Candomblé e Umbanda na Cidade de Goiânia em Perspectiva Pós-Colonial

Natália do Carmo Louzada [Universidade Federal de Goiás] []

Resumo

Tendo como referencial os estudos pós-coloniais, o presente trabalho se propõe a analisar as comunidades candomblecistas atualmente existentes na cidade de Goiânia sob a perspectiva do entrelugar cultural. Buscando compreender, por meio do discurso de líderes sacerdotais da referida religião, a tensa articulação entre colonialidade do poder e pensamento liminar, no âmbito do processo histórico de constituição destas comunidades.

Palavras-chave: Candomblé, discurso, pensamento liminar, colonialidade do poder

Abstract

Taking the referential of the post-colonial studies, the propose of this article is to analyze the existing Candomble communities in the city of Goiânia under the perspective of the cultural in between. Trying to understand, through the speech of the sacerdotal leaders of the refereed religion, the tense articulation between power’s coloniality and the marginal thought, in the historical process sphere of this communities constitution.

Keywords: candomble, speech, coloniality, marginal thought

Introdução

O presente trabalho se propõe a compreender, sob a perspectiva dos estudos pós-coloniais, a dinâmica de atuação da colonialidade do poder e insurreição do pensamento liminar no âmbito das comunidades candomblecistas existentes em Goiânia e sua região metropolitana. O que demanda um recuo ao contexto da empresa colonialista do século XVI e à formação das sociedades coloniais americanas sob a ótica interpretativa pós-colonial.

O argentino Enrique Dussel (1993), em 1492 o Encobrimento do Outro, realiza esforço no sentido reinterpretar a colonização da América sob a perspectiva do colonizado, subdividindo-a em quatro etapas, às quais denomina experiências existenciais. Na concepção do autor, a América fora, desde o primeiro momento, encoberta, negada em sua diferença, tendo sido inventada ao ser reconhecida como Ásia. De maneira que, num momento posterior, ao serem colonizados os ameríndios, estes teriam sido violentamente incorporados como si-mesmo ocidental. Sendo submetidos, por meio da redução de sua alteridade, à situação de reflexo inferiorizado da condição humana européia.

Assim sendo, a colonização, na perspectiva de Dussel, teria sido um choque entre dois mundos, do qual resultaria a destruição de um deles. Processo legitimado pelo etnocentrismo que compreendia a religião cristã como superior e admitia como telos da História européia sua missão civilizadora. Embora de tal choque tenha surgido o sujeito americano, indivíduo híbrido, novo sob todos os aspectos, sua cultura, todavia, não refletiria uma síntese cultural, mas sim um processo de dominação em que imaginário e religião indígenas, e posteriormente africanos, seriam demonizados, subsumidos em função da absorção adequada dos preceitos religiosos, racionais e morais europeus.

Ao tornar-se componente fundamental do sistema comercial do século XVI, o qual consolidava a Europa enquanto centro, a dominação da América inaugurava o contexto da modernidade, em que o continente americano fora compreendido como extensão do europeu. Parte integrante de um extremo Ocidente, no qual a projeção do si-mesmo ocidental obliterou as alternativas cosmogônicas e epistemológicas do Outro, a quem fora negada, sob a imposição da racionalidade, a condição de sujeito detentor de formas legítimas de conhecimento.

Partindo destas concepções, Dussel se propõe a reescrever parte da História da América Latina sob perspectiva interpretativa que redimensiona a importância das colônias americanas no âmbito do desenvolvimento econômico e cultural mundial. Procurando assim desconstruir a hegemonia da História eurocêntrica, conferindo condição de sujeito ao indivíduo americano e reconhecendo a violência a que o mesmo fora historicamente submetido.

Nesse sentido, Walter Mignolo (2003) acrescenta novas possibilidades conceituais à discussão lançada por Dussel. Apresenta os estudos pós-coloniais como alternativa teórico-interpretativa advinda do hibridismo característico dos entrelugares culturais, denominados por Bhabha (2005) como terceiro espaço. Cujos sistemas de pensamento, embora admitam a hierarquização das formas de conhecimento sob a égide da razão, convergem em diferentes perspectivas epistemológicas, originárias da ancestralidade indígena e africana.

Utilizando interpretações de diversos autores, em Histórias Locais / Projetos Globais, Mignolo enuncia conceitos fundamentais para a compreensão da idéia de submetimento e marginalização do colonizado e suas outras formas de saber. Analisando os projetos globalizantes da modernidade, a ciência e seus campos disciplinares como perpetuadores da dominação cognitiva empreendida pela colonização, o autor propõe o surgimento de uma diferença colonial instaurada pelo sistema mundial colonial/moderno. Por meio da qual se pretende reconhecer a necessária situação de dominação e consequente inferiorização a que são submetidos os países pós-coloniais, em termos de sua relação com a civilização européia ocidental. O que se daria, fundamentalmente, por meio da imposição da hegemonia da razão; da hierarquização das formas de conhecimento; do estigma de racionalidade inferior atribuído aos colonizados; e da desqualificação dos mesmos enquanto sujeitos produtores de conhecimento.

