Terços, “Santinhos” e Versículos: A relação entre Católicos Carismáticos e a Política

Emerson José Sena da Silveira[*] []

Resumo

O artigo analisa a complexa relação entre os carismáticos e a política, entendida como campo do exercício do poder por meio da representação democrático-partidária. Os rituais e a cosmologia peculiares à Renovação Carismática Católica influenciam a forma como os católicos carismáticos se lançam na disputa dos partidos políticos pelo poder do Estado. A aplicação de termos como conservadores ou reacionários de direita, usados como rótulos, precisa ser repensada de acordo com a visão de mundo que orienta os carismáticos, bem como com os rituais e os mecanismos simbólicos que sustentam sua plausibilidade. Aborda-se, finalmente, a participação dos carismáticos nas eleições, bem como a questão da representação partidária.

Palavras-Chave: Carismáticos católicos; Política; Ritual; Cosmologia.

Abstract

The article analyzes the complex relationship between charismatic Catholics and politics, the latter being understood as the exercise of power through representative, party-based democracy. The rituals and cosmology particular to the Catholic Charismatic Renewal influence the form in which charismatic Catholics enter into the dispute among political parties for control of the State. The use of labels such as “conservatives” or “right-wing reactionaries” must be reconsidered in accordance with the Charismatic world-view, as well as with the rituals and symbolic mechanisms that sustain its plausibility. Finally, the article deals with the participation of Charismatics in elections, as well as with the issue of party representation.

Keywords: Charismatic Catholics; Politics; Ritual; Cosmology.

Introdução

O panorama das relações entre religião e política no Brasil se constitui num desafio para as análises sociológicas. As dicotomias clássicas não dão conta de explicar os fluxos entre a semântica da religião e a semântica do discurso político. Pentecostais, neopentecostais e católicos carismáticos surgiram no cenário brasileiro, retratados em manchetes de jornal, artigos científicos e nas representações legislativas (a “bancada evangélica”).

A presença evangélica (pentecostais e neopentecostais) é marcante desde a Assembléia Nacional Constituinte (1986). Nessa época, 26 deputados começaram a formar a “bancada evangélica”, a despeito dos diferentes partidos que a compunham. As décadas passaram e os grupos evangélicos, disciplinados e endinheirados, cresceram nos meios de comunicação (a Igreja Universal do Reino de Deus e a TV Record, por exemplo) e hoje, a bancada evangélica cresceu e, dentro dela, a participação da igreja universal (cerca de 30%).

No contexto de 1986, a mobilização dos católicos parecia tímida e vacilante. Os movimentos católicos como as Ceb’s e outros, embora desempenhassem um papel relevante de crítica social, não tinham sua contrapartida na eleição de uma “bancada católica progressista” no poder legislativo.

Para o movimento carismático, a questão da política, por meio dos mandatos no poder Legislativo, parecia algo distante e, aparentemente, a atuação política ostensiva passou ao largo da preocupação das lideranças carismáticas, em virtude não apenas dos princípios nos quais tal movimento se fundamenta (reavivamento interior, uso de práticas pentecostais como o dom de cura, línguas e outros), mas também de uma hostilidade (às vezes manifesta, às vezes velada) em relação ao setor progressista da Igreja Católica (a Teologia da Libertação e as Ceb’s) (Oliveira, 1978; Prandi, 1997; Carranza, 2000).

Hoje, a Renovação Carismática Católica (RCC) ocupa os meios de comunicação, realiza eventos de massa, liderados por figuras populares como o padre Marcelo Rossi, e lança candidatos a vereador e a deputado. A RCC começa, a partir de 1990, a entrar nos meios de comunicação e a eleger candidatos a cargos políticos em todos os níveis (vereadores, deputados estaduais e federais) afinados com seu discurso. Em face desse fenômeno, emerge uma questão: quais foram as grandes linhas de evolução dessa mudança?

Entre o discurso político e o discurso simbólico

Mas, antes de comparar, a traços largos e grossos, a atual posição dos carismáticos na política, cuja tendência atual sofre uma inflexão, lanço um olhar para as possibilidades da existência de um “projeto político carismático” e a posição do movimento em face das eleições presidenciais de 1994 e 2002, fazendo um breve retrospecto de algumas linhas das análises sobre o movimento carismático.

Uma das pesquisas acadêmicas pioneiras sobre a RCC data de 1975-77, e foi publicada em 1978. Ela serviu de reflexão a teólogos e à CNBB. Tal pesquisa foi realizada sob a coordenação do sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, ligado à linha progressista da igreja, com atuação pastoral.

Nessa pesquisa, Oliveira (1978, p. 37), constata que no ethos da RCC, a atuação no campo político e social seria uma decorrência cronológica e ontológica da renovação interior, ou seja, da experiência religiosa subjetiva e individual. Realmente, alguns dados que Oliveira (1978) cita na pesquisa são contundentes: 47,3%, dos que responderam ao questionário aplicado disseram não ter engajamento social (Oliveira, 1978: 34-40).

Mas um dado passava despercebido. Embora pequeno, foi tornando-se expressivo ao longo do tempo e das novas estratégias de inserção desse movimento no atual cenário da política formal. Oliveira (1978: 37) identificou 17,8 % de informantes que responderam possuir uma atuação social e política, de cunho preponderantemente assistencialista.

