essa unidade cultural também se revela nas linhas básicas de pensamento, na concepção espiritualista do mundo e da vida, na vivência do humanismo que dá a base das instituições sócio-políticas. A religião coincide nas crenças fundamentais.

Sabemos que os povos de tradição bantú empreenderam uma migração pela África em um tempo bastante antigo. Durante essa migração, conservou características originais e intercambiou novidades culturais. Neste sentido, conforme afirma Slenes (1992), há razões para pensar que as pessoas de tradição bantú, quando misturadas e transportadas para o Brasil, não demoraram em perceber a existência de elos culturais profundos que estavam para além da linguagem, que, apesar das diferenças, guardava uma identidade cultural, possuía uma estrutura sólida subjacente aos setores da vida, fundamentando e motivando as manifestações existenciais. É uma forma de se pensar em como elas começaram a se entender entre si. Neste sentido, é totalmente inadequado afirmar que entre os povos de tradição bantú a comunicação só teria se iniciado depois da viagem ao Brasil, com o aprendizado de um idioma europeu ou de uma língua pidgin (linguajar simplificado).

Cabe, portanto, falarmos a respeito da palavra dentro da tradição bantú, pois uma vez estabelecida a comunicação através da palavra, novas formas de solidariedades, de saberes e de fazeres estavam se constituindo. A cultura bantú expande-se e permanece pela palavra, fundamentando-se na oralidade. Segundo Altuna (1985), Hampaté Bâ (1982) e Vansina (1982), a palavra tem primazia e nada se mantém nem vive sem ela. A palavra é como um símbolo eficaz, capaz de produzir efeitos e influir em outros seres depois de contatá-los. Ela realiza magicamente a participação vital. Sustenta a vida social e política, dinamiza as expressões religiosas. Sem ela, nem os ritos vivificam, nem as ações mágica são eficazes. A palavra uma vez pronunciada, somente perde efeito pela eficácia de outra palavra. Ela, juntamente com a imagem, gera o simbolismo bantú.

A pseudo-conversão

Antes de ser feito o embarque, uma última ação colaborava para que a pessoa de tradição bantú fosse transformada em escravizado. Isso diz respeito à questão do batismo e, consequentemente da troca de nome:

Nas docas de Luanda e Benguela, milhares e possivelmente milhões de escravos eram metamorfoseados em seres humanos. Eram batizados por um padre que caminhava entre as vítimas infelizes, lançando primeiramente um pouco de sal sobre a língua de cada um e depois espargindo água benta com um hissope. Dando a cada africano uma tira de papel com um nome, o padre dizia a cada um, “Seu nome é João, o seu é Francisco, o seu nome é Pedro”, enquanto ia colocando um pouco de sal sobre a língua do cativo. Por fim, com um aceno de mão, o sacerdote entoava “Agora vá, com boa vontade”. (GLASGOW 1985: 59)

Apesar da facilidade de conversão ao Catolicismo, notava-se que era mais difícil mantê-los na fé, pois muitos eram conversos por conveniência e não por convicção. Tal fato apontava certa resistência às investidas lusitanas, sejam elas militares ou espirituais. Porém, independentemente da resistência, fosse ela passiva ou ativa, a pessoa passova a ser chamada, nomeada daquele momento em diante pelo nome recebido no batismo.

Dar o nome a uma coisa ou pessoa, ou conhecer o seu nome secreto equivale a descobrir a sua natureza. O conhecido fica, de alguma forma, em poder ou pelo menos sujeito a possíveis acções mágicas do conhecedor. Entre ele e o objecto ou pessoa assim conhecidos, brota uma relação vital que propicia a inter-acção. O conhecido fica desamparado e vulnerável no seu ser.
Como a palavra é poderosa e inseparável do pronunciado, quem sabe pronunciar o verdadeiro nome de um ser, influencia-o e domina-o, actua sobre a sua realidade profunda. Por isso se esconde o nome real. (ALTUNA 1985: 269)

Para as pessoas de tradição bantú, o nome é parte constitutiva que completa a pessoa, pois explica a natureza própria do ser individual, mostra a sua realidade e descobre a sua interioridade. Encerra alguma coisa da essência pessoal, até identificar nome e ser. Faz parte da personalidade, revela o ser da pessoa. Segundo Altuna (1985), o nome está carregado do dinamismo vital participado da comunidade. A imposição de um nome obedece a motivações que afetam vitalmente a pessoa e a comunidade. O recém-nascido só se torna um muntu quando o pai ou o adivinho lhe dá o nome ou o pronuncia. A união vital do nome com a essência da pessoa entra no campo da magia, estando exposta á interação vital.