Interpretando os saberes tradicionais indígenas e africanos sob a perspectiva da divisão iluminista do conhecimento entre hermenêutica e epistemologia, como argumenta Mudimbe (1988), outras formas indisciplinadas de conhecimento, localizadas no âmbito da mentalidade do indivíduo colonizado, foram reduzidas a conhecimento subalterno por práticas coloniais disciplinadas de investigação, rotuladas como filosofia e relacionadas com a epistemologia (Mudimbe, 1998). Para Quijano (1992), autor que primeiro concebe o conceito de colonialidade do poder, a referida colonialidade atua classificando toda a produção de conhecimento a partir das categorias articuladas à perspectiva epistemológica da matriz de poder. Nesse sentido, em relação à colonização da América, aponta que: Ao mesmo tempo em que se afirmava a dominação colonial, eregia-se um complexo cultural denominado racionalidade e estabelecia-se como o paradigma universal do conhecimento e das relações hierárquicas entre a ‘humanidade racional’ (Europa) e o resto do mundo” (QUIJANO apud MIGNOLO 2003:93).

Ainda nesta direção, Mignolo ressalta a constituição dos sistemas marginais de pensamento construídos no espaço colonial, os quais, apesar de híbridos, formaram-se tendo como base a distinção entre hermenêutica e epistemologia, e as categorizações ocidentais hierarquizadas advindas do encobrimento colonizador. De maneira que as próprias formas de conhecimento pós-coloniais atuariam, ainda hoje, como perpetuadoras da subalternização dos outros tipos de conhecimento que a compõem. Sob esse ponto de vista, se reconhece a manutenção, no âmbito da mentalidade, das estruturas de dominação criadas pela colonização, em que a colonialidade do poder é manifestada sob a insígnia do racionalismo. O qual, mesmo com o fim da dominação territorial, perdura como elemento de intracolonização dos sistemas marginais de pensamento. Promovendo o epistemicídio enunciado por Boaventura de Sousa Santos (2009), presente na renitente desqualificação das possibilidades epistêmicas advindas da ancestralidade indígena e africana.

Todavia, ainda na perspectiva de Mignolo, tais sistemas marginais de pensamento, denominados por ele como pensamento liminar, caracterizam-se como momentos de fissura no imaginário ocidentalista implementado pela colonialidade do poder. Pois sendo resultante do diálogo entre a epistemologia, a hermenêutica e os saberes subalternizados característicos do indivíduo pós-colonial, o pensamento liminar compreenderia a articulação tensa entre todos estes. O que lhe confere a possibilidade de construir uma outra lógica, valorizadora dos outros tipos de conhecimento, e reivindicadora de legitimidade aos mesmos e ao lugar de fala de onde são enunciados.

De maneira que, segundo o autor,

... o pensamento liminar deve ser entendido como algo que transcende a epistemologia e a hermenêutica ao mesmo tempo em que evita o confronto entre as mesmas, visto que, apesar de não se equivaler nem a doxa nem a episteme, pode ser compreendido como um conhecimento geral que as inclui (MIGNOLO 2003:31a 33).

Nesse sentido, o pensamento liminar reconhece as formas de conhecimento subalternizadas não somente como objeto de estudo interessante, mas, fundamentalmente, como saberes legítimos, os quais, no contexto da pós modernidade, são reivindicados enquanto lugar de fala válido (MIGNOLO 2003).

O que pode ser melhor compreendido retomando a proposta do conceito de transculturação. O qual, ainda num primeiro momento, ao ser cunhado por Fernando Ortiz (1991) no âmbito de seu estudo pioneiro acerca da cultura afrocubana, em função do reconhecimento do etnocentrismo presente nas viciadas expressões que pretendiam compreender o fenômeno desencadeado pela chegada do colonizador à América. Propunha a compreensão do que entendemos aqui como choque entre dos mundos como um novo fenômeno cultural, original e independente. Que, no caso americano, seria decorrente das trocas culturais e econômicas empreendidas pela empresa colonial.

De forma que a transculturação, no que se refere às Américas, não teria sido mero processo de assimilação imposto pelo colonizador, mas, como definiu Zilá Bernd (2004), uma encenação antropofágica, em que as culturas em choque originaram algo novo, impuro e híbrido (BERND 2004). Pois,

... embora a justaposição conflitiva entre conquistadores e conquistados tenha gerado tanto ajustes e negociações quanto a sujeição do outro, os vestígios (traces), os restos e os fragmentos das culturas da tradição oral (indígenas e africanas), bem como as manifestações das produções culturais subalternas, ressoam na articulação cultural de diferentes países (FANTINI 2004: 168)

Ao considerarmos a proposta de Patrick Chamoiseau (1997) de que a transculturação consiste num processo de constantes transmutações das quais emergem incessantemente novas realidades[1], podemos compreender a conquista do continente americano como um processo ambíguo de assimilações e resistências, o qual segundo Marli Fantini (2004), legitima-se como uma resposta criativa do continente latino-americano à modernidade européia (FANTINI 2004). Perspectiva que nos permite compreender a articulação tensa entre conhecimento racional e demais saberes subalternizados, definida como Mignolo enquanto característica fundamental do pensamento liminar, e o entrelugar cultural no qual o mesmo se situa.

Além disso, no que tange à compreensão do que o referido autor pretende demonstrar ao apontar a insurreição de um pensamento das margens, podemos retomar o hibridismo concebido por Bhabha (2005) primeiramente enquanto condição do discurso colonial por meio da qual se procura legitimar a autoridade / legitimidade coloniais, e posteriormente como processo de negociação cultural em que a apropriação ressignificada torna-se resistência.