Entretanto, no período de 1970, data de introdução do movimento no Brasil, até 1990, data da implantação de seu projeto de reestruturação administrativa, pastoral e política (Carranza, 2000), a RCC permaneceu alheia aos movimentos políticos, dizendo-se espiritual, com uma finalidade principal, que seria renovar o homem e a igreja, trazendo uma “experiência pessoal” do amor de Deus por meio do exercício dos chamados “dons carismáticos” (Oliveira, 1978; Silveira, 2000). Nesse primeiro momento de análise, nas décadas de 1970 e 1980, outros pesquisadores, como Etiene Higuet, constataram que “... a atuação no mundo social e político é bastante reduzida no conjunto dos participantes da RCC no Brasil” (1984: 23), predomina ainda um ethos preocupado com a vivência individual da fé e enfrenta dificuldades de apoio no episcopado e na inserção na vida eclesial das paróquias.

Após uma reorganização em nível nacional e uma acentuada centralização e burocratização com o chamado Plano da Ofensiva Nacional, iniciado em 2003 (Silveira, 2000), o movimento passou a engajar-se na arena política formal, num movimento similar ao que lançava os evangélicos em candidaturas vitoriosas no Legislativo, cuja estrutura era lastreada em uma rede de vínculos com os meios de comunicação (redes de TV e rádio), estratégias de marketing e negócios empresariais.

Entre os carismáticos a construção dessa rede passou a fazer parte da pauta de atuação do movimento. Mas a interpretação para a atuação/engajamento era procurada nos versículos bíblicos e nos dons carismáticos como as profecias (espécie de retórica usada em tom imperativo, que atesta a fala de Deus) e as visualizações (dispositivos de imagem usados pelos carismáticos e que surgem durante as orações).

Juntamente aos dons pentecostais (dom de línguas, curas, profecia e outros), o movimento católico-carismático coloca a Bíblia como leitura primordial, ao lado das devoções marianas (terço e culto a Virgem Maria), traços simultaneamente estimulados pela direção do movimento, mas sujeitos a ressignificações no contexto da experiência carismática (rosário de cura interior e libertação, por exemplo, uma prática criada pelo e no movimento).

A liderança do movimento, a partir desse redirecionamento, estaria formulando um “projeto político” próprio da RCC? Na verdade, a atuação política dos carismáticos não teria como objetivo formar um partido próprio, mas inserir os leigos no mundo da política, construindo o mito e a utopia da “civilização do amor”, expressão usada por sacerdotes e leigos ligados ao movimento ao se referirem a um projeto de “reforma moral” da sociedade. Se existe um “projeto político” próprio (e a RCC prefere dizer que não), ele estaria retoricamente ligado às diretrizes gerais da Igreja. Mas a RCC tem uma prática similar à de neopentecostais ao participar da política. Por exemplo, chama atenção o caráter da inserção e da reivindicação dos carismáticos nas campanhas políticas.

Contudo, como lembra Miranda (1999), as novas linguagens do religioso e do político relativizam dicotomias e análises sumárias do tipo “preto-e-branco”, que não contenham outras tonalidades. Por isso pretendo neste artigo dizer que essa análise sumária (RCC conservadora e proselitista) amputa diversas outras formas de compreender o fenômeno. Entre os dois mundos, o da fé e o da representação política, os códigos simbólicos da religiosidade carismática transitam no âmbito da política, resignificando procedimentos, condutas, comportamentos refratários a uma redução sociológica. Por exemplo, observa-se nesta carta de um candidato carismático que sua linguagem mistura códigos diferentes (o religioso e o político), bem como performances e rituais. Há uma hibridação entre dois mundos, o da subjetividade carismática e o da política. Um vereador, oriundo da RCC (Curitiba, Paraná), publicou um depoimento em uma página eletrônica, afirmando

A minha caminhada política começou [...] cedo. Além de meu pai ter sido prefeito de Piem, eu era empregado de um deputado. Junto deste deputado, montamos na Assembléia Legislativa [...], um grupo de oração, [...] Grupo Menino Jesus de Praga. Em 1998 nós entramos para a Renovação Carismática. Logo [...] fui eleito coordenador [...]. E após as eleições, tive uma experiência como conselheiro da RCC e participava da Secretaria Matias. Já em 2000, nós notamos que era necessário fazer um trabalho na secretaria para que se elegesse alguém entre nós. Um político que fosse cristão, [...] comprometido com a doutrina social da Igreja. [...]. Foi feito um discernimento. Mandamos cartas aos coordenadores dos grupos [...] E do discernimento, ficaram quatro nomes [...] A RCC, por ser da Igreja Católica, não pode apoiar nenhum candidato, nenhum partido político, mas as lideranças podem, como cidadãos, apoiar quem eles quiserem. Contamos com o apoio dos 150 grupos de oração de Curitiba. Minha campanha foi feita nos grupos. E em cada grupo que nós íamos havia uma palavra de profecia que estimulava a minha campanha. [....] quando o T.R.E. permitiu que a campanha fosse às ruas, eu participei de uma reunião da Secretaria Rafael com umas 200 pessoas. E logo no fim, um servo da interseção da comunidade AME me disse que tinha tido uma visão, onde eu estava no rotatório onde ficam os três poderes, e que São Miguel estava à minha frente, sangrando uma colossal serpente. E isso significava que eu ganharia as eleições, mas teria que manter a santidade a fim de executar a obra de Deus. Perto de duas semanas antes das eleições, eles tiveram uma outra imagem. Estava eu cercado de serpentes, e Nossa Senhora se aproximava de mim com muita luz, cegando as serpentes. [...]. Uma palavra que Deus colocava repetidamente nos grupos de oração era Samuel 17. E que ganharia, pois lutava em nome do Deus verdadeiro.[...] Pois, com apenas 30 mil reais, doados por irmãos da renovação (concorrendo com candidatos que gastaram 8 milhões) eu ganharia, mesmo não aparecendo entre os 100 mais votados. Eu ganharia, mesmo sem outdoor, sem carro de som, com um comitê de 37 metros quadrados. Era realmente Davi contra Golias. Depois de todas as visões, numa palavra de exortação, Deus falou no meu coração para ir ao Santíssimo Sacramento. Eu já fazia missa diária, e comparecia ao Santíssimo da meia-noite ás duas da manhã. [...] quando Deus me deu a vitória. Fizemos 3251 votos, contra candidatos que fizeram 8 mil e não entraram. Eu sei que teve ajuda da Virgem Maria e que foi vontade de Deus. Era impossível ganhar as eleições sem carro de som, sem ônibus, sem cartazes. Eu só tinha o meu santinho. (2003, http://www12.brinkster.com/jesusvive/abretest.asp?tjv=10. Acesso em: dez 2005. O grifo é nosso).