O navio negreiro e a travessia do Atlântico (do Kalunga grande)

Durante o processo através do qual os africanos eram transformados em escravizados, a travessia atlântica era considerada o momento mais difícil, seja por seu significado concreto – o abandono da própria terra, da própria família/comunidade e a possibilidade real da morte –, seja pelo significado simbólico – a travessia do Kalunga grande, ou seja, a vivência da morte. Portanto, a questão da morte, concreta e simbolicamente, esteve presente durante todo o processo de travessia do Atlântico. Concretamente, o que observamos é que:

quando se iniciava uma viagem de volta aos portos americanos, muitas vezes os tripulantes e parte dos escravos já haviam esperado durante muito tempo no litoral africano pelo carregamento completo do navio. Essa espera, que poderia durar meses, certamente debilitava todos os envolvidos nas transações, e seus efeitos podem ter sido agravados pelo fato de que muitas vezes era preciso percorrer mais de um porto africano para encher o porão de um navio negreiro. A longa espera e o percurso feito com escalas ampliavam o risco de exposição a doenças, que também era agravado pelos raros cuidados médicos e higiênicos e pela má qualidade e pequena quantidade de água e comida disponíveis. (...) Essas condições não se alteraram, pressionando as taxas de mortalidade e morbidade e, por vezes, neutralizando o papel da redução do tempo das viagens em função das alterações técnicas. (RODRIGUES 2005: 157)

Segundo Alencastro (2000), muitas são as causas de morte em alto-mar. Ressalta-se, no entanto, a desidratação, em função das altas temperaturas no navio, o que gerava transpiração excessiva e falta de água potável para a viagem, problema crônico em Luanda, que é uma área mal servida de poços e infiltrada de água salobra. Havia também os surtos de escorbuto, causados por uma subnutrição dos africanos ao serem embarcados. Destacavam-se ainda:

Disenterias bacilares e amebianas, freqüentes entre os deportados, assim como tipos mortais de anorexia e apatia – uma forma de banzo[3] -, que os negreiros ingleses denominavam mortal melancholy, deriva da desidratação continuada do corpo humano. (ALENCASTRO 2000: 253)

A tendência de queda do número de mortes que ocorreu depois de algum tempo, sendo consequência não só das melhorias desencadeadas pelo avanço da tecnologia, o que fez com que as viagens se tornassem mais curtas, mas principalmente pelo fato de serem embarcadas pessoas que tinham condições físicas de passar pela experiência da travessia.

Já no que se refere à morte simbólica, havia uma crença entre os escravizados de tradição bantú de que um destino horrível os esperava na travessia do Atlântico, uma vez que existia um significado simbólico para a travessia do mar. Kalunga é entendida como a linha divisória que separava o mundo dos vivos daquele dos mortos. Portanto, atravessar o Kalunga significava morrer, se a pessoa vinha da vida, ou renascer, se o movimento fosse ao outro sentido. A resistência ao embarque podia ser a algo que eles imaginavam ser o início de uma viagem sem volta a um destino que nenhum deles planejara ou desejara, até, porque, morrer neste momento era considerado uma morte ruim:

Essa análise nos aproxima da compreensão do sentido da travessia transatlântica e dos laços que uniam os escravos da África Central que a faziam na mesma embarcação. Considerando que um dos alimentos básicos da dieta dos embarcados era a carne salgada, e tendo em mente as implicações do consumo de sal na visão de muitos povos de Angola, a possibilidade de manter a pureza do espírito tornava-se limitada e agravava o pânico quando se pensava no destino ao qual aquela viagem levava. Os malungos estariam associados em uma vivência-limite, e a palavra teria, assim, um significado profundo – baseado na experiência do tráfico na cosmologia banta (...)
Para os homens e as mulheres que compartilhavam a crença de que seu destino após a travessia da kalunga era morrer, embarcar num navio negreiro era motivo de pânico. Não é exagero imaginar que esses homens desejassem evitar a morte a qualquer custo. E não se tratava de uma morte qualquer: alguns brancos que estiveram na África informaram que os negros julgavam que essa morte seria o fim de um processo doloroso. (RODRIGUES 2005: 242-243)