Assim sendo, enquanto condição do discurso pós-colonial, o conceito de hibridismo, sob a perspectiva da condição de entrelugar cultural, redimensionou o indivíduo americano. Caracterizado até então pela mestiçagem racial e pelo sincretismo religioso, tal indivíduo era descrito descartando-se todos os demais aspectos de sua constituição transcultural. De forma que, a fim de compreendê-lo em sua integral complexidade, o mesmo foi concebido como híbrido, o que, segundo Zilá Bernd (2004) além de abarcar mais apropriadamente as diversas mesclas interculturais componentes das culturas de margem, representa a reivindicação do respeito e da valorização do diverso (BERND 2004).

Para a autora, a associação do termo em questão à heterogeneidade o diferencia dos paradigmas homogeneizantes da modernidade. E, nesse sentido, diferentemente do conceito de mestiçagem que servira à construção da idéia de integração social fundada na manutenção de uma identidade excludente e homogênea, a hibridez seria uma expressão relacionada à necessidade de se compreender a identidade a partir de um processo fluido, heterogêneo, de construções e desconstruções.

Assim sendo, o sujeito pós-colonial é entendido, antes de tudo, como sujeito descentrado característico do contexto da pós-modernidade. Este que, na perspectiva de Stuart Hall (2002) e dos estudos culturais, em detrimento de uma unicidade identitária, anteriormente amalgamada pela sobressalência da identidade de classe, articula toda a alteridade que lhe compõe por meio de uma fluidez identitária. Negociação estratégica através da qual o indivíduo assume diferentes faces de sua identidade em função das diversas situações que vivencia cotidianamente. Sendo, portanto, sujeito cujo sentido está sendo deslocado (HALL, 2002), ressignificado; cuja política de representações desarticula a perpetuação das estruturas de poder referenciadas nas oposições binárias e suas representações sociais hegemônicas e normalizadoras[2].

Ao cunhar o conceito de novas etnicidades, Hall nomeia o processo de autoconstituição da identificação, que se opõe às identidades adscritas, rigidamente relacionadas a sentimentos tais como o nacionalismo e a pertença étnica. Se referindo assim à articulação móvel das diferenças realizada pelo sujeito descentrado, quem, recuperando as interseções entre raça, classe, gênero e etnia, torna-se um sujeito da resistência (COSTA 2006). A princípio, Hall se refere especificamente ao sujeito antirracista, que ao invés de buscar positivar o elemento inferiorizado da polaridade branco/preto, promove a articulação das diferenças no sentido de desconstruir o referido binarismo, criando um novo sistema de representações que englobe toda sua heterogeneidade.

Contudo, ao deslocarmos o conceito em questão ao âmbito da diferença colonial, podemos compreender por meio dele, além do processo de autoconstituição identitária dos negros em espaços diaspóricos, a composição de uma identidade pós-colonial híbrida, aglutinadora, nas diferentes sociedades pós-coloniais, de suas alteridades específicas. Visto que o indivíduo a que nos referimos, em função de sua hibridez intrínseca, é também descentrado, sendo ainda, enquanto reivindicador de legitimidade ao pensamento liminar, sujeito da resistência.

Nesse sentido, entendendo as religiões de matriz africana e suas respectivas comunidades como espaços híbridos por excelência, ancorados fundamentalmente em recriações diaspóricas nas quais a coexistência, muitas vezes problemática, entre a perspectiva racionalista ocidental e os saberes tradicionais de cosmogonias africanas transportados ao Brasil, encontra-se amplamente evidenciada. Levando ainda em consideração a necessidade, imposta por meio da opressão racista etnocêntrica, de agenciar as identidades fluidas como estratégia política / cultural de resistência. O presente trabalho se propõe a compreender as estruturas cognitivas de dominação racionalista, entendidas como colonialidade do poder, e as alternativas de resistência, entendidas como aspectos de um pensamento liminar, presentes nas representações expressas por meio do discurso de líderes candomblecistas.

Tendo em vista a perspectiva de Chartier (1990) acerca das representações sociais, por meio da qual define a construção da realidade social através de esquemas de representação, forjados de acordo com os interesses dos diferentes grupos sociais. Estabelecendo que as mesmas são responsáveis pela criação de figuras, as quais, ao atribuir sentido à realidade tornando-a inteligível, constituem formas de apreensão do real que perpassam e intermedeiam todas as relações sociais. Além da interpretação de Tomas Tadeu da Silva, segundo quem representações e identidades são, antes de mais nada, construções discursivas, entendidas como reflexos históricos a partir dos quais se busca traduzir o real atribuindo-lhe sentido. Para efeito do presente trabalho compreendemos que, como sugere Silva

Além de serem interdependentes, identidade e diferença partilham uma importante característica: elas são o resultado de atos de criação lingüística. Dizer que são resultado de atos de criação significa dizer que não são elementos da natureza, que não são essenciais (...) Mas como tendemos a tomá-las como dadas, como “fatos de vida”, com freqüência esquecemos que a identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais (...). A identidade, tal como a diferença é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística- está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas (...). A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (SILVA 2000: 76-81)