Nos trechos grifados, a ritualidade e a performance próprias da RCC alargam-se para um novo território: a política. Termos como vontade e missão tornam-se estruturantes de um modo de se expressar. Há um encantamento religioso na atuação política dos carismáticos: visões e imagens no lugar de pesquisas de opinião, santinhos no lugar dos gastos de campanhas. Contudo, são recursos que mobilizam todo um ethos compartilhado por milhares de pessoas, assegurando uma legislatura em nome de um princípio moral, e veladamente da Igreja e da RCC. Por outro lado, a estratégia política da RCC é ambígua, pois em algumas regiões do Brasil apóiam candidatos, em outras não, preferindo “orientar” ou divulgar, entre as lideranças e adeptos, os candidatos “escolhidos” por Deus.

Sobre votos e versículos

Conforme Miranda (1999), a atitude de afastamento da política na RCC começou a mudar a partir do projeto de implantação das secretarias nacionais em 1993, transformadas em ministérios a partir de 2004. Aí, a visibilidade do tema “política” começou a se fazer presente no movimento.[1]

Antes desse projeto, existiam iniciativas individuais de alguns católicos identificados com a RCC, de concorrer a mandatos políticos (legislatura municipal, estadual e federal), iniciativas que, se não expunham o movimento como “alinhado” a um candidato ou a um partido político, acabavam por colocar as “linhas” de força e de fuga que traçam os contornos do “voto” e da posição católico-carismática em face da política. As posições políticas na RCC tendem a não se expressar institucionalmente em apoio a esta ou àquela ideologia partidária, ou a este ou àquele candidato. Ao contrário, tendem a ser diluídas nos pronunciamentos oficiais da Igreja (encíclicas e outros documentos eclesiais), acompanhadas pelas batinas, quer dizer, pelos diretores espirituais designados pelos bispos, em nível regional e pela CNBB, em nível nacional.

Segundo um informante,[2] nas primeiras eleições diretas para presidente, vésperas do Plano da RCC chamado de Ofensiva, houve pronunciamentos explícitos, que promoveram dissonâncias em algumas regiões:

Lembro-me da época em que Collor foi candidato. Era a primeira vez que a RCC era agitada, eu acho que açoitada, pelos ventos da política. Isso quase provoca um rompimento na direção nacional. Houve conflitos, principalmente quando, em São Paulo, uma líder se deixou fotografar e apoiou Collor, num jornal. A manchete que provocou a reação fora: ‘A RCC apóia Collor’. As reações mais veementes diziam que a RCC não é um partido político e que deveriam ser respeitadas as opções de cada membro. A RCC não deveria cerrar fileiras em torno de candidato A ou B.

Uma fala interessante. Nos planos de análise dos autores, as Ceb’s são colocadas como antítese da RCC. Nas eleições de 1994, estes dois movimentos marcharam divididos entre os candidatos presidenciais Luís Inácio “Lula” da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) e Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). (Prandi; Valentin, 1997). Na pesquisa do Instituto Data Folha em 1994, os percentuais de votação da RCC e das Ceb’s eram:

Tabela 1 – Intenção de voto para presidente da República – Eleição de 1994:

Fonte: Prandi; Valentin (1997: 176). Obs.: Os destaques nos números são dos autores do texto.

Perceba-se que, apesar das ênfases de análise (os destaques nos números), tanto católicos carismáticos quanto católicos das Ceb’s tiveram índices de intenção similares, particularmente em relação ao “tucano” Fernando Henrique Cardoso. Abaixo, os índices de rejeição de 1994 dão maior clareza à questão:

Tabela 2 – Índice de Rejeição – eleições presidenciais – 1994

Fonte: Prandi; Valentin apud Prandi, 1997: 176. Obs.: Os destaques nos números são dos autores do texto.

Havia uma clara rejeição dos carismáticos a “Lula” em 1994. Isso não se repetiu em 1998 e em 2002, quando o discurso de “Lula” e sua imagem sofreram alterações (a forma de vestir, a aparência pessoal, etc). Mas o que chama a atenção é, entre outras coisas, um índice elevado de rejeição a “Lula” nas próprias Ceb’s: 35,8 %. As análises sociológicas devem ser matizadas para não reproduzir dicotomias e para buscar a compreensão acerca do fenômeno.