Kalunga também significava a linha divisória, a superfície. Portanto, atravessar a Kalunga (simbolicamente representada pela água do rio ou do mar, por qualquer tipo de água, por uma superfície refletiva como de um espelho) significava morrer. A cor branca simbolizava a morte (os seres humanos eram pretos, os espíritos brancos). Fruto desta crença, do tráfico de escravos e da associação do oceano com a barreira da Kalunga identificava-se a terra dos brancos, mputu, com a dos mortos. O tráfico de escravos é lembrado como uma forma de feitiçaria, pela qual grande número de africanos foi transportado à outra costa (margem), a outro lugar. Por outro lado, o Kalunga também tinha um significado de retorno, uma vez que se considerava que o lugar dos espíritos era junto com os vivos, com seus descendentes e que, um dia, eles voltariam para ficar perto de seu povo e de sua aldeia de origem. Portanto, havia uma crença de que:

a pessoa poderia voltar da América para a África, através da kalunga, não apenas como “alma”, depois da morte física, mas ainda durante a vida, se ela guardasse sua pureza de espírito. (...) Como resultado de crenças desse tipo, (...) escravos que abandonaram a esperança de voltar à África ainda nesta vida freqüentemente recorriam ao suicídio através do afogamento, ou seja, da imersão na água, numa espécie de “batismo” que liberasse a alma para a travessia para a África. (SLENES 1992: 54)

O navio negreiro também se configurou como espaço de diálogos e trocas culturais e religiosas durante a travessia, uma vez que havia encontros entre diversos povos, africanos ou não. Criou especificidades na forma como as pessoas participantes desse processo expressavam a sua religiosidade. Inicialmente, temos inúmeras filiações religiosas como o Catolicismo e o Protestantismo, passando pelas religiosidades africanas, asiáticas e indígenas. Dentro desse espectro religioso, temos vivências mais ou menos ortodoxas da fé. Soma-se a tudo isso um imaginário permeado pela magia, fruto da sociedade europeia do século XVI, em especial da sociedade portuguesa. Os escravos teciam novas solidariedades através da palavra. Durante a travessia, os falantes de língua bantú perceberam que a comunicação entre eles era possível. Na viagem também perceberam que o entendimento não ficava apenas na superfície das palavras, mas alcançava significados mais profundos, uma vez que havia semelhanças culturais.

O navio negreiro, portanto, apresenta-se como o ponto culminante do processo de transição vivido pelos povos de tradição bantú, não só pela angústia que causava e pela possibilidade de renovação criativa que insinuava, mas também porque intensificou os diálogos culturais e os processos de hibridismo.

Considerações finais

Vimos, portanto, que desde o processo de captura no interior da África até a chegada aos portos brasileiros, o ser humano africano passava por:

cinco transações, no mínimo, desde sua partida da aldeia africana até a chegada às fazendas da América portuguesa. Trocas pontuadas por etapas mais ou menos longas. Até o final do século XVII, a maior parte dos angolanos provém de zonas situadas a dois meses de caminhada dos portos de trato. Adicionando-se a espera antes do embarque, que por vezes alcançava cinco meses, e os dois meses necessários à travessia atlântica, se constata que esses escravos tinham, no mínimo, quase um ano de cativeiro ao desembarcar no Brasil. (ALENCASTRO 2000: 147)

Como o risco de fuga do escravizado era uma variável fundamental para a sua venda, recorreu-se a um processo de dessocialização e de despersonalização que, segundo Alencastro:

Dado fundamental do sistema escravista, a dessocialização, processo em que o indivíduo é capturado e apartado de sua comunidade nativa, se completa com a despersonalização, na qual o cativo é convertido em mercadoria na seqüência da reificação, da coisificação, levada a efeito nas sociedades escravistas. (ALENCASTRO 2000: 144)

Os africanos, durante o processo de captura até a chegada ao Brasil, vivenciavam uma situação-limite, na qual eles, muitas vezes, achavam que iriam morrer. Essa experiência marcou os escravizados, mesmo que ela tenha sido amenizada pelo fato deles permanecerem vivos após a travessia e, no Brasil, encontrarem pessoas da mesma origem e em situação semelhante.

Com esse processo, estamos falando da possibilidade humana de se superar, de se transformar, morrendo para uma posição segura e cômoda para colocar-se ou ser colocado em uma situação desconhecida, que traz a sensação de morte, ao mesmo tempo em que aponta para a possibilidade de transformação e de renovação. A transformação significa que se vinha pensando de certo modo e que, a partir de determinado momento, é preciso pensar de maneira diferente. Da vida sacrificada nasce uma nova vida, um novo caminho de ser ou de vir a ser. Deve-se abandonar o velho e partir em busca de uma ideia germinal, que tenha a potencialidade de fazer aflorar algo novo. No fundo, o que se empreendeu foi a tentativa dos escravizados de salvarem-se a si mesmos e aos elementos que eles consideravam fundamentais da sua cultura e, para tanto, houve o empenho de um esforço fundamental.