Pois partindo da concepção foucaltiana acerca de discurso, compreendemos, por fim, que o mesmo organiza-se enquanto depósito das relações de poder. Instituindo, no âmbito de cada sociedade seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros (FOUCAULT 1992). Perspectiva que nos permite entender, ao dimensionarmos representações e identidades como construções linguísticas / discursivas, que sendo as mesmas sancionadas por determinado regime de verdade, conferem ao grupo social que possui poder o de instituí-las e normalizá-las, a condição de manter sua situação de dominação. Ao mesmo tempo em que, sendo característica fundamental da linguagem sua fluidez, como postula Derrida (1991), torna-se possível serem ressignificados os signos por meio de sua différance. O que faz com que as identidades também sejam constantemente negociadas / ressignificadas. Agenciadas no cotidiano dos sujeitos descentrados, conferindo aos mesmos a possibilidade da resistência.

Assim sendo, convergindo perspectivas de análise pós-coloniais aos conceitos dos estudos culturais, pretendemos, por meio deste estudo, além de analisar a condição de entrelugar característica dos indivíduos híbridos pós-coloniais, refletida especialmente em sua mentalidade aglutinadora de diferentes perspectivas epistemológicas, verificar suas características identitárias e os processos de negociação cultural especificamente presentes nas comunidades candomblecistas existentes em Goiânia e sua região metropolitana. Buscando compreender as formas de coexistência entre colonialidade do poder e reivindicação de legitimidade aos saberes subalternizados, entendida como possível insurreição do pensamento liminar, no âmbito do discurso de líderes da referida religião.

Utilizando como referencial as reflexões realizadas pelos autores apresentados, pretendemos ainda, analisar a plausibilidade histórica de tais proposições no âmbito das comunidades candomblecistas existentes em Goiânia no atual contexto. Visto que, embora a referida temática já constitua debate em âmbito acadêmico, ainda não há produção científica, em quantidade significativa, que se proponha a refletir acerca da sociedade goiana, ou mesmo acerca da sociedade brasileira, em termos de suas especificidades pós-coloniais.

A dinâmica do entrelugar: sujeitos híbridos, negociações e resistência

O presente trabalho utiliza entrevistas orais previamente realizadas no âmbito do projeto ABEREM: África no Brasil – estudo de comunidades, religiosidades e territórios, realizado pela Universidade Estadual de Goiás, com financiamento do CNPq e coordenação da professora Dra. Eliesse Scaramal. Por meio do qual foram realizadas microetnografias e entrevistas com professores universitários e chefes de religiões afrobrasileiras e de matriz africana, atuantes na cidade de Goiânia e sua região metropolitana. As quais foram transcritas pela equipe de iniciação científica do projeto, tendo sido analisadas e posteriormente utilizadas nos trabalhos monográficos dos graduandos membros da referida equipe.

Algumas das entrevistas em questão, realizadas com os líderes candomblecistas, possibilitaram a identificação de um intenso processo de burocratização e institucionalização das comunidades religiosas afrobrasileiras e de matriz africana goianienses. Conclusão obtida por meio da constatação da existência de uma Federação Goiana de Umbanda e Candomblé, e das necessidades apresentadas em entrevista por seu representante. Segundo perspectiva de quem, as Casas de Santo (também denominadas terreiros) deveriam ser devidamente registradas e legalmente vinculadas àquela Federação, cuja função primordial seria a representação política de umbandistas e candomblecistas, além da regulamentação das atividades e da sucessão de Babalorixás[3], Tatas de Inquice[4], Pais e Mães de Santo[5]. Nesse sentido, é evidenciada a preocupação existente quanto à problemática do charlatanismo, e quanto à legitimação das religiões de origem africana frente ao Estado Nacional.

O entrevistado a que nos referimos neste primeiro momento ocupa posição de sacerdote religioso – Babalorixá - do Candomblé de Ketu[6], defendendo a idéia de que os membros de religiões afrobrasileiras e de matriz africana[7] que pretendem conduzir trabalhos espirituais deveriam ser educados de maneira a aprender elementos tais como a história, a liturgia, hierarquia e teorização dos fenômenos mediúnicos, compreendendo a cosmogonia da religião da qual participa. O que evidencia a pretensão de se instituir um padrão ritual que preserve a tradição em sua disposição (supostamente) original, posto que a grande diversidade existente nas práticas religiosas das Casas de Santo / Terreiros das religiões de influência africana são entendidas pelo entrevistado como desorganização. Assim sendo, a idéia de educação apresentada pelo sacerdote relaciona-se a uma busca por positivação e legitimidade social que, ao mesmo tempo em que valoriza a tradição, a ressignifica sob a perspectiva ocidental, tratando-a como elemento de justificação do rito, necessário de acordo com princípios civilizacionistas.

Na interpretação do referido líder religioso, a mediunidade e o fenômeno sobrenatural não podem ser contestados relativamente a um ou outro indivíduo; todavia, a legitimidade do trabalho espiritual deriva da ascendência ritual do sujeito em questão, da educação por ele recebida acerca dos preceitos da religião. O que, segundo afirma, possibilita serem evitados charlatanismos.