Na eleição de 2002, os carismáticos, que já tinham votado em “Lula”, cerca de 22,1% (Prandi; Valentin, 1997: 176), continuaram votando nesse candidato com uma alteração percentual superior à registrada em 1994, tendendo a dissolver certas objeções levantadas.

No atual ministério Fé e Política, o discurso sobre o “político” começa a ser encampado. Um dos sinais seria o uso, na “pregação” (momento-chave do discurso “espiritualizado” da RCC), de temas relacionados à política: candidaturas, projetos legislativos, doutrina social da igreja etc. Quando os grupos de oração são usados como espaço de lançamento de candidaturas, surgem conflitos e resistências (Miranda, 1998). Mas o uso desse espaço suscita uma questão: a quem apoiar? São inúmeros os católicos carismáticos afinados com o discurso de tendência conservadora da RCC, disputando a indicação da liderança do movimento.

No que diz respeito à imbricação de posições valorativas relacionadas à “moralidade religiosa” característica desse movimento, o universo da política sugere um “retrocesso” em relação ao grau de laicização do ambiente das leis, das normas e da política. Mas seria um “retrocesso” ou uma forma tradicional de atuar no campo político?

O ponto de inflexão será dado pela forma organizada como a RCC tende a evoluir neste campo. Em muitas cidades, a temática da política já ocupa parte do tempo da “pregação” sem tantos conflitos assim. A “equipe” do ministério Fé e Política percorre os grupos de oração da RCC divulga projetos, realiza seminários e encontros de formação nessa área. Tal fato contrasta com o que Miranda (1999) identificou em diversas candidaturas em regiões do Nordeste: o ônus era individual. Essa estratégia foi usada durante as eleições municipais de 2000, quando muitos candidatos foram lançados. Em Juiz de Fora, com o respaldo da RCC local, o candidato alcançou cerca de mil e setecentos votos.

Na página eletrônica oficial da RCC no Brasil, é possível ler no link ministério Fé e Política, uma nota “oficial” de 2008, na qual se lê:

O Ministério de Fé e Política é o serviço da Renovação Carismática Católica para a evangelização da política, a partir da experiência do Batismo no Espírito Santo. Como a política é “um espaço”, evangelizar a política consiste em evangelizar “o político”, ou seja, aquele que é vocacionado ou está no exercício da vida pública. Desenvolverá programa e projetos que visem a evangelização e formação daqueles que são chamados ao exercício da política, visando a conversão dos corações e o compromisso com o Reino de Deus, tendo por fundamento a Doutrina Social da Igreja para todo e qualquer cristão. Não tem por finalidade apoiar nem formar partidos políticos ou realizar campanhas eleitorais. O apoio a candidatos às eleições deve acontecer no nível das comunidades eclesiais, de comum acordo com seus pastores. Cabe aos Conselhos Estaduais e aos Diocesanos, decidir a forma com que apoiarão ou não os candidatos, após ouvirem os Grupos e Comunidades. Caso o candidato ocupe algum cargo de coordenação, deve-se afastar durante o período da campanha eleitoral. “A Renovação Carismática Católica não tem e nem apóia candidatos especificamente, mas apóia e incentiva a participação na política daqueles que se sentem chamados a este serviço”. O serviço que a RCC presta, através da Secretaria Matias, é no sentido de promover oportunidades para a evangelização e formação. Deve-se evitar instrumentalizar a RCC para campanhas eleitorais bem como “transformar os Grupos de Oração em palanques”. Os candidatos assumidos pelas comunidades deverão desenvolver suas campanhas sem prejudicar as atividades da Renovação Carismática Católica, bem como evitando outras prioridades para Grupos de Oração e Comunidades de Renovação. (http://www12.brinkster.com/jesusvive/abretest.asp?tjv=10. Acesso em: abr/2003).

Para contrastar com essa lacônica nota “oficial” do Ministério Fé e Política, transcreveu-se logo abaixo o trecho de um documento “oficial” do “Núcleo de Formação da Secretaria Matias” (atual Ministério de Fé e Política), publicado nos arquivos da mesma página eletrônica acima. No arquivo dessa página, a data de publicação está assinalada o ano de 2006. Assinado pelo então secretário nacional da Secretaria Matias, Manoel Felismino dos Santos, este documento enumerava uma série de ações e objetivos a alcançar em relação à relação Fé e Política na RCC, entre eles:

1- Eleger parlamentares identificados com a Doutrina Social e Política da Igreja e estreitar as relações destes com a comunidade.
2- Articular as relações suprapartidárias para o desenvolvimento da Doutrina social e política da Igreja.
3. Identificar e difundir a bibliografia e material de formação adequadas à proposta da Secretaria Matias
4. Implantar cursos de formação política [...]
5. Superar as barreiras impostas pelas relações partidárias e ideológicas
6. Superar as resistências da RCC sobre a questão política em muitas dioceses
7. Implantar a Secretaria Matias nas Dioceses
[...] 10. Buscar integração em projetos de formação política oferecidas pela CNBB.
V - ORIENTAÇÕES e CONSIDERAÇÕES GERAIS
Algumas sugestões para fortalecer e dinamizar a ação da Secretaria Matias [...] - Colaboração com projetos e iniciativas que visem a criação e centros de estudos para a formação em Doutrina Social da Igreja. - Colaboração com a Coordenação da RCC a nível Diocesano, Estadual e Nacional, em obediência ao Projeto Nacional de Evangelização e Diretrizes da Ofensiva Nacional de Evangelização do Conselho Nacional da RCC. - Escolha do Secretário Matias é da competência da coordenação Diocesana, ou Estadual e Nacional, conforme a instância de serviço. Como critérios, recomenda-se tempo de caminhada, testemunho na RCC, fidelidade à Doutrina Social da Igreja e vocação reconhecida e discernida pela comunidade da RCC.
[...] - Geração própria dos recursos, em nível diocesano, que viabilizem a realização das atividades com cobertura dos respectivos custos. Para tanto deve buscar orientação da Coordenação Estadual e Nacional, aceitando patrocínios e doações, desde que não comprometam sua independência e neutralidade político-partidárias. VI – CONCLUSÃO [...] Entretanto, necessitamos do apoio de todas as lideranças e demais membros da RCC, para que se possa alcançar os objetivos definidos nesse Projeto. Também não realizaremos essa obra se o Projeto da Ofensiva Nacional e da Secretaria Matias estiverem vinculados a projetos políticos de natureza pessoal ou partidária, que comprometa a autonomia deste Projeto. [...] Fraternalmente, em Cristo Jesus. São Paulo, 10 de março de 2001. Manoel Felismino dos Santos. Secretário Nacional Matias. Colaborou na elaboração deste programa, o Professor César Saldanha. (http://www.rccbrasil.org.br/minist/show_textos.php?aba=minist&nome=txt_000052.php&titulo=Projeto.Nacional.da.SecretariaMatias. Acesso em: jun. 2008.)

Pelos desafios, pode-se ver as tensões nas quais o movimento carismático se encontra ao tentar equilibrar seu discurso e atuação dentro dos limites do próprio movimento e das linhas da Igreja Católica através de documentos divulgados por órgãos como a CNBB.

A visão de que a política é uma esfera estranha à espiritualidade, quando não hostil, ainda prevalece na maior parte dos grupos de oração e do movimento. Enquanto isso, os neopentecostais e pentecostais não encontram dilemas e conflitos maiores e fecham apoio ao candidato “eleito” pelo conselho de pastores ou ainda, a partir de reuniões entre os adeptos. Há uma mudança de estratégia, com um pesado investimento na mídia, inclusive de grupos religiosos resistentes a esse procedimento, como as assembléias de Deus (Machado, 2001).

Um esboço do gradiente político carismático e de suas estratégias

A estratégia do movimento carismático elegeu candidatos, mas o espectro político é variado, mas predomina o espectro de centro-direita. Em Minas Gerais, ainda em 2006, existiam os seguintes deputados: Osmânio Pereira (federal) e Miguel Martini (estadual), ex-líderes da RCC, que migraram do PSDB para o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em São Paulo, Salvador Zimbaldi (deputado federal, PSDB), César Quirino (deputado federal, Partido Verde). No Rio de Janeiro até 2005, Carlos Dias (PP),[3] autor da lei que “esquarteja” o ensino religioso por confissão religiosa. Há também uma pequena presença de políticos ligados ao movimento carismático até em partidos como o PSB e o PT.

Em outro nível, a RCC, por ser um movimento fortemente implantado a partir das paróquias e dioceses, tem elegido alguns vereadores com relativo sucesso: Antônio Bueno, em Curitiba (PR), Francisco Pereira da Silva, Unaí (MG); Carlos Zito, em Maringá (PR).

Em Juiz de Fora, o candidato apoiado pela RCC, em uma estratégia que deixou conflitos, como a unificação em torno de algumas candidaturas, com apoio cerrado das lideranças carismáticas, chegou a obter em torno de 1100 votos, mas não foi eleito.

Faixas e cartazes foram distribuídos e o candidato falou nos grupos de oração como membro da Secretaria Matias e assumindo sua candidatura como sendo da RCC e da Igreja. Em outras cidades, “santinhos” de diversos candidatos apoiados pela RCC continham dizeres como: “se você quer mudar com fé, de verdade, se você quer um candidato católico, real, que lute pela Igreja, vote em ...”.

Em uma reunião para membros da RCC, em 2002, um dos líderes do movimento na diocese de Juiz de Fora, enfatizava o enorme esforço de mudar o ethos do movimento como um todo, já que a maioria ainda permanecia distante das empolgadas “pregações” da antiga secretaria Matias. Dizia ele: “Vejam bem. A gente pegou um povo com consciência política zero e conseguimos mais de mil votos. O trabalho foi enorme” (Informação verbal obtida a partir de entrevistas com membros que estiveram presentes à reunião). Na percepção da maioria dos membros dirigentes, o “projeto” da RCC é simples.