Os africanos tiveram que sobreviver e recriar suas identidades no mundo escravista brasileiro no qual foram inseridos. Para eles, iniciava-se um novo aprendizado: ser escravizado em terras brasileiras. Apesar de terminado o processo da travessia, observamos que tal situação marcou essa população em seus significados e em suas dimensões, dando origem não só a um novo modo de existir, mas também a uma nova religiosidade que começaria a se formar:

embora a escravização se iniciasse na captura, era ao longo do processo que ele se transformava de traficado em escravo no sentido atlântico da palavra – e, ainda assim, contando com a possibilidade de fugir ou rebelar-se em diversos momentos desse processo. Nesse ínterim, os africanos certamente percebiam as mudanças ocorridas quando trocavam de senhor provisório, e é provável que essa percepção tenha marcado suas vidas após a venda para senhores “definitivos” – que os punham a trabalhar em lavouras, minas, manufaturas ou serviços domésticos. Uma vez tornados escravos no Brasil, ainda que seus destinos e seus senhores pudessem mudar, o estigma da escravidão vivenciada em terras estrangeiras ganhava outros contornos e exigia outras estratégias de sobrevivência e de luta. De costa a costa, as experiências africanas no tráfico permitem entrever como, depois de serem capturados, vendidos e transformados em escravos, os sobreviventes de diferentes idades e culturas recriavam suas identidades em outras terras. Se essas experiências eram repletas de sofrimento, sair delas com vida tinha um significado marcante. (RODRIGUES 2005: 316)

Portanto, o processo de construção da identidade bantú foi algo contínuo, mas não acabado. Materiais étnicos, culturais e religiosos foram sincretizados e combinados segundo as exigências do momento, variando conforme a demanda de afirmação das especificidades e ao mesmo tempo da sua manutenção. Consumou-se a passagem e o escravizado, ao término desse processo, permaneceu em um estado relativamente estável, tendo direitos e principalmente obrigações perante os outros claramente definidos. Esperou-se, a partir de então, que ele se comportasse de acordo com determinadas normas e padrões éticos, que vinculam o escravizado a certa posição social.

Vemos, portanto, que o encontro dos grupos bantú com outras religiões ocorreu bem antes de sua chegada ao Brasil, o que nos faz supor que as misturas e as ressignificações simbólicas ocorridas no Brasil tiveram sua origem na própria África. Desde o século XV havia o encontro entre a cultura portuguesa e a cultura bantú, permeado por relações de poder. Mas, chama a atenção o fato de que, além desse encontro, outros estavam se dando nos fortes e nos navios negreiros, mas agora entre as diversas culturas africanas. Isto, é claro, influenciou as religiões afro-brasileiras de tradição bantú, que podem ser observadas, inclusive, hoje, no Brasil.

Bibliografia

ALENCASTRO, L. F. de 2000 O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, século XVI e XVII, 5ª reimpressão, São Paulo, Companhia das Letras.

ALTUNA, P. R. R. de A. 1985 Cultura tradicional bantu, Luanda, Secretariado Arquidiocesano de Pastoral.

BOAVIDA, A. 1967 Angola – cinco séculos de exploração portuguesa, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

CUNHA-HENCKEL, R. 2005 Tráfego de palavras: africanismos de origem banto na obra de José Lins do Rego, Recife, Fundaj – Ed. Massangana.

FLORENTINO, M. G. 1993 Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.

GLASGOW, R. A. 1985 Nzinga: resistência africana à investida do colonialismo português em Angola, 1582-1663, São Paulo, Editora Perspectiva.

HAMPATÉ BÂ, A. 1982 A tradição viva, in: KI-ZERBO, J. (coord.). Metodologia e pré-história da África, São Paulo – Paris, Ática – UNESCO, p. 181-218.

LOPES, N. 1999 Novo dicionário banto do Brasil, Rio de Janeiro, Pallas Editora.

MARCONI, M. de A.; PRESOTTO, M. N. 2006 Antropologia: uma introdução, 6ª ed – 2ª reimpressão, São Paulo, Atlas.

MELLO E SOUZA, M. de. 2006 África e Brasil africano, São Paulo, Ática.

MOURA, C. 2004 Dicionário de escravidão negra no Brasil, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo.

RODRIGUES, J. 2005 De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro, São Paulo, Companhia das Letras.

SLENES, R. 1992 “Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil”, Revista USP, São Paulo, v. 12: 48-67.

VALAHU, M. 1968 Angola: chave da África, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, LDA.

VANSINA, J. 1982 A tradição oral e sua metodologia, in: KI-ZERBO, J. (coord.). Metodologia e pré-história da África, São Paulo – Paris, Ática – UNESCO, p. 157-179

WISSENBACH, M. C. 2005 “Prefácio” in: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro, São Paulo, Companhia das Letras.