Dessa forma, torna-se possível perceber haver na busca de conservação da tradição, característica das comunidades diaspóricas, além do referido processo de burocratização e institucionalização da religião, a tentativa de racionalização da mesma. Em que entidades incorporadas[8], no âmbito de religiões afrobrasileiras tais como a Umbanda[9], chegam a ser questionadas pelos pais de santo acerca de uma certidão, referente a sua origem sacerdotal (esta que supostamente identificaria o primeiro sacerdote a receber a entidade em questão em seu terreiro). Processo que também pode ser notado ao ser ressaltado negativamente pelo entrevistado o fato de as religiões de origem africana não possuírem infra-estrutura dotada de grandes auditórios; de não estarem devidamente organizadas em ministérios como a comunidade evangélica; além de não terem significativa inserção em âmbito acadêmico por meio de estudos realizados por teólogos, antropólogos ou historiadores. Todas essas, características comuns à forma de organização das religiões de matriz européia. Demonstrando por meio da interpretação negativa acerca da organização das religiões de influência africana, a manutenção de um referencial, de um parâmetro organizacional europeu / ocidental a ser seguido.

Nesse sentido, a racionalização das religiões de influência africana perpassa ainda outros aspectos interessantes. Visto que demonstra, por meio do discurso dos representantes das nações de Candomblé Ketu e Angola, e da Federação de Umbanda e Candomblé goiana, tanto a tentativa de uma compreensão racional dos fenômenos religiosos (fundamentada na teorização doutrinária e litúrgica das religiões em questão), quanto a burocratização e o exercício do discurso político enquanto estratégias de inserção e positivação sociais. O que pode ser verificado, por exemplo, quando, ao se referir à formação educacional dos sacerdotes e adeptos das religiões de influência africana, o babalorixá entrevistado, diz respeito, fundamentalmente, a uma educação política, por meio da qual a Federação em questão seria reconhecida como importante instrumento de reivindicação frente ao Estado. Evidenciando, além da busca por representação política nas esferas de poder como mecanismo de promoção de inserção social, uma utilização política do discurso da modernidade. Cuja ótica de análise permite tratar o Estado de Goiás como atrasado, em temos de compromisso social, quando comparado a Estados como São Paulo e Rio de Janeiro, os quais possuem espaços rituais públicos especialmente construídos pra as religiões afrobrasileiras e de matriz africana (o macumbódromo de São Paulo é mencionado por um dos entrevistados como exemplo de exercício de uma democracia efetiva).

Ainda em termos da perspectiva de modernidade, a existência de uma vertente umbandista denominada pelo entrevistado como Umbanda branca, que teria abandonado a utilização de elementos da tradição africana, tais como a ritualística e a musicalidade, com a justificativa de não serem mais necessários, demonstra estar presente entre as comunidades religiosas afrobrasileiras, a concepção de necessidade de evolução / progresso relacionada ao abandono daquilo que representa o primitivismo e a barbárie. Nesse sentido, o abandono de características de origem africana e a negativação semântica implícita, relacionada aos termos preto e negro (contrários ao sentido positivo atribuído ao termo branca na referida denominação), assim como o processo de racionalização e burocratização anteriormente identificados, e que partem do referencial epistemológico e civilizacional europeus, são por nós compreendidos como desdobramentos da colonialidade do poder. Efeitos do mito da modernidade, enunciado por Dussel (1993) como uma definição mundial da Modernidade na qual o outro da Europa é negado e obrigado a seguir um processo de modernização, tendo como referencial o modelo europeu de civilização. Perpetuando a condição de subalternidade do sujeito pós-colonial e de suas outras formas de conhecimento.

Ainda demonstrando aspectos de colonialidade do poder presentes no discurso dos entrevistados, a referida necessidade de racionalização da religião é novamente abordada pelo Babalorixá em questão quando, ao analisar a inexistência de uma codificação, de um corpo doutrinal, e de uma sistematização no âmbito da Umbanda, as concebe enquanto problemas relativos à mesma, visto que, impossibilitariam, por parte dos adeptos, uma fé raciocinada. Em sua perspectiva, o desconhecimento da explicação racional dos fenômenos e ritos atua deslegitimando as religiões de influência africana. Argumentando, nesse sentido, em defesa das práticas religiosas afrobrasileiras e de matriz africana, frequentemente demonizadas socialmente, a partir da aproximação entre aspectos característicos das mesmas e determinadas passagens de livros bíblicos. Tal como pode ser verificado nos seguintes excertos do diálogo realizado entre o mesmo e outro sacerdote, Tata de Inquice, líder do Candomblé de Angola[10]:

SACERDOTE A (Tata de Inquice): mas eu quero falar uma coisa: o Deus onipotente, onisciente e onipresente, não é o Deus que Jeová manifestou na...
SACERDOTE A: o Deus ali é um Deus tribal igual aos nossos, criou uma descendência, criou um povo pra ser Dele, não é um Deus criador do universo não! Deus, porque aquele Deus ali ele diz assim: eu vou formar vocês para ser um povo meu...
SACERDOTE B (Babalorixá): meu!
SACERDOTE A: o Deus criador do universo, todas as coisas são dele em si... é um Deus tribal igual aos nossos! São divindades que...
SACERDOTE A: que... tem cores específicas, que gosta de ser cultuado nas montanhas, tinha animais de predileção para sacrifício, igualzinho aos nossos! Tinha dias de culto, tinha ritos, igualzinho aos nossos Deuses...
SACERDOTE B: cânticos... num é não?
ENTREVISTADOR: deixa eu fazer uma pergunta: você citou essa questão dos montes, dos rios... como é que fica isso aqui em Goiânia? Pra vocês, por que os evangélicos estão indo hoje pros montes?
SACERDOTE A: usando os nossos termos, usando os nossos ritos...
ETREVISTADOR: e usando por exemplo os rios... eles se batizam nos rios... como é que fica essa...
SACERDOTE B: tipo assim, nós não temos antropólogos, nós não temos historiadores que assumam a bandeira do lado da religião e prove que é plágio! Quer dizer, estamos certos em todas as nossas ações... porque vida vem da vida, e a vida é a natureza... cada entidade nossa, cada Inquice ele cultua, ele é cultuado em um ponto da natureza. Esse ponto da natureza corresponde a nós...
(...)
SACERDOTE A: agora a questão dos rios... tem que se entender também que todas as religiões elas têm... os rios, o batismo... é sagrado pra eles desde... é instituído por João Batista, independente da influência do Candomblé, o rito de se mergulhar no rio... só que tem um simbolismo por trás... só que eles entendem ao pé da letra e...
SACERDOTE B: não, não... agora eu vou contigo... eu vou contigo é aonde que mostra a presença da ritualística africanista nas ações que eles faziam...
SACERDOTE A: não, não e não é só nisso, no Velho Testamento também, quando aquele homem que era leproso e mandou: vai no rio e dá sete mergulhos no rio pra depois se levantar e sair de lá purificado. Entendeu? (E.R., F.N., entrevista, 04/06/2006, Goiânia)

Tendo em vista a reincidência da constatação dos entrevistados acerca de semelhanças entre elementos das religiões de matriz européia e das religiões afrobrasileiras / de matriz africana, evidencia-se um processo de busca por legitimidade, realizado por meio da aproximação racional entre as duas vertentes religiosas. Processo no qual se justificam práticas ritualísticas das religiões de influência africana por meio de passagens bíblicas. O que, em nossa análise, indica uma ocidentalização da compreensão das cosmogonias africanas que instituem tais ritos. Muito embora constitua também uma estratégia de negociação cultural que permite a sobrevivência e a inserção dos valores e aspectos culturais africanos numa sociedade eurocêntrica.

Assim sendo, ainda que tenhamos identificado, como descrito até o momento, formas de colonialidade do poder presentes no discurso dos entrevistados, apontadas como processo de burocratização, institucionalização e racionalização das religiões de influência africana, vislumbramos ainda diversas fissuras e tensões existentes nas referidas estruturas de dominação cognitiva, das quais emergem aspectos de um pensamento liminar. Pois embora num primeiro momento a diversidade ritual das religiões afrobrasileiras tenha sido interpretada como desorganização por um dos entrevistados; ao se referir a Umbanda, o sacerdote Tata de Inquice afirma ser esta mesma característica de diversidade ritual, o fato de ser esse grande portal desprovido de código fixo e específico (em suas palavras), a grande vantagem da referida religião. O que, associado à argumentação do entrevistado como um todo, demonstra a perspectiva de valorização da hibridez em termos identitários. Já que, segundo ele, a Umbanda corresponde a uma religião legitimamente brasileira.

Nesse sentido, é narrado em uma das entrevistas o mito fundador da religião umbandista, o qual se refere à suposta recusa, de uma mesa de religião kardecista[11], em receber a manifestação de um espírito de caboclo[12]. Este que teria se afastado anunciando a disseminação de uma nova religião: a Umbanda. Isso posto, podemos verificar que tal mito diz respeito a uma situação de marginalização, promovida por uma religião de matriz européia em resposta a uma possível hibridização advinda da solicitação de um espírito correspondente a um arquétipo mestiço, tipicamente brasileiro. O que, em nossa compreensão, sugere um processo de invenção da tradição a partir do qual uma nova identidade se estabelece, assim como entendido pelos estudos culturais. Tradição esta que, neste caso em específico, se relaciona a uma reivindicação de inserção social, não somente da religiosidade híbrida brasileira, como também dos valores herdados da tradição indígena e africana, e dos próprios indivíduos transculturados e suas perspectivas identitárias.

A negociação cultural enquanto estratégia de inserção social reaparece no que se refere à necessidade de existirem cientistas pesquisadores das religiões afrobrasileiras / de matriz africana, apontada em excerto da entrevista anteriormente apresentado. Visto que, a constatação da existência de tal necessidade, corresponde a uma tentativa de resgate / manutenção da tradição frente ao processo ambíguo de fluidez das identidades híbridas, descentradas, e suas memórias constantemente reconstruídas. Sendo reivindicada legitimidade às religiões de influência africana por meio de estudos acadêmicos ainda que os mesmos, ao torná-las foco de debates e pesquisas, reduzam seus saberes específicos a formas de conhecimento inferiorizadas. Assim sendo, o pensamento liminar se apresenta enquanto alternativa negociada de sobrevivência dos saberes africanos, permeada peloa submissão e pela condição de subalternidade impostas pela colonialidade do poder e seu referencial epistemológico. Posteriormente, ao serem contestadas pelos entrevistados a hierarquização de saberes desvalorizadora da tradição e a subalternização da ancestralidade cultural africana e indígena, o pensamento liminar manifesta-se de forma veemente, expondo sua característica de articulação / negociação das diferentes formas de conhecimento que o compõem enquanto estratégia de resistência. Neste momento evidenciando a consciência do sujeito pós-colonial no que se refere à existência de formas de colonialidade do poder e, principalmente, sua insatisfação relativa à referida condição de submissão e deslegitimação de seu locus de enunciação.