Em 1994, o vereador em Campinas (SP) Salvador Zimbaldi se elegeu deputado federal. No domingo se reelegeu com 182.760 votos. O tucano mais votado em São Paulo. Católico integrante da Renovação Carismática, Zimbaldi semeou a estrondosa votação com basicamente dois gestos. O primeiro foi o de não medir esforços para evitar a aprovação do aborto e a união civil entre homossexuais. O segundo, foi desembaraçar os entraves burocráticos para a concessão de duas emissoras de TV UHF: a TV Brasil Cristão e a TV Canção Nova, ambas no interior de São Paulo e ligadas à Renovação Carismática Católica (RCC). Ele foi o único candidato a deputado federal em São Paulo adotado pela RCC. Fez campanha em mais de 400 grupos de oração espalhados pelo Estado. Em Minas, a RCC apostou suas fichas no tucano Osmânio Pereira, eleito com 62 mil votos. No Paraná e na Bahia, a RCC não conseguiu eleger seus candidatos, mas fez bancadas estaduais em São Paulo, Maranhão, Tocantins, Mato Grosso, Paraná e Minas. A estratégia da RCC está montada. Os católicos de determinada região pedem aos prefeitos a instalação da estação repetidora. O prefeito doa o terreno, a Igreja compra os equipamentos e os deputados liberam o sinal em Brasília. Para que a força parlamentar se amplie, a RCC tem planos futuros. Está criando um instituto para trabalhar sob o tema fé e política. Explica Zimbaldi: ‘Não queremos trazer partidos para dentro da Igreja, como feito no passado. Mas queremos ampliar nossa participação política’.[4]

Essa longa citação fornece a medida do crescimento desse fenômeno, algo que a pesquisa de Oliveira (1978) quase não constatava. Mas aponta para uma análise sociológica primária: o discurso voltado ao próprio grupo e montado na estratégia de avanço através dos meios de comunicação. Carranza (2000) aponta o momento em que a RCC se lança nos meios de comunicação como o um dos fatos que marcam a entrada do catolicismo no concorrido mercado religioso brasileiro. Um mercado de oferta de bens e serviços simbólicos em que a dimensão do consumo religioso é fundamental.

Esse consumo circula intensamente entre carismáticos, mas também entre outras religiosidades, contando com o lançamento de cantores (padres e leigos) e objetos que ou apontam para a reinvenção da tradição ou simplesmente mergulham a oferta de bens e serviços na corrente “pós-moderna” de sincretismo cultural. Por isso, tão importante quanto a oferta dos bens (e aqui a oferta é também de discurso político ou de valores morais, junto com candidatos que os encarnam) é o sentido que adquirem. A oferta desses bens e serviços configura a identidade do movimento carismático em face de outros grupos internos (Ceb’s, pastorais e outros) e externos (outras religiosidades cristãs e não cristãs).

Atualmente impressiona a velocidade com que as lideranças da RCC tentam imprimir uma mudança de rumo na visão de mundo e ação do movimento religioso, já que o Ministério Fé e Política (antiga secretaria Matias) é um projeto nacional e sua implantação tem ocorrido nas dioceses ao longo do Brasil.

Contudo, o discurso religioso não pode ser transposto de maneira mecânica para o plano da política, por isso é necessária uma pesquisa maior, uma etnografia da prática “religio-política” desse movimento, para que se possa “traduzir”, sem distorções, o significado de expressões como “sal da terra”. As estratégias da RCC têm mudado à medida que o envolvimento coletivo cresce. No seguinte Informativo de uma diocese paulista, pode-se ler:

Seminário de Fé e Política — Nos dias 3 e 4 de fevereiro de 2000, a RCC (Renovação Carismática Católica) promoveu o I Seminário de Fé e Política. O evento ocorreu em Tupã. O palestrante foi o professor Cezar Saldanha Souza Júnior, doutor em Direito Constitucional e professor da UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Dentre os assuntos tratados, estiveram filosofia política, instituições políticas e as dimensões do ser humano: religião, ética e política. De acordo com os organizadores do evento, o objetivo do seminário foi desenvolver um trabalho sobre a visão cristã na política nos dias de hoje. Estiveram participando do evento 16 vereadores, 30 advogados e professores universitários (Informativo da Diocese de Marília, 2000: 03).

Além dessa estratégia de expandir-se nas universidades e aliar-se à inteligência universitária, o estabelecimento de “ministérios” que cuidam da articulação política na RCC, é muitas vezes colocada sob a orientação de membros da hierarquia eclesiástica:

Nos dias 25 e 26 de março, foi realizado um encontro com os coordenadores de cidade e de grupos de oração no Lar Santo Antônio, em Tupã. No encontro foram discutidos os trabalhos da RCC para o ano 2000. Além do coordenador diocesano da RCC, Reinaldo de Souza Alguz, esteve presente o Monsenhor Nivaldo Resstel, assessor da Secretaria Matias, que falou aos presentes sobre o tema "Fé e Política". Durante o encontro, os coordenadores de cidade e grupos de oração puderam expor idéias e conhecer o trabalho desenvolvido pela coordenação diocesana da RCC. O evento foi encerrado às 17h do domingo, com uma missa, celebrada pelo Pe. Wilson Luiz (Informativo da Diocese de Marília, 2000: 03).

Isso poderia refinar melhor a primária análise sociológica. Será difícil, no entanto, encontrar um consenso de como votam os carismáticos. Contudo, a fase de iniciativa individual parece ceder lugar à outra, uma nova etapa de mobilização que se caracteriza por uma atuação grupal e não apenas individual. Nesse ínterim, a RCC tem elegido candidatos a vereador, como em Belo Horizonte e outras cidades, com a mesma estratégia da RCC de Juiz de Fora: propaganda e capitação de fundos mobilizada em conjunto com as lideranças, “palestras” para grupos de oração e outros mecanismos.

As eleições presidenciais (1994 e 2002) e as posições dos carismáticos

Em relação aos partidos políticos, a RCC não opta por um em particular, mas se insere em diversos, apesar de existir, em 1998, um pequeno partido (PHC) cujo candidato se declarava, nas eleições de 1994, da RCC, Vasco Netto (Miranda, 1999).