Notas

[1] É importante ressaltar que os autores diferem quanto a caráter da presença de Portugal em Angola. Apenas para fazer um contraponto, gostaríamos de citar Boavida 2006: 13-14, quando afirma que: “Numa primeira fase, sob o panegírico de cristianização dos selvagens, os governantes, em Portugal, atiraram para os exércitos e para as caravelas a gente rude dos campos, os condenados e os aventureiros, para defender as conquistas de uma civilização que se dizia ameaça pelos bárbaros e infiéis. Depois, sob a bandeira da ’dilatação da Fé e do Império‘, procurou-se justificar a política de expansionismo e de conquista que se seguiu à Independência. O progresso das ciências e da técnica na Europa realizou as condições que facilitaram a tarefa de ‘dar novos mundos ao mundo’ – quando se partia em demanda de ouro e das especiarias. Sob o imperativo da defesa de uma herança e de territórios nos quais a missão civilizadora não havia ainda sido completada, ocuparam-se pela guerra e pela fôrça países e territórios que constituíam ùnicamente o mercado de trabalhadores forçados e de escravos para as minas e as plantações do Nôvo Mundo. E agora, é ’a missão divina de um povo eleito‘, bastião da civilização ocidental na luta contra o comunismo que serve de justificação à oligarquia financeira em Portugal e aos seus associados para tocar a mentalidade simples do povo português, para arrancar das suas terras e o atirar às colônias e colaborar na opressão e exploração de povos que se levantaram contra a dominação estrangeira”.

Tal idéia é fruto do etnocentrismo existente na época, que considerava que culturas diferentes necessariamente eram inferiores. Segundo Marconi, Presotto 2006: 18: essas culturas “... são vistas dentro de um prisma de inferioridade cultural, sendo consideradas selvagens, bárbaras e de mentalidade atrasada”.

[2] Segundo Cunha-Henckel 2005: 45: “É necessário, porém, levar em consideração que o processo de mistura e modificação das línguas maternas dos africanos não foi um processo que começou a ocorrer no Brasil e sim já na África, antes de serem embarcados. Também é preciso assinalar que estas línguas não eram, necessariamente, a língua materna dos escravos transportados, mas sim a língua veicular usada na região onde o comércio de escravos era efetuado e onde eles eram armazenados antes do embarque”.

[3] Segundo Lopes 1999: 39: “BANZO [1], s.m. (1) Nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil. / (2) adj. Triste, abatido, pensativo. (3) Surpreendido, pasmado; sem jeito, sem graça (BH). Do quicongo mbanzu, pensamento, lembrança; ou do quimbundo mbonzo, saudade, paixão, mágoa”. Ainda segundo Moura 2004: 63-64: “BANZO. Estado de depressão psicológica que se apossava do africano logo após o seu desembarque no Brasil. Geralmente os que caíam nessa situação de nostalgia profunda terminavam morrendo. Atribui-se tal estado depressivo à saudade da aldeia africana da qual provinham, de modo que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos, isto é, aqueles diretamente importados da África. Há, porém, quem explique o banzo sem recorrer a causas psicológicas, alegando que os africanos assim ficavam porque já estavam contaminados, antes de embarcar, pela “doença do sono”, enfermidade decorrente da picada da mosca tsé-tsé. No entanto, não nos parece muito plausível essa hipótese, sendo preferível a explicação da depressão psicológica, mesmo porque muitos dos escravos acometidos de banzo terminavam suicidando-se, o que não ocorreria no caso da doença do sono. (...) Era, portanto, uma síndrome psicopatológica que somente se manifestava no escravo em decorrência da sua situação de homem que era corrente de relações escravistas”. Gostaríamos de destacar dois aspectos sobre as citações acima. O primeiro diz respeito ao fato de se levantar a hipótese de que o escravizado era passível de ter depressão, portanto era um ser humano. O segundo diz respeito à própria depressão, que pode ser entendida como uma introversão de energia psíquica. Significa que a libido está sendo congestionada pelas dificuldades da existência. Essa introjeção conduz à recuperação de possibilidades não aproveitadas e às elaborações anteriores de problemas represados, mas também a uma autêntica renovação. Portanto, ao se deprimir o ser humano tem a possibilidade, ao sair de determinada situação, de encontrar soluções criativas para as situações conflituosas que vivem. Não é isto que vemos no desembarque de escravizados no Brasil, quando tendo sobrevivido à experiência diaspórica criaram em solo brasileiro as formas novas e criativas de lidarem com a situação que se apresentava? As religiosidades afro-brasileiras não seriam, também, o resultado da superação do banzo?