Entretanto, ao se referirem novamente à manutenção da tradição, os entrevistados apresentam discurso diferente no tocante à Umbanda e ao Candomblé. Afirmando que, em se tratando de Candomblé, a progressiva evolução que a religião vem sofrendo, ao perder elementos característicos dos cultos de nações, constitui uma descaracterização prejudicial. Obliteradora da beleza peculiar a cada nação e da luta ancestral pela manutenção desses elementos da tradição. Enquanto que, no se refere à Umbanda, ao analisarem a influência do Catolicismo sobre a mesma, embora considerem o sincretismo como uma imposição que foi ressignificada como estratégia de resistência, parecem concebê-lo, na atual circunstância sócio-histórica, como algo irreversível. Demonstrando preocupação significativamente menor quanto à preservação dos elementos ritualísticos e cosmogônicos de origem africana no âmbito da religião afrobrasileira.

Ainda nesse sentido, argumentam ser a influência kardecista sobre a Umbanda uma evolução. Considerando que a manutenção da autenticidade umbandista deveria ser realizada apenas por meio da preservação da hierarquia de uma casa mãe (entendida como referencial litúrgico e doutrinário a ser observado pelas demais casas). Concebendo as alterações no culto religioso umbandista como respostas às necessidades do atual contexto, ou mesmo como uma suposta evolução da espiritualidade. Esta que, segundo os entrevistados, no âmbito desta religião

... não tá muito preocupada se você tem que girar, vestir branco, vestir saia... se você tem que sentar aqui no tronco e concentrar e ela manifestar... a espiritualidade não é nossa... é o contrário... não somos nós que ditamos como que as espiritualidades têm que se manifestar. É o contrário tá? (...) São tipos de manifestação que a espiritualidade não está muito preocupada se chama ela de espírito santo, se chama ela de caboclo, de preto velho de... não tá preocupada... ela quer se manifestar, fazer seu papel e mostrar que existe outra dimensão, que a vida não acabou, que a existência não é só isso daqui, que existe... esse aqui é que é uma ilusão... a verdade é que ta do outro lado... (E.R., entrevista, 04/06/2006, Goiânia)

Sendo tais modificações também entendidas como alterações positivas no sentido de diminuir a resistência ainda existente relativamente aos ritos e indumentárias umbandistas.

Tal concepção aponta indícios de uma supervalorização das religiões de matriz africana em relação às afrobrasileiras. Sendo as de matriz africana compreendidas como guardiãs da tradição cultural africana, enquanto as afrobrasileiras, nas quais se encontram preservados diversos elementos da tradição indígena, entendidas como aquelas em relação às quais a preocupação no que se refere à conservação da tradição pode ser menor. Análise que parece ser confirmada na presente entrevista, ao corroborarem os sacerdotes quanto a ser sua maior preocupação o resgate de um sentimento de pertencimento afrobrasileiro. Este que, em nossa análise, dependeria, necessariamente, da manutenção de aspectos da tradição religiosa africana em detrimentos daquelas de tradição indígena.

É importante ressaltar que, em outro momento da entrevista, a miscigenação entre indígenas e africanos é vista como aproximação especialmente positiva no campo religioso, visto que, segundo o sacerdote de Ketu, ambos os povos tinham rituais e divindades bastante parecidos. Entretanto, de maneira contrária à presente argumentacão, a hibridização entre aspectos das tradições religiosas africana e indígena é vista de maneira negativa se ocorrida no âmbito do Candomblé.

Por fim, como pôde ser verificado, o excerto em análise aponta forte concepção evolucionista, compreendida aqui como mecanismo de colonialidade do poder. Ao mesmo tempo em que aponta, no que tange à valorização da miscigenação / hibridez cultural e à preocupação quanto ao resgate de uma identidade afrobrasileira, vultos de um pensamento liminar, por meio do qual a preservação de elementos religiosos advindos da ancestralidade indígena e africana é interpretada contraditoriamente. Em alguns momentos como primitivismo, e em outros como fator fundamental de preservação da tradição e de criação da alternativa afrobrasileira de identidade e identificação.

Partindo para análise de outro momento do diálogo, em que os entrevistados abordam a influência da globalização sobre os terreiros de religião de matriz africana, há a ênfase no fato de que a disponibilização de informações destitui os sacerdotes de seu poder simbólico, o qual se assenta sobre o conhecimento exclusivo do Ewó, ou segredo. Nesse sentido, assim como concebe Halbwachs (1990), o registro de aspectos de sua cultura, fundamentada na oralidade, causa a perda progressiva da memória coletiva. Esta que, ao ser codificada, perde o valor de rememoração, levando consigo o valor dos sujeitos idosos cuja função social é rememorar. Os quais, em termos das religiões afrobrasileiras e de matriz africana, são representados pelos seus líderes sacerdotais. A preocupação quanto à existência de acadêmicos que tenham passado pelo fundamento é manifesta neste mesmo sentido. Visto que, ao ter acesso às casas de santo, o pesquisador pode tornar-se tão prejudicial à religião quanto a internet.