Em 2002 tal fato não ocorreu, concentrando-se as posições em torno dos quatro candidatos majoritários: Luis Inácio “Lula” da Silva (PT); José Serra (PSDB); Ciro Gomes (PPS) e Anthony Garotinho (então do PSB, agora PMDB). A divisão dos votos foi ampla, acompanhando mais ou menos o cenário nacional.

Como podem ser notadas, algumas posições antigas tornaram-se menos consistentes em determinados setores da RCC. É preciso levar em conta o contexto eclesial e social no qual o movimento está inserido em cada diocese. Posições políticas são assumidas com maior desenvoltura, algo que não ocorria antes.

O deputado federal Osmânio Pereira, quando esteve na diocese de Juiz de Fora, para apresentar sua candidatura às lideranças do movimento, afirmou a necessidade de se transformar a política. Em seu discurso aos líderes, e citou um fato ocorrido com ele numa igreja: durante a oração, o assunto da política veio à tona e uma senhora teria dito, aproximadamente, a seguinte expressão: “Vamos guardar o Santíssimo, tirar as bíblias de perto porque esse assunto é podridão”. (Informação Verbal obtida a partir de entrevistas com pessoas que estiveram presentes à reunião em 1994). O deputado afirmou que, inspirado pelo Espírito Santo, disse que Jesus deseja renovar, mudar o mundo, e que era necessário que o cristão se torne sal e luz para o mundo e para a sociedade.

Um dos versículos bíblicos mais citados pelos carismáticos para justificar um envolvimento com a política é extraído do evangelho de Mateus, capítulo sete “sede sal da terra e luz do mundo”(Bíblia Sagrada, Evangelho de Mateus, capítulo 5 versículo 13, página 197. Tradução Ecumênica, São Paulo, Paulinas/Loyola, 2006) muitos outros versículos sejam citados nas orações, em momentos de louvor ou em curso de formação.

Com o decorrer do tempo, as Ceb’s vincularam o compromisso cristão à luta por justiça social e participaram (e participam) ativamente da vida política do País, associando-se aos movimentos de reivindicação social e a partidos políticos de esquerda. Apesar do aparente declínio que experimentam a partir de 1990, continuam em atividade milhares de núcleos em todo o País. Em 2000, de acordo com pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro, existiam cerca de 70 mil núcleos de Comunidades Eclesiásticas de Base no Brasil.

Considerações Finais

O sociólogo Sorj (2000: 33) constata que a sociedade brasileira, apesar de ser religiosa, não conheceu os embates entre Estado/Igreja que caracterizaram a formação das nações européias, afirmando que “... a religiosidade brasileira, assim como a cultura, está ‘desligada’ do sistema político (...), pois a constituição das instituições políticas modernas não se deu nem pela integração, nem pela contraposição ao discurso religioso” (2000: 33).

Na verdade, assiste-se a uma redefinição das relações ente religião e política, de conotações ainda não esclarecidas, pois o que foi abordado neste tópico é apenas um indicativo. Existem outros exemplos, como a expansão da Igreja Universal, a chamada bancada “evangélica”, que remonta à Constituinte de 1986, entre outros fatos.

São conotações que não trilham as relações tradicionais entre religião/política formatadas pelo conflito religioso/secular das sociedades européias, mas que certamente “conectam” o discurso religioso ao político, no Brasil, em outros termos.

Assim, é necessário questionar as tradicionais fronteiras e análises feitas ao se focarem tais campos. A RCC não é a mesma da analisada por Oliveira: shows, eventos de massa, padres cantores, linguagem midiática e cibernética, e, enfim, a participação política. Na citação a seguir, do jornal “”O Estado de S. Paulo” (2000), percebe-se isso:

A Renovação Carismática Católica (RCC) realiza, em Aparecida, no interior paulista, entre os dias 17 e 21, o seu 19º Congresso Nacional. São esperados cerca de 10 mil delegados de todo o País. Durante cinco dias eles ouvirão pregações, participarão de cerimônias religiosas e discutirão a unidade e os rumos da RCC, que já mobiliza cerca de 12 milhões de seguidores em todo o País, segundo os cálculos da coordenação nacional do movimento. O encontro também será marcado por concentrações em locais públicos, animadas por músicas de inspiração religiosa. O padre Zeca e a sua banda, do Rio, estão entre as atrações programadas. Para as pregações foram convidados cinco bispos, além de padres e leigos. Estará presente ainda a pregadora americana Patty Gallagher Mansfield, que presenciou o surgimento do pentecostalismo católico nos Estados Unidos. Nos debates sobre fé e política, os carismáticos deverão incluir o tema das próximas eleições. Normalmente, a RCC apóia de maneira aberta os candidatos comprometidos com as propostas que ela defende. Há poucos dias, num encontro realizado em São Paulo, a coordenação local decidiu apoiar dois candidatos à Câmara Municipal: Manoel dos Santos Felismino, do PSDB, e João Elias, do PSB (Arruda, 2000: 5).

Nas novas linguagens do religioso, as tradicionais dicotomias são revistas, desmontadas e invertidas. O sagrado desloca suas tênues fronteiras sobre os aspectos profanos. É preciso certo cuidado analítico ao dizer que o projeto Ultramontano e Romanizador é retomado, ou que há pura e simplesmente uma re-catolicização, como querem algumas análises sociológicas.

O fato é que suas fronteiras se deslocaram dos dons extraordinários (línguas, profecia, curas) para o ordinário. Uma reedição de Weber? Tais processos em que as fronteiras dos dons carismáticos se espraiam pela prática política sugerem um reencantamento e, simultaneamente, um afastamento da política enquanto uma esfera de atuação da razão secular, social e, no caso das Ceb’s, de um projeto transformador da sociedade? Talvez sim, mas é preciso pensar que ao adentrar no campo da política, as práticas e categorias “nativas” dos carismáticos (missão, vocação, dons) sofrem uma “retradução” ou uma resignificação, operada no interior da relação que se dá entre os próprios carismáticos e outras esferas da religiosidade católica (as diretrizes da CNBB) e esferas sociais (os partidos políticos, os outros projetos e movimentos sociais).

Por isso, é preciso, portanto, levar em conta estes novos aspectos: a performance (pelo exercício dos chamados dons carismáticos) e as mídias (as TVs e a internet), constituidores de novos contextos rituais e dialogais. Por assim dizer a crença, a fé, os dogmas e os mitos cristãos, deixam o etéreo espaço das bíblias e da imaginação religiosa, para tornarem-se palpáveis, ao alcance das mãos, encarnados em discursos políticos e em serviços simbólicos. Em outras palavras uma transição, constante, da ontologia/mitologia ao metafórico/psicológico. Contudo essa “tradução” nunca é a mimese fiel, impelindo a reinterpretações da “tradição”, ela mesma estilizada numa vivência em certa medida estética, perdida de sua inocência original, mas que assim aparece aos olhares carismáticos.

Busca-se, nesse movimento de entrada na política, a frágil construção de uma ética (no sentido weberiano) em meio a um mundo fragmentado; um mundo pronto a rugir contra o centramento de fronteiras, mas paradoxalmente insensível ao emparedamento da identidade em “mônadas” de diferenças, nas quais o diálogo, entre os grupos religiosos (e sua interpretação por parte da teologia, da política) e a sociedade, torna-se tortuoso e cheio de “curtos-circuitos”.

É necessária, portanto, uma análise da liturgia e do rito político (bem como das estruturas de valor dos projetos de poder oriundos dos movimentos sociais e religiosos), cotejado e abalroado por batinas, bíblias (bem como da diversidade interpretativa da qual seus versículos e livros são objetos) e louvores de guitarra e violão, em meio a sites e chats da juventude e do movimento carismático.

Bibliografia

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SORJ, B. 2000 A nova sociedade brasileira, Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

Notas

[*] Antropólogo, mestre e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de sociologia, antropologia e metodologia - Faculdade Machado Sobrinho (FMS), Faculdade do Sudeste Mineiro (FACSUM) e Faculdades de Santos Dumont (FSD), Minas Gerais, Brasil.

[1] As secretarias nacionais têm extensões regionais e diocesanas. Elas são um dos fatores de racionalização e organização da ação religiosa ou não, no movimento. Foram criadas a partir do Plano de Ofensiva, em 1994. Originalmente criadas para assessorar, se tornam hoje fonte de institucionalização da prática carismática. Em 2004 elas mudaram de nome, passando a se chamar Ministérios. Existem cerca de sete, dedicadas a diversas funções/questões relativas à cura/libertação; a promoção social; a catequese/formação dos membros, aos sacerdotes e seminaristas, a música e as artes em geral, e ao envolvimento político.

[2] Trata-se de um padre simpatizante da RCC, em entrevista concedida em 13/16/2003.

[3] Carlos Dias não foi reeleito. Em entrevista à Revista ComCiencia, Revista Eletrônica de Jornalismo Científico da SBPC (http://comciencia.br/200407/entrevistas/entrevista2.htm), ele é apontado como o autor da lei n. 3459 que instituiu o ensino religioso confessional. Essa lei foi sancionada em setembro de 2000 pelo governador Anthony Garotinho. As aulas de religião ficam divididas por credo, são facultativas e integram o calendário normal das escolas públicas, desde a educação infantil até o ensino médio. Já foi realizado, inclusive, um concurso público para contratação professores de religião confessional. Na entrevista, ao ser perguntado pela revista quais eram os seus objetivos quando propôs a lei, respondeu: “Acho imprescindível que se inclua nos currículos escolares uma formação que [...] integre a pessoa também numa condição de conhecimento de si próprio, da sua natureza [...]. As religiões de fato se associam a essa construção da integralidade da pessoa. [...] Essa lei é pioneira no Brasil. Ela dá chances para que as escolas ofereçam uma formação religiosa integrada ao processo de conhecimento. [...]. Eu acho que esse ambiente escolar será um ambiente de promoção humana. Não é simplesmente ensinar alguém a rezar, porque a catequese se aprende em casa, nas igrejas”. Baseando-se nesse argumento é possível questionar as motivações desse projeto de confessionalizar o ensino religioso. Se todas as religiões oferecem uma visão importante, não é necessário compartimentar, e sim criar uma forma aberta e dialogal de tratar o ensino religioso, por exemplo, a partir das ciências da religião, buscando a compreensão do fenômeno religioso na diversidade de suas manifestações.

[4] Em fins do século XIX e início do século XX houve a tentativa, por parte de alguns leigos católicos e sacerdotes, de fundar um partido católico. Isso provocou reações muito fortes no clero. Chegou-se até mesmo a elaborar uma Lista Eleitoral Católica, LEC, mas não houve repercussão entre os eleitores que assumiam o catolicismo como religião.