Ainda nessa entrevista, ao serem questionados acerca da periferização espacial das referidas casas de santo e terreiros, os entrevistados afirmam não ser a mesma decorrente de um processo de marginalização, mas sim de uma opção em se situarem mais próximos a importantes elementos da ritualística africana, tais como rios e matas. Além disso, argumentam que as comunidades religiosas procuram aglomerar pessoas mais pobres, as quais se concentram nas periferias urbanas. E que, em respeito à diversidade religiosa, os tambores das religiões de matriz africana e afrobrasileiras não devem incomodar pessoas de outras religiões como frequentemente o fazem, com suas músicas e orações, as igrejas evangélicas situadas na região central das cidades. O que indica, na análise aqui em curso, a não-passividade das referidas comunidades nessa periferização espacial. Mas, ao contrário disso, sua participação ativa num processo de negociação por sobrevivência. Pois ainda que tal processo histórico não tenha se constituído da forma narrada pelos sacerdotes em questão, a apropriação positiva desta marginalização demonstra a dinâmica da sobrevivência negociada e a ressignificação política da memória. Ambas circunscritas às alternativas de resistência e inserção.

Considerações finais

Assim sendo, o processo histórico de resistência das religiões afrobrasileiras e de matriz africana em Goiânia, estaria sendo conduzindo a fim de realizar uma inserção negociada. Permitindo a incorporação de aspectos ocidentais, ao mesmo tempo em que promove a afirmação da identidade religiosa por meio de uma positivação simbólica que, talvez paradoxalmente, permite a sobrevivência das referidas religiões frente à ofensiva de encobrimento da alteridade, característica da modernidade. Tornando terreiros goianienses espaços demonstrativos da dinâmica política e cultural dos entrelugares constiuídos pelas sociedades pós-coloniais. Indicando alternativas de compreensão às formas de negociação e inserção, e possibilitando a visibilização de novas problemáticas surgidas no âmbito da tensa articulação entre a epistemologia ocidentocartesiana e os saberes subalternizados, característica do terceiro espaço e que está, cotidianamente, em exercício de ressigificação.

Por fim, a identificação de estruturas de hierarquização do saber não estaria necessariamente articulada à promoção de epistemicídio. Visto que, a obliteração, temporária ou parcial de aspectos dos saberes de ancestralidade indígena e africana pode estar relacionada a uma estratégia de sobrevivência. Sendo mesmo possível que a colonialidade do poder possa ser compreendida como componente do pensamento liminar. Este, que teria seus diversos saberes agenciados pelo sujeito híbrido, descentrado, caracterizado tanto por momentos de prevalência do referencial epistemológico racionalista, quanto por circunstâncias de valorizacão do que entendemos aqui por saberes subalternizados. Contribuindo, assim, para a construção de novas perspectivas de análise no âmbito dos estudos pós-coloniais.

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Notas

[1] Patrick Chamoiseau apud Zilá Bernd. (BERD, 2004).

[2] Normalização significa atribuir à identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade (SILVA, 2000).

[3] Denominação que se refere ao líder sacerdotal do Candomblé de Ketu do sexo masculino.

[4] Denominação que se refere ao líder sacerdotal do Candomblé de Angola do sexo masculino.

[5] Denominações referentes aos líderes sacerdotais de diferentes religiões afrobrasileiras.

[6] Nação de Candomblé, também denominada como Ketu-Nagô, fundamentada na ancestralidade religiosa iorubana. Sendo os iorubás povos sudaneses trazidos ao Brasil predominantemente nos séculos XVIII e XIX, durante o contexto de encerramento da diáspora africana à América.

[7] A diferenciação entre religiões afrobrasileiras e de matriz africana tem como referência a auto-identidade das comunidades religiosas de influência africana no espaço goianiense. Estando relacionadas respectivamente como maior e menor grau de hibridização com aspectos de religiões cristãs e indígenas. Além disso, enquanto o Candomblé apresenta pretensa rigidez ritual, tendo em vista que ao pertencer à determinada nação / tradição, os terreiro candomblecistas incorporam uma estrutura de mitos e ritos a ser seguida, a Umbanda constitui-se como uma religião desprovida de códigos rituais e doutrinários unificados.

[8] Fenômeno de transe, também entendido como fenômeno mediúnico, que estabelece a conexão entre um intermediário e o espírito de uma pessoa desencarnada.

[9] A Umbanda é uma religião híbrida, que cresceu dividida entre as influências da antiga Macumba, do Catolicismo, do Kardecismo e do Candomblé, sendo por isso resultado das negociações ocorridas entre estes elementos em diferentes níveis (CARRER, 2009).

[10] Nação de Candomblé fundamentada na ancestralidade religiosa banto. Sendo os povos bantos definidos por um tronco etnolinguístico comum que agregou diferentes etnias e culturas. Os bantos foram trazidos ao Brasil predominantemente nos séculos XVI e XVII.

[11] Trabalho de orientação aos espíritos desencarnados realizado por membros do Espiristismo kardecista.

[12] Entidade espiritual que representa a ancestralidade indígena brasileira.